Pomba entre milhafres
Aos quinze anos, Luíza ficara
sem mãe. Do pai, que perdera muito criança, conservava umas vagas reminiscências.
Que não fora a morte que lho roubara, sabia-o de sobejo. Quando pequenita
ainda, por noites frias de inverno, acordava estremunhada, e, cheia de medo com
o barulho da chuva batendo rija nos vidros partidos da janela e com os roncos
do vento assobiando pelas frinchas do forro, chamava pelo pai! A mãe então,
aconchegando-a mais a si, adormecia-a, prometendo-lhe que o pai havia de
voltar, e todos os dias rezavam juntas rogando a Deus pela vida dele. Nunca
voltou!...
Nas rudes horas do desalento,
quando o trabalho minguava, bastas vezes ouviu dizer à mãe, por entre o soluçar
dum choro copioso, que a miséria e o abandono em que viviam, tudo era ainda
pouco para julgar espiada a sua culpa. Luíza tremia ao ouvi-la falar assim. O
seu pequenino coração confrangia-se de assustado e chorava também!
Cedo se habituou a sofrer, e
as privações e a vida resguardada que a mãe lhe fazia levar, nunca a deixando
sair de casa – uma água furtada dum prédio muito esguio na rua do Marquês de
Alegrete – deram à sua fisionomia, pálida e doentia, uma expressão de tristeza
duma doçura atraente. Os cabelos louros e encrespados, emaranhados na testa e
levantados um pouco sobre a nuca, esbatiam-na num fundo a que a luz dos seus
olhos magoados emprestava os tons dum céu claro de outono. Como a mãe era
engomadeira, ela engomava também; e, dobrada sobre a banca, com o ferro seguro
com ambas as mãos, o seu corpo gentil tinha a curva graciosa e delicada da
haste dum narciso. A doença da mãe fora curta. Caíra de cama, devorada por uma
febre intensa, morrendo ao fim de três dias após uma agonia demorada, com as
mãos apertadas às da filha, como se a quisesse levar consigo. Pouco antes da
agonia principiar a embaciar-lhe os olhos, transmudando-lhe as feições num
distender de músculos, agarrou Luíza mais para si, murmurando em palavras
cortadas, num derradeiro esforço de moribunda:
– Sê sempre honesta e perdoa-me
se te deixo ficar tão só e tão abandonada!...
Em casa não entrava senão uma
velha, uma vizinha do mesmo prédio, que naquela triste ocasião foi para a pobre
órfã uma verdadeira Providencia. E, como fosse só, chegou mesmo a propor-lhe
que melhor seria para ambas o viverem juntas.
Luíza chorava sem responder.
Inteiramente entregue à sua dor, afigurava-se-lhe que o mundo ia acabar.
Ao cabo, porém, de poucos
dias, quando pretendia aproveitar-se do oferecimento, depressa conheceu quanto
ele era pouco sincero. A velha celibatária, e por natureza egoísta, mudava de
conversa sempre que Luíza lhe falava na triste solidão em que vivia. E, ao
descer a escada, já um pouco trôpega, amparada ao corrimão, resmungava entre os
dentes:
– Não me faltava mais nada! Ir
buscar trabalhos com as minhas próprias mãos!
E, numa exclamação bestial,
ajuntava:
– Arreda!
No amor ao trabalho, que a mãe
lhe soubera incutir, Luíza encontrou o único amparo para a sua enorme desgraça.
Trabalhava, trabalhava muito, constantemente à boca da noite saía a levar a
roupa a casa dos fregueses. De olhos fitos no chão, absorta sempre, caminhava
sem reparar nos galanteios que lhe dirigiam; e, se algum mais atrevido lhe
tomava o caminho, descia rápida do passeio, afastando-se com o seu passo
apressado e miúdo. A lida continua de todos os dias não lhe espancava as
negruras das noites que eram cruéis. A figura da mãe aparecia-lhe então
perfeitamente nítida; mas morta, com as mãos cruzadas sobre o peito, estendida
em cima da cama, em que ela própria se ia deitar! E, como se realmente ali
estivesse, Luíza, uma vez deitada, aconchegava-se muito para o lado da parede,
deixando à morta o seu antigo lugar!
Essa formosa criança pobre e
abandonada sentia-se, apesar da fortaleza da sua alma, pouco a pouco vencida
pela fatalidade da desgraça, e o seu destino aparecia-lhe indeciso e lúgubre,
como a vaga claridade espalhada à noite numa igreja pela mortiça luz duma única
lâmpada!
A freguesia foi rareando. A miséria
tornou-se mais sombria, porque, não raras vezes, era a fome a sua companheira.
A ideia do suicídio perseguia-a acudindo-lhe à lembrança casos lidos nos jornais
de mulheres que se matavam. Pensava mesmo nos meios de realizar esse intento.
Afogar-se, repugnava-lhe. Parecia-lhe que o Tejo devia ser frio, muitíssimo
frio. Precipitar-se à rua, talvez fosse melhor. Debruçada da janela, a altura
estonteava-a, e, depois passava tanta gente! Não iria na sua queda fazer mal a alguém,
alguém que fosse feliz?!...
Sentado a um canto e com os cotovelos
fincados sobre os joelhos, quedava-se horas inteiras a cismar, namorando com os
seus olhos azuis, duma ternura inefável, os fogareiros de barro onde aquecia os
seus ferros!
***
Uma tarde, Luíza descobriu, no
segundo andar do prédio fronteiro, – uma casa de aparência pobre como a sua – através
dos vidros de vidraça, o perfil dum homem, de um rapaz ainda novo. A casa tinha
escritos, havia muito; e, sobre a porta, em letras manuscritas, um pequeno
quadrado de papel em que se lia: – Esta casa não se aluga; está em obras.
Quem poderia ser esse
inquilino? Um desgraçado como ela, sem ninguém, só no mundo e a quem talvez, enquanto
as obras não principiavam, o proprietário tivesse feito a esmola de o deixar
viver ali. E o seu coração sentia uma atração irresistível por esse
desconhecido, por esse infeliz, a quem ela já emprestava uma sorte igual à sua!
E sem o ver, que as vidraças nunca se abriam, adivinhando-o apenas, amava-o com
os ímpetos duma paixão irresistível. E agora, desde que essa paixão se lhe
ateara n'alma, como uma aurora de esperança, passava os dias feliz e alegre no
meio da sua enorme desventura!
Chegou mesmo a fazer loucuras.
Uma vez, como na rua passasse uma mulher vendendo flores em vasos postos à cabeça,
em cima duma tabua, chamou-a e comprou-lhe dois. Um era de amores, o outro um
craveiro. Deu por eles um tostão, toda a sua fortuna, tudo quanto tinha, o seu
pão do dia seguinte. Mas que importava se tinha com que ornar a sua água
furtada?!
De manhã cedo, mal se
levantava, corria à janela. Na casa fronteira, tudo fechado, apenas os escritos
pareciam fita-la com a imperturbabilidade de orbitas às quais tivessem
arrancado os olhos. Apesar de não ver ninguém, porque só à tarde e muito
rapidamente é que ela entrevia esse vulto tão amado, principiava contente a
cantar o seu rude trabalho. Vivia satisfeita. Unir a sua sorte tão negra à desse
desventurado tão abandonado como ela, era o seu sonho de todos os instantes. A
desgraça sente-se atraída pelo infortúnio, e devia ser enorme o desse rapaz que
assim se ocultava à vista de todos. Dizer como ele era, não o sabia, que à hora
a que o vulto se desenhava por detrás dos vidros, Luíza, com receio de ser
vista e de não ser correspondida, espreitava-o a medo da sua janela, e, como
fosse sempre perto da noite, não podia também fixar-lhe as feições. O que distintamente
via era as mãos muito brancas, mãos de fome, pensava, cerrando as portas da
janela. E era este amor, vago, indefinido, consagrado a alguém que para Luíza
pouco mais era que uma sombra, que a sustentava, que lhe dava alento para suportar
com coragem a vida de privações que arrastava. Aquele curtíssimo momento tão
desejado e tão expiado, inundava-lhe a alma duma alegria sem igual.
***
Um dia, foi em vão que esperou
o namorado. E passaram-se dias e dias sem nunca mais o tornar a ver. Luíza
sentia-se sucumbir. A ardência da paixão havia-lhe secado as lágrimas. Não
chorava. Tinha desesperos nervosos que a prostravam como se de repente o
coração deixasse de bater dentro do seu peito de virgem! E deixava-se ficar
esquecida do trabalho, das horas, do tempo numa quietação idiota. Numa dessas crises,
perdida, fora de si, dirigiu-se à janela, como louca, decidida a precipitar-se
dela abaixo. Hesitou, teve medo, e, ao mesmo tempo reparou que na rua uma
senhora, parada em frente da porta, que para si valia mais que a dum sacrário,
olhava para um e outro lado, como quem procura convencer-se que era realmente
aquela a casa que buscava. Viu-a levantar a aldrava e entrar. Nesse instante,
dissiparam-se-lhe todos os pavores que a martirizavam. O seu amor, a sua quimera,
estava ali defronte, a dois passos!
Ouvira, em tempo, falar à mãe
numa associação de senhoras que socorria os pobres, indo elas próprias
levar-lhes esmolas juntas com palavras de muita resignação. Sim, era isso, era
uma dessas benfeitoras, que ia socorrê-lo, ao seu amado, que ali jazia doente,
moribundo talvez! Desceu apressada a escada e foi postar-se à porta da casa
decidida a interrogar essa senhora que para Luíza, naquele momento, revestia as
formas dum anjo caído do céu para a salvar!
Esperou, esperou por muito
tempo. Ela que não descia é que devia ser desesperado o estado do doente.
Lembrou-se da mãe. Como se morre depressa! Resolutamente abriu a porta e subiu
a escada. No fim do segundo lanço havia um corredor escuro, parou; abrindo-se
ao fundo uma porta, uma faixa de luz iluminou-o obliquamente. Da sombra, e
cosida com a parede, espreitou. Pareceu-lhe que sonhava! De costas para ela a
senhora despedia-se dum rapaz novo e elegante que lhe imprimia na boca um beijo
demorado!...
Horrorizada e recuando pé ante
pé, como um ladrão que se sente prestes a ser apanhado, apenas chegou à escada,
desceu-a precipitadamente. Uma vez em baixo, levantou os olhos marejados de lágrimas
para aquelas mentirosas janelas; e, alucinada, sem consciência do que fazia, principiou
a caminhar pela rua adiante. Era noite e bem escura, quando e sem saber como se
achou encostada à muralha do aterro. As águas, na baixa-mar, deixavam a
descoberto o fundo lamacento do rio fracamente alumiado pelos candeeiros da
margem. Se as lágrimas, que em fio lhe escorriam pela cara abaixo, pudessem
encher o Tejo, ter-se-ia precipitado do parapeito, acabando de vez com o atroz
sofrimento que a perda da sua primeira ilusão lhe causava! E pressentia que
seria a derradeira! Que mais lhe restava no mundo, agora, que sentia o coração
morto dentro de si?...
Os estreitos reflexos das
luzes dos faróis dos navios ancorados a meio do reio, cintilavam marcando distintamente,
com pequenos pontos brilhantes, a linha d'água. De olhos fitos cuidava ver
crescer a maré, e, ansiosa aguardava o momento que tanto lhe tardava, de se
deixar cair de chofre na corrente!...
Um bêbado, que passava do
outro lado, aos bordos, encostando-se às paredes das trezenas, ao lobrigar um
vulto de mulher, atravessou aos ziguezagues, e, abeirando-se dela, agarrou-lhe dum
braço, rosnando:
– Anda daí, rapariga.
Luíza, refeita do susto,
desembaraçou-se da mão que a oprimia e com os débeis punhos cerrados bateu de
encontro ao peito do bêbado, que tombou estatelado no chão. Grunhindo como uma
fera rolava sem conseguir levantar-se. E ela, a quem aquele atrevido convite
enchera de indignação, ao ver assim um homem estrebuchar nas pedras do passeio,
teve dó e aproximou-se com o intento de o ajudar a por de pé. Ao curvar-se,
porém, vendo-lhe luzir na palma da mão a folha duma navalha, teve medo, soltou
um grito de terror e desatou a fugir!...
***
Dois dias depois, os vizinhos
de Luíza, como a não ouvissem cantarolar em cima, e não dessem tento dela ter saído,
concertaram uns com os outros ir ter com o regedor da freguesia a fim de o
prevenir das apreensões que tinham a tal respeito.
Arrombou-se a porta. No chão
havia dois fogareiros cobertos de cinza branca. Sobre a cama e muito cosido com
a parede, deixando vago o lugar da mãe, jazia o cadáver de Luíza, segurando
ainda numa das mãos um pequeno ramo feito de amores e cravos desmaiados!...
Quando o ano passado fui,
segundo o meu costume, passar no verão uns dias à província, à velha casa de
meus pais, o capelão, um padre que me trouxe ao colo, depois de me festejar
grandemente e de se informar da minha pouca demora, pediu-me com instancia para
lhe ajudar à missa, no dia seguinte, um domingo. Achei-o muito mudado; havia
apenas um ano que o não via; mas, durante esse tempo, tornara-se decrépito. No
seu olhar, amortecido e vago, pareceu-me descobrir o pressentimento dum fim que
se avizinha. Não me enganei. Passados três meses, chegava-me a triste noticia
da sua morte. Pobre homem! Vendo-me aos seus pés, na sucessão das cerimônias do
ofício divino, talvez se sentisse remoçar e se imaginasse com vinte anos menos,
tendo ao seu lado a criança, a quem, entre mimos de bondade, ensinara o Ad Deum qui lactificat juventutem meam! Fiz-lhe
a vontade, e, finda a missa, seguiu-o na estreita sacristia, onde, pouco antes,
o ajudara a paramentar. Encanecido e curvado sobre o arcaz, ia-se despindo com
lentidão, murmurando as palavras da sagrada liturgia, da casula, da estola, do
manipulo, da alva, e do amicto, dobrando sucessivamente e beijando com
respeitos esses atributos, com que se revestira para a celebração do solene sacrifício.
Depois abriu com custo, levantando as pesadas argolas de bronze trabalhado, uma
enorme gaveta e dum canto tirou um pequeno pano de linho branco, que examinou,
acrescentando:
– É um corporal que, no
domingo passado, preparei para a fidalga mandar lavar. Roto, esfrangalhado!...
Para a outra vez não há remédio senão queimá-lo!
E na sua voz e no seu olhar
havia a tristeza inconsolável de quem assiste à derradeira separação dum velho
amigo, dum antigo companheiro!
Peguei no corporal, e saí para
o terreiro, a esperar, à porta da capela, que o padre Manuel acabasse as suas
rezas, para depois lhe fazer companhia ao almoço. Ao sentir na palma da mão
aquele pedaço de linho, tão fino e tão macio, levado por um outro sentimento,
compreendi o amor do padre, e, desdobrando-o, reparei na delicada renda, que o
orlava. Assim esfarrapado, pareceu-me mais o lenço duma noiva, mordido
desesperadamente no primeiro acesso de ciúme, que o corporal dum altar! O capelão,
pitadeando, vinha saindo da capela. Como se realmente tivesse na mão um lenço,
amarroteio-o com irreverência, enfiando-o à pressa no bolso do meu casaco de
flanela. Só à noite, quando recolhi ao meu quarto é que voltei a dar com o
corporal. Atirei-o com desdém para cima duma mesa, fazendo esforço para não me
esquecer de o entregar no dia seguinte a minha mãe. O sono na aldeia é fácil de
conciliar. Meti-me na cama, passei a vista pelas folhas dum alfarrábio
poeirento, que de dia tinha descoberto, à hora da calma, na estante do
corredor, e apaguei a luz, disposto a acordar com os primeiros clarões da
madrugada. Apenas me tinha aconchegado ao linho fresco dos lençóis, levemente
perfumados pelo cheiro sadio das maçãs camoesas da arca e das ervas do campo,
sobre as quais tinham secado à beira do ribeiro, pareceu-me ouvir no próprio
quarto um choro dolorido, entrecortado de gemidos e muito manso, de quem
procura evitá-lo. Não podia enganar-me. Não era ilusão dos meus sentidos.
Levantei-me um pouco na cama, e, em voz baixa, perguntei quem estava ali. Uma
voz sumida respondeu-me:
– Sou eu.
– Quem? insisti de novo.
– A renda, a infeliz renda do
corporal, que hoje trouxeste da capela.
Lancei a mão à caixa de fósforos
para acender a luz; mas, lembrando-me que talvez o encanto cessasse com a
claridade, deixei-me ficar na escuridão do quarto, e animei a renda a desabafar
comigo. Ela, então, já à vontade com o meu bom humor e a minha caridade,
contou-me a sua história.
***
Nasci do linho de Nouvion,
fiado numa roca por uma velha, que, apesar de cega, conseguia que a linha tenuíssima,
como os fios da teia duma aranha, sem um nó, crescesse na maçaroca do seu fuso
favorito, ininterruptamente, até ao acabar da estriga.
Depois, por ordem de Colbert,
levaram-me para Alençon. Ali, uma rapariga bem nova e bem infeliz, porque o
noivo tinha partido para a conquista de Flandres, criou-me, orvalhando o
pergaminho sobre que eu ia crescendo com as lágrimas da sua saudade. Como me
lembro dela! Magra, com o peito metido para dentro, à força de estar curvada
sobre mim; o rosto oval, com a expressão melancólica, de boca sempre
entreaberta para deixar passar os suspiros; as meninas dos olhos negras, umedecidas,
como se fossem recortadas na pena luzidia da asa dum corvo e coladas sobre o
peito duma rola; os cabelos castanhos, esparsos, sobre a testa pequenina!
Quando me separaram dessa gentil camponesa, pouco tempo poderia ter já, para
chorar o seu noivo ausente; tossia, e o seu lenço tingia-se com laivos de
sangue desmaiado. Nunca mais voltei a saber o que era a sinceridade.
Conheci todos os esplendores
da corte do Grande Rei.
Misturaram-me a quanta intriga
doirada se urdia entre os veludos e as sedas dos cortesãos respeitosos. Beijei
os seios da Montespan, presa do decote do seu vestido de gala! Nunca vi corpo
mais róseo e branco, de que não pode dar ideia a alvura dum jasmim corado pela
candura duma criança! Cabelos mais louros – raios de sol fundidos em fios
ondeados! Olhos mais azuis do que as próprias safiras estreladas!
Um dia, roubada, venderam-me a
Ninon de Lenclos. Vi os maiores nomes de França chafurdarem-se na alma dessa
alcova, toda forrada de cetim e rendas – rendas, minhas irmãs!
Escutei, de noite, os segredos
lascivos, que, entre beijos, ela repetia à Maintenon. Depois, quando, mais
tarde, a viúva de Scarron, elevada a favorita, foi para Versailles,
acompanhei-a, como lembrança da sua antiga amiga. Estive no casamento do Rei,
celebrado de noite, envolto num grande mistério, abençoado por Hébert, tendo
apenas por testemunhas alguns criados discretos, pagos a peso de ouro. Segui
assim o astro em toda a sua orbita, e comigo se ornou ainda a Maintenon, para
receber, doente e deitada na cama, pouco tempo antes de morrer, a visita do
czar.
Conheci todos os recatos de
Saint-Cyr, até chegar a imaginar que ali morreria ignorada, passando de mãos em
mãos, sempre como lembrança, duma pupila que saia à amiga dileta que ficava. A
minha vida era triste, porque não saia dos cofres delicadamente cinzelados,
onde sucessivamente me iam guardando. Um dia, porém, Luíza, a minha dona,
enamorada perdidamente dum rapaz novo, gentil e bem parecido, com quem falava
da janela, às horas mortas da noite, enganando a vigilância da superiora,
foi-se ao cofre, onde eu jazia, e atirou-me como mimo de amor, ao seu amado,
dizendo-lhe que eu pertencera à Maitenon. Quando me vi no ar, tive medo, medo
da minha queda! Mas, das bandas de Paris, corria uma doce aragem que me
embalava, e, desenrolando-me no espaço, como um passado que voa, fui pousar, ao
de leve, longe do cavaleiro. Apanhou-me, e, levando-me ao coração, disse para
cima umas palavras mentidas. Ele era um devasso, e, por esse tempo, enchia as
ruas de Paris a fama da beleza de Joana Becu. Conhecia-a, e, nessa mesma noite,
assisti, enrolada ao pescoço da cortesã, a uma saturnal de que ainda hoje coro!
Aqui o choro recomeçou de
novo; depois, em voz sempre muito arrastada continuou:
– A minha sorte, desde esse
momento, ficou presa à da du Barry. Ela tinha-me como um talismã, sabia de quem
eu procedia, e por isso nunca se separou de mim, chegando a trazer-me ao
pescoço, dobrada, metida num pequeno saco de veludo, pendente dum fio de
perolas, como um amuleto! Uma vez, que me julgou perdida, pensou em oferecer
todo o seu poder, todas as suas joias, todas as suas riquezas, todo o encanto
da sua formosura peleia, a quem me descobrisse. Não foi necessário nenhum sacrifício.
Ela própria me encontrou no seu sumptuoso pavilhão de Lucienes. Beijou-me, e
esses beijos, só lembrá-los, ainda agora me escaldam! Acompanhei-a nas suas
viagens a Londres, em plena república, e, por último, ao cadafalso. E essa
mulher, que tratara o rei de França como um joguete de criança, diante da
morte, teve medo – não soube morrer com valor! A cabeça caiu para um lado,
decepada, eu para o outro, sobre o estrado da guilhotina. A sua superstição por
mim era tão forte, que me levara alinhavada às pregas do seu corpete. Como
desejei morrer ali! Considerava-me cúmplice de todos os seus crimes. O destino,
porém, não o quis assim. Os corpos dos cadáveres, com que o terror juncava os
cadafalsos, eram roubados pela populaça. Fui levada por um sapateiro, que deu o
vestido da morte de presente à sua filha. Quando ela me descobriu, coseu-me a
um lenço de linho finíssimo, despojo talvez também dum outra vítima! Durante
alguns anos para ali fiquei, vivendo numa casa humilde, esquecida, relembrando
todas as torpezas de que tinha sido testemunha! Dessa rapariga passei para uma
sua amiga, bem mais nova do que ela, que estava apaixonada por um soldado da
divisão do general Soult, que então recebera ordem de marchar sobre a península.
À hora da despedida, quando já
nas casernas rufavam os tambores e tocavam as cornetas a reunir, enxugando as lágrimas
dessa que mais uma vez ficava separada do seu amante, fui-lhe dada, como penhor
duma afeição eterna. O soldado meteu-me no bolso da fardeta, sobre o peito,
jurando amor eterno e jurando que, com tal couraça, não havia bala que o
ferisse. Jura fementida! Como tivesse adquirido na guerra o habito dos rudes
vencedores, veio descendo a França, como se fosse país conquistado, seduzindo
as mulheres, violando as crianças! Assim entrei na Espanha e passei a Portugal,
deixando sempre atrás de mim um rastro feito de lágrimas e sangue. Na passagem
do rio Ave, fiquei para trás, tendo visto o general Jaldon, ferido, cair morto
do cavalo abaixo. Tão esquecido estava o meu soldado da sua amada, que nunca,
nem quando se viu só e perdido, e tinha de evitar a todos, sem poder perguntar
a ninguém qual o caminho que levava ao Porto, para onde sabia que os seus
companheiros de armas se tinham dirigido, e, parando nos carreiros, atascado em
lama, limpava as bagas do suor, aflito, por se ver assim abandonado em pais
inimigo, nem então se recordava dela!
O povo, nesse tempo, fanatizado,
fazia no Minho uma guerra sem tréguas, nem quartel. O francês não era só o
inimigo, era sobretudo o herege. Visto, uma manhã no cimo de Tobosa, por um
caseiro desta casa, deixou-o espiado por um guardador de cabras, desceu a
buscar a clavina, e instruído da direção que o francês tomara, foi esperá-lo ao
sobreiro, e ali, de trás dum muro, varou-o, de lado a lado, com uma bala, que
lhe foi direita ao coração. Eu salvei-me por milagre! Uma vez o soldado
estendido por terra, revistou-lhe as algibeiras. Nada mais encontrou senão a
mim; e, como nunca tivesse visto um lenço tão fino, imaginou que era o corporal
dum altar; e, como também lhe pesasse um pouco na consciência o ter morto um
homem, que a ele propriamente nunca fizera mal, tomou-me com respeito, lavou-me
com cuidado, entregando-me como voto ao padre, que então era capelão da casa.
Eis toda a minha história.
Ora, hoje, quando ouvi falar em me lançarem às chamas, eu, que tanta vez mereci
a morte, por me ter visto misturada a tão infames crimes, arrepiei-me e senti
saudades do mundo. Não, não posso merecer a morte, agora, que me sinto
purificada, depois de ter passado, mais de setenta anos, consagrada ao serviço
divino! E suplicante, pedia-me que a salvasse; que ornasse com ela um lenço de
cambraia, afirmando que quem o possuísse, ignoraria a desventura, e que se esse
alguém, por uma fatalidade da sorte, tivesse de chorar, saberia com tal
meiguice e carinho enxugar essas lágrimas, que até seria um prazer o vertê-las!
***
Quando acordei era já sol
nado, havia muito. Nos campos as lavradeiras, cantando, mondavam os milhos, e
os pássaros, de entre as folhas das árvores, respondiam alegremente ao desafio.
Sobre a mesa estava o corporal. Peguei nele e guardei-o no fundo da minha mala
de viagem. Quando cheguei a Lisboa, remeti um outro ao padre Manuel. E, como
acredito em sonhos, e a renda é de Alençon, mandei fazer um lenço, que um dia hei
de dar a uma noiva gentil, que hoje conheço criança!
---
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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