Policarpo Quaresma
O “triste” fim do
Major Quaresma, coroando uma triste vida, constitui o entrecho de uma novela à
qual a imprensa do país não fez ainda a devida justiça, porventura pela simples
razão de ser a imprensa quem menos lê. Já lhe basta, dirá ela, ter que fornecer
o que ler. Entretanto nessa imprensa houve, há quinze anos passados, mais de um
crítico que saudasse como uma revelação genial a aparição do Canaã. O que dizer então do romance do
Senhor Lima Barreto, que lhe é em todos os sentidos cem vezes superior? Querem
a prova? Qual dos tipos desenhados pelo Senhor Graça Aranha perdurará na
memória mesmo dos intelectuais, como acontece com o Conselheiro Acácio , o João
da Ega, o Dâmaso, o poeta Alencar? Em Milkau e em Lentz pretendeu o autor
do Canaã simbolizar as
tendências opostas da alma alemã, o idealismo e a força, mas representará isso
um pensamento original, ou será antes o chavão batido por todo aspirante a
observador das psicologias estranhas? O que faz a superioridade olímpica de
Goethe, senão a combinação perfeita daqueles dois elementos?
Entretanto o Major
Quaresma viverá na tradição, como um Dom Quixote nacional. Ambos são tipos de
otimistas incuráveis, porque acreditam que os males sociais e sofrimentos
humanos podem ser curados pela mais simples e ao mesmo tempo mais difícil das
terapêuticas, que é a aplicação da justiça da qual um e outro se arvoraram
paladinos. Um levou sovas por querer proteger os fracos; o outro foi fuzilado
por querer na sua bondade salvar inocentes. Visionários ambos: assim tratou o
marechal de ferro o seu amigo Quaresma e trataria Dom Quixote, se houvesse lido
Cervantes.
O romance do Senhor
Lima Barreto, se não alvorotou a imprensa, impressionou fortemente quantos o
leram. Não tenho ouvido a tal respeito uma opinião discrepante. É um grande
livro, por consenso comum. A única pecha de que o tenho ouvido culpar, não me
parece absolutamente justa. Refere-se à linguagem, ou melhor, ao estilo,
julgado menos cuidado e por vezes incorreto, por ser a linguagem simples e
propositalmente desataviada. Por idêntico motivo era Eça de Queirós no começo
tachado de escrever mal. O Senhor Lima Barreto procura felizmente não escrever
bonito: antes, mil vezes antes, singelo, familiar mesmo, do que pernóstico.
O fato porém é que
o autor conta até felizes achados de expressão, traduzindo felicíssimos
conceitos, como, por exemplo, a oradora da delegação patriótica a Floriano; de
busto curto, agitando o leque, “sem se poder dizer bem qual sua cor ou sua
raça, tantas nela andavam que uma escondia a outra”, desafiando a
classificação; ou o Almirante Caldas, que achava difícil manobrar com um navio,
mais fácil comandar uma esquadra, porque isso bastava bravura; ou ainda o
Tenente Fontes que, quando o Major Quaresma queria regular os tiros
cientificamente, pela distância, pela alça, pelo ângulo, exclamava que o seu
superior pensava estar num polígono, quando a questão era de “fogo para
diante”.
O Senhor Lima
Barreto não se dá ao luxo, por vezes espaventoso, de rebuscadas psicologias. Ao
leitor deixa ele reconstituir o caráter dos seus personagens: o leitor, porém,
o pode fazer sem fadiga, naturalmente, quase instintivamente, com os elementos
postos à sua disposição — observações passageiras, fragmentos de diálogos,
notações rápidas de sentimentos. De tudo isso se deriva uma psicologia
completa, que melhor se grava no nosso espírito do que se fosse feita por meio
de sutil e detalhada análise. Alguém comparou um dia um romance de Bourget com
um retrato de Velásquez, psicólogos ambos de rara penetração, mas eu sempre
prefiro o retrato de Velásquez.
No romance do
Senhor Lima Barreto há figuras inolvidáveis, a do protagonista, por exemplo, ou
a do trovador Ricardo Coração dos Outros, um visionário, também, poeta do
violão. Com nenhum gasta o autor muitas pinceladas: a pintura ressalta da
própria ação. Ele reserva o mais das suas tintas para o perfil que se tem
querido fazer enigmático de Floriano (enigmático para os que não querem
traçá-lo à luz da verdade) e de que ele conseguiu um desenho impressivo.
Fisicamente, a figura do ditador “era vulgar e desoladora. O bigode caído, o
lábio inferior pendente e mole a que se agarrava um grande "mosca";
os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que
fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço,
redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual,
mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso — parecia não ter nervos.”
No moral, os traços
predominantes eram a probidade pessoal, que no Império era ou tinha de ser um
predicado geral; o amor da família, mais forte nas civilizações patriarcais,
como era a da sua formação moral; uma indolência orgânica, "preguiça de
pensar e de agir, da qual vinha o seu mutismo, os seus misteriosos
monossílabos, elevados à altura de ditos sibilinos, as famosas
"encruzilhadas dos talvezes", que tanto reagiram sobre a inteligência
e imaginação nacionais, mendigas de heróis e grandes homens"; a calma de
chinelos e palito na boca que ali se originavam e que era antes “tibieza de
ânimo”, responsável pelas condescendências e intimidades que autorizava e que
tornaram esse governo um governo de prepotências cometidas pelos
irresponsáveis.
Em que se firmava
tal governo, se lhe faltava o elemento essencial da fortaleza do “homem”,
homem-César? De um concurso de circunstâncias geradores de um "entusiasmo
contagioso" por uma figura “plácida e triste”, incapaz de realizar
qualquer grande reforma e apenas capaz de exercer uma tirania doméstica.
Policarpo Quaresma imaginara nele um Henrique IV desdobrando-se num Sully. A
atmosfera exaltada, nativista da época, dera-lhe uns reflexos trágicos de
Richelieu embebido na ideia da unidade da França e da supremacia dos interesses
do Estado. O “homem” valia menos. Os que tinham vindo a ele, faziam-no “ou com
pueris pensamentos políticos ou por interesse: nada de superior os animava.
Mesmo entre os moços, que eram muitos, se não havia baixo interesse, existia
uma adoração fetíchica pela forma republicana, um exagero das virtudes dela, um
pendor para o despotismo, que os seus estudos e meditações não podiam achar
justo.”
A mocidade de hoje pensa diversamente com
relação a processos de governo. Há mais ceticismo e também mais tolerância. Eu
não penso, felizmente para o Brasil, que fosse "hoje” possível renovar
aquele período do Boqueirão e do famoso quilômetro. É verdade que temos perto
de nós a ilha das Cobras, o Satélite e
o Contestado... Mas eu “quero” crer que assim será, que a bondade famosa da
alma brasileira se tornará uma realidade, e para isto me fio no que sentem e
como sentem os escritores que vão surgindo, a exemplo do Senhor Lima Barreto.
Veja-se como ele
descreve o pessoal onde se iam recrutar os fuzilados do Boqueirão: “Brancos,
pretos, mulatos, caboclos, gente de todas as cores e de todos os sentimentos,
gente que se tinha metido em tal aventura pelo hábito de obedecer, gente
inteiramente estranha à questão em debate, gente arrancada à força aos lares ou
a calaçaria das ruas, pequeninos, tenros, ou que se haviam alistado na miséria,
gente ignara, simples, às vezes cruel e perversa como crianças inconscientes,
às vezes boa e dócil como um cordeiro, mas enfim gente sem responsabilidade,
sem anseio político, sem vontade própria, simples autômatos nas mãos dos chefes
e superiores que a tinham abandonado à mercê do vencedor.”
Este... “O tempo
estava de morte, de carnificina; todos tinham sede de matar, para afirmar mais
a vitória e senti-la bem na consciência coisa sua, própria e altamente honrosa.
Pobre Policarpo Quaresma, preso por haver protestado, no uso de um direito constitucional,
contra os horrores da matança a sangue-frio, e levado para a mesma masmorra
onde tinham penado, no tempo colonial, alguns formosos espíritos ávidos de
independência... Aqueles homens acusados de crime tão nefando em face da
legislação da época, tinham levado dois anos a ser julgados; e ele, que não
tinha crime algum, nem era ouvido, nem era julgado; seria simplesmente
executado!"
Não é um dos
menores méritos deste romance o poder ser posto em todas as mãos sem constituir
uma ofensa à moral. Nos contos mesmo que lhe servem de apêndice, há reserva, e
grande, todas as vezes que se toca a nota sensual e brejeira. Nos tipos
femininos, Ismênia e Olga sobretudo, a delicadeza do desenho é notável,
lembrando algumas das criações de Machado de Assis. Nada de certas cenas
do Canaã, dignas de um gabinete
de parteira. Em Policarpo Quaresma predomina
o sentimento: banha o livro um sopro de compaixão, uma vibração misteriosa de
piedade que resgata qualquer defeito de composição, que ainda possa apresentar
essa segunda tentativa, no gênero romance, da mais prometedora vocação da
geração nova, espírito no qual se alia ao senso do pitoresco o senso social.
É preciso remontar
até O Mulato para se lhe
encontrar termo de comparação, talvez mesmo mais longe, às Memórias de um Sargento de Milícias,
porque em Aluísio Azevedo era forte a preocupação da escola naturalista e
sensível a influência de Zola e de Eça de Queirós, ao passo que o Senhor Lima
Barreto, como Manuel de Almeida, se contenta, sem esforços de originalidade, em
ser ele próprio.
Rio, novembro de 1916.
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