Romão de Januária
Quando cheguei já o João da Luz começara a contar o caso e os outros
todos se lhe haviam grupado em de redor, curiosamente. Era o serão do costume:
no meio havia um monte de mandioca e os caboclos, sentados em toros de pau ou
em tamboretes baixos, agachados, iam dali tirando as raízes enlameadas e descascando-as.
A história do João da Luz fizera esmorecer o trabalho
mas, ainda assim, ouvia-se o rumor das pequenas facas recurvas sobre as crostas
das mandiocas e as raízes desnudadas e brancas eram de contínuo atiradas para o
lado sobre uma esteira grande.
"Fazia três dias naquela tarde, dizia o João da Luz, que o
Zé Borboleta tinha ido para o Córrego Fundo, dando repasso naquele potranco
ruço queimado que foi do Major Felício e que o patrão tinha dado a ele para
adornar. Oh! cavalo danado aquele!... Nem
lhe sei dizer mesmo, minha gente, se um bicho assim não era até o demônio para
tentar e perseguir um homem...
Mas o rapaz era destorcido como nenhum e saltou em
riba do macho sem medo, no primeiro dia de repassar. O potro pulou feito um doido.
Aquilo o terreiro da fazenda ficou assim de povo para apreciar o tombo do peão.
Mas, qual!... O Borboleta ainda metia
a chilena na barriga do poldro que o animal gemia que nem gente. Depois de muito corcovo, o cavalo disparou
pelo curral a fora, saltou a cerca e foi pelo campo numa vereda, de galope
feito uma flecha.
O Antônio Reinaldo e os outros que correram atrás, foram
topar com o poldro, lá adiante, caído no meio do açude, e o rapaz em cima, de
espora, metendo o rabo de tatu, berrando com o bruto... Foi preciso pedir ao
homem para não matar o cavalo, que o patrão ficava danado, se não ele não saía
de riba do bicho nunca.
Tiraram os dois de lá encharcados, e o cavalo emagreceu com o repasso
que até pesteou um pouco. Teve de ir para o gordura e, quando foram buscá-lo
outra vez, já estava bravo e arisco que era um veado.
Foi nessa outra vez de repassar
o piquira que houve no Córrego Fundo aquele
mutirão do João Vitória, e um batuque sarado de noite.
O moço, mal soube da festa, arriou o cavalo (já estava
até meio escurecendo) e ainda teve de correr à roda do bicho para montar, que
ele estava boleador e mesquinho, dando só cada pinote e cada bufo que a alma
até lhe parecia querer sair pelas ventas...
Mal o Borboleta sentou no arreio
e meteu a tala, o ruço queimado saiu num
trote largo, só refugando, torcendo para cá, para lá, e o rapaz quebrando o
animal, dando cada soco na rédea que a boca dele já estava que era sangue só.
A coitada da Nhá Maria Velha ainda falou assim, antes dele ir:
— Olhe, Zeca... você ainda se machuca com esses cavalos...
— Qual o que, Nhá Mãe! O homem morre no dia e não na véspera.
E partiu no galope do poldro, só esbarrando-o e quebrando-o, que o animal já ia
banhado.
***
Pois é como eu lhes estava contando... Naquela tarde
fazia três dias que o Borboleta tinha ido para o Córrego Fundo e desde então
Nhá Maria andava num susto de morte. Vivia rezando para Nossa Senhora, fazendo
promessa e mais promessa!...
O Córrego Fundo era perto, umas cinco léguas, no mais,
e na toada daquele poldro o rapaz podia estar lá em duas horas. E, ainda que
tivesse passado a noite na catira, no outro dia bem pudera estar de volta. E a
pobre da velha tinha um pressentimento ruim, pensando na braveza do poldro, nas
buraqueiras do caminho, cuidando que o filho tivesse ficado estendido no fundo
de alguma cata, se porventura caísse do cavalo...
E era o dia inteiro de rosário na mão, terço e mais terço para as almas...
Pois naquela tarde (o sol já ia entrando), a velha estava catando uns gravetos
em frente da tapera dela, ali no Mundo Novo, quando ouviu de repente umas vozes
e enxergou logo os vultos de três mulheres que vinham caminhando para o lado
dela. Firmou bem os olhos e conheceu que eram três raparigas das Águas, a
Celestina, a Cota e a Januária, três criaturas perdidas e de quem a Nhá Maria
tinha uma birra enorme. E não deixava passar ocasião de falar mal delas, "três
tipas ordinárias que não perdiam função, só para andar desencaminhando os
rapazes, fazendo briga e barulho em toda a parte. Olhem, ainda no outro dia, Zequinha
Lopes não enfiara a faca no Lino? E eram todos dois rapazes de juízo,
trabalhadores... Foi tudo por amor delas, cambada!"
***
Nisso vinham chegando as três, a Cota na frente, toda regateira, com um lenço
vermelho na cabeça, por amor do sol, com um vestido azul de ramagens que tinha
a barra toda suja de lama. E mal enxergou a velha, pegou a falar, só se rindo:
— Hi! hi! hi!... Boas tardes, Nhá Maria; então, como vai? Está catando
gravetos?
— Boas tardes, minhas filhas, estão vindo da festa, respondeu a velha,
sopitando a raiva que tinha daquelas malandras. Digam-rne uma coisa, o seu Zeca,
não viram se ele ainda estava lá?
— Está lá, Nhá Maria, no fundo de uma cama, gemendo!
— No fundo de uma cama!... Virgem Nossa Senhora!... Mas, que foi, que
foi que aconteceu? Ele caiu do cavalo?...
— Uai!... Pois vancê não sabia? Nós nem chegamos a dançar. Não houve
festa por amor disso. Nós, desde anteontem que viemos, estávamos ali na casa da
Januária, no Marimbeiro.
A velha já nem escutava mais nada. Pôs as mãos na cabeça,
com os olhos vidrados, feito louca:
— Por que é que não me avisaram? quando foi? me conta, gente! que é
dele, machucou muito? Celestina, minha filha, me conta!
E a velha chorava que fazia dó na gente.
— Olhe, Nhá Maria, eu lhe conto. Quando o seu filho chegou lá, já era
de tarde, o sol já tinha entrado. Nós estávamos na porta do curral, no alto da
escadaria de pedra, vendo o Camilo da tia Joanna, que queria apartar uma vaca
de bezerro novo, brava feito onça. A vaca investia com vontade, e o Camilo já
tinha pulado para fora da cerca e estava trepado no moirão da porteira dizendo
que não havia ali um cabra de coragem capaz de apartar aquele bezerrinho.
Nisso chega o seu Borboleta e
vai a Januária virou assim para ele:
— Como é, seu Zéca, eu amanhã quero comer leite daquela vaca e não tem
um homem de sustância que vá apartar a bezerrinho?...
Todos então pegaram a desafiar o moço:
— Então, seu Zéca, não vê? A moça está falando... O rapaz nem se
houvera desapeado. Tocou o cavalo para perto de nós e falou:
— Uai, dona! Que é que vancê me dá se eu apartar o bezerro? dança
comigo?
— Danço a noite inteira com vancê.
Mal a Januária falou assim, o moço tocou o animal, empurrou a
porteira e entrou no curral. Ninguém imaginava o que ele ia fazer; estávamos
todos pasmos, e os homens pegaram a falar:
— Que é isso, seu Zéca? Olhe que a vaca lhe chifra o cavalo.
Ele nem respondeu, virou para nós e disse:
— Olhe a catira, moça!
E tocou o cavalo para o lado da
vaca brava, e, quando chegou bem pertinho, agachou de repente, agarrou o
bezerrinho e botou em riba dos arreios, em tempo de levar um tombo do animal.
O bezerro largou um berro, a
vaca veio em cima, o cavalo pegou a pular... Os cachorros entraram no terreiro
e era só au! au! au! que parecia uma caçada.
Nem lhe sei contar mais nada. A gente só via os solavancos do poldro, a vaca
em riba do cavalo, de cornadas, e o Borboleta abraçado com o bezerro, tocando
o cavalo para o cercado de apartar, e gritando:
— Eh!... moçada, conheceu?! Nós gritávamos:
— Largue, seu Zéca, venha-se embora!
Mas ele ou não escutava ou não se importava. De repente,
escureceu de poeira! A vaca destripou o pingo com urna cornada e foi em cima do
rapaz que o rolou no chão! O cavalo caiu já morto e o moço havia de ficar
também despedaçado, estraçalhado de todo, se o seu João Vitória não tivesse
perdido o amor da criação e não metesse uma bala na testa da vaca. E ainda foi
Deus, a bala não ter pegado o moço...
E ficaram ali, todos três, estirados.
Quando a Celestina acabou de
contar o fato a Nhá Maria Velha, que
estava chorando e se lastimando desde o princípio, parou de repente, com os
olhos secos, brilhando, e virou para a Januária, com uma gana de morte:
— Então, bruaca sem vergonha, foi você que matou meu filho! Ah!
ladrona, cadela do diabo, se tu não inguiçasse, ele não se machucava, demônia!
Tu me hás de pagar, deixa estar, tu me hás de pagar!...
E a mulher estava que nem uma
cobra danada, dando cada bote na outra que quase lhe metia as unhas na cara.
***
Vancês sabem o sítio onde era a casa do Borboleta. Tem
ali para baixo aquelas pedreiras altas que vão dar no rio. Elas estavam bem no
alto da pedra grande, mesmo na ponta, aonde vai dar a estrada do Marimbeiro.
Quando a Nhá Maria Velha estava xingando a Januária, vinha chegando ali um
filho dessa rapariga, que tinha ficado para trás. Era um curuminzinho de seis
anos, por nome Romão.
A velha, quando viu chegar a
criança, redobrou de raiva e desandou a
dizer, tremendo, com a boca espumando, como quem está com o maligno no corpo:
— Tu também tens filho, diaba! Tu ainda hás de saber o que é andar
matando filho dos outros. Eu te mostro, eu hei de te mostrar, tu te hás de
arrepender, bruaca!
Ninguém esperava o que a velha aprontou naquela hora: —
agarrou o rapazinho pelos braços e atirou com ele pelas ribanceiras a baixo, de
maneira que o menino foi arrebentar a cabeça nas pontas das lajes do rio. A
água ficou num instante vermelha que nem tinta!
As três raparigas quando deram pela coisa, já a danada
da velha ia longe, correndo, com os cabelos soltos, voando, feito a crina de
uma égua disparada!
E nesse gosto ela caminhou a
noite inteira, soltando cada grito rouco que parecia um uivo de sauá. E os galos já estavam amudarido, a barra do dia
já ia aparecendo, quando ela desceu o morro do Córrego Fundo naquele mesmo
galope de animal. Enveredou pela casa do João Vitória adentro e foi parar no
quarto onde estava o filho, com a cabeça toda enleada de pano, estendido no
catre, feito defunto. A coitada da velha caiu de joelhos, agarrou a mão do moço
e pegou a beijá-la, sem parar.
O rapaz estava fraco que nem
dava manifesto de nada; mas quando ele viu a mãe, ergueu um pouco a cabeça e sorriu.
Depois, com uma voz baixa,
sumida como um sopro, ele principiou a falar, devagarzinho, sé parando para gemer, com a suspiração cada vez
mais difícil:
— Ah! Nhá Mãe, vancê fez bem de vir aqui. Olhe, eu vou morrer, mas não
queria... levar um pecado... que tenho. Eu quero lhe contar... e lhe pedir...
um favor. Vancê faz, Mãe, vancê faz?
A voz dele já estava que nem na agonia mesmo. A velha não
parava de chorar... Nós todos, ali, estávamos sucumbidos de tristeza.
— Eu faço, meu filho, eu faço o que você quiser. Ai! meu Deus, Nossa
Senhora da Conceição!...
— Olhe, Mãe, eu lhe conto... Eu fiz uma coisa mal feita... um dia. Eu
perdi... uma rapariga. Ela teve um filho... Eu lhe peço, Mãe, vancê olhe por
ele e.... por ela. Tudo o que é meu é para ele: meu cavalo... meu socado... a
faca de prata...
Mal falou isso, caiu outra vez
nos travesseiros como desacordado.
Das brechas da cabeça estava saindo outra vez uma porçãozinha de
sangue.
— Mas quem é, meu filho, como se chama ele, como é? E a velha se
debruçava na cama, abraçando o filho, beijando-lhe a cara inteira. Todos ali
estavam num silêncio de morte. Alguns choravam. Outros ajoelhados aos pés do
catre, de rosário na mão, já tinham pegado a rezar o responso. A modos que o
rapaz já estava morto e bem morto.
De repente ele estremeceu e, já na agonia mesmo, fez uma força, abriu os olhos e
falou um nome que só a velha é que escutou. Escutou, largou um grito e nós
ouvimos o baque do corpo dela no chão.
Arredaram a coitada para um
canto, botaram a vela na mão do defunto e,
quando foi de tarde, pusemos o corpo dele numa rede e levamos para o arraial.
Quando voltamos, soubemos que a
Nhá Maria Velha tinha sumido. Foram achar
o corpo dela, daí a uns dias, no sumidouro, para baixo do lugar onde morreu o
Romão.
Depois é que se soube que esse rapazinho era o filho do
Borboleta...
---
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...