Resposta às censuras de Vilhena Saldanha
Ajuda, 8 de abril de 1846.
Ilustríssimo senhor redator
da Revista Universal. — São bem
poucas as publicações periódicas que tenho ocasião de ver: entre estas poucas
uma é a que vossa senhoria tão dignamente redige. Recebendo hoje o num. 41,
nele encontro um artigo que diz respeito a um livro recentemente publicado por
mim, o primeiro volume da História
de Portugal. Na breve advertência que precede aquele trabalho deixei
estampadas as minhas previsões sobre a resistência que em muitos espíritos
haviam de encontrar as opiniões que nele segui. Era naturalíssima essa
resistência, e eu seria demasiado imprudente se esperasse que não aparecessem
adversários para as combater; mas a tenção que desde logo formei foi a de não
replicar, ao menos por agora. Lembrava-me (se é lícito buscar para as coisas
pequenas grandes exemplos) a sorte da História
crítica de Espanha, de Masdeu, que não passou dos fins do século XI, porque
o ilustre historiador consumiu os últimos anos da vida em satisfazer cabalmente
aos reparos e críticas que de toda a parte choviam contra aquele grandioso
monumento da literatura castelhana. O artigo do seu jornal me fez, todavia,
refletir de novo no concebido propósito. Ocorreu-me o receio (e havia motivos
para me ocorrer) de que o silêncio se me lançasse à conta de uma orgulhosa e ridícula
crença na própria impecabilidade literária, e de que os autores desses escritos
se persuadissem de que eu menoscabava os seus louváveis esforços em refutarem
aquilo que lhes parecera um erro, e que talvez o é. Longe de mim tal
pensamento. Não pretendi nem pretendo escrever a melhor história de Portugal
possível; mas tenho a consciência de que o meu trabalho é o mais sincero e
despreocupado que neste gênero se fez ainda entre nós; tenho a consciência de
haver buscado a verdade com todo o empenho que em mim cabia. Este louvor, quer
mo concedam, quer mo neguem, sei que o mereço. Quanto a erros, fácil é que
neles caísse. Os que impugnam lealmente as doutrinas, que julgam ser inexatas,
na arena onde essas matérias se tratam e perante o supremo juiz, o público,
esses merecem respeito e não desprezo. O desprezo pertence aos bufarinheiros
literários, aos críticos de soaleiro e encruzilhada, que discreteiam nas tertúlias
de ignorantes, porque têm medo de confiar à imprensa aquilo que poderia
servir-lhes de corpo de delito e de instrumento de castigo. O desprezo é para
aqueles que, tendo vivido sempre duma reputação imerecida, só sabem explicar a
obra da inteligência e do amor da verdade por motivos abjetos e torpes.
Pertence-lhes o desprezo: não o nego; mas ainda assim não posso dar-lhes o que
é seu. Proíbe-mo o coração. Destes desgraçados tenho dó; dó como Dante o tinha
das sombras empegadas no Malebolge. Sinto unicamente que a sinceridade me não consinta
dizer-lhes com o fero gibelino:
Giá t'ho veduto coi capelli asciuti.
A razão por que hei de
abster-me de responder por enquanto aos que me combatem ou combaterem, é
porque, fazendo-o, satisfaria o meu amor próprio; não o fazendo, cumpro o meu
dever. Anunciei a publicação anual de um volume da História Portuguesa: é uma
obrigação que contraí para com muitos centenares de maus cidadãos, como eu, que
não se escandalizam da falta de
patriotismo que reina no mal-aventurado livro. Se não quiser faltar ao
empenho que tomei, cumpre-me não consumir o tempo, que tão rápido foge, em
debater as objeções da crítica. Hei de estudar todas as que se estribarem em
argumentos e provas serias; hei de aproveitá-las quando me convencer de que sou
eu que não tenho razão. Mas pretenderem que abandone a prossecução do trabalho
principal para voltar atrás, e discutir de novo vinte vezes aquilo que só
escrevi depois de larga discussão comigo mesmo, seria pretenderem o impossível.
Se nunca se me oferecer ensejo para dissolver as dúvidas que se me opuserem, ou
se as não apreciar bem, ou se, enfim, elas forem concludentes, outros virão
depois de mim, que por esses marcos levantados no terreno da história possam
evitar os fojos em que eu tiver caído. Quando mais nenhum serviço houvera feito
às letras Pátrias, ao menos deve-se-me ter sido a causa de que mãos mais
robustas que as minhas levantem esses padrões à ciência, e contribuam assim
para a glória literária do nosso país.
Apesar, porém, da
necessidade que tenho de guardar silêncio em defesa própria, não posso acabar
comigo que cerre aqui o discurso. Há tanta cortesia no artigo do seu
colaborador, que seria talvez pouco decente o recusar comparecer no tribunal
aonde me cita. Há juízes por quem o réu condenado conserva respeito: há outros
que ele detesta ainda depois de absolvido. Naqueles a nobreza do ânimo e a
honestidade de proceder explicam o fenômeno; nestes explicam-no a rudeza do
entendimento e a brutalidade ou injustiça nas formas. Pertence ao número dos
primeiros o nobre censor a quem me refiro; por isso assentar-me-ei por algum
tempo no banco dos criminosos para lhe responder.
Duas ponderações graves há
no artigo, a que aludo, contra o meu livro: ponderações que a serem exatas
importariam a acusação merecida de haver eu defraudado a nação da sua árvore
genealógica, e de um dos mais importantes feitos de armas — a conquista da
cidade que veio a ser a capital da monarquia. Culpa da vontade ou culpa da
inteligência; fosse o que fosse, o livro era condenável. Pus a doutrina, e
aceito-a em todo o rigor para mim: mas o que não aceito, sem que o digno autor
do artigo do seu jornal as reconsidere, são as provas que apresentou contra
mim.
Estabeleci por três modos a
não identidade dos lusitanos com os portugueses: não identidade de território;
não identidade de ração; não identidade de língua. O autor do artigo sentiu
como eu que, na falta complexa destes três principais caracteres dos que
distinguem a individualidade das grandes Famílias humanas chamadas nações, a
sua unidade na sucessão dos tempos desaparecia. Tratou, portanto, de provar-me que
não era essa unidade uma simples preocupação sem fundamento histórico.
Procurarei examinar os seus argumentos com a brevidade e clareza possíveis.
Diz ele que, sendo Estrabão
o que mais estreitou os limites da Lusitânia, a dilatou entre o Tejo e o Douro,
isto, é pela Beira e Estremadura; que, formando estas duas províncias o centro
e base principal do moderno
Portugal, não podem os portugueses deixar de se ter na conta de descendentes
dos lusitanos, pois os acessórios são
sempre absorvidos pelo principal; e que a Estremadura espanhola não pode
chamar-se Lusitânia por ficar alguma porção desta fora dos limites de Portugal.
Eis aqui o primeiro
argumento a favor do nosso lusitanismo. Mas o que quis o nobre crítico dizer
chamando à Beira e Estremadura base de
Portugal? Será em consequência de serem hoje as duas províncias centrais de Portugal no continente da
Europa? Não posso alcançar como esta circunstância delas estarem no meio deva
fazer com que todos os portugueses se considerem como representantes de uma tribo
ou agregado de tribos que aí estanciaram, em parte, há dois ou três mil anos.
Permita-me ele lembrar-lhe que, por esse título, outros com maior rigor
geográfico exigiriam que fôssemos entroncar a nossa história com as dos pretos
da África; porque dos territórios que pela lei política do país constituem
atualmente o reino do Portugal e Algarves, é de certo modo a África o
território mais central da monarquia. A verdade é que o estar tal ou tal
província atualmente no centro, ao sul, ou ao norte, nada significa nesta
questão. O que importaria realmente seria saber se a Lusitânia, antes dos
romanos, ocupava a maior porção do território, em que se constituiu depois
definitivamente a nação portuguesa no século XIII, e se aí foi o núcleo da
monarquia, agregando-se depois a essa província as outras ao sul e ao norte. É
o que o ilustre autor do artigo parece pretender chamando à Beira e Estremadura principal parte de Portugal, e às
duas províncias ao norte do Douro e às duas ao sul do Tejo acessórios. A geografia e a história
conspiram, porém, contra ele neste ponto. Tira à Estremadura o bem medido terço
dela que demora ao sudoeste do Tejo, reúna com a Beira os dois que ficam, e
diga-me depois se o Minho, Trás-os-Montes, Alentejo, terço da Estremadura, e o
Algarve, oferecem uma superfície menor do que a Beira e a Estremadura ao
noroeste do Tejo. Repugna não menos a história à denominação de acessório dada às províncias de
Trás-os-Montes e Minho. Durante a reação cristã da monarquia asturiana-leonesa
contra os sarracenos, a Beira é que foi acessório de Trás-os-Montes e Minho; e existindo já Portugal
como reino independente, a Estremadura é que foi acessório das três províncias ao norte dela. Se o fato da
acessão serve para alguma coisa na matéria, nós temos de entroncar-nos com os
antigos calaios, mais do que com os lusitanos.
Não cabe num artigo de
jornal mostrar com a autoridade do maior e mais antigo historiador da conquista
romana na Espanha, Políbio, citado (de um dos seus livros perdidos) por Estrabão,
que uma tribo de turdetanos ou túrdulos se estabelecera na parte ocidental da
Beira, ficando separada dos caláicos
pelo Douro; — que, assim, nem sequer pelo lado do oceano os limites de
Portugal são os mesmos dos lusitanos anterromanos; — que ainda quando os vetões
não fossem uma tribo lusitana, o que é muito duvidoso, nem por isso a Lusitânia
deixaria de entrar pela Estremadura espanhola; — e que, por tanto, não
concordando por nenhum lado circunscrição territorial daquelas tribos com a do
nosso país, não há identidade de Pátria entre a raça antiga e o povo moderno,
tanto mais que é certo ser o território dos lusitani, antes das divisões romanas, a menor porção do Portugal
constituído definitivamente, com a conquista da província sarracena de Chenquir,
no meado do século XIII.
O nobre autor do artigo
crítico ao meu livro, parecendo acusar-me a mim de confundir as divisões
administrativas da Espanha debaixo do domínio romano com a divisão anterior dos
povos indígenas, é quem na realidade confunde as duas espécies para me provar
que o Alentejo era território dos lusitanos, fazendo os sucessos do tempo de
Viriato anteriores ao domínio romano. Pois este domínio não estava estabelecido
desde o tempo de Públio Cornélio Scipião? Não foi a guerra do chefe lusitano um
verdadeiro levantamento? E por onde há de provar-me que no tempo dos pretores o
território do Alentejo não foi junto à Lusitânia própria só
administrativamente, e que era povoado de lusitano? Não se opõe a semelhante
opinião o texto formal do mais antigo e particularizador dos geógrafos que
descreveram a Espanha, Estrabão, o qual nos diz: "Tago transmisso (lusitani) finitimos infestarunt"?
Eu não disse, como o meu
crítico assevera, que toda a
Andaluzia e Estremadura espanhola se podiam arrogar o título de lusitanas: o
que disse foi que, se o haverem os lusitanos estanciado numa parte do nosso território nos
desse o direito de os considerar como antepassados, esse direito pertenceria também à Estremadura, à Galiza, e à
Andaluzia. A diferença infinita das duas proposições é óbvia. Não creio a
segunda mui difícil de demonstrar, tanto mais sendo certo que a parte lusitana
é a que constitui a menor porção do
nosso país.
Tratando da prova de não
identidade deduzida da transformação das raças, o autor do artigo por paridade
de circunstâncias estende as conclusões, que daí tirei para provar a minha
doutrina, à Inglaterra e à França. Essa objeção nenhuma força me faz. Creio
tanto que por este lado os ingleses e os franceses representem os kimhris e os gaels, como creio que nós representamos os lusitanos. A história incertíssima
desses povos só pertence à França e à Inglaterra por identidade de território.
É uma consolação para os genealógicos daquelas duas nações que não estou
resolvido a invejar-lhes.
Diz o meu adversário, a quem
não posso deixar de atribuir o epíteto de pródigo pelos demasiados elogios com
que adoça as suas repreensões, que, apesar de todas as conquistas em qualquer
país, a raça indígena sempre fica sendo muito mais numerosa. Não sei se assim
devemos figurar-nos as associações ou substituições de raças, principalmente
tratando-se das migrações asiáticas que povoaram o sul da Europa. Essas tribos célticas,
sumérias, indo-germânicas, ou o que quer que fossem, deviam ser mui pouco numerosas
pelas razões que ponderei no meu livro. Logo que começou a ocupação da
Península pelas nações civilizadas, fenícios, cartagineses, e romanos, os
homens capazes de combater (e entre os selvagens são-no quase todos)
principiaram a sair da Espanha pelos motivos que também lá se apontaram, ao
passo que as colônias dessas nações se estabeleciam largamente neste solo.
Quero conceder-lhe que a vinda de gregos, fenícios e cartagineses não
transformou senão por um terço o sangue indígena; que também a colonização
imensa e sistemática dos romanos não o alterou senão por outro terço; e que a
chamada especialmente invasão dos bárbaros só por outro terço o corrompeu.
Chega depois a conquista sarracena. Veem à Península bereberés, árabes, negros;
quantas castas de gente na África e em grande parte da Ásia seguiam o
islamismo; estabelecem-se; repartem as terras; fundam ou povoam cidades: os moçárabes,
ou descendentes, dos romano-godos, ficam como sumidos no meio desta aluvião de
novos habitadores de ambos os sexos, de todas as condições e idades. A reação
começa nas Astúrias; a guerra dilata-se; a assolação e a morte reinam por
séculos; os francos veem dalém dos pireneus ajudar frequentes vezes os seus correligionários;
a Berbéria é um manancial perene de novos colonos africanos; os chefes sarracenos
usam da antiga política romana, e levam milhares e milhares de moçárabes para
os empregarem nas suas empresas além do estreito: e a Espanha continua a ser céltica!
Na segunda metade do século XII achamos Afonso I e Sancho I povoando com colônias
estrangeiras os desertos da
Estremadura e do Alentejo; desertos porque
a guerra tinha sido viva por estes distritos durante trinta ou quarenta anos; e
todavia, apesar de quinze ou vinte séculos de invasões e guerras, talvez ainda
mais atrozes, a raça lusitana predominava nos rareados habitantes de Portugal!
Talvez. Mas a mim figura-se-me isso como uma ideia absurda. Repugna-me. Será
curteza de inteligência.
Quanto à língua não
contesta o meu contendor que a origem da nossa seja a romana: o que afirma é
que a mudança essencial de língua não prova a mudança essencial de raça. Uma
coisa que desejava me explicasse era porque naquelas partes da Espanha, da
França, e da Inglaterra, onde pela história sabemos que as conquistas e colonizações
sucessivas de estranhos não puderam no todo ou na maior penetrar ou fixar-se,
os dialetos que ainda aí se falam hoje discordam absolutamente das línguas
gerais destes países e se derivam das primitivas. Trato com os conquistadores
mais civilizados tiveram-no sempre os welshes,
os bretões, os biscainhos: a diferença esteve só em não se estabelecerem
fixamente entre eles os novos senhores do seu país. Uma coisa me há de conceder
o nobre crítico, e é que os lusitanos, tão curiosos de não deixarem perder a
sua casta no meio de tantas revoluções e da entrada de tantas gentes estranhas
por vinte e cinco ou trinta séculos, andaram um pouco descuidados neste negócio
da língua.
Pelo que respeita a dialetos,
e a gramaticas, e a artes, e a medalhas anteriores ao domínio romano, falta
provar que isso tudo é vestígio, não dos fenícios, gregos e cartagineses, que
se haviam estabelecido na Península antes dos romanos, mas sim das tribos célticas.
Quanto às medalhas de letras desconhecidas, permita-me o atilado censor que,
com Peres Baier e Masdeu, antes as tenha por fenícias, púnicas, gregas, e ainda
latinas, do que por célticas.
Não chamei selvagens às tribos
da Espanha antes da civilização romana: chamo-lho antes de toda a civilização,
quer fenícia, quer grega, quer cartaginesa, quer romana. Não está mais na minha
mão: cada vez que falo num lusitano, num caláico, num pelendão, num arevaco,
dos primitivos e puros, figura-se-me logo um aimoré, um tapuia, um tupinambá, sarapintado
e coberto de penas, de quem juro que nenhum dos atuais brasileiros quer ser descendente;
e o mais é que lhe acho alguma razão, apesar de que têm decorrido pouco mais de
três séculos desde o tempo em que no Brasil só havia dessa gente, e desde que
aí se têm estabelecido colônias, não de cinco povos civilizados e de seis ou
sete bárbaros, mas só de portugueses e até certo ponto de holandeses.
Nunca pensei que os
lusitanos me fizessem tornar a escrever tanto na minha vida! Vamos a assuntos
mais sérios.
A segunda para da censura
envolve uma questão de crítica histórica. Na opinião do nobre censor a minha
não foi das melhores quando narrei a tomada de Lisboa. Vejamos porque:
1º - As duas fontes a que
quase só podemos recorrer sobre este fato são as relações dos dois testemunhas
oculares, Arnulfo e Dodéquino: ora estas foram escritas por estrangeiros,
e como tais ávidos de glória
para si e para os seus: logo a sua narrativa é suspeita. Os portugueses
contentaram-se com a tradição.
2º - Não é provável que os
portugueses nada fizessem senão subirem à torre de madeira para de lá descerem
aterrados pelos tiros dos cercados.
3º - O combate de Sacavém
não se segue que não existisse por se não mencionar nas ditas narrativas. Entre
Santarém e Lisboa havia povoação moura. Que coisa mais natural do que ser Sacavém
um ponto fortificado, que servisse de atalaia a Lisboa? O combate nesse lugar é
não só provável, mas quase necessário.
4º - Um autor não pode desprezar de todo as
tradições para dar inteira fé aos documentos, quando estes não têm todos os
caracteres que o mereçam, senão em parte.
Eis as objeções críticas à
narrativa da tomada de Lisboa. Não alterei senão a ordem delas, porque me
facilita o resumir-me na resposta.
1º - Não é exato que quase
só tenhamos as relações de Arnulfo e Dodéquino para a tomada de Lisboa. Além de
muitos outros historiadores coevos estrangeiros, que trataram do sucesso mais
ou menos largamente, temos os portugueses: quatro que o mencionam em poucas
palavras, e um, o autor do Indiculum de
São Vicente, que o refere com maior extensão ainda que Dodéquino. Servi-me de
todos para apurar uma ou outra circunstância. Do Indiculum, que é português, tirei tudo o que ali se encontrava. E
já se vê que é inexato o que o ilustre censor diz sobre o ficar entre nós só a
tradição. Cinco escritores para o mesmo acontecimento, em tempos nos quais se
escrevia pouquíssimo, não me parecem provar que os nossos avós se mostrassem
inclinados a entregar à tradição oral (a que o censor se refere segundo creio)
a memória da tomada de Lisboa. Também não me parece que tenha razão em afirmar
que a narrativa de estrangeiros, porque eram estrangeiros (como tais), fica suspeita. Salvo se o censor me demonstrar que eles
naquela época eram mais mentirosos que os portugueses. Faz-me isto lembrar
involuntariamente de que em Paris um francês é para dois ingleses, em Londres
um inglês para dois franceses; em Lisboa um português para trinta castelhanos,
e em Madrid um castelhano para trezentos portugueses. São opiniões. Eu estou
tão persuadido de que, em regra, um homem é para outro, como o estou de que
tanto pode falar verdade ou mentir um português como um mouro, um judeu, ou um
chim.
É natural, não o nego, que
pertencendo Arnulfo e Dodéquino ao corpo dos cruzados se mostrassem mais
atentos a narrar as façanhas dos seus que as dos portugueses; mas que queria o
nobre autor da censura que eu fizesse? Que inventasse outras para atribuir a
Afonso Henriques e aos seus guerreiros? Decerto não. O que me cumpria era
examinar se a narrativa dos dois estrangeiros continha alguma coisa improvável
para a rejeitar. Aponte-me, porém, o que há improvável no que aproveitei dessa
narrativa. É omissa a respeito dos portugueses? Mas estes podiam fazer
maravilhas sem que os estrangeiros deixassem de praticar o que deles contam os
dois cruzados. Do que eu não tenho culpa é de que não chegasse até nós a
memória de tais maravilhas.
Peço ao douto censor que
observe bem a relação do Indiculum.
O frade português (ao menos tenho-o por tal enquanto se não provar o contrário)
é o que faz os maiores encarecimentos sobre o valor dos cruzados. Dele é o período
que transcrevi em nota a página 377. Em toda a carta de Arnulfo nada se lê que
iguale esse período. Por que não diz o frade outro tanto dos seus? Quem o
souber que o explique.
Mais: Afonso I mandou
durante o cerco construir dois cemitérios — o dos francos e o dos ingleses — um
ao oriente, outro ao ocidente, para sepultar os mártires de Cristo que morriam
pelejando. Por que não mando construir outro ao norte para os portugueses?
Parece que morriam menos, e os que morriam se acomodavam com os hóspedes. O
fato dos dois cemitérios não é de Arnulfo; é do Indiculum.
2º - O que é verdade é que
Afonso I era um homem grande; grande capitão e grande Político quanto um
soldado rude o podia ser. Sem esses dotes não se funda uma monarquia, sobretudo
no meio das dificuldades que ele superou. O mais natural é que poupasse os seus
veteranos para outras ocasiões arriscadas, que não lhe faltariam, nem faltaram,
e que na tomada de Lisboa se aproveitasse habilmente do caráter cobiçoso,
violento e audaz dos aliados para poupar quanto fosse possível os súditos. Quem
anda lido nos cronistas daquela época sabe que os tais mártires de Cristo em pressentindo
avultado despojo atrás de qualquer muralha eram capazes de a desfazer com os
dentes; e Afonso I lhes cedera o saco da cidade. Vertendo o sangue para
conquistar esta, trocavam-no por ouro; perecendo, conquistavam o céu. Naquele
tempo associavam-se bem o entusiasmo religioso e a cobiça.
A história de vacilarem os
portugueses no eirado da torre de madeira, nem é improvável, nem os desonra.
Eles estavam habituados a combates campais e não a assédios regulares de
grandes praças. O testemunho de escritor coevo, Ibn-Sahib, nos assegura que o
sistema ordinário do rei de Portugal para se apoderar dos castelos muçulmanos
era o dos cometimentos noturnos e inesperados, não o dos sítios regulares.
Acresce, como consolação, que esta circunstância mostra terem entrado em
combate os portugueses no dia do ataque decisivo.
3º - Supondo que o recontro
de Sacavém fosse provável, não era isso motivo para mais do que para o narrar,
se o tivesse encontrado em algum escritor, não digo coevo, mas ao menos do
século XIII ou ainda do princípio do XIV; mas onde aparece pela primeira vez
mencionado tal acontecimento? Num documento do século XVI. O enfeixador de
patranhas Duarte Galvão não apanhou esta. É pena que o tal documento, em cuja
feitura interveio o grande velhaco de D. Cristóvão de Moura, não fosse
conhecido de Galvão nem de Acenheiro, aquele famoso historiador que nos conta
os espantosos casos dos pés de malvas, de que se fizeram trancas de portas, e
do ouriço que comeu o pintainho dentro da casca do ovo. Mas aos olhos de uma
pessoa de juízo, como reputo o meu censor, bastariam para desacreditar a tal
tradição, que esteve escondida quatro séculos sem que dela houvesse a menor
notícia, as circunstâncias absurdas de que vem lardeada, como entrarem no
combate de Sacavém mouros de Tomar, isto é, de um território deserto (Bula de Urbano III aos templários,
no Arquivo Nacional, gav. 7 mac. 9) doado em 1159 por Afonso I àquela ordem que
aí fundou Tomar em 1160 (Inscrição, no Elucidário,
t. 2 p. 359), e a outra circunstância de andar, antes da tomada de Lisboa,
Afonso Henriques passeando em Cintra, o ponto mais forte e importante que os
sarracenos possuíam no distrito de Belata, salvo Santarém e Lisboa, segundo o
testemunho do contemporâneo Edrisi, e cuja conquista, conforme a cronologia da
crônica dos Godos e dos crônicones conimbricense e lamecense, foi posterior ao
menos de alguns dias à de Lisboa.
No que me parece que o meu
erudito impugnador se deixou levar demasiado da sua imaginação, é em
supor quase necessário o
combate de Sacavém, porque era
provável que aí houvesse um castelo ou lugar forte. O seu raciocínio é
este:
Entre Santarém e Lisboa
havia gente moura:
Atqui:
É provável que entre Lisboa e os cristãos houvesse um ponto fortificado, que
servisse de atalaia a esta cidade, e Sacavém era o ponto mais apto para isso,
porque tolhia o passo aos cristãos.
Ergo:
Vieram mouros de Tomar socorrer Lisboa; Afonso I, tendo passado por onde não
podia passar, mandou gente atrás para os repelir; e o combate foi quase por
força em Sacavém.
O monstruoso e desconexo
deste raciocínio é óbvio. Quanto ao passar Afonso Henriques por onde não podia
passar, dir-se-á que ele fez um quarto de conversação à direita e marchou por
Loures sobre Lisboa. Isso, na suposição de estar fortificada a passagem de Sacavém,
ou de não haver aí passagem (o que é mais natural), ocorre facilmente; mas é
preciso confessar que os engenheiros sarracenos, que empregaram braços e
dinheiro em fazer uma obra que não defendia nada, nem servia para nada,
mereciam pingados e aspados, segundo a forma expedita da justiça muçulmana,
para os seus colegas tomarem tento em não malbaratarem assim os morabitinos do
Estado em destemperos de taipa e pedregulho.
4º - Vamos à última
observação, que é a primeira na ordem em que as fez o meu respeitável
impugnador. Quer ele que eu me ativesse às tradições, não dando inteira fé aos
documentos, quando estes não a merecem plenamente. Já fica provado que a sua
regra não serve para o caso presente. Mas, ainda em geral, ela me parece falsíssima
por falta de distinção. Que não se dê fé inteira a um documento que não a
merece em todas as suas partes, é uma destas verdades como — o sol dá luz — que
não vale a pena de se escrever; mas o que eu não vejo é que de ser insuficiente
ou, até, nula a autoridade de um documento ou monumento coevo ou quase coevo se
siga que a tradição fica forte e segura. Se ela for absurda ou infundada, continua
a sê-lo, valha ou não valha o documento. Parece-me que o simples senso comum
basta para assim se crer.
É preciso, todavia,
convirmos sobre a ideia que havemos de associar à palavra tradição. Se entendemos a tradição oral,
que só aparece, dizendo-se muito, muito, muito antiga, três ou quatro séculos
depois do fato a que se refere, sem que dela se encontre a menor sombra nos
monumentos coevos ou quase coevos em que naturalmente se devia mencionar,
confesso ao meu douto impugnador que o único sentimento que essa tradição
produz em mim é uma grande vontade de rir; porque já, pela experiência, prevejo
que há de ser absurda. Um prolóquio certíssimo da nossa terra é que mais
depressa se apanha um mentiroso que um coxo. Tenho-o verificado tão
frequentemente que cada vez estou mais Faraó, obdurado de coração, contra as
tais tradições. Peço ao meu nobre censor, que me parece pessoa que estuda a
história seriamente, que deixe aos poetas o gritar a favor da tradição oral. Eu
já fui do ofício, e sei que eles têm razão. Os estudos superficiais
pertencem-lhes por direito divino e humano. Se fossem empalidecer sobre os
feixes mofentos de pergaminhos velhos que estão por esses arquivos, deixavam de
ser poetas, porque matavam a imaginação, e eu declaro sinceramente que antes
quisera que nunca houvesse história do que o inconveniente de perder o país um
grande poeta. Portugal tem incomparável mais glória em haver possuído Camões
que em ter tido Fr. Antônio Brandão e Antônio Caetano do Amaral. No que me
parece que eles não são justos é em pretenderem que os historiadores, gente chã
e humilde, sejam por força poetas. Nisso é que anda a implicação retórica demais.
Se por tradição o meu nobre
adversário entende a escrita, subscrevo inteiramente ao seu voto. A tradição
escrita é aquela de que se encontram vestígios nos monumentos ou nos documentos
até a época em que viveram os homens que podiam presenciar o fato a que ela se
refere, ou aqueles que da boca desses homens podiam ter ouvido a relação do
mesmo fato. Esta tradição é segura, se aliás não há circunstâncias que a
invalidem ou modifiquem. Semelhante tradição é a que a história pode aprovar;
mais: é aquela que a igreja só admite para conjuntamente com a autoridade dos
livros sagrados servir de prova histórica ao complexo das suas doutrinas. Esse
ilustrado e respeitável sistema do catolicismo, tão injustamente caluniado
pelas igrejas dissidentes, estava já expresso, muitos séculos antes de nascer a
crítica profana, na regra contida na bela e profunda fórmula de Vicente de Lerins:
Quod semper, quod ubique, quod ab omnibus...
creditum est.
Um ou dois anéis, que
faltem lá no cabo dessa cadeia da tradição, bastam historicamente para tirar ao
fato toda a certeza; porque muitas vezes as fábulas não esperam nenhuns
duzentos anos para nascerem e se incrustarem no tronco da história. Não raro
estas fábulas são devidas à ignorância e não à má fé. Uma passagem e, até, um
nome mal interpretado podem dar-lhes motivo. O erro sobre a origem grega do
conde D. Henrique, erro que grassou entre os antigos escritores espanhóis, proveio,
como o meu censor sabe, de se interpretarem as palavras de Rodrigo de Toledo
"ex partibus bisontinis" das partes de Constantinopla, em lugar
de se traduzirem das partes de
Besançon; mas o que talvez não lhe ocorra é que já Afonso X de Castela
ignorava a verdadeira origem deste seu avoengo, que falecera ainda não havia
século e meio quando ele começou a reinar. Efetivamente na Crônica General, escrita por ele ou
debaixo dos seus olhos, diz-se que o conde D. Henrique era de tierra de Constantinopla (Cron. gener. fl. 300 v.), Mais: o
erro do Nobiliário atribuído ao conde D. Pedro, erro adotado por outros
escritores, de que D. Mafalda mulher de Afonso I era espanhola e filha do
senhor de Molina, acha-se já num resumo de crônica dos nossos primeiros reis,
lançado no princípio de um dos volumes das Inquirições de Afonso III, no Arquivo
Nacional. Aí, por assim dizer, encontra-se a verdade em transformação flagrante
para mentira. Mauriene, donde era D. Mafalda, pronunciava-se Moriana, palavra corrompida nessa
espécie de crônica em Moliana. O
autor dela já supunha que os condes de Haro eram os senhores de Moliana: os que se seguiram retificaram Moliana em Molina, e a fábula tomou definitivamente
o lugar da história. Outras vezes, porém, conveniências políticas ou de diversa
ordem faziam espalhar mentiras em épocas tão próximas àquelas a que se referem,
e sobre fatos tão notáveis, que chega a parecer incrível como havia audácia para tanto. Tal é a história da aclamação em Ourique, mencionada num documento
original de Palmela, do meado do século XIV. Há para a desmascarar mais alguma
coisa do que as ponderações que fiz em a nota XIV do meu livro: é um documento
do Arquivo Nacional anterior trinta ou quarenta anos apenas ao rolo de Palmela,
e de que este é quase textualmente copiado, em que nenhum vestígio se acha da
anedota da aclamação, donde fica mais fácil apurar a data da fábula, e o descobrir
as causas por que foi engendrada. Mas isto para seu tempo, que a presente
resposta já vai demasiado larga. Possa ela não impedir que o meu cortês
adversário continue a examinar criticamente a História de Portugal, e a apontar aos historiadores futuros os
escolhos em que a minha pobre barca tiver naufragado!
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1846, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...