Os
porcos e os lobos
(Apólogo)
Era uma vez um javali e dois porcos.
Juntara-os as afinidades de instintos, de interesses e de porcarias.
Tratavam de assegurar a exploração
privativa de um pequeno chiqueiro com seu lamaçal adjunto, pertencentes a
muitos indivíduos um tanto descuidosos do direito de propriedade.
Chama-se "chiqueiro" a um
chão coberto de azinheiras e sobreiros onde pasta o gado suíno que se quer
engordar; e denomina-se "lamaçal" um charco de água pútrida,
misturada com terra e outras substâncias orgânicas, onde o mesmo gado se refocila
para gozar o doce farniente da vida
suja que lhe é própria.
Incapaz de produção apreciável pela
sua constante esterilidade ou má cultura, o terreno achava-se quase abandonado
pelos seus numerosos e descrentes possuidores. Convinha pois aos cevados
garantir o usufruto do chiqueiro e atoleiro, tanto mais preciso à expansão dos
seus hábitos, e à satisfação das suas necessidades, quanto no lugar eram
escassos os recursos para viver.
Sendo porém indispensável assentar nos
meios concernentes ao conseguimento do fim que se propunham, reuniram-se os três em
conselho resolutivo.
Todos sabem que os porcos,
propriamente ditos, são animais domésticos (sus
domesticus), e que os javalis são os mesmos porcos, porém bravos ou
monteses (sus agrius). De natureza
maus, ingratos e estúpidos, pois não conhecem nem amam a quem lhes faz bem,
sucedendo muitas vezes morderem a mão protetora,
estes brutos, refratários aos bons sentimentos, alimentam-se não só de lande e
bolota, mas de toda a qualidade de resíduos, lavagens e detritos, e
comprazem-se, por bossa ou por gosto, de fossar no lodo mais espesso e de
atascar-se nos vastos tremedais.
O primeiro bácoro da sociedade
constituída era nédio, nutrido e pelado. Se fora homem dava, incontestavelmente, um cônego
excelente.
O segundo, pelo contrário, era magro,
velho e peludo. Se houvesse de pertencer à nossa espécie tínhamos nele o tipo
nítido, característico, do antigo boticário de aldeia. Quanto ao porco montês,
esse, como o nome está indicando, era animal do monte e das brenhas: esquálido,
feroz, brutal, mas poltrão ante o perigo ou o inimigo. Se pela metamorfose
pudesse tornar-se em indivíduo do gênero humano, obtinha-se apenas um falante
descarado, ou um salteador de encruzilhadas, traiçoeiro e cobarde.
Discutida largamente a matéria, que
servirá de pretexto à união e reunião, opinaram os animais que o meio eficaz,
completo, decisivo, consistia em desgostar os proprietários do montado,
lançando sobre este o descrédito para que o abandonassem de todo e de vez.
Havia porém um, entre eles, de quem os bichos em verdade mais se arreceavam,
não só porque plantara e atalaiava de perto a propriedade, e se opunha a
conúbios, mas porque tinha a generosidade ou quiçá a imbecilidade de
entreter-se lançando pérolas aos porcos. E este feixe de circunstâncias, esfuziadas
e roncadas, de algum modo lhes entibiava o ânimo e os impulsos, importando por
isso um estorvo aos seus desígnios.
— Precisamos de desfazer-nos do
importuno — disse o javali aos companheiros na plenitude dos instintos e da índole de besta
fera.
— Necessário é, com efeito; mas como,
se ele nos tem amparado? — perguntou um porco manso, o peludo.
— Perfeitamente!— respondeu de pronto
o montês. — Surpreendo-o com uma investida, apareço-lhe armado, iracundo, bordeleiro; ele assusta-se, cambaleia e estende-se.
Aproveito a situação para destituí-lo do direito de intervir, adquiro o seu
quinhão e...
— E quê? — interroga ansioso o mesmo
bácoro, com os olhos lampejantes de alegria e malvadez.
— Mata-se! — conclui o bruto selvagem,
de focinho levantado, com as cerdas hirsutas e num rugido grosso de leão triunfante.
— Isso é muito... — observa o outro
porco, o pelado, em tom moderado e hipócrita.
— Mata-se moralmente, é o que eu
queria dizer — explica o javali, radiante do sinistro e perverso pensamento, que
lhe intumescerá o encéfalo. — Se der cavaco... atacamos-lhe a honra e com
certeza derrotamo-lo, e ou se resigna, ou dá sorte: no primeiro caso amua,
retira-se e mete-se nas encóspias; no segundo caso levamo-lo de cambalhota em
cambalhota até o estatelarmos em nosso lodaçal. Uma vez aí imerso está
seguro, não mais se levantará; mas, se porventura o conseguir, nunca em dias de
sua vida poderá limpar-se inteiramente da lama viscosa com que nós o
inundarmos.
— Apoiado! muito bem! — roncaram
entusiasmados, satisfeitos, os dois cevados domésticos, o manso e o hipócrita, o peludo e o pelado.
Mas... quão falíveis, ilusórios e
fátuos são os cálculos dos brutos! Terminaram os concertos; começam os desenganos, o conhecimento
e a evidência do erro e da maldade.
Quando os bácoros, contentes de si,
lidavam azafamados na execução imediata do fantasioso plano, empregando
auxiliares que reputavam benignos, amigos e dóceis, eis que estes lhes saem
lobos vorazes, em cujas fauces profundas porcamente caíram.
E assim, o javali e os porcos,
abortada a ideia de longo tempo concebida e carinhosamente acalentada, foram
vítimas voluntárias, necessárias, fatais, da sua própria perversidade, da sua
natural estupidez e da sua desmedida e suína ingratidão!
Pobre humanidade! aliás, triste
porcaria!
---
Bento José de Souza Brito de Barros (Farpões, 1885)
Bento José de Souza Brito de Barros (Farpões, 1885)
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes
(2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...