Possessão
— ... Tia
Anica também lhe mandou muitos abraços, muitas saudades... Tem tanta pena de
não poder vir passar com você uns tempos! Diz que só de os ver tão bem casados,
tão unidos, tão unidos, tão felizes, lhe passariam todos os achaques da velhice
e a cisma dos desgostos antigos...
— Coitada da
Tia Anica...
— As suas
cartas lhe fazem muita falta, agora que ela está tão só. Ainda o primo Luís sempre
foi de poucas letras, mas você, que escrevia tanto e tão bem, antes e depois...
ela guarda as cartas na caixinha de costura, para as reler, e às vezes fica um
tempo imenso de olhos postos naqueles papéis, que ela sabe de cor, como um
Livro de versos. Diz que ainda não houve romance que lhe interessasse tanto
como a história do seu casamento...
— Já tudo me
parece tão longe!...
— Ela conta
as peripécias com entusiasmo; a parte que tomou na conspiração para que a
madrinha desse consentimento...
— Mamãe nunca
quis.
— Por causa
de umas histórias de Alcazar, não foi? Tia Anica sabia que andava nisso mais
intriga do que outra coisa e que, mesmo sendo verdade, Luizinho era um moço de
brio: não ia agora... o caso é que ela sente-se toda orgulhosa, quando os nossos
parentes conversam sobre você. É como se falasse bem de uns filhos mimosos...
Faltam agora os netos. Vocês, quando é que pensam nisso? O tempo passa
depressa, sem sentirem, não é? Olhe que já lá vão cinco anos, Ninita...
— A quem o
diz você, Amélia! Eu que conto os dias...
— Os dias
que não são bem azuis... As nuvens descansam os olhos da claridade demais.
— Quando ela
é demais. Não tive tempo para cansar-me dos dias claros, minha prima...
— Ora,
então, Ninita, não é para chorar... Se eu soubesse que se afligia assim...
Vamos...
— É, prima,
é para chorar, sim... É para chorar que eu vivo, por castigo de ter
desobedecido àquela santa que está no céu! Se não fosse pensar que me separava
dela de uma vez, quanto menos me custaria acabar com a vida!
— Que
loucura, Ninita! Pode-se bem chorar sem ofender a Deus! Então, já se viu!
— Você tem
razão: É um desatino... que eu já tresvario, de tanto sofrer. Mas a gente,
quanto mais _ esperanças pôs... Tia Anica vive tão-satisfeita, pensando que
tudo me saiu conforme nós esperávamos, que era tão natural que fosse! Por isso
é que deixei de lhe escrever, não é por ingratidão. Não tenho coragem para lhe
dizer a -verdade, embora me desabafasse...
— Pois
desabafe agora: tem um coração que lhe escuta...
— Prima, que
diferença das esperanças!...
Isto era por
uma manhã muito clara e alegre, na sala de jantar de uma casinha da Rua Silva
Manuel. Entrava muita luz pela janela aberta sobre um quintalinho triste, com
as suas plantas sem trato e as ruas sujas. A sala, igualmente descuidada, por
arrumar, com um vago aspecto de mau lugar. Os móveis em desordem, maltratados,
pareciam mais dê uma taverna que de uma casa de família. Uma garrafa de cerveja
quebrada ao pé do aparador, grande número de outras vazias em cima e pontas de
cigarros e cartas de jogar por toda a parte tapetando o chão, completavam a
aparência suspeita da casa, que devia ser toda assim: no gabinete contíguo
via-se um cão dormindo sobre um sofá de palhinha encardida e usada, num ninho
de jornais velhos e livros desparelhados. Sentia-se como um cheiro de
desconforto, o mau ar dos lugares em que se não vive feliz.
Pela porta
aberta do corredor entrava, com o grito de um vendedor de jornais, o ruído de
carroças passando interminavelmente. A mulher que chorava levantou-se e foi
fechá-la. Era alta e de boa compostura. Ganhava em estar em pé e andava bem.
Sentada, tinha umas posturas acabrunhadas de corpo quebrado pelo sofrimento. A
boca era aflitiva: descaída, torcida, amargurada. Os olhos, muito pisados,
tinham uma expressão indecisa entre a queixa e a resignação; eram, antes, melancolicamente
distraídos, como se tivessem tomado o jeito dos olhares longos, acompanhando o
voo das cismas. Era descorada e quieta, como uma doente. Nas asas do nariz
direito e fino corria-lhe às vezes um estremecimento rápido, como de um desejo
logo abafado. Não era bonita, mas tinha uma expressão. E as roupas lhe iam bem,
simples e honestas, sem abandonos de vítima da fatalidade, como sem esmeros
impróprios.
A visita
chegava da roça e o mostrava, bem que não fosse uma caipira. Era bonita, morena
e nédia; ar de saúde e contente; no leque, na gola do corpinho, na capa do
livro de missa c na portinhola do carro parado à porta, tinha um monograma com
uma coroa fidalga — o marido era barão. Casada de pouco, ela tinha imaginado
encontrar a prima numa situação feliz em que as orgulhosas alegrias da sua
pudessem expandir-se, ecoando simpaticamente. E, afinal de contas, não só a sua
felicidade era de uma aparência quase impertinente, mas ainda, por dizer que os
seus parentes cuidavam que ela vivesse muito feliz, a prima desatava em pranto.
A expressão da baronesa era entre penalizada e contrariada. A outra continuou:
— Há
mulheres que se enganaram nos seus cálculos de futuro, Amélia, mas, tanto como
eu, há poucas debaixo do céu. Você ainda se lembra das nossas festas na chácara?
era capaz de pensar que me encontraria um dia como me vê? Não havia nada que
fosse bom demais para mim, hem? nem sonho que não pudesse fazer... Não sendo
feia, tendo fortuna e uma mãe que só vivia da minha alegria... Tão mal que lhe
paguei! Começo a acreditar que são coisas que têm de ser, para que cada um
carregue a sua cruz nesta vida. De qualquer modo, mamãe tinha de ser infeliz,
desde que se me meteu na cabeça casar com o Luizinho. Ela morria logo atrás de
mim — e eu morria, esteja você bem certa, se não me dessem o meu tormento — e
morria sem me ter visto contente. Às vezes, mesmo, penso que foi melhor que ela
morresse logo. Lá do Reino da Glória ela vê no meu coração ainda melhor do que
eu. E se viva fosse, seria uma agonia o seu viver, porque eu nunca havia de lhe
explicar bem o meu modo todo especial de sofrer. Eu dizendo isto a você parece
uma loucura — se pudesse mudar a minha sorte, eu não queria outra. Basta que lhe
explique que em toda a minha agonia, o sofrimento pessoal, por mim mesma, é
quase nada comparado com o que sofro por ele, de o ver tão miserável e eu sem
lhe poder valer...
— Mas, não
entendo... Acalme-se para me falar, Ninita!
— Prima, eu
me casei com um desgraçado, que não tem o respeito de si mesmo nem dos mais e
não posso imaginar-me casada com outro que não fosse ele! Se agora me
dissessem: — "Teu casamento não era verdade; foi um pesadelo de cinco
anos; passemos uma esponja iro passado, que não reste mais memória cicie",
eu pediria, de joelhos, que não fizessem tal ou que me matassem então, porque,
arrancarem-se o meu martírio, seria como se me arrancassem o melhor, o mais
íntimo da alma, que se faz de sofrimento, por amor, por ódio, por impulsos de coração.
Já estou feita assim...
Neste
instante ouviu-se, vindo do interior da casa, uma voz de homem que cantava uma
copla de canção francesa:
Vivent ces nuits d'orgie
Ou la raison se perd,
Dans un joyeux concert
Formé par la folie!
Ou la raison se perd,
Dans un joyeux concert
Formé par la folie!
Ninita
interrompeu-se, mais pálida ainda e depois continuou, com a voz tremula e
comovida:
— É assim
que ele acorda todos os dias, tão contente, sem saber que as suas cantigas me
ofendem como injúrias.
— É o
Luizinho!...
— É meu
marido... Aquilo é um sossego de coração, (orno se esta casa fosse um ninho de
amor, ele um homem de bem e eu uma mulher feliz! Quase me põe doida o desejo
que às vezes tenho de lhe dar razão, para sossegar-me a mim também. Mas para
isso seria preciso sair d;is regras, viver como uma afronta a Deus e ao
respeito do mundo. Ele vive assim porque não tem consciência: eu, se fizesse o
mesmo, seria uma criminosa cm vez de uma desgraçada. E a fogueira de ciúmes em
que me consumo, Amélia! Aquela canção de que ele se lembra assim que se
levanta, é o grande sucesso da Bellony, a alcazarina com quem ele gasta tudo o
que lhe cai nas mãos rotas...
— A Bellony?
Mostraram-ma ontem de tarde em Botafogo, que passava governando o seu carro. É
bonita, mas tem um ar ordinário!
— Pois dela
eu só tenho os restos. Restos dela e de outras. Até das minhas escravas,
enquanto as tive cm (asa, até da minha cozinheira... Apanhei-os um dia,
chegando da rua sem ser esperada. Imagine com que nojo... Amélia, enquanto nós
duas passávamos horas c horas a falar de amor, de paixão, de coisas que não
entendíamos, pensávamos que todos os sentimentos se purificam quando o coração
se nos inflama com o ardor deles. E era um engano: por experiência, sei que há
sentimentos que mesmo na fogueira da paixão não se limpam. O meu amor pelo meu
marido me envergonha a meus próprios olhos, como um sentimento indigno c nem a
minha dignidade de senhora, nem a minha consciência de cristã me deixam
entregar-me a ele sem remorsos. No entanto, com toda esta agonia de ciúmes, de
vergonha, de medo da miséria e de piores transes, não posso imaginar-me vivendo
com outra coisa no coração...
Nesse
momento ouviram-se os passos de alguém que saía pelo corredor e a mesma voz de
ainda há pouco, continuando a canção, foi se afastando:
Vivent le vin et l'amour
Qui viennent tour a tour
Gharmer
Les chagrins de la vie!
Qui viennent tour a tour
Gharmer
Les chagrins de la vie!
E a grande
porta da rua rangeu e tornou a fechar-se. Ninita abaixou a cabeça um momento,
escutando. Depois, pegou na vassoura encostada a um canto da sala e pôs-se a
varrer as cartas de jogar, pontas de charutos e fósforos meio queimados, que
alastravam o chão. Mas logo parou e, deixando-se cair sobre uma cadeira, disse
para a prima, com um grande sentimento na voz:
— Não conte à nossa gente como me viu, Ameliazinha.
Diga-lhes que não me veio visitar, se não quiser comprometer-se e mentir ainda
mais. Para que dar desgostos, desde já, à nossa pobre tia Anica? Depois, com
que coragem ia você dizer-lhe que a sua Ninita querida está feita dona de casa
em que se joga por dinheiro e se tira barato, que de manhã é ela quem varre a
casa, quem pega na vassoura com suas mãos de duquesa, para ver se, com a
humilhação de sua sorte, enxota o que lhe resta de brio, que é o que mais a
aflige na sua miséria? Prima, eu estou fazendo esforços para lhe não sujar os
ouvidos com a minha confissão, mas não posso mais conter-me: por um beijo, um
carinho daquele homem que é de todas menos meu, que nem passa, antes de sair,
pela sala em que estou para me dizer bom dia, pelos restos que as outras me
deixam e que eu careço de andar mendigando para ter de longe em longe — eu não
troco a posição que me quisessem dar de fortuna, de consideração, de sossego,
mas sem este amor, esta paixão danada em que me abraso como no fogo do
inferno... Chego a pensar, às vezes, que é o espírito maligno que me possui,
que me faz estrebuchar nos espasmos desta bem-aventurança atroz!...
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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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