6/30/2019

Romântico (Conto), de Henrique de Vasconcelos



Romântico
— Ajude-me a servir o chá, primo...
Levantou-se. Na quase obscuridade da sala, que tinha uma luz violácea — coada pelos vitrais onde se curvam lírios roxos — Clara parecia nascer dos tapetes, como uma graciosa e alta flor de espuma. "Toilette" branca e ligeira, como penas de ave, toda em musselinas, apenas indicando a elegância do seu corpo fino, ia morrer no tapete branco...
Ia por entre os moveis, oferecendo as chávenas onde fumegava o chá perfumado, que da China trazem lentas caravanas, por tortuosos caminhos. O seu corpo ágil descrevia carinhosas curvas. O ruído das conversas continuava... Um "flirt" a um canto murmurava, como se as palavras ficassem nos lábios. Paulo, de grupo em grupo, uma chávena na mão, contente por ser alguma coisa, junto dela, tinha na boca um sorriso beato.
Naquela tarde nem conversava. Entravam e saíam as visitas, umas apressadas, — "apenas para saber de ti, Clara"— outras morosas, dando "rendez-vous" no salão elegante e discreto, onde na meia luz quase se não conheciam as pessoas, podia-se estar sem ser visto. E Paulo, calado, num fauteuil a um canto, sorria para si próprio, olhando a figura indecisa de Clara, os cabelos louros, na sala como enevoada onde apenas o fogão, por baixo do paraféu, tinha um brilho vermelho.
Lembrava-se de todo o comprido caminho percorrido desde aquela noite em Cascais, em que o impressionara a graciosidade de Clara, o seu aspecto de flor fresca, sempre em toilettes leves, abundantes em gazas, crepons tênues. Certamente que, companheiro e parente, admirara sempre a beleza da prima, mas seguira outros caminhos, nunca reparara bem para o enigma perturbante dos olhos verdes, para a elegância moderna, feita de graça, a gentil figurinha de Boldini, princesa de cera e de seda, cujas mãos eram dignas de ver florir entre os dedos os anéis mais preciosos que Vever e Lalique inventam, em combinações de moribundas gemas. Nunca olhara bem para ela com olhos de ver. Habituara-se desde a puberdade a vê-la. E seus cobiçosos olhares procuravam outras mais distantes, que julgava conhecer menos, pelo encanto do imprevisto.
Mas essa noite! Como lhe aparecia ainda, depois de tantos meses, nitidamente, essa noite de um céu leitoso, com uma lua enevoada, que se espalhava sobre o mar, sem brilho. Na varanda do Cassino, quase deserta, os Auers incidiam fortemente sobre Clara. No mar, embaixo, fogachos prateados tremiam. E além, as raras luzes da Cidadela; na Esplanada os focos esverdeados tiravam da sombra manchas de palmeiras e listravam de luz a água inquieta, gemebunda e misteriosa.
Paulo, recostado numa cadeira, olhava a mancha mais negra do yacht real, apagado, apesar das suas lanternas que tremeluziam no mar. O charuto caíra-lhe da boca. Foi uma frase preciosa de Clara que o acordou:
— Quem me dirá um dia a cantilena do mar? Como ela embala! Como seria bom dormir a ouvir junto de nós a suave cantilena!
Paulo olhou para ela surpreendido. Pois quê? Clara, a última florescência dos raouts e dos teas, teria frases de heroína de Rosseti, seria leitora de Ruskin? Foi então que reparou nos olhos cheios de sonhos e de mistério, na boca dolorosa, a vermelha e fina boca, no seu colo de infanta apenas núbil, em toda a adolescência que se conservava intacta no corpo precioso, como um fruto no gelo.
Começou então a segui-la. Dura lhe foi a vida em teatros, jantares e bailes. Não faltava a uma sauterie, a uma party, que dantes o deixavam indiferente, ficando nas intermináveis partidas de bluf. A dolorosa expressão que na boca se vincara naquela noite do Cassino desaparecera; um grande contentamento da vida parecia boiar à flor dos olhos garços e os movimentos rítmicos, que ela fazia, como se fosse ao som de uma música, eram livres, felizes, sem promessas.
Não voltar o abandono daquela noite! Paulo desejava que Clara outra vez abrisse a sua alma, para ele sentir a carícia deliciosa.
Mas a mulher amada conservava-se indiferente, risonha, um pouco coquette.
Para os seus madrigais escolhidos, preparados com antecedência, buscados em livros de autores novos, frases perturbantes de Lorrain, perfumados dísticos de Henri de Regnier, licenciosas palavras de Lionel des Rieux, com um sabor antigo, até o próprio d'Anunzio servira para a pilhagem, — para todos esses períodos carinhosos ela tinha o mesmo riso, que abria a boca fina, descorada, que o traço de carmim violentaria a macerada palidez da sua face:
— Ah! Paulo! Ah! Paulo! Apaixonado por mim! Tenho-lhe conhecido tantas paixões? Só na semana passada, três!
— Se não penso senão em si!
— Quando está comigo? Nem isso!
— Clara! Clara! Se me conhecesse bem, veria como a minha alma se fez para si um fresco bordão de açucenas...
E outro riso claro cantava na boca exangue, a troçar da frase pretensiosa.
Uma tarde, num garden party, enquanto no court de tênis as palavras inglesas cruzavam-se e os jogadores corriam, a raquete no ar, eles um pouco afastados, juntos a um maciço de jasmineiros que floria, cobrindo-se de uma renda fina e branca de pequeninos jasmins, Paulo, esquecendo-se das frases decoradas nos romances, deixou sair da boca, livremente, toda a força e toda a ansiedade do amor que parecia abrir-lhe uma chaga no peito, teve palavras em que fulgiam desejos, os olhos brilhavam, enternecidos, agarrou-lhe nas mãos, encheu de beijos as palmas róseas, puxou-a para si, e pode dar-lhe, de surpresa, um grande beijo na boca, sôfrego, que Clara não pode evitar.
Voltada a si do pasmo, espantada pelo insólito atrevimento que a sua ligeira coquetterie não permitira, quis zangar-se; mas voltou a rir-se, como se esse beijo, que lhe deixara na boca um calor de chama, tivesse sido apenas uma frase, das grandes frases de Anunzio, tão cheias de volúpia que entontecem, como os largos cálices das magnólias num pequeno jardim fechado. E sempre a sentir na boca a impressão ardente desse beijo, Clara correu para o tênis, a querer jogar também para esquecer-se.
Era desse beijo que Paulo vivia, tomado de assalto, como numa pilhagem de igreja.
E, apesar de Clara continuar a ser indiferente e risonha para ele, lembrava-se da perturbação que levara à alma ligeira da preciosa bonequinha de Nuremberg; olhos abertos, continuava a sonhar que esmagava os lábios exangues sobre a pressão da sua boca ávida.
Paulo era um romântico. Paulo vivia de pouco, como as aves do céu.

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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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