Redenção
Velho e todo curvado, seguia a estrada
tossindo e amparando-se ao seu bordão com que afugentava os cães que pelos
atalhos das aldeias
lhe ladravam e o perseguiam.
A madrugada dealbara duma pureza de hóstia
consagrada, e o céu resplandecia na sua dalmática azul e ouro, sem a mais tênue
mancha de nuvem a empaná-lo. Fazia uma dessas manhãs de inverno de ar fino e
gelado que atravessou a neve dos descampados ou a rara verdura de alguma veiga
onde os pássaros cantam nas árvores sem folhas. Os montes longínquos esfumavam-se
ao longe, numa transparente névoa lilás e a terra jazia num silencio infinito
que nenhum ruído perturbava.
Enquanto ia caminhando, o pedinte
evocava os tempos em que fora feliz e teve amores e saudades e rosas florindo
junto do seu coração humilde. Picava ainda distante a aldeia onde havia de pernoitar,
e aproveitava as ásperas horas de jornada e de silencio para se lembrar de
coisas doces e ternas. É tão suave regressarás sombras desoladas do passado,
quando nelas se reflete raio de luz ou imagem linda que, em fugidios momentos,
encha as almas desgraçadas de consolação!
Cruzou-se na estrada deserta, toda
rutilante de gelos onde o sol tremia e faiscava com brilhos de joia rara, com
dois namorados: — ela, moça e robusta, e de lábios tão frescos e vermelhos que
dir-se-iam feitos do sangue das romãs novas, e ele, um desses camponeses de
peito amplo, onde latejam pulmões de aço. Espalhavam à volta graça e viço e os
seus risos eram sonoros e sem cuidados. A vida, a felicidade, a confiança douravam
o futuro dos dois corações, que assim atravessavam a campina, sobressaltados
dos desejos fortes da carne e lançavam ao vento sussurrante a sua canção de
esperança. O pobre deteve os passos e foi-os seguindo com um olhar imensamente
melancólico, em que se adivinhavam saudades e desgraças — um desses olhares que
parece vir, como uma claridade expirante, de muito longe, chegando cansado e
sem alento! E considerava que também já fora assim, belo e juvenil, iluminado
do reflexo de heroísmo de que a mocidade diadema as frontes predestinadas para
a adoração e para as batalhas do mundo.
Como se recordava!
Quando era cavador, os seus braços
atiravam todo o santo dia a pesada enxada, abrindo os largos sulcos fecundantes
da gleba, donde as searas irrompiam com energias selvagens.
Nunca sentia desfalecimentos na amargura
do seu destino, e cantava sempre, porque a voz, na sua garganta, era como uma
ave continuamente alegre. E agora, Senhor do céu! apenas rezava, estendendo aos
acasos da caridade a mirrada mão sem resistência! Que idílios nos seus anos
mortos! Que flores desabrochavam outrora, tão perfumadas e vivas, que ainda
hoje derramavam na sua angústia hálitos de um aroma virginal! Oh! sobretudo os
instantes em que tinha sido amado, o sabor indizível e imaterial do primeiro
beijo que zumbira na sua boca, como uma abelha etérea, não podiam esquecer-lhe.
Porque fora, certamente, querido com inolvidável ternura!
Volvia os olhos para trás, talvez para
as auroras remotas, e pela face encarquilhada as lágrimas caíam, redondas e
cristalinas. Mágoas de amor jamais serenam; feridas de Paixão não saram nunca;
mel de carícias fica sempre no coração como um aroma perene.
Os noivos perdiam-se nas azinhagas
tristes, onde nem as sebes ramalhavam folhas à brisa leve, abraçados, enlevados
na mesma aspiração. E ele pensava que a velhice, necessitando de mendigar para
viver, é a maior desventura que assalta os homens. Desejava ardentemente, com
rigorosa fé, a força, a saúde, o ímpeto de outrora, para revolver a leiva e
dormir pelos sarçais tisnados e pelos restolhos mornos das soalheiras, ou então,
os repousos eternos da morte, numa cova muito funda e muito aconchegada do seu
corpo, onde se não escutassem os rumores, as disputas, as cóleras, as blasfêmias
duma efêmera humanidade tão desassossegada no seu degredo...
Uma boeirinha loira e de olhos azuis,
descalça e contente, atravessou a estrada, de vara ao ombro, conduzindo os bois
fulvos para a pastagem. E todo o seu pequenino busto de linhas puras esplendia de
encanto poético e de inocência angélica, dando a impressão de Nossa Senhora
quando era pequenina e quando, pelas várzeas de Nazaré, guardava os rebanhos de
ovelhas mais brancas do que os lírios de Engadi.
Novamente o pobre deteve a sua marcha
rude, vergando sobre a carga da sacola, com as côdeas esmoladas. Apoiado ao
cajado, a cabeça descaída para o peito, embebia-se dessa castidade rústica que
fazia em redor da criança um nimbo luminoso.
Nas manhãs da meninice, foi pastor também,
tangia os gados e trepava às árvores ou rolava nas ervas das colinas. As noites
levava-as sonhando com príncipes e moiras banhando o corpo à alvorada ou ao
luar nas claras fontes murmurantes.
Uma cigana leu-lhe a sina, por uma tarde
serena, anunciando-lhe venturas de que não experimentou a doçura; mas a
profecia fora como uma visitação divina em toda a sua vida de misérias, de
lutas e de orgulhos calcados, porque esperou sempre e esperava ainda! Oh! Deus
do céu, como as palavras humanas, como as ilusões vagas são mentirosas! E, no
entanto, a sua crença, como uma açucena dos vergéis celestes, perfumava-lhe os últimos
crepúsculos da existência material.
Estava perto do povoado. O ocaso,
descendo lentamente, envolvia de mistério a natureza inteira, e os sinos
tocavam as Ave-marias.
Bateu à primeira porta que topou, mas
ninguém lhe respondeu; mais adiante pediu pousada e negaram-lha. Correu todos
os lares, e não encontrou guarida. Então, encaminhou-se para o monte, por entre
as trevas da noite, que desciam do alto, desenrolando os seus negros e fúnebres
mantos flutuantes. Viu cintilar uma luz, e procurou-a alegremente, como se ela
fosse a libertação. Subiu à serra. Em baixo, nos repousos do vale, as casarias
rutilavam. Tanto ouro esparso sobre os telhados! Que milagre sacrossanto
esperavam as almas? Ao chegar à luz encontrou a cabana dum zagal, onde também
irradiava uma claridade miraculosa! Geava e a aragem era cortante como uma
lâmina! Mas todas as habitações onde havia criaturas de Deus estavam em festa! Que
seria aquilo?
— Quem vem lá? — preguntou voz de homem.
— Pobrezinho que pede as palhas para o
leito.
— Seja bem-vindo.
E o pastor ingênuo e moreno contou-lhe
que numa terra para além do mar nascera Jesus, havia séculos, perto duma
jumenta e de vacas, num curral. Ora, não se devia negar agasalho aos mendigos,
num momento desses.
— Não tens família? — preguntou o mendigo.
— Não a conheci nunca — exclamou ele
tristemente.
— Por isso tu acolhes com tanta
caridade, no teu buraco, os que não possuem sede de água. Só os abandonados se
entendem uns aos outros.
— Também a não tem vossemecê?
— Tive, mas perdia-a. Hoje, sou só.
Consoaremos ambos esta noite!
O lugarejo tumultuava, pairava, cantava
e sorria. Ouviam-se gemidos de violas, descantes, ruídos de danças. As
fogueiras acesas subiam ao céu, em línguas de fogo. Ah! o mendigo também
recordava os Natais doutros tempos, quando tinha alegria e beleza e bailava com
as raparigas pelos eirados, levando-as num abraço, através da alegria das danças.
Mas essas horas não tornariam a voltar! Disseram-lhe em pequenino que Cristo
nascera para redimir os miseráveis, mas a sua agonia era cada vez maior e ainda
há pouco os ditosos recusavam refúgio e uma tigela de caldo à sua decrepitude.
Se tivesse alguma coisa que o aquecesse, que lhe levasse calor ao sangue
arrefecido! Estava enregelado.
— Onde é a cama que/me dás, moço? —
preguntou para o seu companheiro.
— Acolá. Deite-se. Eu fico a ver as
estrelas.
— Sim, vou encostar-me um pouco. Tenho
cá dentro uma tristeza!
Enrodilhado nas palhas, deixou cair a
cabeça para o lado e ficou, de olhos extáticos, como se visse já as claridades
dum mundo melhor.
— Jesus, que consolação! — murmurou.
Depois, não buliu mais; e, quando pela
madrugada o pastor recolheu, ao empalidecer das estrelas, encontrou-o hirto e
sem vida.
Daí a instantes o sol, redondo e rubro
como a explosão dum incêndio, rompeu por detrás da serrania e a paisagem
iluminou-se vitoriosamente.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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