Parecer crítico sobre o drama “D. Maria Teles”
A Seção de Literatura
encarregada por vós de dar um parecer que sirva de texto à discussão dos
méritos ou deméritos do drama — D. Maria
Teles — que concorreu aos prêmios, oferecidos por este Conservatório para
animar os nossos autores dramáticos; vem apresentar-vos por minha intervenção
as reflexões que lhe ocorrem sobre a matéria, e que retificadas e ampliadas
pelas dos outros membros desta Academia, devem produzir afinal um juízo
prudente e acertado que sirva não só para em especial determinar o valor
literário desta composição, mas para ilustrar os noveis que cometem tão difícil
gênero de literatura.
D. Maria Teles — é um drama histórico — histórico ao menos na intenção, de seu autor. — A
ação e a época escolhida pelo poeta, é bem conhecida. A história da formosa
irmã da nossa Lucrécia Bórgia — de D. Leonor Teles — é uma daquelas biografias
que encerram um só fato; mas que por esse fato são perpetuamente célebres. Não
há ninguém que ignore com que arte infernal a adúltera D. Leonor sabia obter
sempre a satisfação das suas paixões: entre estas houve uma que era pura, o
único pensamento santo e suave que mora no coração dessas hienas com gesto
humano chamadas Teles ou Bórgias, as quais felizmente raro aparecem no mundo.
Este afeto era o amor materno. Devia ser vivo e profundo, se o avaliarmos pelos
crimes que D. Leonor cometeu para segurar na cabeça de sua filha D. Beatriz a
coroa de D. Fernando, que se cria seu pai e que talvez o seria. O Infante D.
João era um obstáculo que podia opor-se aos intentos daquela mulher diabólica.
Como livrar se dele? — Convertendo-o em um grande criminoso. Foi então que para
o perder lhe soprou na alma as duas paixões mais ferozes do coração humano — a
ambição e o ciúme — e D. Maria Teles foi assassinada pelo marido porque D.
Leonor precisava do seu cadáver para calçar a estrada por onde D. Beatriz devia
subir ao trono. É este assassínio o desfecho a que nos conduz o drama: os
acontecimentos que o prepararam são a tela onde se desprega o lavor da
imaginação do poeta.
Os caracteres introduzidos
neste drama são o de D. Maria Teles; o do Infante D. João: o de D. Lopo Dias de
Sousa, filho de D. Maria e de seu primeiro marido: o de Garcia Afonso, Comendador
de Elvas; o de João Lourenço da Cunha, marido de D. Leonor Teles; o de D.
Fernando I; o de D. Leonor; o de Vasco, pajem de D. Leonor, e o de Fr. Soeiro,
Diretor espiritual, segundo parece, de D. Maria Teles. Um carcereiro, Damas,
Cavaleiros, povo, constituem isso a que se chama cheios, comparsas, ou
personagens mudos.
Não se pode na verdade
negar ao autor desta composição uma grande ousadia literária em ajuntar no seu
quadro tantos vultos dificultosos de desenhar, e que porventura seriam rebeldes
aos pincéis de grandes mestres. Vejamos como ele resolveu o seu problema
dramático relativamente aos caracteres principais.
D. Maria Teles era uma
formosa viúva, de quem o Infante D. João se enamorou. Os afetos do Príncipe só
acharam correspondência quando prometeu casar com ela, e o casamento
efetuou-se, porque a paixão do Infante era ardente, mas desse ardor um tanto
brutal próprio de uma Corte dissoluta como a de D. Fernando, e duma época em
que o amor demasiadamente metafísico nos escritos dos trovadores, era assaz
grosseiro na realidade dos costumes. As probabilidades todas são que semelhante
consórcio foi do lado de D. Maria Teles um cálculo de ambição, e do lado do
Infante um meio de satisfazer seus desejos. Isto é o que resulta da história.
Mas o autor podia substituir este argumento histórico pelo de um amor talvez
mais lírico, mas por ventura não mais dramático. O que não devia era dar a esse
amor a forma e expressão que lhe deu. Expliquemo-nos.
D. Maria Teles não era uma
donzela na primavera da vida: era uma dona entrada já naquela idade a que se
pode chamar o outono da formosura. O autor nesta parte aceitou o argumento da
história, introduzindo no seu drama o Mestre de Cristo, mancebo de dezoito ou
vinte anos, filho de D. Maria Teles. Forçosamente esta passara por isso o viço
da mocidade. O seu amor portanto devia ser intenso, mas grave: revelar-se
profundamente nos fatos e muitíssimo pouco em discursos. Devia ser um amor que
não tarda a transformar-se em amizade; que, por assim dizer, começa a ter pudor
do si mesmo, porque as ilusões da juventude têm quase todas passado. Difícil é
na verdade o pintar esse afeto severo e íntimo; mas se já deixou de ser um
mérito vencer dificuldades inúteis, ainda é restrita obrigação do poeta o
conhecer as fases do coração humano, e não as desmentir jamais porque a
natureza é imutável. O autor sentiu ao que parece confusamente a verdade desta
observação; quis dar gravidade ao caráter de D. Maria Teles: não lhe deu senão
tristeza. Tristeza tanto quando se vai desposar com o Infante como depois que
ele começa a afastar-se dela, e a dar-lhe não equívocos sinais de desamor.
Por que está ela triste até à morte, segundo a expressão de Jó, quando se
aproxima aos altares? É por certos presságios; é por sonhos; é por certo dizer
do coração; é por vergonha que tem de seu filho. Afora a última, nenhuma destas
razões é verdadeira, dramaticamente, e a tristeza fica inexplicável, porque o
pudor não é melancolia. Sereno devia ser o seu contentamento; mas devia ser
contentamento. Não era nessa aflição e luto infundados que podia revelar-se a
gravidade do caráter de D. Maria Teles, quando por outra parte todas as
palavras desta mulher afetuosa, como o autor a quis pintar, só condizem com o
amor dos vinte anos que se dilata impetuoso até aos extremos horizontes da
vida. Senão nos enganamos o caráter de D. Maria Teles está falsificado em
relação à história, e o que mais é em relação à natureza.
O caráter do Infante apenas
se pode dizer que existe: no primeiro aparece para dizer a D. Maria Teles que
muito a ama. Das suas palavras não resulta individualidade; repete o que em
semelhante matéria se diz desde o princípio do mundo. No terceiro ato onde
torna a aparecer, é ameaçado e afrontado por João Lourenço da Cunha, e fica impassível,
salvo quando este, provavelmente aborrecido de tanta tranquilidade, volta as
injúrias e feros contra D. Leonor que está também presente. É então que o
Infante arranca da espada; mas el-rei acode: um diálogo se trava entre este e
João Lourenço. E o Infante? Não sabemos mais dele, senão no V ato em que já
quase persuadido de que sua mulher é infiel, encontra as provas supostas dessa
infidelidade. Desde este momento não é mais possível o desenhar D. João; porque
a furiosa cólera que o domina o torna necessariamente semelhante a qualquer
outro homem em situação análoga. A honra ofendida pede sangue; é um pensamento
doloroso moralmente necessário à situação que depois disso atua no drama, não a
individualidade dum homem. Onde está portanto o caráter do infante?
E todavia esse caráter lá
tinha os seus principais lineamentos traçados nos capítulos 98º e 99º da
crônica de D. Fernando pelo grande poeta-cronista Fernão Lopes. O gênio
aventuroso, folgazam e ousado, do filho de D. Inês de Castro, estudados nesses
traços do grande mestre, dariam facilmente a individualidade do personagem ao
autor de — D. Maria Teles — e por
certo que essa individualidade variando a monotonia dos caracteres produziria
maior contraste, e por consequência maior efeito no terrível desfecho do drama.
A monotonia dos caracteres
dissemos nós. A monotonia na invenção é na verdade o principal defeito desta
composição. Há aí quatro ou cinco vingativos, quatro ou cinco vinganças
empastadas por toda ela. Vinga-se o Infante de sua mulher, de quem também se
vinga o Comendador de Elvas, cujo amor ela desprezara. João Lourenço quer
vingar-se de D. Leonor: D. Leonor de quase toda a gente. Desta identidade de
situações morais forçosamente devia resultar esse capital defeito.
Os dois caracteres que nos
parecem individuados são o de D. Leonor e o do D. Lopo Dias. D. Leonor é a
mulher sucessivamente hipócrita e insolente: vil e orgulhosa; pobre de crenças
morais, rica de paixões violentas. É a D. Leonor da história, salvo em uma ou
outra cena; é o vulto principal do drama. D. Lopo é mancebo, poeta e triste
como sua mãe, mas sobram-lhe para isso razões. O mesquinho está tísico, pelo
que se colige das suas palavras. Moléstia é esta que tem levado muito poeta
imberbe à sepultura. Feliz ainda no meio de seus males, a aflição pulmonar que
o consome é crônica e por isso lenta, por tal arte que esperando ele morrer já
no primeiro ato, ainda no quinto, (cujos sucessos são posteriores mais dum ano,
aos do primeiro) D. Lopo vive, e ao cair o pano fica de saúde, não perfeita;
mas da saúde que é compatível com a existência de tubérculos pulmonares. Apesar
de que a física não pareça coisa excessivamente dramática e possa ter algum
perigo de ridículo no teatro, é certo que essa vida cuja distância da morte a
vítima pode quase exatamente medir: esse caminhar para o sepulcro por uma
estrada onde não há de retroceder, e na qual não passa hora ou momento em que a
campa senão contemple erguida e imóvel no horizonte: esse oratório pior que o
do sentenciado, porque dura meses enquanto este dura apenas três dias; tudo
isso é tremendo e solene, e o verdadeiro poeta poderá achar nas fases da longa
e cruel agonia do físico situações dolorosas e terribilíssimas. Alexandre Dumas
as achou num dos seus melhores dramas. Seguiu-o de longe o nosso autor, mas nem
por isso deixa este caráter de ser um dos mais bem sustentados em — D. Maria Teles. — Os afetos de Lopo Dias
são generosos e puros: têm certa brandura de resignação, certa saudade de quem
pela esperança vive já num mundo melhor, mas que ainda pela afeição filial está
preso às tristezas da terra. Este personagem é na verdade possível e poético,
absolutamente falando. O seu único defeito é o comum a todos; é não representar
a época a que o poeta que o criou quis que ele pertencesse.
Os outros caracteres do
drama ou são nulos, ou reflexos mais ou menos pálidos dos que ficam avaliados.
Os sentimentos de vingança que subjugam D. João Lourenço da Cunha e o
Comendador de Elvas, tornam confusos os traços de um com os do outro, apesar
das diligências que o autor fez para lhes variar as situações; confusão esta
que se aumenta com a analogia que há entre ambos e os de D. Leonor e do
Infante. Fr. Soeiro é perfeitamente nulo; e Vasco, seide de D. Leonor, é um
caráter que não pode fixar-se por demasiadamente transitório, posto que
fortemente concebido. Se tivesse passado de um esboço seria talvez o mais
dramático de todos eles. Isabel enfim é a eterna confidente do teatro clássico,
cuja utilidade dramática foi, é e será sempre passiva; substituição impertinente
do monólogo; espécie de títere que se deixa mover à mercê do autor, e que por
mais que fale, se esforça ou chore, por via de regra, serve tanto para o
andamento da ação como as polés em que se movem os bastidores.
Notamos acima que os
personagens deste drama não representam a época a que historicamente pertencem:
é este depois do uniforme, e confuso dos caracteres o máximo defeito dele.
Nesta parte acrescentaremos algumas considerações que não pareceram
inteiramente inúteis para os cultores principiantes deste gênero de literatura.
A época dos reinados de D. Fernando e D. João I é incontestavelmente a mais
dramática da história portuguesa. São-no os fatos Políticos e a vida civil
desse tempo: as pessoas e as coisas. A nobreza era chegada ao apogeu da sua
grandeza, porque as instituições feudais que se haviam misturado com a nossa
primitiva índole social, tinham tocado então a mata do seu predomínio: quando
já a sua dilatada agonia começava no resto da Europa: o povo dava sinais
exteriores de que existia, e existia robusto; a monarquia esgotava a sua
generosidade e os testemunhos do seu temor para com a aristocracia na véspera
de dar princípio ao duelo de morte para que ia reptá-la, e que devia durar cem
anos. Nestes dois reinados operou-se uma transformação nacional: o fim do
século XIV foi um período revolucionário: revolucionário não tanto para as
pessoas como para as coisas; os elementos da vida social foram então chamados a
uma grande luta, e, como acontece sempre em semelhantes situações, tanto os que
deviam ser vencidos como os que haviam de ficar vencedores combateram
energicamente. Os grandes vultos históricos desse tempo — os personagens
extraordinários, diríamos quase homéricos, que então surgiram— os caracteres
profundamente distintos, e altamente poéticos, quer pela negrura, quer pela formosura
moral: — todos nasceram da situação social do país: foram o resultado e o
resumo desta, e por ela somente se podem compreender, avaliar e explicar. Se
porém essas imagens tão aproveitáveis para a arte, forem arrancadas do quadro
em cujo chão e luz apropriados a elas, unicamente se devem contemplar, ficarão
convertidas em desenhos de morte-cor, e o que mais é, perderam os seus
lineamentos característicos; serão abstrações; serão quando muito objetos de estudo
para a fisiologia das paixões: serão representantes do gênero humano em geral,
mas nunca de uma geração, de uma época, e de um país: darão matéria para o
drama metafísico, para o drama como o conceberam Goethe em Ferv e Betli ou na Filha
Natural, e Byron no Manfredo;
porém não para o drama histórico, para o drama que se incarna na realidade,
para o drama que não é um poema lírico como a Atália ou uma amplificação brilhante como Maomé, mas uma obra de arte que toma por
expressão a vida humana, e que é destinada para a cena.
O título do drama histórico
dado às composições mais notáveis neste gênero, que no século passado e no
presente tem aparecido na Europa, como Goetz, Wallensteim, Hernani, e tantos outros, não foi uma fantasia ou capricho dos
eminentes poetas que as produziram ou dos críticos que as julgaram. Este título
corresponde a uma realidade: representa uma teoria literária verdadeira e nova
substituída a outra velha e falsa. O teatro antigo por via de regra era uma
abstração: os seus personagens são vultos por assim dizer desenhados na
atmosfera, e que se movem nos raios do sol; não pisam a terra; não choram nem
folgam humanamente; não descendem como nós de Adão; não estão sujeitos senão a
certas condições da vida real. O dramaturgo antigo criava o caráter de um
tirano, chamava-lhe Nero; de um voluptuário, chamava-lhe Sardanápalo; de uma
incestuosa chamava-lhe Fedra; de um hipócrita feroz, chamava-lhe Maomé. Podia
chamar-lhes outra qualquer coisa; buscar na história ou fora dela outros quaisquer
nomes. Constei sibi: eis o que
exigia desses caracteres a filosofia da arte. Satisfeita esta condição bem
pouco importava se o personagem era romano, siro, grego, ou árabe. Constet sibi. — Pouco importava se as
suas dimensões eram humanas. Constet
sibi. Pouco importava quais haviam sido as crenças, as condições da vida
civil, os vários aspectos enfim da sociedade e da época em que o indivíduo que
se arrastava para o teatro tinha vivido, e que forçosamente deviam
modificar-lhe decerto ou certo modo as paixões ou os afetos, o pensar íntimo ou
o porte exterior. Constet sibi:
era o que lhe pedia a arte antiga. E na verdade não era pedir muito. A arte
moderna que os ingênuos e inocentes defensores do passado acusam de licenciosa
põe apenas mil vezes mais duras condições aos seus sacerdotes; porque além da
constância dos caracteres dramáticos, exige nestes circunstâncias, que só o
muito estudo e um engenho profundamente sintético pode fazer que se liguem às
obras filhas da imaginação do poeta.
Se tão leves de sofrer foram
outrora as condições dramáticas quanto aos caracteres, escusado parece dizer
que foram nulas quanto à fisiologia íntima do drama. Malbaratou-se toda a
estética dos antigos nas formas materiais e externas dele, na anatomia dos
ossos e cartilagens. Os escritores licenciosos do
século presente sentiram não tanto que esta anatomia era errônea, apesar de o
ser muito, quanto sentiram que era incompletíssima. Posto o princípio
incontestável de que o drama não é mais do que a arte vazada no molde da vida
social, tiraram o corolário forçoso de que era preciso primeiro que tudo
estudar esta, e exclusivamente esta. A arte não se estuda; porque a arte é o
ideal, e o ideal vem de Deus; é uma inspiração: o que se estuda são as fórmulas
materiais em que ela se revela, os tipos em que se resume; para que estes
possam ser claros e definidos como meios de comunicação entre o poeta e o
mundo. No drama a história é a expressão da arte, é a voz articulada do homem
inspirado. Ele deve por isso saber profundamente a história da época e do povo
que vai alevantar do sepulcro, para servir de intérprete entre ele e as
gerações que hão de escutar as suas revelações de poeta.
Se os antigos pudessem ter
adivinhado e seguido esta licenciosa teoria,
os seus estudos não houveram sido apesar disso nem largos nem custosos. A
história era falsa como a arte. Reduzia-se a biografias soltas e incompletas;
era também um agregado de abstrações; resumia-se nos fatos Políticos. A vida
social passava desconhecida: o povo desaparecia nas sombras gigantes que
derramavam em volta de si os homens eminentes. Ao passo, porém, que a arte se reconstruía,
reconstruía-se a história. Ao lado de Goethe e Schiller aparecia Herder e
Muleer; ao lado de Hugo, Guizot e Thierry. Ambas as reformas se viram e veem
obrigadas a refutar o passado com as razões e com o exemplo. Mas o poeta é
constrangido a encerrar-se na época e no país cuja história se acha escrita por
um sistema racional, ou a ser ao mesmo tempo historiador e poeta, tarefa
difícil debaixo da qual poucos ombros deixarão de vergar; mas que é indispensável
leve a cabo aquele que quiser incarnar a sua obra dramática na história do
passado, sob pena de cair no convencional e incompleto do antigo teatro, porque
não basta sacudir o jugo dos preceitos pueris das Poéticas para escrever o
drama histórico: importa redigir-lhe a fórmula, e esta não está em achar quatro
datas, e seis nomes ilustres, mas na ressurreição completa da época escolhida
para nela se delinear a concepção dramática. Primeiro que tudo, importa que
essa época se alevante, como Lázaro à voz ele Jesus, cheia de vigor e de vida.
É de lamentar que os nossos
mancebos, esperanças da literatura Pátria, prefiram ordinariamente as épocas
históricas que passaram para nelas traduzirem ao mundo os frutos do seu engenho
dramático, tendo aliás para isso a vida presente que também é sociedade e
história. Não seria melhor que estudassem o mundo que os rodeia, e que
vestissem os filhos da sua imaginação com os trajes da atualidade? Não lhes era
mais fácil, mais agradável até, este estudo feito no meio dos banquetes, dos
bailes, das conversações, do ruído, do presente, no qual os leva
irresistivelmente a lançarem-se a superabundância de vida, o fogo da mocidade?
Muito se enganam eles, crendo que acham a história em alguns pobres livros
históricos que por aí existem. Não: a história não está lá! Não, vós não
achastes a fórmula material para a vossa idealidade; o vosso drama é a visão
infernal mas ridícula de Perrault; é a sombra do cocheiro que alimpava a sombra
de uma carruagem com a sombra de uma escova. Na vossa obra não há drama porque
na sua forma externa não há realidade, e a expressão é o real. Para achar este
cumpre ter o estômago e os braços robustos, os órgãos do olfato endurecidos, a
paciência de ferro, porque é preciso revolver a grande lajem que cobre o
cadáver do passado; é preciso aspirar o pó do sepulcro, deslizar prega por
prega o sudário apodrecido das gerações extintas: é preciso contemplar as
formosuras das sociedades que se transformaram ou pereceram mas também
apalpares cancros que as devoraram: é preciso contemplar seus monumentos
sublimes de mármore; mas também ler lentamente os quase apagados e bárbaros
caracteres dos seus pergaminhos, e as obscuras, tediosas e incertas sentenças
da sua legislação; é preciso viver com os grandes de outrora em seus paços
esplêndidos, mas assistir também às misérias e agonias dos peões, cuja
desventura faria hoje recuar de horror o maior mal-aventurado. Tudo isto é
necessário, sem contar o grande e fatal risco de perderdes neste rude trabalho
o que vale mais do que ele — a imaginação e a poesia. Deixai que outros a quem
alguma vocação fatal leva para este gênero de estudo, o mais tedioso talvez de
todos, vos reconstruam os tempos que se dissolveram em pedaços. Então podereis
livremente escolher a urdidura da vossa teia, e bordá-la com os ricos matizes
das vossas inspirações.
Que resulta de se
escolherem para objetos de composições dramáticas sucessos e indivíduos
pertencentes a uma geração e a uma sociedade cuja índole e modo de existir se
ignora? Resulta cair-se no vício do teatro antigo; fazer abstrações, e
desmentir a verdadeira arte. É o que sucede em— D. Maria Teles. — Ponham-se aí em vez desses nomes tão conhecidos
do fim do décimo quarto século, sinais algébricos: cortem-se todas as alusões
aos acontecimentos Políticos ou pessoas notáveis de então, e o drama pertencerá
à época e ao país que nos aprouver. E por quê? Porque falta aí a
individualidade portuguesa de então: faltam o crer, os costumes, as relações
sociais dessas eras. E sendo isto assim poder-se-á dar a — D. Maria Teles — o título de um drama histórico, que evidentemente
quis seu autor se lhe desse?
Julgamos ser nossa
obrigação dilatar-mo-nos nestas considerações sobre duas partes importantíssimas
de qualquer drama — os caracteres, e a cor e verdade histórica e local, porque
é preciso confessar que depois da restauração do nosso teatro, é sobre estes
dois pontos que a crítica literária atenta em demasia a averiguações, sobre a
correção de língua, tem sido assaz negligente e escassa. Resta agora
examinarmos com a brevidade possível a disposição ou enredo do drama, a
propriedade do seu estilo, e a pureza da sua linguagem. A traça do drama é a
seguinte.
Primeiro ato. — O Infante
D. João está a ponto de desposar-se com D. Maria Teles. Esta o espera no
castelo de Barcelos, onde a cerimônia do casamento deve celebrar-se a ocultas,
e alta noite, a despeito dos sagrados cânones. A boa dona possuída de uma
tristeza inexplicável está acompanhada da sua confidente e ora na capela, onde
se vê o túmulo do seu primeiro marido. Por Isabel manda chamar Fr. Soeiro para
que venha animá-la e consolá-la, e fica sozinha. Chega seu filho D. Lopo Dias,
D. Maria Teles lhe escondera o negócio do casamento, mas ele o aventara não
sabemos como, nem o autor o diz. Queixas do filho porque fica desamparado;
razão tinha, atento o seu estado de físico. Promessas da mãe, de que toda a
família ficará junta, por que ele Lopo Dias e o Infante são os seus únicos
amigos. Ainda tendes outro, lhe
brada um cavaleiro de armadura negra e viseira calada que aparece à porta da
capela. Dizendo e fazendo, ei-lo que entra. D. Lopo pergunta-lhe quem é:
resposta; sou um defensor de vossa
mãe. D. Lopo diz que lhe fica muito obrigado mas que ela não precisa de
defensores. Insiste o desconhecido porque D. Leonor há de persegui-la. Isso é a
mim que toca: — acode D. Lopo. Com bom fundamento o afirmava, e por isso o
cavaleiro não acertando a replicar-lhe vai-se ao troféu de armas que está sobre
o túmulo de Álvaro Dias, pega na espada do defunto e entrega-a ao mancebo
recomendando-lhe que se mostre digno dela. A tão bom conselho não havia fazer
reparos. D. Lopo promete dar-lhe o devido uso. Então o cavaleiro sai, não sem
oferecer a D. Lopo o seu braço e espada para qualquer lanço apertado; já se
sabe sem dizer quem é ou onde mora. Ido o cavaleiro, D. Maria pergunta ao filho
quem seria aquele homem, era melhor ter-lho perguntado a ele. Se o conhecesse
como as suas mãos D. Lopo não responderia mais confiado: É um homem que vos ama, e que vigia sobre
vós. Não diz isto porque o conheça: mas porque o sabe ab alto, a propósito do que vem uma dissertação sobre o dom de
adivinhar que têm os físicos. Saindo Lopo, volta Isabel com Fr. Soeiro: cena inútil.
— Chega então o Infante, acompanhado do Comendador de Elvas; colóquios
amorosos. O Comendador Garcia Afonso nas visagens que faz, nos à partes que
murmura mostra a raiva que lhe acende na alma o afeto dos dois cônjuges, que
finalizam o ato ajoelhando junto ao altar provavelmente para receberem a bênção
matrimonial de Fr. Soeiro.
Este ato, afora a
inutilidade da cena VI, envolve grave falta de probabilidade. Como pode um
cavaleiro desconhecido entrar de viseira calada e depois da meia-noite na
capela de um castelo do século XIV? Como rodou a ponte levadiça para lhe dar
passagem? Que fazia o madraço do alcaide; que faziam os vigias das quadrelas,
roldas e sobre roldas, que assim deixavam devassar a boa fortaleza del-rei de
Portugal? Como entrou esse homem? Eis o que o autor não diz, nem lhe fora fácil
dizê-lo. Depois, é acaso natural que D. Maria Teles nem sequer deseje conhecer
quem ele é? Homem que fosse, não descansaria sem o saber, quanto mais sendo
mulher! D. Lopo indaga na verdade quem ele seja; mas contenta-se com uma
resposta evasiva, e consente que o incógnito lhe vá buscar a espada de seu pai,
e lha entregue com a cominação de que há de fazer bom uso dela. O melhor uso
que D. Lopo naquele momento podia fazer desse ferro era por-lho aos peitos para
o obrigar a erguer a viseira. Sua mãe vai celebrar um casamento oculto, e é
quase na hora prefixa para a cerimônia que ele tolera venha um desconhecido
devassar a capela, sem o obrigar a descobrir-se? A teoria de que os físicos
adivinham será muito boa e verdadeira; mas a palhologia ainda não chegou a
atinar com essa circunstância nas afeções pulmonares, e os espectadores não puderam
admitir a razão com que o autor por boca de D. Lopo pretende desculpar a inverosimilhança
de tal procedimento, isto é, que ele já tem o que quer que seja d'alma do outro
mundo, e que por isso sabe que o desconhecido é pessoa de confiança. O antigo
teatro só consentia milagres em casos apertadíssimos. Nec Deus interrit nisi dignos vindice nodus. A licenciosa escola
moderna em nenhum admite tais meios, quer seja para conduzir o drama, quer para
desfecho dele. Natureza e verdade são os seus únicos elementos.
Segundo ato. —Tem passado
um ano. D. Maria Teles está em Coimbra com seu filho, e o Infante que já começa
a esquecer-se de sua mulher anda na corte. D. Lopo faz versos e carpe-se: D.
Maria carpe-se e ouve-lhos declamar. Mas como lágrimas e versos continuados são
duas grandes canseiras, a pobre dama abandonada convida seu filho para irem
espairecer suas mágoas pelas margens do Mondego. A isto acode D. Lopo, que é
melhor irem ao monte visitar a caverna do solitário. — Qual solitário? Logo o
sabereis. D. Maria Teles faz suas objeções: a caverna do referido solitário
ou homem dos mistérios tem má
nomeada: ninguém se atreve a chegar perto dela: a isto acode o poeta, com dizer
que todos esses medos são sandices do vulgo, e que lá por certos barruntos que
ele tem, adivinha que o solitário é pessoa de porte e de bondade. Desassombrada
de seus temores D. Maria está a ponto de sair eis senão quando chega o
Comendador de Elvas com uma carta do Infante. Roto o fecho da carta com o
punhal de Garcia Afonso, D. Maria lê o conteúdo dela em voz baixa. A boa da
carta era fria, fria como gelo: nem uma palavra afetuosa! Apenas lhe diz sua
mercê o Infante que não pode ir a Coimbra, demorado na corte por negócios de
alta monta. Desesperação de D. Maria que sente por isto que vai morrer. Por
quê? Porque D. João, marido já de um ano, e preocupado por graves negócios, não
lhe escreve uma carta de amores, e não lhe declara que negócios são esses que
lhe embargam os passos. Ver a morte diante dos olhos; ficar desesperada por tal
motivo seria loucura duma rapariga de vinte anos, mas em uma dona de trinta e
seis é uma inverosimilhança inadmissível. Se todas as mulheres casadas de mais
de um ano morressem por não serem as cartas de seus maridos ausentes adubadas
de amores e requebros: a proporção das viúvas com o resto da população seria
mais descomunal e espantosa do que em Inglaterra a dos que morrem de fome com
os que têm que comer. Quanto ao segredo que o Infante guarda sobre os negócios
que o retêm, razão tinha D. Maria Teles, porque mencioná-los sem os
particularizar, era fazer nascer desejos vãos à insaciável curiosidade
feminina, e todavia não podiam ser matérias de Estado esses negócios? — não podiam
ser coisas que nada importassem a D. Maria? Para um desmaio ainda a carta teria
substância se a dama fosse uma rapariguinha; mas para agonias mortais em uma
dona sisuda, como lhe chama Fernão Lopes, não havia aí motivo. Por uns longes
que se enxergam em dois à partes do Comendador vê-se que foi ele quem armou
esta negregada invenção da carta, e que folga com o efeito dela. Se o autor do
drama tivesse concedido a D. Maria Teles mais uma mealha de senso comum, Garcia
Afonso não teria mostrado ser na tal invenção da carta, senão um soleníssimo
mentecapto, se a sua intenção era, como ele diz num monólogo, vingar-se dela e
do Infante.
Lida a carta, D. Maria
chama o filho para irem visitar o solitário, porque só nele poderá achar
consolações. Pois que tem o solitário (de quem ela há um instante tremia de
medo) com o desamor de D. João? O poeta, que fora o movedor desta ida está
prestes, e lá vão ambos por montes e vales em cata do misterioso anacoreta.
Não tardam muito a
encontrá-lo. É apenas o tempo necessário para a mutação da cena, cair e
levantar-se o pano; não para mudança de ato, mas de quadro. O solitário está na
caverna falando a sós consigo. De seu dizer consta que havendo amado D. Maria
Teles, e não podendo obtê-la por ser já casada com Álvaro Dias de Sousa, casara
com sua irmã D. Leonor, que o deixou para subir ao trono. É, portanto, o
eremita —João Lourenço da Cunha, que lida com suas mágoas, e que depois de
invocar a morte e sonhar vinganças, o que não é a mais aprovada disposição
moral para esse transe tremendo, cai desfalecido sobre um rochedo. É neste ponto
que chegam Lopo Dias e sua mãe. lista apenas entra, diz-lhe que vem trazer-lhe
consolações. Impertinência de mulher! Quem lhe disse a ela que o anacoreta de
cuja caverna ninguém ousa aproximar-se, entrou na vida eremítica por
desventuras e não pelo arrependimento de seus pecados? Quem lhe dá a certeza de
que poderá consolá-lo, ela que não o conhece, e que não sabe provavelmente o
que lhe há de dizer? Dar-lhe consolações?! De que gênero e de que modo? Que
afirmou ela ao sair de casa? Que vinha pedir e não oferecer consolo. Disse uma
coisa sem sentido, sem verdade, e agora diz outra. O solitário ofende-se da
oferta e com razão. Afirmando-se porém na recém-chegada, reconhece-a, e ela
reconhece-o a ele. — Explicações mutuas. João Lourenço refere então como foi
ele o cavaleiro de armas negras que lhe apareceu na capela, e explica-lhe o
proceder do Infante. Este ocultou na corte o seu casamento, e a mão da Infante
D. Beatriz acaba de lhe ser oferecida. Cheia de angústia, neste lugar, justa e
bem fundada, D. Maria Teles pergunta: e aceitou-a? — Uma voz que soa na boca da caverna responde — Aceitou! —É o Comendador de Elvas que
assoma envolto numa capa, já se sabe, negra. D. Maria desmaia e cai o pano.
Este desfecho do ato é
natural e dramático, e a melhor coisa de todo ele. O Comendador vendo-a sair
seguia-lhe os passos; escutou a conversação, e em seus pensamentos de vingança
não consentiu que outrem desse a punhalada mortal nessa mulher de quem queria vingar-se.
Aqui o efeito dramático vem naturalmente da situação e caráter dos personagens.
Quanto às cenas anteriores parece-nos que estão abaixo de toda a crítica.
Ato terceiro. — D. Leonor
está só debatendo-se com os remordimentos de sua consciência; entra o
Comendador de Elvas. Vem trazer-lhe a notícia de que fez ao Infante a proposta
do casamento com D. Beatriz, e que achando-o mau de resolver lhe dera suspeitas
de que sua mulher o traíra. D. Leonor reluta contra esta nova calúnia: martirizam-na
os remorsos porque viu em sonhos os castigos que lhes estavam reservados no
outro mundo a ele Comendador e a ela Rainha; nesses tormentos, conforme o
direito, e em vista da nossa moderna jurisprudência dramática, há pontas de
rochedos em brasa para arrastar o miserável Comendador. O triplicado da
punição; as pontas, os rochedos e as brasas, aterram-no, mas finge-se resoluto.
Não assim a rainha a quem os sonhos pavorosos não podem esquecer. Segue-se uma
luta moral em que os insultos refervem entre os dois. O Comendador sai
ameaçando a rainha. Apenas esta se acha só, entra João Lourenço da Cunha: cena
violenta entre os dois em que a rainha sucessivamente treme, humilha-se,
amaldiçoa e ameaça, e em que ele fala constantemente a linguagem do ódio
profundo. No meio da altercação sobrevém o Infante que tendo João Lourenço por
morto, crê que é a sua alma em pena. Este o ameaça também por querer dissolver
o matrimônio contraído com D. Maria Teles. A rainha nega o casamento: João
Lourenço injuria-a de novo, e o Infante arranca da espada. A ponto já de
brigarem acode el-rei aos brados de D. Leonor. João Lourenço que enfiou a
ladainha dos doestos afronta também D. Fernando que chega a levar a mão à
espada, mas que lembrando-se de quem é, manda-o como era de razão, meter na cadeia.
Partindo, o antigo marido da rainha, pergunta a si mesmo, quem, preso ele,
defenderá D. Maria Teles. D. Lopo Dias aparecendo no fundo responde-lhe; — Seu filho! — E cai o pano.
Este ato, tem entre todos
como é evidente, a primazia no desalinhavado e absurdo do desenho, posto que
não lhe falta mérito às vezes na execução das cenas. Primeiramente como é crível
que tendo Garcia Afonso sido encarregado pela Rainha de propor ao Infante o
novo casamento, e estando este na corte, o Comendador antes de dar parte a D.
Leonor do desempenho da comissão, fosse a Coimbra levar a célebre carta do ato
2º, o que podia fazer qualquer pajem ou correio? Em segundo lugar, não estaria
doido João Lourenço, tendo tomado a peito defender D. Maria Teles, em vir
meter-se nas garras da rainha, só para a injuriar e aos outros seus inimigos,
porque não consta do drama que viesse fazer outra coisa? Que esperava ele lhe
sucedesse, entrando no paço, onde todos o conheciam, para praticar aquelas gentilezas,
senão ir jazer na cadeia? Depois como entrou ele sem licença até o quarto de D.
Leonor? É a mesma inverosimilhança do primeiro ato. O paço real no século XIV
era menos vedado que hoje: permitia-o a diferença dos tempos; mas nem por isso
era uma taberna, onde qualquer entrasse quando e como lhe aprouvesse; e todavia
é sobre estes argumentos que assentam os dois últimos atos. Quanto a este
abster-nos-emos de dizer mais nada contentando-nos com observar que termina por
um efeito dramático perfeitamente análogo ao desfecho do segundo, isto é pelo
aparecimento de um personagem inesperado.
Ato quarto. —João Lourenço
está na masmorra em que a própria imprudência o lançou. Aí se dói e queixa de
Deus, em vez de se queixar de si. No meio de suas lástimas passa uma barca pelo
Tejo, e ouve-se nela uma voz que se aproxima da prisão. A única prisão em que
podia estar João Lourenço era a dos paços do Castelo e como de lá se ouvia uma
voz no rio e esta se aproximava da masmorra não será fácil dizer: todavia
deixemos bagatelas. Provavelmente quem cantava era D. Lopo que daí a pouco
entra no calabouço, aliás, não entendemos que pudesse trazer-se a propósito tal
cantiga que nada tem com o drama. D. Lopo vem livrá-lo, acompanhado do carcereiro
que provavelmente para isso peitou. Isto de carcereiros comprados como meio
dramático, é coisa quase tão velha e gasta quanto o estão os confidentes
clássicos. O preso recusa a liberdade porque quer morrer. Aqui fica evidente a
doidice de João Lourenço. Não podem ter passado cinco minutos desde que ele
dizia: Oh Senhor Deus deixar-me-eis
morrer sem ter salvado a inocente Maria?... Oh, nem uma esperança me dais?
— e agora que o querem soltar responde com veemência; deixai-me morrer; deixai-me morrer!? — Pois se quer morrer para que
estava apoquentando os céus com seus queixumes? Isto era capaz de impacientar
até o santo dos santos. Enfim depois de várias ponderações do poeta físico o
homem resolve-se a sair. D. Lopo diz-lhe que espere que vai arranjar os meios
da fuga, e parte com o carcereiro. Fica só o preso, porém não tarda companhia.
Uma porta secreta se abre e D. Leonor entra, tira a chave e encaminha-se para
seu primeiro marido. Vem dizer-lhe que ele há de morrer ali mesmo: vem saciar o
seu ódio: João Lourenço depois de ameaças mutuas tira-lhe repentinamente a chave
da porta secreta, e diz-lhe que vai salvar D. Maria Teles; a isto acode a
Rainha que não lhe achará senão o cadáver. Desesperação de João Lourenço da
Cunha, que suplica de joelhos, e que achando D. Leonor inabalável, ergue-se
furioso e quer matá-la com um punhal que traz escondido: é então que ela
suplica; é então que ele se torna inexorável. Aponto de a apunhalar chega D.
Lopo; a esperança amortece a cólera no coração do marido da Rainha; o punhal
cai-lhe das mãos. D. Leonor continua todavia a ficar de joelhos, a pedir não
que lhe deixem a vida, porque esta já ela sabe que está salva; mas que a
soltem: que lhe permitiam sair daquele lugar de horror. Sublime hipocrisia que encobriu
o ânimo danado com a máscara do susto. Recusam-lho: então a cólera trasborda do
peito dessa mulher que é um abismo de maldade. Nem a demora duma hora a que
eles a condenam saindo, sofre a rainha. Apenas se acha só a régia hiena corre,
e lança raivosa as garras às grades da masmorra; depois ajoelha e quer orar,
mas alevanta-se logo, e sorri. Pensa um momento, e com gesto ameaçador
exclama: Daqui a uma hora serei
outra vez rainha. Um pensamento atroz e medonho reluziu por certo à luz sanguínea
que bruxuleia nessa alma? Qual foi ele? Sabê-lo-emos no sexto e derradeiro
quadro.
Nas três ultimas cenas
deste curtíssimo ato, tão curto que talvez a representação dele não ocupe
quinze minutos a cena, revela-se um poeta. Não mencionaremos defeitos porque o
que tem excelente no-los varreu da memória: o autor compreendeu perfeitamente o
caráter de D. Leonor: há aqui o talento profundo de um verdadeiro escritor
dramático. Oxalá pudéramos dar de tudo e de todo o drama os mesmos testemunhos
de louvor e admiração! Com mágoa temos feito o contrário, porque é o nosso
penoso dever distribuir reta e severa justiça, e corresponder à confiança que
em nós depositou esta assembleia.
Quinto ato. — Estamos em
Coimbra nos paços do Infante. Ao correr do pano D. Leonor e Garcia Afonso falam
a sós. A rainha, segundo parece, saiu da prisão e chegou a Coimbra antes que
João Lourenço e D. Lopo. Não 6 isto provável mas é possível; porque o ódio entranhável
costuma ser às vezes mais diligente que todas as afeições. A cena da prisão,
uma vingança falha, uma humilhação necessária mas cruel, espertaram toda a
violência do caráter da rainha: os remorsos desapareceram, e ela precisa de
sangue. Incita por isso o Comendador para que positivamente acuse sua irmã de
adúltera: conhecera pelo terror de João Lourenço que este a amava, e é de
bom-grado fratricida para começar pela vingança que mais deve doer a seu antigo
marido. É este o verdadeiro retrato de D. Leonor, mas o que é falso, o que não
condiz com o caráter profundamente dissimulado que lhe atribui a história, e o
autor tão bem pintou no fim do 4º ato, é o injuriar gratuitamente o mesmo homem
que está incitando para que seja instrumento da sua vingança. Embora ambos se
conhecessem bem mutuamente: embora estas duas almas negríssimas estivessem sem
máscara; mas ainda os maiores malvados não ousam recordar uns aos outros os
seus crimes, e injuriarem-se com eles senão nos extremos de cólera. Vemos que
do aspecto que toma esta cena e do seu desfecho, depende a existência de duas
ou três cenas seguintes: a inverosimilhança porém da origem diminui-lhes grande
parte do mérito que possam ter. As afrontas da rainha são correspondidas por
Garcia Afonso, que aceitando a infame comissão, e um bracelete que deve servir
de prova à calúnia, sai praguejando e ameaçando D. Leonor, e ameaçado e
praguejado por ela. Esta cena é evidentemente desarrazoada, ou antes
impossível. D. Leonor fica só, e num monólogo resolve a morte do Comendador:
foi para isto que se delineou a cena antecedente. Por assim dizer, o autor fez
num drama o que se diz fazia Boileau nos seus alexandrinos, sujeitou a rima do
primeiro verso à do segundo. Resolvido o assassínio do seu antigo cúmplice, a
rainha dá um sinal e aparece Vasco seu pajem. D. Leonor diz-lhe que um homem a
ultrajava: responde o pajem que lhe diga seu nome e ele morrerá: esta cena está
felizmente imaginada e o caráter de um oficial de assassino dado ao pajem é
rápida e profundamente traçado. Vasco sai e a rainha esconde-se em uma câmara
para dali ver morrer Garcia Afonso. Apenas ela se retira o Infante entra com o
Comendador de Elvas que pretende persuadi-lo da infidelidade de D. Maria Teles
e que por fim o convence com a prova do bracelete, o qual, diz ele, João
Lourenço perdera. Fraquíssima é a prova, mas aceitemo-la, visto que o Infante a
aceita. Este arranca a adaga, arromba a porta da câmara de Maria Teles e
arroja-se para lá furioso. Garcia Afonso fica só e tirando um frasco de veneno,
declara em um monólogo que envenenará o Infante logo que tenha assassinado sua
mulher. Vasco entra então, e gracejando com Garcia Afonso, diz-lhe que precisa
de lhe comunicar um segredo, mas que antes disso beberá com ele um trago de
vinho. O aspecto de Vasco assustou o Comendador lembrado do que passou com a
rainha, e de que este pajem é o executor das suas vinganças secretas. Enquanto
Vasco vai buscar o vinho, ele lança à cautela veneno em uma das taças que ali
estão, e quando o pajem volta enche-a e oferece-lha, tomando para si outra.
Ambos levam as taças à boca, mas nenhum bebe. Garcia Afonso põe a sua sobre a
mesa e pergunta ao pajem qual é o segredo; rindo atrozmente este lhe pergunta
se quer sabê-lo; Garcia Afonso responde que sim, e que o diga depressa porque
lhe resta pouco tempo para o revelar por estar envenenado: o pajem continua a
rir e replica que é ele que o está, e que esse era o segredo. Garcia Afonso despejando
a taça mostra que lhe não tocara: o pajem faz o mesmo. O Comendador então lhe
diz: Pois bem! nem um nem outro
morreremos. — Enganais-vos! —
torna Vasco soltando uma risada terrível e dando-lhe uma punhalada. Garcia
Afonso, amaldiçoa-se a si e ao pajem, procurando também feri-lo. Neste momento
ouve-se dentro a voz de D. Maria Teles que implora piedade. O horror apossa-se
do Comendador agonizante, os gritos de D. Maria redobram, e o Infante sai da câmara
com a adaga na mão tinta em sangue. Os remorsos fazem que o Comendador
moribundo confesse a inocência de D. Maria Teles. O infante furioso quer
cravar-lhe a adaga, mas antes disso cai morto. Garcia Afonso João Lourenço
chega já tarde seguido de cavaleiros e povo: o Infante desesperado pede que o
matem, e João Lourenço quer cumprir-lhe os desejos, quando D. Maria Teles
saindo da câmara o retém e vai cair nos braços do Infante a quem perdoa
morrendo. Aparece então D. Leonor, e apontando para os cadáveres da irmã e de
Comendador diz para o marido — que veja como se vingou uma rainha. D. Lopo
aparecendo subitamente com a espada na mão, abre uma janela e mostrando a praça
atulhada de povo armado, diz-lhe: — Senhora
rainha, o filho vingará também a morte de sua mãe, e o povo as injúrias
recebidas. Assim se conclui o drama.
Este ato é
incontestavelmente o melhor, e o seu efeito cênico deve ser grande. Apesar das
imperfeições que nele se podem e com razão repreender, o autor procurou
resgatar aqui os defeitos que pululam nos antecedentes, como sucessivamente notamos
em cada um deles.
Restam algumas observações
sobre estilo e linguagem: assim completaremos o exame deste drama visto a todas
as luzes a que se deve considerar.
O estilo para dizer tudo em
poucas palavras é o da moda: isto é, a maior parte das vezes falso: comparações
frequentes, que a situação moral dos personagens que as fazem não comporta:
certa poesia na dição imprópria do diálogo: fartura dessas exagerações com que
embasbacam os parvos da plateia, e que os homens de juízo não podem sofrer. Às
mãos cheias estão por aí derramadas as maldições, os anjos de asas brancas, os
rochedos em brasa, os infernos, os demônios, e toda a mais ferramenta
dramática, usada hoje no teatro, e que não sabemos donde veio, porque sendo
evidente que os nossos escritores principiantes buscam imitar os grandes
dramaturgos franceses, é certo que raramente acharão lá essa linguagem oca e
falsa, que só pode servir para disfarçar a falta de afetos e pensamentos:
Victor Hugo e Dumas não precisam nem usam de tais meios, e para citarmos de
casa, já que temos cá o exemplo, que esses noveis vejam se nos dramas do nosso
primeiro escritor dramático, se no Auto
de Gil Vicente ou no Alfageme há essa linguagem de cortiça e ouropel, há essas expressões túrgidas e
descomunais que fazem arrepiar o senso comum, e que ofendem a verdade e a
natureza. O estilo é tudo, dizia Voltaire. Não somos da sua opinião
absolutamente, mas é incontestável que uma obra literária excelente em todas as
demais partes, se lhe falecer a propriedade do estilo nunca poderá obter para
seu autor uma reputação duradoura. Não faltam na história literária de todas as
nações exemplos desta exatíssima observação.
Quanto aos erros de língua
e construção, fáceis são eles de emendar: assim o fossem os de estilo, e ainda
mais os de contextura! Intoleráveis, mais que nenhuns, nos parecem o vício
constante do introduzir um i nas
segundas pessoas do plural dos pretéritos como fizésteis, tivésteis,
etc. — por fizestes, tivestes; sofrer por padecer, sendo a significação portuguesa
de sofrer a de padecer com paciência ou constância: o
uso demasiado dos possessivos que tanto afrancesam o nosso mui elíptico idioma:
a substituição escusada de pretéritos simples pelos compostos do particípio e
dos auxiliares: tautologias indesculpáveis, como — abismo imenso e sem fim; caverna
que parece zombar e escarnecer, etc.; —gradações às avessas, como: cheio de desesperação e pesar. A estes e
outros defeitos poderia o autor dar remédio revendo atentamente o manuscrito,
que talvez o limite de tempo para o concurso lhe não deixou aperfeiçoar e polir,
e por isso entendemos dever nessa parte ser indulgente a censura do Conservatório.
Temos feito longa e
severamente a crítica do drama — D. Maria
Teles. — Fizemo-lo assim por muitas e mui urgentes razões. Tem soado
queixas contra a forma demasiado simples com que se costumam exarar os
pareceres sobre os dramas que anualmente concorrem a prêmios: conselhos
sinceramente dados tem-se tomado pela expressão do orgulho; imaginou-se uma
aristocracia literária, contraria a todos os engenhos que surgem de novo. É
preciso confessar que pelo que toca ao não motivado, e à brevidade dos
pareceres, sobretudo daqueles que condenam, é justa a queixa. Todas as mais são
infundadas. Os fatos de quatro anos aí estão provando o contrário. Se alguma
culpa se pode lançar ao Conservatório é a nímia indulgência; já algumas das
suas sentenças favoráveis tem sido reformadas pelo supremo tribunal do público,
ao passo que ainda nenhum drama condenado por ele foi levado por apelação ao
grande júri da opinião da plateia: todavia se os autores desses dramas tinham a
consciência da injustiça no julgamento, para lá deviam agravar-se. Esta é a
nossa defensão completa contra as vãs acusações de parcialidade; contra os
sonhos de uma imaginária aristocracia literária com que a mediocridade pretende
passar aos olhos de parvos e ignorantes, pelo engenho perseguido ou
menoscabado.
A Seção da Literatura pensa
por tanto, que importa ao bom nome do Conservatório o fazer sempre miúda e
inexoravelmente o exame dos dramas que concorrem aos prêmios, e motivar
largamente as suas sentenças. Tanto os concorrentes como a nação têm direito de
assim o exigirem. O tempo da censura inquisitorial, que muitas vezes só serve
de capa à incapacidade, passou. É nossa obrigação restrita fundamentar as
opiniões que assentamos: julgadores aqui, seremos lá fora réus, e o comum juiz
que é o público não está adstrito a julgar por nossas palavras. Por outra parte
esta miudeza e severidade de crítica servirá de correção aos autores, para cuja
emenda é inútil um parecer superficial e vazio de doutrina, ao passo que lhes
habilita o amor próprio para crer que não foram eles, mas fomos nós os que erramos.
Além disso, a Seção da
Literatura entende que é necessário ser finalmente severa a censura do Conservatório,
para o verdadeiro progresso dramático. Durante quatro anos este progresso tem
sido unicamente em extensão: falta a profundidade. O número dos dramas aumenta,
mas o mérito deles é o mesmo, senão é menor. A princípio convinha afagar todas
as tentativas: hoje é preciso afastar as não vocações dramáticas que a
facilidade das recompensas tem tornado em demasia ousadas, e é preciso
constranger aqueles que podem e sabem produzir frutos de verdadeiro engenho a
darem ao teatro obras que os honrem e honrem a Pátria.
Pelo que respeita em
especial ao drama — D. Maria Teles —
a Seção de Literatura ainda pede para ele a indulgência do conservatório. A
leitura desta composição revela a verdura de anos e inexperiência do seu autor.
O desconexo e inverossímil da contextura, a ignorância quase absoluta dos
costumes e instituições da época escolhida, e ainda mais a falta de
conhecimento da lógica das paixões e afetos, e por isso da consistência dos
caracteres estão dizendo que o mundo e a sociedade é em grande parte um
mistério para ele, mistério que ainda mal as tempestades políticas e a vida
demasiado enérgica do nosso século lhe revelarão em breve. Se o autor quiser
aceitar os conselhos prudentes que para melhorar o seu escrito lhe não
recusarão, por certo, os membros deste Conservatório, o drama — D. Maria Teles — poderá subir à cena,
não com a certeza de obter a aprovação de sumo juiz o — público — mas de
aparecer ante ele sem desonra sua, e sem que nós sejamos acusados de desleixo
no cumprimento dos nossos deveres. O parecer da Seção da Literatura é portanto,
que a Mesa convide o autor do drama a dirigir-se a ela para o fim apontado. O
Conservatório resolverá o que for mais justo e conveniente. — Alexandre Herculano.
Por grande que deva ser a
gratidão que se associa às recordações daqueles que nos geraram, por funda que
vá a saudade inseparável da memória paterna, no coração do bom filho há um
afeto não menos puro, e não menos indestrutível para o homem cujo espírito
alumiado pela cultura intelectual tem a consciência de que o seu lugar e os
seus destinos no mundo são mais elevados e nobres que os desses tantos que
nasceram para viverem uma vida toda material e externa, e depois morrerem sem
deixar vestígio. Este afeto é uma espécie de amor filial para com aqueles que
nos revelaram os tesouros da ciência; que nos regeneraram pelo batismo das
letras; que nos disseram: "caminha!" e nos apontaram para a senda do
estudo e da ilustração, caminho tão povoado de espinhos como de flores, e em
cujo primeiro marco miliário muitos se têm assentado, não para repousarem e
seguirem avante, mas para retrocederem desalentados, quando sozinhos não sentem
mão amiga apertar a sua e conduzi-los após si. Tirai à paternidade os exemplos
de um proceder honesto, as inspirações da dignidade humana, a severidade para
com os erros dos filhos, os cuidados da sua educação, e dizei-nos o que fica?
Fica um certo instinto, ficam os laços do hábito, e para impedir que tão frágeis
prisões se partam, fica o preceito de cima que nos ordena acatemos e amemos os
que nos geraram, ainda que a eles não nos prenda senão a dádiva da existência,
esse tão contestável benefício. Pelo contrário aqueles que foram nossos
mestres; que nos atraíram com a persuasão e com o próprio exemplo para o bom e
para o belo; que nos abriram as portas da vida interior; que nos iniciaram nos
contentamentos supremos que ela encerra; para esses não é preciso que a lei de
agradecimentos e de amor esteja escrita por Deus: a razão e a consciência
estamparam-na no coração: cada gozo intelectual do poeta, do erudito, do sábio,
lha recorda, e quando eles se comparam com o vulgo das inteligências,
reconhecem plenamente a justiça do sentimento de gratidão que os domina.
Estas reflexões
ocorreram-me ao abrir o primeiro volume das obras da senhora marquesa de
Alorna, condessa de Oeynhausen e Assumar, D. Leonor de Almeida, que atualmente
se publicam e de que já dois volumes se acham nitidamente impressos. E foi para
mim um prazer verdadeiro escrever estas cogitações de um momento. Aquela mulher
extraordinária, a quem só faltou outra Pátria, que não fosse esta pobre e
esquecida terra de Portugal, para ser uma das mais brilhantes provas contra as
vãs pretensões de superioridade excessiva do nosso sexo, é que eu devi
incitamento e proteção literária, quando ainda no verdor dos anos dava os
primeiros passos na estrada das letras. Apraz-me confessá-lo aqui, como outros
muitos o fariam se a ocasião se lhes oferecesse; porque o menor vislumbre de
engenho, a menor tentativa de arte ou de ciência achavam nela tal favor, que
ainda os mais apoucados e tímidos se alentavam; e disso eu próprio sou bem
claro argumento. A crítica da senhora marquesa de Alorna não afetava jamais o
tom pedagógico e quase insolente de certos literatos que às vezes nem sequer
entendem o que condenam, e que tomam a brancura das próprias cãs por título de
ciência, de gosto, e de tudo. A sua crítica era modesta e tinha não sei o que
de natural e afetuoso que se recebia com tão bom ânimo como os louvores, de que
não se mostrava escassa quando merecidos. Uma virtude rara nos homens de
letras, mais rara talvez entre as mulheres que se têm distinguido pelo seu
talento e saber, é a de não alardearem escusadamente erudição, e essa virtude
tinha-a a senhora marquesa em grau eminente. A sua conversação variada e instrutiva
era ao mesmo tempo fácil e amena. E todavia dos seus contemporâneos quem
conheceu tão bem, não dizemos a literatura grega e romana, em que igualava os
melhores, mas a moderna de quase todas as nações da Europa, no que nenhum dos
nossos portugueses porventura a igualou? Como madame de Stael ela fazia voltar
a atenção da mocidade para a arte de Alemanha, a qual veio dar nova seiva à arte
meridional que vegetava na imitação servil das chamadas letras clássicas, e
ainda estas estudadas no transunto infiel da literatura francesa da época de
Luís XIV. Foi por isso, e pelo seu profundo engenho, que, com sobeja razão, se
lhe atribuiu o nome de Stael portuguesa.
A vida desta nossa célebre
compatrícia acha-se à frente da edição das suas obras: para lá remeto o leitor.
Aí verá como em todas as fases da sua larga e não pouco tempestuosa carreira,
ela soube dar perene testemunho do seu nobre caráter de independência e
generosidade: verá que enquanto na terra natal primeiro a tirania e depois a
ignorância e a inveja a perseguiam, ela ia encontrar entre estranhos a justa
estimação de príncipes e de ilustres personagens da República das letras. Aí verá
como nascida no século do materialismo, vivendo largos anos no foco das ideias antirreligiosas,
acostumada a ouvir todos os dias repetir essas ideias por homens de
incontestável talento, ela soube conservar pura a crença da sua infância, e
expirar no seio do cristianismo. Aí finalmente verá como as ausências, por
vezes involuntárias, da sua terra natal, não puderam fazer-lhe esquecer o amor
que devemos a esta, ainda no meio das injustiças e violências de todo o gênero.
O primeiro volume das obras
Poéticas da senhora marquesa de Alorna contém, afora a vida da autora, e uma
notícia biográfica do conde de Oeinhausen seu marido, as poesias compostas na
mocidade. Boa parte destas foram escritas no mosteiro de Chelas, para onde
entrou de oito anos de idade com sua mãe, ocorrendo a prisão do marquês de
Alorna D. João. Encerrada naquele mosteiro passou D. Leonor de Almeida os anos
mais viçosos da juventude, tendo para alegrar as tristezas de tão longo
cativeiro que excedeu dezoito anos, unicamente o lenitivo do estudo, e os
conselhos e afagos maternos. Quisera alguém que tivesse havido mais severidade
na escolha das composições daquela época, algumas das quais desdizem do primor
que noutras posteriores se encontra. Eu lamento só que senão pudesse ajuntar a
cada uma a sua data. Assim, bem longe de ter sido um inconveniente essa
desigualdade inegável, houvera ela sido um meio para se avaliarem bem os
rápidos progressos da jovem autora, que nas obras de tão verdes anos anunciava
já o seu brilhante futuro nos rasgos frequentes de um engenho ao mesmo tempo
sólido, delicado e vivo.
O resto do primeiro volume
e o segundo contém as poesias da senhora marquesa posteriores à sua saída do
mosteiro. Na disposição delas também não se guarda o método cronológico: a
natureza dos poemas determina a ordem deles. Julgar essa grande variedade de
composições não cabia nos estreitos limites deste jornal. Os que as têm lido, e
que sabem entendê-las apreciam-nas devidamente. Elas são um ilustre monumento
para a história da poesia portuguesa, um nobre testemunho da piedade filial que
as trouxe à luz pública, e para em tudo esta publicação ser apreciada, a sua
nitidez tipográfica é uma prova dos progressos que a arte de imprimir tem feito
entre nós.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1842, e publicado
em: Opúsculos, 1909.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019).
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