Quadro incompleto
Era em fins de outubro. Eu
chegava a Lisboa farto dos meses de verão passados no campo e à beira-mar. No
céu claro de outono o sol resplandecia triunfante entornando a viva luz doirada
dos seus raios por sobre a casaria, as ruas e as praças da cidade, dando às
águas do Tejo, serenas e tranquilas, o tom azul e faiscante duma safira
preciosa. Tudo me parecia mais belo. A linha do Aterro perdendo-se ao longe,
para o lado da barra, na torre de Belém, desenhava-se nítida em curvas
imprevistas, suaves e graciosas, de que eu nunca tinha dado fé. O rio
parecia-me mais povoado e as casas da outra banda, batidas do sol, sorriam nos
montes, alegrando-os com as frontarias caiadas de novo. As ruas pareciam-me
mais largas, as praças mais vastas, o movimento maior e até as mulheres que se
cruzavam no meu caminho, todas, sem exceção, se me afiguravam encantadoras e irresistíveis.
Eram as saudades sofridas em cinco longos meses de ausência que me faziam ver
tudo mais formoso. E eu sentia dentro em mim a ânsia de matar essas saudades,
de correr todos os sítios prediletos, como se a cada esquina e a cada canto me
esperasse o doce e carinhoso olhar de uma mulher amada ou tivesse de encontrar
um amigo querido, um companheiro das raras horas de despreocupada alegria, que
tão de longe a longe nos esmaltam a existência. Mas, é proporção que ia
seguindo, desvanecia-se o encanto. E no meu espírito surgiam intensas,
vibrantes de realidade, as recordações angustiosas, as magoas fundas, as dores
sangrentas, sofridas aqui no decorrer dos anos e até o cair das ilusões,
ligeiras nuvens iriadas pelo sol da fantasia, que tanto amamos, e que se
desfazem rápidas, deixando-nos na alma a pena viva dum prazer nunca gozado!...
Tudo entrava nas suas linhas
habituais. E já então me parecia que ainda na véspera tinha estado em S.
Carlos, apesar dos cartazes das esquinas me anunciarem, com as suas letras
enormes, a abertura do teatro para aquela própria noite. É que, como no inverno
que passara, eu via à porta da Havanesa as mesmas caras, e, da larga vitrine do
centro, espreitarem de sobre uma cama de fetos meio murchos os sabidos ramos de
violetas, botões de rosa e camélias, destinados a morrer nas botoeiras das sobrecasacas
dos frequentadores elegantes! E os grupos sucediam-se os mesmos, desde a corte
do Napoleão e dos manos Focas, malandros eméritos encontrados à cortina da igreja
dos Mártires, até aos graves e sisudos conselheiros e titulares, que em cada
dia, invariavelmente, fazem a sua estação de velho chique à porta do Magalhães.
Deixando o Chiado a discutir o
mérito e a beleza das primas-donas que à noite deviam cantar pela primeira vez diante
da plateia de São Carlos, encontrei ao dobrar da rua de São Francisco o meu
excelente amigo X, o mais alegre companheiro que até hoje tenho conhecido.
Tomei-lhe o braço e declarando-lhe que já não o largava, que iria jantar comigo,
continuamos sem destino pela rua adiante. Com dois meses que passara fora de
Lisboa jornadeando pelo pais, ora a pé, ora a cavalo, à antiga portuguesa, a
sua coleção de aventuras picantes aumentara prodigiosamente, e, repetindo-mas,
parava a cada instante rindo e gesticulando a ponto dos que passavam nos considerarem
como doidos. Ao cabo dalgum tempo, vendo as horas no relógio, voltou-se para
mim, dizendo-me:
– Como está escrito que terei
de jantar contigo e o teu jantar não nos proíbe de ir a São Carlos, vamos daí a
minha casa para que eu possa atar uma gravata branca e vestir uma casaca.
Fomos. Poucas coisas mais
curiosas que a sua instalação. Uma enorme sala com duas alcovas ao fundo comunicando
por uma porta. Numa delas a sua cama estreita de pau santo torneado: na outra
todos os arranjos de toilette e de
banho. Separa a sala das alcovas uma velha tapeçaria de Arraz bastante
esfrangalhada mas dum tom geral de cores encantador. Na sala a mais singular
das confusões, somente, presidida por um tão aprimorado gosto artístico, que
chega a não chocar ver ao lado duma preciosa faiança do velho Delft, uma reles
bilha de barro de Extremoz, e, dependurado dum troféu de espadas antigas de
fina lamina e punhos trabalhados, o estojo de couro branco dum binóculo de
corridas.
Sentado numa poltrona, ao lado
duma mesa coberta de livros, fotografias, jornais, cinzeiros, caixas de fósforos,
bolsas de tabaco, cachimbos, charuteiras, cigarreiras, cartas, facas de cortar
papel de todas as formas e tamanhos, esperava o momento de ver surgir o meu
amigo de ponto em branco e irrepreensível, de trás da tapeçaria, através da
qual o sentia mexer, abrir e fechar gavetas, interrompendo a cada passo a
anedota que me repetia em voz alta para descompor o criado, que não atinava com
os sapatos de verniz que ele desejava.
– Os outros, bruto! Os outros!
E dez vezes lhe ouvi esta
invectiva!...
Depois de ter aparecido o undécimo
par, o criado veio à sala trazendo na mão dois candeeiros que colocou acesos,
um sobre a banca a que eu me encostava, o outro com um refletor especial
aparafusado à chaminé, sobre o capitel duma coluna de carvalho. Seguindo a direção
do feixe de luz, deparou-se-me um quadro pendurado na parede e que eu não
conhecia. Era um esquisso, mas um esquisso magnífico! Tinha chegado a vez de
vingar o criado descompondo o amo.
– Então você tem cá por casa,
no meio de tanta porcaria, um quadro desta ordem e guarda segredo! Em lugar de
te estar para aí a dar atenção, teria aproveitado melhor o meu tempo admirando
a arte e o talento com que isto é feito.
Realmente, havia muito que não
tinha visto uma tela que me causasse tamanha impressão.
O ar circula em todo o quadro,
passando à vontade por entre os ramos das árvores do primeiro plano; um
estreito caminho, ladeado de muros de pedra solta e musgosa, segue a meio da
encosta do monte, que desce em declive suave para a esquerda, d’onde irrompe
risonha a fresca vegetação do vale. Ao fundo, muito ao longe, a montanha
esbatida e apenas indicada com tintas macias, harmoniza-se numa perfeita
justeza com o tom ardente do céu, cheio de sol, dum dia de verão. Uma figura de
mulher, ligeiramente esboçada, olha com curiosidade, encostada ao muro, para as
bandas do vale; ao lado uma criancita, agarrando-se-lhe às pregas da saia,
descalça e em bicos de pés procura ver também.
O meu amigo depois de me fazer
notar pequenas minudencias, executadas com mão de mestre, acrescentou:
– E este quadro, que me devia
dar tanto prazer possuir, ainda nem uma só vez olhei para ele que me não
entristecesse.
– Como assim? perguntei
admirado.
– Bem simples.
Acendeu uma cigarrilha, e,
passeando ao longo da sala, contou-me a seguinte história.
***
– Foi em Santo Tirso numa
locanda, onde me alojei oito dias, que conheci o Pepe Munhoz, autor daquele
quadro. Um belo rapaz franco e jovial, que, como eu, percorria o pais, mas na
sua qualidade de pintor, aproveitando bem o seu tempo. Paisagista de primeira
plana, apesar de amador, apaixonou-se pelo Minho. Maravilhava-o o verde das árvores,
o dourado dos milhos, a rudeza bravia dos penedos dos montes, a transparência
do céu e a pureza da água. Atraídos talvez por uma semelhança de caráter, ao
cabo de poucos dias éramos amigos. Combinamos fazer juntos o resto da viagem,
acompanhando-me ele até aqui, onde, durante algum tempo, ficaria meu hóspede.
Na primavera iria por minha vez ter com ele a Sevilha para fazermos a viagem da
Andaluzia.
Ao atravessarmos em cada manhã
a vila, eu com os meus fantásticos trajes de caça, o Pepe carregado com todo o
seu arsenal de pintor, havia um grande burburinho, assomando cabeças curiosas às
janelas e às portas das casas. A garotada seguia-nos, chegando a ser necessário
descer a ameaças para nos deixarem livres e sossegados.
Abandonando-o à sombra do
carvalho, d’onde ele pintava esse quadro, seguia à cata dumas perdizes, muito
faladas no sítio e que nunca consegui lobrigar. Aí tens o Stop a atestá-lo. Na volta, tornava a encontrar-me com o Pepe,
recolhendo juntos para jantar. Jantávamos cedo. À tarde, dávamos um grande
passeio, um passeio da exploração de três ou quatro horas. Santa e regalada
vida! Se dura mais tempo até eu seria capaz de engordar!
E que deliciosos passeios. As
margens do pequeno rio Ave, para onde íamos de preferência, são dum pitoresco indescritível.
Imagina tu...
– Perdão, imagino muito bem, e
tanto, que prefiro ouvir o resto da história.
– Seja. O Pepe falava-me, com o
fogo e entusiasmo de que é capaz um espanhol, duma rapariga adorável, que
durante as horas em que ele pintava vinha, acompanhada duma criança, guardar
para o caminho uns bois que pastavam na encosta.
Bela rapariga! Alta, airosa e
desempenada o que mais atraía nela era a expressão de candura do seu rosto que
notavelmente contrastava com as linhas fortes e um pouco masculinas da sua
figura. O olhar acariciava, e a boca, fresca e vermelha como um medronho maduro,
era um ninho de desejos. A criança era seu filho; era casada. Quantas vezes
dizia eu ao Pepe. – Então roubamos a mulher ao selvagem ou não? – O Pepe ria
mudando de conversa. Um dia apesar de estranhar que não tivesse esperado por
mim, como tínhamos combinado, para vermos uma ermida que nos ficava no caminho
e aonde nunca tínhamos ido, segui para a vila sem me preocupar demasiadamente
com o caso. O calor abrasava e o Stop,
esfalfado, seguia-me de língua de fora. Ao chegar à hospedaria perguntei pelo meu
companheiro. Como já tivesse entrado fui direito ao seu quarto. Não sei
dizer-te a aflição e a agonia de que estava possuído. Os seus olhos pretos e
vivos luziam umedecidos. Quase não podia falar; as palavras sufocavam-n’o.
Contou-me com horror, fechando os olhos, arrepelando os cabelos, que duas horas
depois de o deixar, um tiro, que um homem carregava na pedreira próxima, fizera
explosão indo um estilhaço bater na cabeça da criança, que brincava diante da
mãe e perto dele, arrojando-a com violência ao chão e esmigalhando-lhe o crânio
contra o muro! Ele ficara imóvel, deixando cair os pinceis e a paleta, ao ouvir
o grito de dor lancinante da mãe e ao vê-la de rastos, com o filho morto e
ensanguentado seguro contra o peito, apanhar um a um os pedaços de crânio e a
massa cerebral espalhada em pastas, pela terra. Quando, vencida a repugnância
do primeiro instante se aproximou, ela sentada e com o cadáver estendido sobre
os joelhos, procurava meter os bocados no resto disforme da cabeça da criança
como quem concerta uma boneca! Ao dar com ele defronte de si sem chorar, serena
e tranquila mas com uma profunda magoa na voz, disse-lhe:
– Não o sei compor. Sabe?
A pobre mulher tinha endoidecido.
Compreendi a excitação nervosa de que o meu amigo estava possuído. Dum lado
para o outro, sem atinar com coisa nenhuma, arranjava as malas a trouxe mouxe.
Resolvera partir naquela mesma tarde. Nem sequer o tentei dissuadir. Até agora
– dizia-me – pintava para me distrair, agora nem sequer esse recurso me resta.
Não tornarei a pintar. A si que tanta simpatia me deve deixo-lhe o meu último
trabalho. Sempre que olhar para ele recorde-se de mim.
No momento da partida levou-me
para um quarto mais escuro da casa onde fingíramos que tínhamos jantado e
entregou-me um cartucho de libras, pedindo-me que o fizesse chegar às mãos da
desventurada mãe.
– Estaria o teu amigo
apaixonado por ela!
– Não sei, ignoro mesmo se
quebrou o juramento ou se na realidade atirou por uma vez a paleta pela janela
fora. O que sei é que há dias
recebi dele uma carta, datada
de Roma, entusiasmado pela escola italiana e na qual nada transparece da trágica
cena de Santo Tirso, apenas num post critum
me pergunta indiferente:
– Sabe Usted algo de la pobre loca?...
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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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