Prelúdios de Festa
(A Alberto Braga)
Esse ano, a festa da Senhora das
Dores devia ser coisa de estalo. A começar pelo juiz, todos os da mesa eram de
respeito – abonados e decididos. Tanto assim, que o fogo preso, que afinal era
o melhor da festa, vinha lá de Chaves, longe que nem seiscentos diabos. Mas era
obra de jeito, acabou-se! Tinha-se dito ao homem que trouxesse coisa que
representasse uma cegonha. O homem respondera que sim, e dava mesmo a entender
que traria mais animalejos, uma bicharada, – talvez um macaco, se tivesse tempo
de o acabar.
– Homem de uma cana! – resumiu o
juiz quando acabou de ler a carta. E correu a espalhar a notícia, orgulhoso de
que “no seu ano” a coisa fosse de arromba! Depois, era um despique. No ano
atrás, o José da Loja, que tinha sido juiz, gabara-se do seu fogo, só porque
vinha lá uma peça que era um castelo a dar tiros, assim: – Fff! Pum!
– Ora deixa estar que eu te
arranjo! – murmurou com os seus botões o Antônio Fagote. E sorria, satisfeito
de se lembrar que na noite do arraial todo o povo o havia de aclamar, dar-lhe
vivas pelo fogo que apresentara. Espalhou-se a novidade. Uma hora depois, na
vila, ninguém falava noutra coisa.
– Então você já sabe?
– Já sei. A cegonha.
– A cegonha e o mais: um cavalo,
um bezerro...
– O que eu quero ver é o camelo.
Feio bicho, já viu?
– Pintado. No Monteverde, se me
não engano. Logo adiante do Valente Rei Arauto Fiel.
Enganava-se.
O escrivão da Câmara, que tinha
laracha, encontrou-se na rua com o Alves aferidor.
– Até que enfim, amigo Alves! Até
que enfim vou ter o gosto de o ver arder. O outro não percebeu: – “Que se
explicasse...”
– Um urso, no arraial queima-se
um urso.
– Então ardemos ambos, –
redarguiu embezerrado o Alves. – Também se lá queima um burro.
Às duas por três, o Antônio
Fagote viu a casa cheia de gente. Quem não ia, mandava recado: todos queriam
saber se vinha o animalejo da sua predileção.
O homem começava a azedar-se.
Chegou mesmo a mandar fechar a porta, por dentro.
– Põe a tranca, se for preciso!
Mas então era cá da rua:
– Ó senhor Antônio!
E na porta as pancadas ferviam:
– Truz! truz! truz! Senhor Antônio!
– Ena! c’um raio de diabos! –
fazia lá de dentro o homem, furioso.
– O senhor faz favor? É só uma
palavrinha!
À janela assomava então o Antônio
Fagote, com os óculos na ponta do nariz e a carta do fogueteiro na mão.
– O camelo? – perguntava zangado.
– O urso?! Camelos me parecem vocês, ouviram? O que o homem diz é isto...
E lia a carta, rematando:
– Uma cegonha, outros animalejos,
quem sabe lá o que serão, e talvez o macaco, se houver tempo de o acabar. E
agora, sabem que mais?... – Tirava os óculos e ia-se embora, capaz de os
trincar a todos. – Irra!
E lá de si para si pensava que
era melhor ter guardado segredo. Não fosse ele burro... Mesmo porque cada um
começou logo a inventar animais, e todos é que não podiam vir. Claro! E não
vindo todos, aí tínhamos nós descontentes. E havendo descontentes, quem lucrava
era o José da Loja!
– Temos o caldo entornado! –
pensava aflito o Fagote, amedrontado com aquele espectro do José da Loja, o seu
rival! Demais a mais, já lhe tinha chegado aos ouvidos que o outro agourava mal
do negócio...
– Farófias! – tinha dito o José
da Loja. – Farófias!
– Pois se mo diz na cara,
arrebento-o! – vociferava o Fagote, quando tal soube.
E arrebentava, que o Fagote era
homem para isso; tinha pulso. Desde rapaz que uma lenda de valentia se fizera
na sua vida: contavam-se proezas, desde uma vez que varrera uma feira, por
causa de eleições. Depois, bom olho para a caçadeira. De uma ocasião que foi
preciso dar montaria aos ladrões, portou-se como um leão, foi ele que deu voz
de preso ao chefe da quadrilha. E como foi que lha deu? A frase ficou lendária:
– Como-te a alma se te mexes!
– E o outro não se mexeu, que ele
comia-lhe a alma! – comentavam convictos.
Como esta, muitas outras. E foi
talvez por estas proezas que a sua figura adquiriu para a velhice o jeito desempenado
que tinha. Estava com 60 anos e a sua atitude viril impressionava ainda agora.
Não era nutrido, mas era sanguíneo, tez morena, cara rapada, olhos pequenos,
uma largura de ombros que era o principal indício de força. Pescoço curto.
Mesmo a brincar, quando cerrava os punhos e arremetia com força,
conhecia-se-lhe a rijeza dos músculos naquele movimento sacudido.
– Safa! que isso aí é de ferro! –
diziam os rapazes. – Duma cana, hem?
Mas bom homem, de uma grande
franqueza de modos, simples e afável. Para se sair era preciso picá-lo. E uma
vez, quando era juiz ordinário, uma testemunha tanto o picou em audiência, que
ele desceu lá da cadeira, foi-se a ela e quebrou-lhe a cara. Por isso falava
sério quando prometia arrebentar o José da Loja. A mulher interveio,
pacificadora:
“Que não desse ouvidos a ditos.
Deixasse o homem, que não era tão mau como o pintavam.”
– Ó mulher! Cala a caixa e não me
defendas esse velhaco! – redarguiu o Fagote. – Do que ele é capaz sei eu.
Mas nessa ocasião, de todas as
velhacarias do José da Loja, só lhe lembrava uma: ter sido juiz o ano atrás!
Isto parecia-lhe com efeito uma
velhacaria feita a ele, que era juiz este ano.
– Pois tu que pensas? – dizia ele
para a mulher. – Quem me meteu a festa em casa foi ele. Ele é que se lembrou de
me escolher, como quem diz: “entrego-te a vara, sempre quero ver como te
arranjas...”
– Nome do Padre, do Filho... – A
mulher benzia-se “das ideias do seu Antônio”.
– Sejam ideias que não sejam! –
teimou o Fagote. – Isto foi tal e qual, assim me Deus salve!
– Mas quem to disse, homem? Quem
foi que to disse?
E então desabafou: – “que não
pensasse, o José da Loja, que o havia de levar à parede. Agora levava! A festa
há de se fazer, e festa de arromba; nanja como a dele que só levava seis anjos,
e não sei quantos andores, acho que meia dúzia!”
– Ó mulher! Então é para que
saibas onde chega o brio de um homem! Caramba! Sendo preciso, ouves? sendo
preciso até vendia a camisa do corpo! Nem trinta sanfonas como o sanfona do
José da Loja! – E espipava olhos de cólera para a mulher que remendava uns
sacos, compungida de ver assim o seu Antônio.
E pôs-se então a renovar ordens,
recomendações que a mulher já estava farta de ouvir. – “Mas com tempo é que as
coisas se pensavam, não era ao atar das sangrias!”
– Leitões, se os cá não houver,
manda-se o Miguel à cata deles, por esses povos à roda. Querem-se de quatro
semanas, três pelo menos:
Leitão de mês, Cabrito de três.
A mulher contraveio: – “dois
seriam bastantes...”
– Mau, que aí principiamos nós! –
E pôs-se a assobiar e a rufar com o pé no soalho, arreliado. – Três é que hão
de ser! Não quero cá dois, porque dois eram os do outro, o ano passado!
A esta razão, a mulher calou-se.
O Antônio Fagote gostou do silêncio da mulher, que o lisonjeava nos seus
despeitos contra o outro.
– Agora não fanfas tu... –
insistiu ele, risonho. – É assim mesmo que eu gosto. Sinal é que tens vergonha.
A outra também não é mais que a ti!
A outra era a mulher do José da
Loja, está visto.
– Nem mais, nem tanto! – emendou
a Luísa Fagote, abespinhada.
– Isso mesmo! – abundou o juiz da
festa. – Não me lembrava agora que antes de se casarem...
– E olha que depois de casada...
– insinuou a Sra. Luísa, de venta no ar, enfiando a agulha.
– Cala-te, boca!
Façamos de conta que a boca se
calou, com efeito. Que não se calou. Mas, neste particular, o resto do diálogo
convém que se omita, mesmo porque afinal nem eu nem os senhores queremos mal à
mulher do José da Loja. Há de perdoar-me o Antônio Fagote, mas nisto não lhe
faço a vontade. O pudor acima de tudo! E ademais ele bem sabe que eu sou
conhecido da mulher. Adiante. Basta que lhes diga que por uma associação lógica
de ideias a conversa veio parar em vitelas...
– É preciso vermos como há de ser
isso da vitela – disse o Antônio Fagote. – Sem vitela é que se não faz nada.
Uma perna sempre se gasta.
Combinaram falar com tempo ao
Manuel Cortador, segurar esse negócio. Demais a mais sabia-se que o pregador
dava o cavaco por um pedaço de vitela assada.
– O pregador é que arrasta aí
muita gente! – observou a Sra. Luísa. – Para um bocado de sentimento não há
como ele. Quando foi das missões, o que ele dizia daquele púlpito abaixo! É
quanto se pode!
– A mim o devem, se cá vem! –
disse orgulhoso o Fagote. – Que o homem não queria vir, desculpava-se com a
saúde: que tinha de ir a umas caldas, e 14 léguas a cavalo por estas canículas
eram de acabar com ele.
– Isso desaba aí o poder do
mundo! Em se sabendo que é o missionário...
Estavam nisto, quando bateram à
porta. O Fagote foi ver à janela.
–... Bem, muito obrigado. E a
senhora Mestra? Estimo, estimo. Era a criada da mestra régia, foram abrir.
– A senhora Mestra que manda
muitos recadinhos, saber como está a Sra. Luísa, e este bilhetinho para o Sr.
Antônio.
Entraram todos na saleta. Como
era já tarde, o Antônio Fagote foi acender uma luz. “Que conversassem, enquanto
ele via se tinha resposta”.
– Muito calor – começou a Sra.
Luísa.
– E então a casa da senhora
Mestra que é mesmo um forno – disse por demais a criada.
E antes que a conversa pegasse,
avisou a Sra. Luísa, ao ouvido, de que queria dar uma palavrinha.
Foram para uma varanda que havia
nas traseiras. A tarde descaía, numa serenidade calma.
Sentaram-se uma junto da outra,
muito familiares.
– Está-se aqui bem! – exclamou consolada
a Sra. Luísa.
– Está. E então bonitas vistas.
Mas o que eu queria dizer era pedir-lhe um favor – disse atrapalhada a criada.
– Se estiver na minha mão...
A outra começou: – “A Sra. Luísa
estava ao fato do que se dizia dela com o criado do inglês. Decerto estava ao fato.
Mas era mentira. Jurava-lhe pelo que havia de mais sagrado que era redonda
mentira”. – Estamos para casar! é o que estamos! – “Ele já mandara vir os
papéis lá da terra, não podiam tardar”. – Está claro que eu tenho afeição ao
rapaz...
– Ele esteve aí doente uma
temporada – interveio a Sra. Luísa para dizer alguma coisa.
– Esteve. Umas quartãs que o iam
arrebanhando! Mas é ai que eu quero chegar.
– Que experimente o limão azedo –
aconselhou a Sra. Luísa. – É milagroso nas quartãs. Não se aflija, que não há
de ser nada. – E dispunha-se a consolar a rapariga, a dizer-lhe tudo o que
sabia de bom para matar quartãs, pensando que era o que ela queria, afinal.
– Não senhora. O rapaz está
melhor. Caso é que não recaia. Mas é por via disso que eu lhe quero pedir um
favor.
Chegou para ela o banco de
cortiça e confidenciou:
– Já o andam a desinquietar para
ir com os mais furtar a bandeira, qualquer noite! E ele vai, prometeu que sim!
Mas veja, naquele estado! inda não há nada que saiu da cama!
– Pelos modos, os rapazes vão
este ano longe pelo pau! – disse com pompa a Sra. Luísa. –
Muito longe!
– Ouvi que à Ribeira Velha, ao
lameiro do Canelas. E logo com quem eles se vão meter, o Canelas! Se desconfia,
vai para lá de clavina e faz alguma desgraça. Mais ele, que é atrevido!
Cautelosa, a mulher do juiz
redarguiu que “lá onde eles iam pelo pau é que ela não sabia...”
– A outra noite é que para aí
estiveram a combinar, o meu Antônio mais os mordomos. Não ouvi.
– Pois é lá! – exclamou a criada.
– Mas o que eu queria, Sra. Luísa, é que o seu marido me não deixasse ir o
rapaz na malta! – suplicou aflita a rapariga.
– Lá isso, esteja descansada, não
vai! – prometeu com grande autoridade a Sra. Luísa. –
Digo-lhe eu que não vai. E se não
quer mais nada...
– Era só isto, muito agradecida à
senhora.
Nesse momento entrava o Fagote,
em mangas de camisa, os óculos para a testa.
– Ora pois então aqui vai a
resposta. Má letra, a senhora Mestra que desculpe. Mas enfim que leia como
puder.
– Então muita maçada com a festa?
– inquiriu solícita a rapariga.
– Muita. Faz lá ideia?! Maçada e
despesa. Olhe que se faz despesa. Todos os dias são precisas coisas, mais isto,
mais aquilo. Aí está que já hoje mandei pedir para o Porto uma palheta para o
clarinete do Alves.
– Chh! – fez admirada a rapariga.
– Pois é verdade. Fora o mais!
fora o mais! Nicas! – E depois de uma pausa: – Só com o que se gasta no jantar,
e é verdade que há muita coisa de casa, mas só com o que se gasta no jantar, a
bem dizer que se fazia uma horta, além no prado.
– Muita gente... – disse a
rapariga.
– Muita! e depois de certa aquela...
À mesa talvez vinte e quatro pessoas...
A rapariga benzeu-se!
– Vinte e quatro, para mais que
não para menos, – insistiu o Antônio Fagote. – Olhe: o pregador...
– Isso dizem que é coisa asseada!
– interrompeu a rapariga.
– É. Não o há melhor. Missionário...
– explicou o juiz. – Pois o pregador, um; com mais quatro padres, cinco; com
quatro músicos, nove; o compadre, os pequenos, dois, doze.
– A comadre não vem! que pena! –
fez do lado a Sra. Luísa.
– Não. O compadre e os pequenos
já disse. Doze. O Morgado da Fonte e o Antônio Capador, catorze. O Teles, é
verdade, o Teles escrivão, quinze. (Pausa). Com mais alguém que venha, vinte e
quatro. Pode-se contar com mais de vinte e quatro pessoas à mesa. – E a rir-se:
–
Mas há de sobrar muita coisa,
graças a Deus... E depois os pobres?!
– Isso então é uma praga! –
exclamou a Sra. Luísa. – Até parece que vêm do chão: assim... – E colocava em
pinha os dedos todos das mãos ambas. – Assim...
Mas fazia-se tarde, a rapariga
despediu-se. – “Adeusinho! o que havia de estimar é que tudo corresse como
desejavam.” – E se for preciso qualquer coisa... – ofereceu-se. – As minhas
fracas posses...
– Obrigada. Não faltarão
ocasiões. Muitos recadinhos à senhora Mestra...
– E que hei de estimar que o mano
chegue de saúde, – concluiu o Antônio Fagote.
E então explicou à mulher: – “Aquele
bilhete da mestra era a mandar-lhe perguntar se sempre era certo vir o macaco
de fogo”.
– “Diz que o irmão, o brasileiro,
assim que souber que há macaco de fogo no arraial, não tem mão em si que não
venha”. E Deus o queira, porque o ponho ao pálio. Como três e dois serem cinco.
A Sra. Luísa quis saber a
resposta que lhe mandara.
– Disse-lhe que sim. Pois?! O que
eu quero cá é o brasileiro. Sempre é homem que sabe dar o merecimento às coisas...
Mas o diabo agora é o macaco! – ponderou muito apreensivo. –
Está para aí meio mundo à espera
do macaco...
A Sra. Luísa quedou-se pensativa,
absorta no seu receio de que o bicho não viesse.
– Tate! – fez o Antônio Fagote,
batendo uma palmada rija na testa. – Dá cá daí a minha véstia. Manda-se uma “parte”
ao homem.
– Também pode ser – concordou a Sra.
Luísa. – Mas hoje é que não, aquilo já está fechado, o fio.
– Vai amanhã: “Agradeço favores.
Traga macaco sem falta.” Isto. Talvez acrescente: “Não se olha a dinheiro.” Mas
é que acrescento, por via das dúvidas!
Então, a Sra. Luísa confidenciou,
quase ao ouvido do homem:
– Ouves? Já se não pode ir ao
lameiro do Canelas pelo pau.
– Han? Qual pau?
– O da bandeira. Todo o mundo já
sabe.
Ele riu-se.
– Todo o mundo, hem?... Melhor!
Oh! oh! todo o mundo!...
E como ela ficasse estupefata:
– Nunca ouviste dizer que se põe
o ramo numa porta e que se vende o vinho noutra?
– Ah!...
– Mas são verdes. Pois aí é que
vai a história! – E cantarolou, satisfeito:
O ladrão do negro melro
Onde foi fazer o ninho!
***
Mas o melhor do caso foi no dia
seguinte, quando, logo de manhãzinha, o Antônio Fagote sentiu bater à porta, de
rijo.
– Vai lá ver o que será, ó Luísa!
– disse da cama o Fagote, sobressaltado. Não tardou nada que o José Manco lhe
entrasse de rompante pelo quarto.
– Vista-se, homem! Ande daí
depressa! Vista-se!
– Há novidade?! – perguntou logo
o Fagote, sobressaltado.
– Vista-se! com dez milhões de
diabos! – insistiu o outro.
– Homessa! – fez espantado o
Fagote. – Alguém à morte?!
– Pior do que isso! – resumiu o
José Manco.
– Pior do que isso, então não sei...
– Não tardará que o saiba! Avie-se,
que eu cá o espero na rua.
O Antônio Fagote vestiu-se à toa,
aparvalhado. Foi já na rua que acabou de enfiar a jaqueta. As correias dos
sapatos iam de rastos, não levava chapéu.
– Pronto! cá estou!
– Venha comigo, avie-se! Abotoe
as calças, se faz favor. E rodaram, rua acima.
– Diabo! mas então?!... – ia
perguntando o Fagote.
– Aguarde, que já vai saber! Não
tarda!
– Roubaram Nosso Pai, aposto?
– Pior! – redarguiu o outro. –
Pior! Alto aí! Ora arregale-me esses olhos e veja vossemecê isto, esta
porcaria!
E tragicamente, o José Manco
apontou para meia folha de papel pegada na torre, com miolo de pão centeio
mastigado. Era um pasquim! Vários desenhos de animais, sobressaindo um burro de
grandes orelhas, aos coices. E no fundo, em grandes caracteres, isto: –Farófias!
Por um pouco, Antônio Fagote, de
mãos atrás das costas, amarasmou-se, com os olhos fitos no papel.
E quando o outro pensava que ele
ia romper desaustinadamente numa escamação, aos lábios do Antônio Fagote
aflorou apenas um sorriso.
– Hum! – resmungou. – Bem sei...
– Não tem que saber – fez o
outro.
– O patife do José da Loja.
– Pois está visto.
– Bem, levará quatro lambadas –
epilogou com grande sossego o Fagote. – Arranque lá isso, e venha você daí, se
quer ver.
O José Manco não queria ver,
fazia ideia. Mas opinou prudentemente que era melhor botar o patife ao
desprezo.
– Pois sim – disse o Antônio
Fagote, dobrando em quatro o papel e metendo-o na algibeira de dentro – Pois
sim!
Mas o outro, que o conhecia,
insistiu no pedido, com certos argumentos arrancados do código penal. – “Que
não fosse agora pagar por bom semelhante estafermo! Como mordomo, também era
com ele a ofensa, com ele José Manco. Mas fazia de conta… como o outro que diz,
vozes de burro não chegam ao céu.”
– Bem, levará só uma lambada,
atendendo a que mais ninguém viu isto – disse num grande ar de condescendência
o Fagote. – E você vá lá regar a horta. Foi-se dali direito à casa do José da
Loja. Estava ainda fechada. Pôs-se à coca, de longe, com a ira muito exulcerada
pela arrelia daquela demora...
– Grande cão! Grande cão! –
monologava.
Até que enfim reparou que a porta
se abria. Era o tendeiro em pessoa, de casaco de lona e chinelos de trança,
muito fresco. Não deu pelo Antônio Fagote senão quando se viu ao pé dele, cara
a cara entre o balcão e a porta.
– Ó senhor José.
– Dirá.
– Venho aqui saber dum caso.
– Tirou do bolso o papel,
desdobrou-o, devagar, e, depois de lho por ao pé da cara:
– Foi o senhor José que fez isto?
O outro olhou-o, atônito.
– Sim! se foi o senhor José que
fez isto?
– Nada, eu não senhor.
– Jura pela boa sorte dos seus
filhos? Aqui, o tendeiro entupiu, desconfiado.
– Jura pela boa sorte dos seus
filhos? – repetiu mais de rijo o Fagote. O José da Loja, moita! Então o juiz
explicou-lhe:
– É porque se jura, muito bem. Se
não jura, o caso é outro.
– É outro, que outro?! – disse
arrogante o José da Loja, num ímpeto, barriga panda sob o casacório de lona.
– Isto! – E foi-lhe uma bofetada
para a cara. – E muito caladinho, que eu também não digo nada. Agora o papel,
olhe! – Fê-lo em pedaços, e atirou-lhe com eles à cara aparvalhada.
Saiu dali e foi matar o bicho,
tranquilamente, como quem vem de cumprir uma obra de misericórdia.
***
Na véspera da festa, um sábado às
10 horas da manhã, o fogueteiro passava enfim num deslado da vila direito à
capela da Senhora das Dores. Largou um foguete, que estrondeou no ar
galhardamente.
– O fogueteiro! Chegou o
fogueteiro!
Por toda a vila passou um longo
frêmito de entusiasmo quando se ouviu o foguete. Desabituados, os cães
ladravam, em correria doida pelas ruas. O rapazio levantou-se em algazarra, e
correu ao encontro do fogueteiro, a admirá-lo, a oferecer-se. Na labuta viva
das casas renovavam-se ordens já dadas. Aquele foguete era a bem dizer o
primeiro ruído da festa, não havia tempo a perder. De casa dos mordomos saíam
esbaforidas as criadas, com ordem de se informarem do que precisaria “o Sr. fogueteiro”.
Alguns mais previdentes mandaram almoço, e que dissesse o que queria para o
jantar.
Solenemente, o juiz da festa
atravessou quase a correr a vila, perguntando a todo o mundo se o que estoirara
tinha sido efetivamente um foguete.
– Foi foguete! pois que dúvida! –
diziam-lhe radiantes. – Prometia, sim, senhor! prometia! Se fossem todos assim...
Caramba! que estouro! Pum!
– Pra que saibam! – clamava o Antônio
Fagote. – E então isto? – e punha-se a girar de volta com o braço – o que é
fogo do chão? – Mas tinha-se visto em calças pardas para que o homem não
faltasse. Complicações! Pelos modos tinham-no convidado para outra festa, com
mais bagalhoça, está claro! O caso tinha estado sério!
Mentia.
– Hem? mas não o enganavam?
– Qual? era o fogueteiro, sem
tirar nem por! Lá ia ele a atravessar as eiras, com duas bestas carregadas.
Caramba! duas cargas de fogo!
O juiz botou a fugir. Quando
passou pela porta do abade, gritou cá da rua:
– Senhor abade! Ó senhor abade!
– Que é lá?
– Chegue à janela, faz favor?
– Mas está muito sol, entre você
se quer.
– Só duas palavras.
O abade, um rapaz novo, assomou à
janela.
– Que é?
– Chegou o homem!
– O homem! que homem?
– O fogueteiro, quem há de ser?
– Ah, sim – disse o abade a
rir-se, velhaco. – E você vai ter com ele?
– De cara.
– Faz-me então um favor?
– Dirá.
– Dê-lhe recados meus.
E retirou-se da janela, a rir,
enquanto o Antônio Fagote prosseguia no seu caminho, esbaforido, espalhafatoso,
perguntando a toda a gente “se aquilo tinha sido o fogueteiro!”
– Grande homem! com seiscentos
diabos!
Quando chegou ao adro estava tudo
cheio de rapazes, em redor dos dois machos carregados. O Fagote cuidou morrer
de contente. Foi-se ao fogueteiro, com fúria:
– Esses ossos! – e abraçou-o
arrebatado, enternecido, chamando-lhe “seu amigo, seu grande amigo”.
– Rapazes! – gritou ele então. –
E tirou o chapéu da cabeça, muito solene. – Viva o senhor fogueteiro!
– Viva! …Isso não juro, porque
não reparei. Mas estou em dizer aos senhores que o
Antônio Fagote – chorou!...
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
muito obg servio muito bem
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