6/06/2019

Redenção (Conto), de João Grave



Redenção

Velho e todo curvado, seguia a estrada tossindo e amparando-se ao seu bordão com que afugentava os cães que pelos atalhos das aldeias
lhe ladravam e o perseguiam.

A madrugada dealbara duma pureza de hóstia consagrada, e o céu resplandecia na sua dalmática azul e ouro, sem a mais tênue mancha de nuvem a empaná-lo. Fazia uma dessas manhãs de inverno de ar fino e gelado que atravessou a neve dos descampados ou a rara verdura de alguma veiga onde os pássaros cantam nas árvores sem folhas. Os montes longínquos esfumavam-se ao longe, numa transparente névoa lilás e a terra jazia num silencio infinito que nenhum ruído perturbava.

Enquanto ia caminhando, o pedinte evocava os tempos em que fora feliz e teve amores e saudades e rosas florindo junto do seu coração humilde. Picava ainda distante a aldeia onde havia de pernoitar, e aproveitava as ásperas horas de jornada e de silencio para se lembrar de coisas doces e ternas. É tão suave regressarás sombras desoladas do passado, quando nelas se reflete raio de luz ou imagem linda que, em fugidios momentos, encha as almas desgraçadas de consolação!

Cruzou-se na estrada deserta, toda rutilante de gelos onde o sol tremia e faiscava com brilhos de joia rara, com dois namorados: — ela, moça e robusta, e de lábios tão frescos e vermelhos que dir-se-iam feitos do sangue das romãs novas, e ele, um desses camponeses de peito amplo, onde latejam pulmões de aço. Espalhavam à volta graça e viço e os seus risos eram sonoros e sem cuidados. A vida, a felicidade, a confiança douravam o futuro dos dois corações, que assim atravessavam a campina, sobressaltados dos desejos fortes da carne e lançavam ao vento sussurrante a sua canção de esperança. O pobre deteve os passos e foi-os seguindo com um olhar imensamente melancólico, em que se adivinhavam saudades e desgraças — um desses olhares que parece vir, como uma claridade expirante, de muito longe, chegando cansado e sem alento! E considerava que também já fora assim, belo e juvenil, iluminado do reflexo de heroísmo de que a mocidade diadema as frontes predestinadas para a adoração e para as batalhas do mundo.

Como se recordava!

Quando era cavador, os seus braços atiravam todo o santo dia a pesada enxada, abrindo os largos sulcos fecundantes da gleba, donde as searas irrompiam com energias selvagens.

Nunca sentia desfalecimentos na amargura do seu destino, e cantava sempre, porque a voz, na sua garganta, era como uma ave continuamente alegre. E agora, Senhor do céu! apenas rezava, estendendo aos acasos da caridade a mirrada mão sem resistência! Que idílios nos seus anos mortos! Que flores desabrochavam outrora, tão perfumadas e vivas, que ainda hoje derramavam na sua angústia hálitos de um aroma virginal! Oh! sobretudo os instantes em que tinha sido amado, o sabor indizível e imaterial do primeiro beijo que zumbira na sua boca, como uma abelha etérea, não podiam esquecer-lhe. Porque fora, certamente, querido com inolvidável ternura!

Volvia os olhos para trás, talvez para as auroras remotas, e pela face encarquilhada as lágrimas caíam, redondas e cristalinas. Mágoas de amor jamais serenam; feridas de Paixão não saram nunca; mel de carícias fica sempre no coração como um aroma perene.

Os noivos perdiam-se nas azinhagas tristes, onde nem as sebes ramalhavam folhas à brisa leve, abraçados, enlevados na mesma aspiração. E ele pensava que a velhice, necessitando de mendigar para viver, é a maior desventura que assalta os homens. Desejava ardentemente, com rigorosa fé, a força, a saúde, o ímpeto de outrora, para revolver a leiva e dormir pelos sarçais tisnados e pelos restolhos mornos das soalheiras, ou então, os repousos eternos da morte, numa cova muito funda e muito aconchegada do seu corpo, onde se não escutassem os rumores, as disputas, as cóleras, as blasfêmias duma efêmera humanidade tão desassossegada no seu degredo...

Uma boeirinha loira e de olhos azuis, descalça e contente, atravessou a estrada, de vara ao ombro, conduzindo os bois fulvos para a pastagem. E todo o seu pequenino busto de linhas puras esplendia de encanto poético e de inocência angélica, dando a impressão de Nossa Senhora quando era pequenina e quando, pelas várzeas de Nazaré, guardava os rebanhos de ovelhas mais brancas do que os lírios de Engadi.

Novamente o pobre deteve a sua marcha rude, vergando sobre a carga da sacola, com as côdeas esmoladas. Apoiado ao cajado, a cabeça descaída para o peito, embebia-se dessa castidade rústica que fazia em redor da criança um nimbo luminoso.

Nas manhãs da meninice, foi pastor também, tangia os gados e trepava às árvores ou rolava nas ervas das colinas. As noites levava-as sonhando com príncipes e moiras banhando o corpo à alvorada ou ao luar nas claras fontes murmurantes.

Uma cigana leu-lhe a sina, por uma tarde serena, anunciando-lhe venturas de que não experimentou a doçura; mas a profecia fora como uma visitação divina em toda a sua vida de misérias, de lutas e de orgulhos calcados, porque esperou sempre e esperava ainda! Oh! Deus do céu, como as palavras humanas, como as ilusões vagas são mentirosas! E, no entanto, a sua crença, como uma açucena dos vergéis celestes, perfumava-lhe os últimos crepúsculos da existência material.

Estava perto do povoado. O ocaso, descendo lentamente, envolvia de mistério a natureza inteira, e os sinos tocavam as Ave-marias.

Bateu à primeira porta que topou, mas ninguém lhe respondeu; mais adiante pediu pousada e negaram-lha. Correu todos os lares, e não encontrou guarida. Então, encaminhou-se para o monte, por entre as trevas da noite, que desciam do alto, desenrolando os seus negros e fúnebres mantos flutuantes. Viu cintilar uma luz, e procurou-a alegremente, como se ela fosse a libertação. Subiu à serra. Em baixo, nos repousos do vale, as casarias rutilavam. Tanto ouro esparso sobre os telhados! Que milagre sacrossanto esperavam as almas? Ao chegar à luz encontrou a cabana dum zagal, onde também irradiava uma claridade miraculosa! Geava e a aragem era cortante como uma lâmina! Mas todas as habitações onde havia criaturas de Deus estavam em festa! Que seria aquilo?

— Quem vem lá? — preguntou voz de homem.

— Pobrezinho que pede as palhas para o leito.

— Seja bem-vindo.

E o pastor ingênuo e moreno contou-lhe que numa terra para além do mar nascera Jesus, havia séculos, perto duma jumenta e de vacas, num curral. Ora, não se devia negar agasalho aos mendigos, num momento desses.

— Não tens família? — preguntou o mendigo.

— Não a conheci nunca — exclamou ele tristemente.

— Por isso tu acolhes com tanta caridade, no teu buraco, os que não possuem sede de água. Só os abandonados se entendem uns aos outros.

— Também a não tem vossemecê?

— Tive, mas perdia-a. Hoje, sou só. Consoaremos ambos esta noite!

O lugarejo tumultuava, pairava, cantava e sorria. Ouviam-se gemidos de violas, descantes, ruídos de danças. As fogueiras acesas subiam ao céu, em línguas de fogo. Ah! o mendigo também recordava os Natais doutros tempos, quando tinha alegria e beleza e bailava com as raparigas pelos eirados, levando-as num abraço, através da alegria das danças. Mas essas horas não tornariam a voltar! Disseram-lhe em pequenino que Cristo nascera para redimir os miseráveis, mas a sua agonia era cada vez maior e ainda há pouco os ditosos recusavam refúgio e uma tigela de caldo à sua decrepitude. Se tivesse alguma coisa que o aquecesse, que lhe levasse calor ao sangue arrefecido! Estava enregelado.

— Onde é a cama que/me dás, moço? — preguntou para o seu companheiro.

— Acolá. Deite-se. Eu fico a ver as estrelas.

— Sim, vou encostar-me um pouco. Tenho cá dentro uma tristeza!

Enrodilhado nas palhas, deixou cair a cabeça para o lado e ficou, de olhos extáticos, como se visse já as claridades dum mundo melhor.

— Jesus, que consolação! — murmurou.

Depois, não buliu mais; e, quando pela madrugada o pastor recolheu, ao empalidecer das estrelas, encontrou-o hirto e sem vida.

Daí a instantes o sol, redondo e rubro como a explosão dum incêndio, rompeu por detrás da serrania e a paisagem iluminou-se vitoriosamente.


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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