6/02/2019

Policarpo Quaresma (Análise Literária), por Oliveira Lima



Policarpo Quaresma
O “triste” fim do Major Quaresma, coroando uma triste vida, constitui o entrecho de uma novela à qual a imprensa do país não fez ainda a devida justiça, porventura pela simples razão de ser a imprensa quem menos lê. Já lhe basta, dirá ela, ter que fornecer o que ler. Entretanto nessa imprensa houve, há quinze anos passados, mais de um crítico que saudasse como uma revelação genial a aparição do Canaã. O que dizer então do romance do Senhor Lima Barreto, que lhe é em todos os sentidos cem vezes superior? Querem a prova? Qual dos tipos desenhados pelo Senhor Graça Aranha perdurará na memória mesmo dos intelectuais, como acontece com o Conselheiro Acácio , o João da Ega, o Dâmaso, o poeta Alencar? Em Milkau e em Lentz pretendeu o autor do Canaã simbolizar as tendências opostas da alma alemã, o idealismo e a força, mas representará isso um pensamento original, ou será antes o chavão batido por todo aspirante a observador das psicologias estranhas? O que faz a superioridade olímpica de Goethe, senão a combinação perfeita daqueles dois elementos?
Entretanto o Major Quaresma viverá na tradição, como um Dom Quixote nacional. Ambos são tipos de otimistas incuráveis, porque acreditam que os males sociais e sofrimentos humanos podem ser curados pela mais simples e ao mesmo tempo mais difícil das terapêuticas, que é a aplicação da justiça da qual um e outro se arvoraram paladinos. Um levou sovas por querer proteger os fracos; o outro foi fuzilado por querer na sua bondade salvar inocentes. Visionários ambos: assim tratou o marechal de ferro o seu amigo Quaresma e trataria Dom Quixote, se houvesse lido Cervantes.
O romance do Senhor Lima Barreto, se não alvorotou a imprensa, impressionou fortemente quantos o leram. Não tenho ouvido a tal respeito uma opinião discrepante. É um grande livro, por consenso comum. A única pecha de que o tenho ouvido culpar, não me parece absolutamente justa. Refere-se à linguagem, ou melhor, ao estilo, julgado menos cuidado e por vezes incorreto, por ser a linguagem simples e propositalmente desataviada. Por idêntico motivo era Eça de Queirós no começo tachado de escrever mal. O Senhor Lima Barreto procura felizmente não escrever bonito: antes, mil vezes antes, singelo, familiar mesmo, do que pernóstico.
O fato porém é que o autor conta até felizes achados de expressão, traduzindo felicíssimos conceitos, como, por exemplo, a oradora da delegação patriótica a Floriano; de busto curto, agitando o leque, “sem se poder dizer bem qual sua cor ou sua raça, tantas nela andavam que uma escondia a outra”, desafiando a classificação; ou o Almirante Caldas, que achava difícil manobrar com um navio, mais fácil comandar uma esquadra, porque isso bastava bravura; ou ainda o Tenente Fontes que, quando o Major Quaresma queria regular os tiros cientificamente, pela distância, pela alça, pelo ângulo, exclamava que o seu superior pensava estar num polígono, quando a questão era de “fogo para diante”.
O Senhor Lima Barreto não se dá ao luxo, por vezes espaventoso, de rebuscadas psicologias. Ao leitor deixa ele reconstituir o caráter dos seus personagens: o leitor, porém, o pode fazer sem fadiga, naturalmente, quase instintivamente, com os elementos postos à sua disposição — observações passageiras, fragmentos de diálogos, notações rápidas de sentimentos. De tudo isso se deriva uma psicologia completa, que melhor se grava no nosso espírito do que se fosse feita por meio de sutil e detalhada análise. Alguém comparou um dia um romance de Bourget com um retrato de Velásquez, psicólogos ambos de rara penetração, mas eu sempre prefiro o retrato de Velásquez.
No romance do Senhor Lima Barreto há figuras inolvidáveis, a do protagonista, por exemplo, ou a do trovador Ricardo Coração dos Outros, um visionário, também, poeta do violão. Com nenhum gasta o autor muitas pinceladas: a pintura ressalta da própria ação. Ele reserva o mais das suas tintas para o perfil que se tem querido fazer enigmático de Floriano (enigmático para os que não querem traçá-lo à luz da verdade) e de que ele conseguiu um desenho impressivo. Fisicamente, a figura do ditador “era vulgar e desoladora. O bigode caído, o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava um grande "mosca"; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso — parecia não ter nervos.”
No moral, os traços predominantes eram a probidade pessoal, que no Império era ou tinha de ser um predicado geral; o amor da família, mais forte nas civilizações patriarcais, como era a da sua formação moral; uma indolência orgânica, "preguiça de pensar e de agir, da qual vinha o seu mutismo, os seus misteriosos monossílabos, elevados à altura de ditos sibilinos, as famosas "encruzilhadas dos talvezes", que tanto reagiram sobre a inteligência e imaginação nacionais, mendigas de heróis e grandes homens"; a calma de chinelos e palito na boca que ali se originavam e que era antes “tibieza de ânimo”, responsável pelas condescendências e intimidades que autorizava e que tornaram esse governo um governo de prepotências cometidas pelos irresponsáveis.
Em que se firmava tal governo, se lhe faltava o elemento essencial da fortaleza do “homem”, homem-César? De um concurso de circunstâncias geradores de um "entusiasmo contagioso" por uma figura “plácida e triste”, incapaz de realizar qualquer grande reforma e apenas capaz de exercer uma tirania doméstica. Policarpo Quaresma imaginara nele um Henrique IV desdobrando-se num Sully. A atmosfera exaltada, nativista da época, dera-lhe uns reflexos trágicos de Richelieu embebido na ideia da unidade da França e da supremacia dos interesses do Estado. O “homem” valia menos. Os que tinham vindo a ele, faziam-no “ou com pueris pensamentos políticos ou por interesse: nada de superior os animava. Mesmo entre os moços, que eram muitos, se não havia baixo interesse, existia uma adoração fetíchica pela forma republicana, um exagero das virtudes dela, um pendor para o despotismo, que os seus estudos e meditações não podiam achar justo.”
 A mocidade de hoje pensa diversamente com relação a processos de governo. Há mais ceticismo e também mais tolerância. Eu não penso, felizmente para o Brasil, que fosse "hoje” possível renovar aquele período do Boqueirão e do famoso quilômetro. É verdade que temos perto de nós a ilha das Cobras, o Satélite e o Contestado... Mas eu “quero” crer que assim será, que a bondade famosa da alma brasileira se tornará uma realidade, e para isto me fio no que sentem e como sentem os escritores que vão surgindo, a exemplo do Senhor Lima Barreto.
Veja-se como ele descreve o pessoal onde se iam recrutar os fuzilados do Boqueirão: “Brancos, pretos, mulatos, caboclos, gente de todas as cores e de todos os sentimentos, gente que se tinha metido em tal aventura pelo hábito de obedecer, gente inteiramente estranha à questão em debate, gente arrancada à força aos lares ou a calaçaria das ruas, pequeninos, tenros, ou que se haviam alistado na miséria, gente ignara, simples, às vezes cruel e perversa como crianças inconscientes, às vezes boa e dócil como um cordeiro, mas enfim gente sem responsabilidade, sem anseio político, sem vontade própria, simples autômatos nas mãos dos chefes e superiores que a tinham abandonado à mercê do vencedor.”
Este... “O tempo estava de morte, de carnificina; todos tinham sede de matar, para afirmar mais a vitória e senti-la bem na consciência coisa sua, própria e altamente honrosa. Pobre Policarpo Quaresma, preso por haver protestado, no uso de um direito constitucional, contra os horrores da matança a sangue-frio, e levado para a mesma masmorra onde tinham penado, no tempo colonial, alguns formosos espíritos ávidos de independência... Aqueles homens acusados de crime tão nefando em face da legislação da época, tinham levado dois anos a ser julgados; e ele, que não tinha crime algum, nem era ouvido, nem era julgado; seria simplesmente executado!"
Não é um dos menores méritos deste romance o poder ser posto em todas as mãos sem constituir uma ofensa à moral. Nos contos mesmo que lhe servem de apêndice, há reserva, e grande, todas as vezes que se toca a nota sensual e brejeira. Nos tipos femininos, Ismênia e Olga sobretudo, a delicadeza do desenho é notável, lembrando algumas das criações de Machado de Assis. Nada de certas cenas do Canaã, dignas de um gabinete de parteira. Em Policarpo Quaresma predomina o sentimento: banha o livro um sopro de compaixão, uma vibração misteriosa de piedade que resgata qualquer defeito de composição, que ainda possa apresentar essa segunda tentativa, no gênero romance, da mais prometedora vocação da geração nova, espírito no qual se alia ao senso do pitoresco o senso social.
É preciso remontar até O Mulato para se lhe encontrar termo de comparação, talvez mesmo mais longe, às Memórias de um Sargento de Milícias, porque em Aluísio Azevedo era forte a preocupação da escola naturalista e sensível a influência de Zola e de Eça de Queirós, ao passo que o Senhor Lima Barreto, como Manuel de Almeida, se contenta, sem esforços de originalidade, em ser ele próprio.
Rio, novembro de 1916.

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