Os
novelos da Tia Filomena
CAPÍTULO 1
A tia Filomena era uma pobre mulher
que eu conheci noutro tempo, muito enrugada, muito magrinha, com uma coluna
vertebral como a do homem das cortesias do método Castilho; queixo e nariz
prolongando-se-lhe em promontórios agudos e a fazerem lembrar os crescentes sob
os minaretes das mesquitas; olhos abertos para o mundo, somente quanto bastava
para lhe descobrir as vaidades, e a cabeça incessantemente animada por um
movimento convulsivo, que, junto ao sorriso contínuo e quase irônico que se lhe
estampara nos lábios, dava à fisionomia de ordinário meditativa da velha não
sei que vislumbre de filosofia cética, que impressionava quantos a viam.
Os hábitos da tia Filomena atingiam o
sublime da parcimônia.
Uma sociedade inglesa de temperança
não hesitaria em lhe conferir diploma de súcia honorária, se deles tivesse
notícia.
A voz estava em flagrante antagonismo
com o nome melodioso, que predileções, provavelmente maternas, lhe tinham dado
na pia batismal.
De fato a tia Filomena — a culpa não
era sua — faria corar de vergonha o rouxinol, seu harmonioso homônimo, se isto
de corar não fosse esquisito atributo da espécie humana.
Eu não posso comparar o timbre daquela
voz a ruído algum conhecido na natureza; em mim produzia o mesmo desconsolado
efeito que me causa aos nervos o roçar do metal agudo sobre uma mesa de mármore
polido.
Ouvindo falar algum tempo a tia
Filomena, ficava-me a doer o peito, e o pulso subia a um algarismo em que
começava a revelar aspirações a febre.
Se me obrigassem a viver com ela muito
tempo, estou que morreria ético.
Um dia falei nisto a um médico e ele
explicou-me o fenômeno por uma palavra inexplicável.
Chamou-lhe uma idiossincrasia.
Eu dei-me por satisfeito. A coisa não
era para menos.
Quando eu, com a minha idiossincrasia,
conheci a tia Filomena, gozava a mulher de uma reputação que, a falar a
verdade, não se podia dizer das mais lisonjeiras.
A gente da vizinhança — as vizinhanças
na aldeia compreendem-se num circuito de três léguas de raio — teimava a pés
juntos que ela mantinha sinistras relações com os espíritos ruins, que aos
sábados não faltava às soirées do diabo; e enfim que era a pobre velha nem mais
nem menos do que uma ladina e famigerada feiticeira.
Punge-me ter de arquivar aqui, forçado
como sou pela veracidade de cronista, que a origem principal de semelhantes
boatos a fui encontrar na parte bela e amável do sexo do qual a tia Filomena
era um espécime de avariado.
A beleza e a juventude fazem disto. As
que as possuem, orgulhosas dos seus dotes sedutores, invejam-se e odeiam-se
mútua e cordialmente; ao mesmo tempo que desprezam e caluniam as desfavorecidas
nesse ponto pela nem sempre muito imparcial natureza.
Consideração suavemente consoladora
para as leitoras feias, que não incorrem pelo menos num destes pecados.
Foi efetivamente a uma conversa de
raparigas que eu devi a revelação da íntima correspondência entre a tia
Filomena e os espíritos das trevas.
Disse-mo Luisita, tomando certo ar de
misteriosa seriedade, tal como a natureza do assunto o reclamava.
Luisita era uma galante rapariga dos
arredores.
O diminutivo com que a designo aqui, e
que era o adotado por todos, vale mais do que qualquer minuciosa descrição.
Nós, os peninsulares, não empregamos
indiferentemente as variedades de diminutivos que possui em abundância a nossa
língua.
Entre uma mulher a quem chamamos
Luisita e outra que nos valeu a mais doce denominação de Luisinha, vai uma
diferença considerável: diferença de tipo, diferença de hábitos, diferença de
caráter.
Uma será meiga, ingênua e sensível,
quase sempre loura e alva, corando à menor palavra que lhe dirigirdes, baixando
os olhos confusa, se a fitardes um momento; pronta a chorar de saudade, e tendo
não sei que de triste até nas mais intensas alegrias. Na outra, pelo contrário,
encontrareis certa petulância e travessura, que arrostarão com os vossos
olhares mais impertinentes, um rosto provocador, risos prontos e francamente
joviais, movimentos vivos, respostas fáceis e naturalmente epigramáticas; uma
zombaria a cada galanteio; a cada fineza, uma reflexão que vos desconcerta, e
revelando sempre, até por entre lágrimas, um fundo inesgotável de contagiosa
alegria.
Tal era Luisita. Tal a conheci eu
naquele tempo. Tinha ela então dezoito anos; era baixa, trigueira, de olhos
negros e engraçados; ninguém passava por ela na estrada que involuntariamente
se não voltasse depois para a seguir com a vista. Adivinhava-o e lisonjeava-se
com isso. Subitamente voltava-se também para surpreender em flagrante os
numerosos contempladores, e poucas vezes podia reprimir uma risada, se
conseguia perceber que os mortificara com a descoberta.
O rosto dela era o mais gracioso
conjunto de imperfeições que pode perturbar a cabeça dos menos predispostos
para influências de tal ordem.
A natureza folga, de vez em quando, de
pregar destas pirraças aos profundos conhecedores da arte, que imaginam ter
descoberto as verdadeiras leis do belo, nas suas variadas manifestações.
Apresenta-lhes uma dessas figuras de mulher que não resistem à análise,
incorretas e repreensíveis segundo as regras da arte e, a despeito de todas as
teorias e sistemas, mau grado todos os princípios fundamentais de estética ou
de plástica, inspira-lhes com elas as mais endiabradas paixões que podem
transformar o juízo destes absolutos legisladores da coisa menos legislável do
mundo.
Impressionados ao seu pesar, como os
severos apreciadores de música, de mal consigo mesmo quando, em contradições
com os seus sistemas a priori, se deixam entusiasmar pelos inspirados defeitos
de Verdi, os tais artistas filósofos são então de uma inconsequência que me
delicia.
É para ver como estes frios analistas,
sempre prontos a pretender encontrar em certas combinações de curvas, certo
contraste de cores, certa proporção de diâmetros, a razão de ser da beleza e a
causa única das sensações que ela inspira, param confundidos diante de uma
dessas sedutoras irregularidades, que, despedaçando os moldes acanhados onde
julgavam conter o poder criador do belo, lhes revela a cópia de recursos de
que, nas suas felizes infrações desses imaginários códigos, a natureza dispõe
ainda, a ocultas da pretensiosa arte.
Diante de tão misteriosas sínteses,
que de uma maneira desconhecida assim profundamente nos afetam, é que a
análise, destruindo tudo, à força de tudo querer decompor, se mostra pequena e
incompleta.
Mas estava eu falando de Luisita, que
mal suspeita por certo ter servido de tema a considerações desta ordem.
Simpática rapariga aquela! Misto de
ruindade e de candura, de timidez e de astúcia, caráter caprichoso e às vezes
impertinente sobre um fundo de inexcedível bondade, agradava-me por isso mesmo.
A bondade excessiva, sempre incoerente consigo, as abnegações completas,
aproximam-se demasiado da perfeição angélica; são muito isentas de cor terrena,
para nos inspirar outro sentimento que não seja o da veneração. Interessam-nos
mais estes caracteres, que parece tocarem por um lado no céu sem de todo se
desprenderem da terra, por onde justamente se acham em mais íntima relação
conosco.
Lado frágil e vulnerável, que maiores
simpatias nos desperta. A avezinha que todos nós mais amamos é a que, ferida na
asa, não eleva voos a grande altura do solo.
Ao menos eu por mim declaro-me mais
sujeito a ser impressionado por estes caracteres mistos de mulher e de anjo, e
às vezes até com os seus ressaibos de demônio.
Fazem-me lembrar — por que o não
direi? — as felizes combinações que a cada passo realizam os confeiteiros,
associando como corretivo a adstringência de um ácido à excessiva e às vezes
enjoativa doçura das massas de pastelaria.
Perdoem-me o comezinho da comparação e
deixem-me continuar.
Dizia eu que fora de Luisita que
obtivera as primeiras informações sobre a vida escandalosa da tia Filomena.
E por sinal que ia ficando de mal
comigo ao divisar-me nos lábios, ao passo que falava, um sorriso de
incredulidade.
— O senhor ri-se? — disse-me ela com
um gesto de contrariedade e uma ruga de mau humor a sulcar-lhe a cara, o que
lhe dava à fisionomia a mais adorável expressão de cólera feminina que se pode
imaginar — é dos tais que não acredita em feiticeiras?
— Se acredito! Tanto que ando
enfeitiçado.
— Anda? — continuou ela, tomando já um
aspeto todo risonho por aquela extrema mobilidade de feições que possuía, a par
de igual mobilidade de caráter — vire o casaco do avesso; dizem que é remédio
pronto.
— Do avesso trago eu o coração, a
julgar pela desordem que sinto cá dentro.
— Sim? Então quem lho voltou?
— Olhe que não foi a tia Filomena,
isso lhe juro eu. Há feiticeiras na terra, mas são de outra casta.
— Vamos então a saber. Conte-nos isso.
Quem são essas feiticeiras? — disse a minha gentil interlocutora a provocar um
cumprimento que pressentia.
Saboreei um prazer de deuses em lhe
não dar esse gosto e respondi-lhe:
— As feiticeiras são estas árvores,
estas flores, estas campinas e montes, estas tardes e madrugadas, que tão
enfeitiçado me trazem que não há tirar-me daqui.
Ela compreendeu porém a tática e
respondeu-me com uma gargalhada provocadora.
CAPÍTULO
2
Esta cena passava-se na tarde de um
domingo e no largo onde se reunia para dançar, rir, cantar e falar de amores, a
parte jovem da população; e para rezar, dormir e falar do passado e das vidas
alheias, a outra porção mais favorecida de anos e menos de descuidosa alegria.
Deste lugar, situado na encruzilhada
dos quatro principais caminhos que atravessavam a aldeia, estendia-se a vista,
do lado ocidental, numa série extensa de várzeas e de campinas divididas em
quarteirões, regulares como os tabuleiros de um jardim, por longas fileiras de
choupos que as vides, enleando-se-lhes nos ramos, guarneciam com pendentes e
viçosos festões.
A diferente qualidade ou vigor de
plantação e o diverso grau de cultura desses numerosos campos em que se
repartia a planície davam a cada um deles uma aparência particular, quebrando
agradavelmente a ordinária monotonia dos terrenos pouco acidentados.
A natureza empregara na tela os mil
cambiantes da cor verde, própria às paisagens campestres, e, por um segredo de
colorido que a arte mal pôde ainda imitar, soubera introduzir, na pintura em
mosaico dessas vicejantes alcatifas, no meio de uma uniformidade aparente, a
mais aprazível variedade.
Aqui e além elevados castanheiros,
frondosos carvalhos ou oliveiras verde-pálidas formavam pequenos bosques em
volta de uma ou de outra habitação isolada, como para ocultar o mistério de
alguma existência obscura que se deslizasse ali e concentrar no seio da família
o grato calor dos lares domésticos que alimenta e vigora os mais afetuosos
sentimentos do coração humano.
Cada uma dessas habitações solitárias,
assim envolvidas na sombra dos olivais, dos soutos ou das devesas, assim
recatadas e discretas, como aquelas pessoas naturalmente pouco expansivas que
se calam com as alegrias e experimentam no gozá-las em silêncio a mais casta
voluptuosidade, me parecia encerrar um poema inteiro de íntimas felicidades. A
cada uma delas associava a minha imaginação, obedecendo a não sei que
irresistível necessidade de fantasiar, uma vida de tranquilos e inefáveis
prazeres, cuja só concessão me deleitava.
E como para que às comoções agradáveis
que toda esta cena despertava, não faltasse certa melancolia, que se insinua
nos nossos mais delicados sentimentos, lá estava, a suscitar-ma, junto da igreja
paroquial, o cemitério da aldeia, sem a magnificência dos mausoléus, mas com a
poesia da tristeza; sem longas ruas assombradas por cedros e ciprestes, mas
abundantes em rosais sempre floridos, que, balouçados pelo vento, cobriam de
pétalas desfolhadas as campas mais humildes e obscuras, onde nem sempre a
amizade depusera sequer a devida homenagem de uma flor.
Mais longe, começava o terreno, em
suave declive, a elevar-se como nos degraus sucessivos de um extenso anfiteatro
e sempre tão rico de vegetação, tão revestido de árvores e de relva, que dava
ao país naquele ponto a pitoresca aparência de um vasto cabaz a transbordar de
verdura e de flores.
Nesta graciosa corrente de pequenas
colinas, que circundavam a planície, divisavam-se as povoações vizinhas, como
pequenos pontos brancos dispersos ou amontoados, por entre os arvoredos da
encosta.
De cada uma delas começava já então a
erguer-se o fumo dos lares em colunas densas e tortuosas, que cedo se
misturavam, difundiam, rasgavam em mil pequenas nuvens irregulares,
dissolvendo-se por fim numa atmosfera de vapores, que pouco a pouco, como em
transparente cendal, envolvia toda a paisagem.
Mais distante, ainda no extremo do
horizonte, desenhavam-se em grandes sombras, vagamente contornadas sobre o
claro do céu, iluminado àquela hora pelos últimos raios do Sol no ocaso,
cordilheiras de remotas serras que, tingidas por a uniforme cor azulada das
paisagens longínquas, mais pareciam pesados cúmulos de nuvens surgindo
ameaçadores do ocidente.
Quase sempre as coroavam altas neves,
onde o Sol, refletindo-se, produzia surpreendentes efeitos de ótica, simulando
fantásticos palácios de pórfiro e pedrarias. Daí se precipitavam as torrentes,
que pouco a pouco, descendo nos vales e enleando-os nas malhas de uma rede complicada
de arroios cristalinos, trocavam a primitiva impetuosidade, ao despenharem-se,
como cataratas, em fragosas ribanceiras, por um sereno deslizar entre silvados
e relvas, que apenas denunciava um confuso murmúrio.
Se, depois de ter assim contemplado este
panorama risonho e aprazível, voltássemos os olhos para o lado do oriente,
reconheceríamos um desses contrastes a que é tão afeiçoada a natureza nos
países onde mais inesgotável se mostra nos seus recursos de artista; uma dessas
rápidas mutações de cena que deleitam, variando de momento para momento as
impressões que produzem.
De fato, a perspectiva era deste lado
mais limitada, ainda que absolutamente não menos bela.
Logo a pequena distância começava o
terreno a assumir uma rápida inclinação, perdendo ao mesmo tempo a amenidade e
vigor da vegetação dos vales para revestir a severa e melancólica beleza das
paisagens alpestres.
Na base desta colina, tão diversa das
que do lado oposto parecia sorrirem-lhe envolvidas nos seus vistosos mantos de
folhagem, vinham expirar as últimas oliveiras, já pálidas e débeis, como se o
vento das montanhas lhes consumira o vigor. À cor viçosa da relva sucedia pouco
a pouco o verde sombrio das giestas e do tojo; suas tristes flores amarelas aos
variegados matizes com que se adornam os campos; às sombras densas e
impenetráveis das devesas, as sombras enganadoras dos pinhais; o gemer
melancólico das rolas, o grito rouco dos gaios, os alegres gorjeios que ressoam
nos vales, e o cheiro ativo das resinas, aos brandos aromas das flores do
prado.
Ao topo deste monte, em toda a
extensão do qual nenhum vestígio de cultura e animação interrompia, por espaços
sequer, o aspeto selvagem e de completo isolamento que nele imediatamente nos
impressionava, conduzia, descrevendo longas sinuosidades, um caminho íngreme e
quase intransitável, comprimido entre elevadas paredes desse terreno argiloso
de cor ensanguentada, donde raro brota uma planta, ou nasce sempre estiolada e
débil, desfolhando-se ao menor sopro de aragem que por momentos a agite.
Iminente a esse caminho, no qual em
pleno dia penetravam apenas os raios de um pálido crepúsculo, e a mais de meia
encosta do monte, existia a casa da tia Filomena, que não desdizia, na sua
aparência de miséria e tristeza, da paisagem que lhe servia como de fundo de
quadro.
Fora esta casa solitária no meio de um
pinheiral sombrio, que, contrastando fortemente com a amenidade da perspectiva fronteira,
onde tudo era vida e cultura, me atraíra a atenção e dera lugar ao diálogo no
qual a personalidade da pobre mulher começava a ser discutida, não demasiado
lisonjeiramente para ela.
A conversa travada entre mim e Luisita
pouco a pouco se generalizou; e tão popular era o assunto, que todos tomaram
parte nela, interrompendo as danças, dando tréguas às violas, e
sacrificando-lhe até os trocadilhos amorosos com que mutuamente se mimoseavam
os namorados.
A minha incredulidade aumentou o ardor
e vivacidade das insistências; longe por isso de aproveitar à pobre Filomena,
antes a ia prejudicando.
— E ver, é ver — dizia uma morena,
apertando debaixo da barba o lenço escarlate, que com o movimento da dança se
lhe havia desatado — logo que veio para ali aquela bruxa, foi um morrer de
crianças como nunca se viu.
— E os carneiros do ti Zé da Nora, que
em menos de quinze dias lhe morreram todos, mirrados como um torresmo? —
acrescentava outra, levando aos dentes, alvos como o marfim, uma laranja que
começava a descascar.
— E os pregos que lançou pela boca
fora a tia do João dos Moinhos?
— Ora! nem que ela lançasse pregos!
isso pode lá ser! — disse, simulando ceticismo, um rubicundo mocetão de vinte
anos, que alimentava para estas coisas no fundo da alma a mais fervorosa
crença.
— Não? pois pergunta-o ao Sr. doutor,
que saiu de casa dela a benzer-se e a dizer que não era aquilo doença de
médicos.
— E verdade, é verdade. E foi lá o Sr.
abade fazer-lhe os exorcismos.
— Qual? o novo?
— Não, o antigo, que Deus haja. O novo
sim, olha, olha o outro!
— Esse bem se fia nestas coisas.
— Assim Deus me perdoe, como ele me
parece bruxo.
— Estás doida, rapariga!
— Eu digo isto. Pois não veem como
fala de mano a mano com ela?
— Se fosse bruxo, não faria as esmolas
que faz — redarguiu Luisita, obedecendo aos seus bons instintos.
— Nanja eu que lhas quisesse.
— Que dizes tu, mulher, que dizes? Ora
o Senhor te não castigue.
— Amém. Mas então para que conversa
ele com a tia Filomena, sabendo de que casta ela é? Como lá diz o outro: “Quem
não quer ser lobo..."
— Ele sabe lá se ela é bruxa!
— Pois não lho dizem todos, e não
repara que nunca ouve missa, e nem sequer vai à igreja?
Eu vi Luisita quase disposta a tomar a
defesa da tia Filomena. A contradição irritava-a e instigava-a a reagir com
toda a força da sua natural impaciência.
Uma das circunstantes, porém, trouxe
novo artigo de acusação contra a velha Filomena, e conseguiu reunir de novo as
opiniões que a questão do reitor havia dividido.
— Sabem vocês, a minha capa nova?
Fui-a encontrar toda às tesouradas depois de uma terça-feira em que passei pela
tia Filomena lá embaixo nas presas.
— Credo! e tomaste a trazê-la,
rapariga?
— Deus me livre!
— E não cozeste o bruxedo?
— Ainda não. Como é que isso se faz?
— É preciso ferver toda a roupa numa
panela que ainda não tenha servido, e barrá-la muito bem com lodo e...
— Não — acrescentou uma outra — antes
lançam-se na água sete pedras de sal, com a mão esquerda.
— Isso é depois...
— Não, senhora, é antes.
— Vem-me ensinar a mim, que o vi fazer
à Joana do Viúvo, quando lhe embruxaram o sobrinho.
— Sim, mas também a Joana não diz as
palavras que dizia a Rosa do Emídio, e sem elas não se faz nada, ah!
— Se não diz essas, diz outras.
— E que palavras são? — perguntou a
proprietária da capa enfeitiçada.
— As da Joana são assim:
Tarrenego
espírito imundo.
Vai-te
para os fogos eternos,
Lá
no fundo, bem no fundo,
Das
profundas dos infernos.
Água
quente da panela
Ferva
esta roupa bem cedo,
Fervida
seja com ela
A
bruxa com o seu bruxedo.
— Como é o resto?... A bruxa com o seu bruxedo...
a bruxa com o seu bruxedo — repetia a rapariga, vasculhando em vão a memória
para achar o resto da cantilena imprecatória da Joana do Viúvo — vedes, não me
lembra, mas é assim uma coisa.
— Mas há de ser dito com um ramo de
alecrim bento na mão, fazendo três cruzes no ar a cada verso.
— Isso já se sabe.
Outra aventurou do lado o seguinte
alvitre:
— Diz que também o que é muito bom
contra as feiticeiras, diz que é hortelã verde do monte.
— Ora isso é para matar saudades.
Quando o nosso Zé foi para o Brasil, minha mãe coseu-lhe hortelã no forro do
colete, porque o pobre rapaz, coitadinho, ia esmorecido de todo.
— Eu cá do que sempre uso é de figas
de azeviche — opinou outra, exibindo, como prova do seu dito, um dos objetos
mencionados.
— Sim, que não chuparam as bruxas o
pequeno da Tomásia e mais tinha no pescoço uma figa que lhe dera a madrinha.
— O pequeno da Tomásia morreu de uma
febre.
— Boa febre! Pois não se viu a olhos
vistos! Podiam-se-lhe contar as marcas que lhe deixaram as feiticeiras. Tinha o
corpinho todo sarapintado de nódoas roxas, que era mesmo uma pena vê-lo.
— Eu desde que uma tarde, era já ao
lusco-fusco, vi rondar a tia Filomena, com pés de lã, em volta da casa de
Tomásia, logo me deu uma pancada no coração.
— E eu que tantas vezes lhe disse: —
Tomásia, tu tem cautela com o teu filho! — Não sei o que me dizia o que tinha
de suceder.
— A rapariga também era desmazelada —
observava outra, mantendo a conversa no tom de maledicência em que já ia
afinada. — Deixava andar sozinha aquela criança, ainda a engatinhar, em termos
de lhe acontecer alguma desgraça. Quantas vezes a fui eu tirar da ribanceira e
quase a rolar por ela abaixo?
— Não, eu sempre digo que há mães
também!
— Depois então é que é o gritar: Ai o
rico filho da minha alma! como ela gritava, que era até uma vergonha.
— Ora, uma vergonha sim! isso é bom de
dizer, mas coitado de quem os tem!
— E como o outro que diz: aquilo
sempre é sangue do nosso sangue.
— Mas então que olhem por eles; não é
só quando morrem que...
— A gente, enquanto eles têm saúde,
nem bem sabe o amor que lhes tem; depois é que tudo são aflições.
— Isso lá é assim, é.
— Malditas bruxas — diziam algumas
vozes, como se fora um estribilho de canção.
— Nessa mesma noite em que morreu o
pequeno, foi que elas apareceram ao Luís do Canha.
— Ai, então apareceram-lhe as bruxas
alguma noite?
— Pois não o sabias, mulher?
— Eu não!
— Admira! Tanto se falou nisso.
— Mas então que foi? Eu não sei de
nada.
— Foi uma noite em que o Luís do Canha
veio mais tarde da cidade, e não encontrou companhia. Era num sábado. Ao passar
nos Telheiros, pareceu-lhe ouvir o barulho de lavadeiras a bater a roupa nas
presas. O rapazinho, admirado de que se lavasse àquelas horas, parou um pouco e
pôs-se a olhar para baixo.
— E que viu? — perguntaram-lhe em coro
umas poucas de vozes com uma inflexão em que se revelava o mais vivo interesse.
— Muitas sombras assim como fumo a
correr de um lado para o outro, à roda, à roda, como folhas secas em dia de
ventania. E logo umas risadas e umas vozes que chamavam por ele: — Luís! Luís!
onde vais tão tarde? espera, espera, ouve um recado. — O pobre rapaz sentiu que
se lhe arrepiavam os cabelos da cabeça e deitou a correr com toda a pressa que
pôde.
E aquelas risadas a persegui-lo. Ele a
correr, e as vozes a chamá-lo; depois apareceram-lhe umas sombras negras, altas
como gigantes, que fugiram a esconder-se por entre as árvores, fazendo um
barulho como o do vento nos pinheirais, e umas luzinhas a aparecer e a
desaparecer. Quando passou nos moinhos, viu à beira do riacho assim como um
corpo morto, embrulhado num pano branco e a gritar: — Ai quem me acode! ai quem
me acode! — E assim o seguiram e perseguiram, até que o rapazinho, chegando ao
pé da igreja, disse: — Valha-me Nossa Senhora do Amparo! valha-me Nossa Senhora
do Amparo, minha madrinha! — Tudo então desapareceu.
— Credo! — disse uma das ouvintes,
benzendo-se — se fosse isso comigo... eu sei lá?... já tinha morrido de susto.
— Pouco faltou ao Luís, que andava
parecia enterrado em vida.
— Bom dinheiro gastou o pai para lhe
tirar o mau-olhado.
— Foram todos a pé ao Senhor de
Matosinhos, com uma vela do tamanho do rapaz, e só então é que ele ficou bom.
— Santo nome de Jesus! nunca vi terra
tão azada a bruxas como esta nossa!
— E o homem da Teresa dos palheiros?
aquilo é feitiço ou não é feitiço?
— Que feitiço? que feitiço? — exclamou
uma gorda rapariga que tinha motivos pessoais para não simpatizar com a tal
Teresa dos palheiros — que queriam vocês que ele fizesse com uma mulher
daquelas?
— Então que tem a mulher, criatura?! Tu
também!
— Isso; perguntem-no a mim, que há de
ser preciso. Ora já viram!
— Mas diz lá o que tem?
— O pobre do homem a trabalhar como um
mouro, e ela a gastar-lhe tudo em roupinhas e gibões.
— Isso é feitiço que nos espera a
todos — disse o principal tocador de viola da aldeia, apertando uma cravelha do
instrumento, e experimentando nas cordas, irritantemente melodiosas, o grau de
afinação.
Estas palavras, consideradas ofensivas
pela parte feminina do auditório, suscitaram uma discussão em que foram postos
em paralelo os defeitos e qualidades dos dois sexos, de ambos os lados com
apaixonada parcialidade.
CAPÍTULO
3
O vento que soprava do lado do monte
trouxe-nos neste momento aos ouvidos bem distinta, apesar da distância, a voz
da tia Filomena, com aquele timbre particular e penetrante que já lhe
conhecemos.
Chamava pelo seu gato preto, magro
quadrúpede que a junta de inspeção do exército, de que fala a Gaticânea,
excluiria por incapaz do serviço militar.
Este gato era um gravíssimo indício da
criminalidade da tia Filomena. Sempre que eu o via, regozijava-me interiormente
por se terem apagado havia muito as fogueiras do Santo Ofício. Se elas ainda
existissem, não sei eu se a tia Filomena, com semelhante fama e com semelhante
gato, haveria escapado ao processo de torrefação com que naqueles infelizes
tempos se apurava a fé.
— Então, visto isso — perguntei à
Luisita — aquele gato é o diabo?
— Cruzes! — exclamou ela, como
corretivo ao feio nome que eu não hesitara em proferir, e depois acrescentou: —
e não o diga a mangar, é ver como esse mafarrico anda em guerra aberta com os
outros gatos e dá cresta de quantos pilha.
— Ah! pelo que vejo, o diabo ocupa-se
agora em baixos misteres. Voltou-se contra os gatos! Que decadência!
— Está a brincar?
— Não, falo sério. Ora diga, a menina
acredita deveras que o diabo lhe dê para embirrar com os gatos? Quem a
persuadiu de semelhante coisa?
Não sei. Vejo que não crê no que lhe
digo. Pois faz mal.
— Mas vamos cá, a tia Filomena então...
— Para quê se não quer acreditar?
— Quem lhe disse que não quero? Eu só
desejava que mostrasse a razão porque ela é bruxa.
A rapariga fez um gesto de
impaciência.
— Bem sei que me vai dizer que ela é
feia e velha... Ora aí está o que eu não posso admitir...
Estas palavras granjearam-me uma
estrondosa gargalhada.
— Então acha-a bonita e nova? E diz
que não está enfeitiçado! Ah! ah! ah!...
— Valha-me Deus! Não é isso. O que eu
não admito é que as bruxas sejam feias. As que me enfeitiçam são outras.
— Ai, isso é cantiga? — E, tomando um
ar comicamente sisudo, continuou: — Ora, mas fique sabendo que a tia Filomena,
em certas noites, berra de maneira que se ouve no povoado.
— Histórias! Afinal há de ser o pavão
da quinta das Cerdeiras.
Luisita encolheu os ombros expressivamente
e prosseguiu sem mais resposta:
— Acende-se às vezes em casa dela, lá
por altas horas, um lume vermelho...
— Que faria se fosse azul! Aí está a
justificação da boa mulher, vê? O lume do inferno é azulado; não sabe que é de
enxofre?
Luisita olhou para mim, meia a rir-se
meia despeitada.
— Como assim! Para que me hei de estar
a cansar? Sabe que mais? Espere pelo sábado, ponha-se à espreita e verá bonitas
coisas.
— Lembrou bem; hei de observar uma
noite a tia Filomena.
Nem a mangar diga isso.
— Digo-o muito a sério.
— Credo! Deus o livre!
— E depois hei de contar-lhe o que me
sucedeu.
— Não, se tal fizesse, nada me
contaria depois.
— E por que não?
— Porque estaria morto.
— Santo nome de Deus! que sorte tão
negra! sempre tem coisas!
— E não se fia!
— Aposto até que a tia Filomena me há
de dar de cear.
— Não diga isso, que até é pecado.
— Que mandamento ofendo eu?
— Vamos, agora falo a sério. Os
senhores da cidade têm tolices e pode muito bem dar-lhe na cabeça essa
extravagância. Olhe que não é uma história o que lhe digo; a tia Filomena sai
muita vez de noite e anda pelos montes feita numa luzinha, e de mês a mês vem
visitá-la um homem de má catadura. Há quem o tenha visto; entra e sai logo.
— E então quem é esse homem?
— O demo ou coisa que lhe pertence;
vem dar-lhe parte da grande assembleia de bruxas.
— Ah! reúnem-se mensalmente? É para
discussão dos estatutos? O bom humor da minha interlocutora havia-se esgotado;
fez um movimento de não dissimulada impaciência, encresparam-se-lhe os lábios
num sorriso de generosa comiseração, e, depois de me fitar por alguns
instantes, voltou-me as costas, deixando-me entregue à minha ímpia
incredulidade.
Foi bem feito!
CAPÍTULO
4
Mas o caso é que tinham conseguido
excitar-me o interesse pela tia Filomena, em quem até ali mal atentara sequer.
Eu tinha então vinte anos, e nesta
idade não há imaginação tão de gelo que não medite o seu romance. Todos nós
pagamos esse tributo à violência dos nossos sentimentos, à facilidade das
nossas impressões e tendências que então sentimos para uma vida mais ideal,
menos comprimida nos moldes estreitos da realidade.
Nem sempre esses romances se
transportam aos livros, nem sempre se desenvolvem em capítulos, ou revestem uma
forma literária qualquer; muitos são os que abortam, os que não recebem a
encarnação da escrita; tanto pior para a literatura, que fica assim privada
talvez dos seus mais perfeitos primores de arte.
Quer-me parecer que a literatura
realizada até hoje seria apenas um fraco reflexo desta que, assim concebida um
momento, se destrói em gérmen e não passa dos primeiros lineamentos
embrionários. Porque nem sempre a improdução é prova de absoluta esterilidade.
— O que há de mais misterioso, de mais admirável e eternamente incompreensível
para inteligências humanas — a concessão — é uma faculdade menos privativamente
concedida do que se julga talvez; mas condições secundárias podem e vêm muitas
vezes aniquilar-lhes os produtos logo à nascença, como um defeito de
organização sacrifica ao primeiro desenvolvimento o gérmen de um futuro ser.
Muitos que se pressentem as delícias e voluptuosidades da concessão não podem
vencer as fadigas penosas do trabalho que executa e que reveste esses filhos da
fantasia criadora da forma que os torna visíveis.
Em meu espírito laborava então esta
necessidade de criar um mundo imaginário, onde vivesse mais à vontade do que no
mundo real. Tal é quase sempre a origem de tantos romances escritos — e de mais
ainda fantasiados apenas — que nos ocupavam as vigílias da juventude e às vezes
refletem o colorido mágico nos nossos mais deliciosos sonhos.
Debaixo dessa poderosa influência é
que eu via então as coisas, os homens e a natureza; eram essas ideias que me
tinham acompanhado ao campo e me faziam perceber na sombra dos bosques, nos
cambiantes das flores, nos indefinidos murmúrios das brisas embalsamadas e da
folhagem viçosa, mistérios de luz, de harmonias e de perfumes não sentidos por
outros; invisível atmosfera de poesia e de ideal em que tudo parecia
envolver-se aos meus olhos, que me fazia conceber um drama, depois de ouvir a
narração de um suicídio; imaginar uma alegria, um poema talvez, ao saber da
morte de uma rapariga de quinze anos; que me mostrava um Chatterton em cada escritor
pálido; — uma Diana Vernon, em cada amazona a cavalo; — um Antony, em cada
enjeitado; — uma Graziela, em cada filha de pescador; — uma Indiana, em cada
crioula; em cada criada de servir, uma Genoveva; e até um segundo Quasimodo,
num pobre sineiro que conheci na Sé do Porto. Feliz tempo aquele!
Via uma rapariga a chorar, um velho
sentado, ao pôr do Sol, debaixo de uma árvore, um grupo de crianças brincando à
borda de um regato, uma mãe amamentando o seu primeiro filhinho, um artista de blouse a ler nas horas de descanso à
porta da oficina, uma costureira serandando à luz do candeeiro — eram outros
tantos romances que imaginava; sempre romances, romances em tudo, por toda a
parte. A dificuldade estava na escolha. Felizmente que nunca me meti a
averiguar como filósofo porque chorava a rapariga, em que pensava o velho, o
que diziam as crianças, o que ia no coração da mãe, que livro lia o artista e
os hábitos e vida íntima da costureira; talvez que, se me desse a esse trabalho,
me reservasse a realidade bem desagradáveis desilusões; por isso o encarregava
todo à fantasia.
Imaginem pois o efeito que as palavras
de Luisita e das companheiras deviam ter produzido no meu espírito, assim
predisposto para concessões desta ordem.
Passeios noturnos, gritos desentoados,
visitas misteriosas, luzes avermelhadas, um casebre solitário, uma velha
decrépita, um gato negro... que preciosidades!
“Ó pobre tia Filomena, que tiveste a
desventura de, mal o imaginando talvez, te revestires de aparências românticas,
és minha presa! já te não livras das garras do romancista, ávido de assuntos,
sequioso de situações, guloso de tipos! Tens a imprudência de seres um tipo e
julgas que hás de ficar assim ignorada e esquecida nas quatro paredes dessa
miserável habitação; cá estou eu para te ir procurar, como o naturalista,
arrancando da concha bivalva o inofensivo molusco e sujeitando-o à sua
classificação. Vou eu também classificar-te. Quero saber a espécie e família da
Fauna romântica a que pertences. E se fosses uma espécie nova!”
Isto pensava eu comigo mesmo, seguindo
caminho de casa, ao passo que tomava vulto no meu espírito o projeto de uma
visita à protagonista dos contos fabulosos que havia muito corriam na aldeia de
boca em boca, assumindo cada vez maiores e mais imponentes proporções.
Outro qualquer, a quem esta mesma
ideia tivesse preocupado, procuraria realizá-la da maneira mais simples,
visitando de dia e sob o primeiro pretexto admissível a mulher que dera azo a
tantas discussões e boatos; mas a fantasia, sob cujo domínio eu me regulava
então, exigia mais. Exigia que a visita se efetuasse de noite, através de
incômodos e perigos, à luz das estrelas, quando piassem todas as aves tristes,
e se passassem tenebrosos mistérios.
Os meus hábitos de comodidades
reagiam, é verdade, contra estas instigações da fantasia; mas não tão
valorosamente que não ficassem vencidos afinal.
Eram pois onze horas da noite, quando,
envolvido misteriosamente numa ampla capa, como os conspiradores no teatro, dei
princípio a esta minha excursão romântico-artística, esforçando-me por não ser
observado, para não excitar curiosidades, sempre fáceis na aldeia e sempre
desagradáveis para quem é objeto delas.
Ora a noite prestou-se voluntariamente
à colaboração do romance; pois se houve noite escura, ventosa, abundante de
nuvens que pareciam montanhas, de clarões sinistros, que semelhavam incêndios,
de ruídos estranhos, que lembravam um pandemônio, foi aquela.
Pouco conhecedor ainda do terreno,
tive ainda a mais a romântica felicidade de me extraviar e, depois de um quarto
de hora de jornada, adquiri a consoladora certeza de que andava errado cada vez
mais longe do lugar a que me dirigia.
No entretanto, o vento redobrava de
violência; acumulou imensas nuvens sobre a minha cabeça e como se umas contra
as outras as espremesse, à maneira de esponjas embebidas, vazou-as sobre mim
com uma quase destruidora impetuosidade.
Debaixo de uma chuva daquelas,
metamorfoseiam-se os países; os mais amenos revestem um aspeto medonho,
tétrico; vales que, vistos à luz do Sol, fariam imaginar idílios e inspirariam
poesias pastoris aos estros mais rebeldes, assumem nestes instantes as cores
sombrias e carregadas que empregavam outrora os poetas épicos para pintar a
entrada das regiões infernais, onde, como complemento de educação, iam uma vez
na vida os heróis das suas epopeias, como hoje vão a Paris os filhos-famílias
de classes abastadas.
Naquela noite, para mim de úmidas
recordações, tudo parecia mudado; revolviam-se torrentes impetuosas, onde
momentos havia se deslizavam regatos: despenhavam-se cataratas, donde pouco
antes caía apenas, sacudida pelo vento, a folhagem seca; profundavam-se lagos,
onde verdejavam lameiros; e as águas, subindo, galgavam as pontes campestres,
tomando-se em restingas, os outeiros em ilhas, e os passeadores noturnos, como
eu, em náufragos ou em Robinsons Crusoés em completa incomunicabilidade com o resto
dos viventes.
Imaginem pois minhas aventurosas
manobras, para me guiar sem bússola através daqueles arquipélagos insidiosos,
no meio daquelas sombras ameaçadoras e claridades pérfidas. Ainda hoje não sei
porque milagre do instinto consegui encontrar-me, depois de muito molhado e
enlameado, no fim da minha jornada e à porta da tia Filomena.
Obra da inteligência é que por certo
não foi; a cabeça tinha abdicado e concedido plenos poderes às pernas que se
não mostraram indignas de confiança.
Estas abdicações são às vezes mais
profícuas do que geralmente se julga.
Achava-me enfim no antro da Sibila; a
Circe ia apresentar-se aos meus olhos, rodeada dos indispensáveis utensílios da
sua arte; em companhia dos animais, colaboradores natos de magias e esconjuros,
e envolvida num a atmosfera de fumo exalado das fornalhas onde se destilam em
retortas e alambiques filtros sutis que envenenam a alma, espécie de venenos de
que os toxilogistas nada puderam ainda saber, e que não figuram em nenhum dos
seus catálogos. A minha imaginação fazia-me esperar, senão absolutamente isto,
pelo menos alguma coisa de análogo. O tipo de Norma, que Walter Scott
imortalizou, embora apequenado por a influência despoetizadora deste século
material, supunha eu ir encontrá-lo dentro da miserável casa, à qual, depois de
muitos trabalhos e perigos, conseguira aportar.
CAPÍTULO
5
A casa da tia Filomena — já que ela
tinha a vaidosa pretensão de assim a denominar — era de umas dimensões que
permitiriam a qualquer homem de menos que mediana estatura e nenhumas
disposições ginásticas trepar da rua ao telhado sem mais auxílio que o dos
braços e das mãos. A porta obrigava a curvarem-se os visitantes menos
corpulentos que lhe transpusessem o limiar e a prestarem assim, numa reverência
forçada, homenagem à hospitalidade, boa ou má, da inquilina. Há portas que
valem um tratado de educação.
Janelas não tinha. Era luxo de
arquitetura esse, que não merecera a aprovação do construtor. Por o mesmo
processo de simplificação suprimira até a chaminé, confiando às inumeráveis
fendas do telhado e das paredes o cuidado de dar ao fumo a conveniente saída.
No seu entender, isto de chaminés era uma espécie de excrescência
arquitetônica, que desviava a arte da pureza primitiva.
Outras muitas reformas introduzira na
construção do edifício o artista, sempre em harmonia com as suas ideias
simplificadoras, tendo só em vista o estritamente necessário e cortando pela
raiz no supérfluo.
Era no século XIX, um fiel reprodutor
da arquitetura das primitivas idades.
A chuva e o mau tempo tinham-me
sugerido um excelente pretexto para reclamar a hospitalidade da tia Filomena.
Numa noite assim, nem uma bruxa
poderia recusar-se a recolher qualquer viandante, surpreendido, como eu, pelas
iras atmosféricas.
Bati por isso à porta e conheci,
vendo-a ceder, que não estava fechada.
Contudo não recebi resposta.
À segunda tentativa não obtive mais
satisfatórios resultados.
Decidi-me a entreabri-la
cautelosamente até que por uma estreita fresta pudesse observar o interior do
aposento.
A primeira tentativa foi baldada, pela
quase completa obscuridade que havia dentro. Afazendo porém a vista ao tênue
clarão que ainda se espalhava do lar, pude enfim conseguir algum resultado.
A pequena área que compreendia o
recinto e a simplicidade da mobília facilitaram-me o exame e cedo adquiri a
certeza de que estava desabitado — a não ser que a inquilina, usando dos
poderes sobrenaturais que lhe atribuíam, se tivesse metamorfoseado nalguma coisa
invisível.
Como a chuva no entretanto redobrava,
julguei conveniente aproveitar-me daquela porta aberta e entrar nos obscuros
domínios da Sibila.
A sala assumia a múltipla função de
quarto de dormir, casa de jantar, de trabalho, cozinha e estufa.
Aí se encontravam as insígnias deste
complicado mister.
Via-se ao fundo, sobre carunchosos
bancos de pinho, a miserável e esfarrapada enxerga, recoberta apenas de uma
manta, cuja primitiva cor poderia ser objeto de longas discussões acadêmicas;
sobre o lar e rodeado de brasas amortecidas, um púcaro de barro negro, como o
que se fabrica nos arredores do Porto, substituía, com algum desapontamento da
minha pane, todas as imaginadas retortas, cadinhos e alambiques; fronteira à
cama, uma avantajada caixa de pinho assumia as importantes atribuições de mesa
de jantar, segundo o fazia crer a broa de milho negro meia partida, a toalha dobrada,
a bilha de água e o serviço de louça, pela maior parte inválido, que a guarneciam.
Duas cadeiras mancas, de aspeto
tristonho e, como um veterano mutilado, ricas talvez só de recordações
passadas, uma roca ainda rodeada de estopa grosseira, um sarilho desguarnecido
e, junto à porta, velhos e ferrugentos utensílios de folha de Flandres, onde
vegetavam cidreiras, armadas, salva, erva da nossa Senhora e outros símplices
de medicina caseira, completavam quase todo o inventário.
Junto do borralho dois pequenos pontos
luminosos de fulgor fosfórico e sinistro me atraíram a atenção. Eram os olhos
do gato negro, que, fitando-me, parecia espiar-me os movimentos com suspeitosa
curiosidade.
No meio desta humilíssima e
despretensiosa mobília, uma só coisa me impressionou.
Sobre o prateleiro — tosca tábua de
pinho firmada em dois longos pregos introduzidos na parede e elevado por a tia
Filomena à categoria de despensa e aparador — divisava-se, ao lado de alguns
objetos indispensáveis ao seu limitado trato culinário, uma fileira de pequenos
embrulhos, de dimensões quase uniformes e cujo papel acetinado contrastava
tanto com o aspeto da miséria daquele recinto como um diamante que se pregasse
nos andrajos esfarrapados de um mendigo.
Do exame desses volumes, uns já
amarelados, outros conservando ainda toda a alvura e nitidez do papel de boa
fabricação, coligia-se haverem sido ali dispostos em épocas sucessivas.
A minha curiosidade pôs-se a fermentar
à vista deles.
Valor, pelo menos estimativo, devia o
conteúdo, qualquer que fosse, ter para a possuidora, que tão cuidadosamente o
resguardava com aparente solicitude, da qual nenhum objeto mais se lhe mostrava
merecedor; mas por outro lado, aquela desassombrada negligência com que os
deixava expostos às vistas, desafiando a curiosidade, que é tantas vezes
prelúdio ao desejo da possessão, esta casa abandonada de noite, esta porta nem
sequer cerrada, contrariavam as minhas conjeturas; a não ser que a tia Filomena
confiasse demasiado na sua pouca popularidade e na repulsão que inspirava, para
temer visitas importunas, sobretudo àquelas horas da noite.
O que seria e donde viera aquilo? —
perguntava eu a mim próprio, sem de mim próprio receber resposta.
Evidentemente não fora da caixa da tia
Filomena que tinham saído as belas folhas de papel velin que envolviam os
misteriosos conteúdos.
Tive tentações de me aproximar, para
os sujeitar a um exame mais minucioso; porém — confessarei aqui uma puerilidade
minha — os olhos do gato fizeram-me recuar. Não sei que a sangue frio se possa
cometer uma ação repreensível, quando um gato nos olha assim. Afinal de contas,
é uma testemunha. Que importa que revele o segredo; mas sabe-o e sempre que vos
vir, rosnará lá consigo — rosnar é o termo próprio — o que quer que seja pouco
lisonjeiro ao vosso caráter.
Não deve ser um martírio horrível
vermo-nos de tal forma compreendidos por um gato e quase na sua dependência?
A mim pelo menos aqueles dois olhos
imóveis e observadores incutiram-me respeito, não tive forças para arrostar com
eles.
Mas onde estaria a estas horas a tia
Filomena?
Luisita havia-me falado de uns
célebres passeios noturnos, em que ela se transformava em luminária; e numa
noite daquelas, a falar a verdade, a coisa tinha pouco de natural e explicável
pelas razões ordinárias que determinam os nossos atos. Não se poderia dizer que
a tia Filomena não tivesse dado motivos justificatórios da reputação que havia
granjeado.
Enquanto eu fazia estas considerações
e completava o meu exame sobre o interior da habitação, onde já começava a
penetrar em grossas gotas a chuva que lhe desabara no telhado, chegou-me aos
ouvidos um ruído particular que vinha de fora.
Antes que eu tivesse tempo de meditar
o plano de qualquer apresentação conveniente, a porta abriu-se... mas em vez da
tia Filomena que eu esperava, entrou, juntamente com uma rajada de vento, que
avivou a chama no lar, um homem todo embuçado num comprido gabão de saragoça,
com longas botas de montar e chapéu de abas largas derrubado sobre a cara. O
aspeto, celeridade de movimentos e repentina aparição deste homem tinham de
fato alguma coisa extraordinária que logo me fez reconhecer nele o personagem suspeito,
cujas visitas tão gravemente desacreditavam no conceito público a tia Filomena.
Em todo ele se revelava certo ar de mistério e um quase receio de ser
surpreendido que imediatamente me impressionou.
Como por instinto, recuei e,
envolvendo-me nas sombras do mais escuro canto da sala, observei, sem ser
observado.
O homem, sempre rápido e cauteloso,
aproximou-se do prateleiro onde a longa fileira, dos tais embrulhos se.achava
disposta e parou alguns instantes, como que a enumerá-los.
A ideia que neste momento me passou
pelo espírito foi pouco lisonjeira para o misterioso personagem que de um modo
tão inesperado se havia introduzido na mesma casa onde, também não pouco
estranhamente, eu me encontrava àquelas horas.
Imaginei-o um ladrão e agourava mal do
destino dos tais objetos assim deixados em absoluta indefensão pela possuidora.
Mas, no momento em que já estava
meditando a maneira de intervir para me opor a esta repugnante infração das
leis de propriedade, o homem, depois de sacudir lentamente a cabeça e encolher
os ombros — sinal inequívoco de profundas reflexões mentais — tirou do bolso um
volume em tudo igual aos já existentes e, pousando-o ao lado deles, saiu da
sala com a mesma presteza com que o tinha visto entrar.
Isso acabou de me surpreender. Eu já
não estava muito longe de crer piamente nas revelações de Luisita e abjurar, na
presença desta cena misteriosa, a minha antiga incredulidade.
Os espíritos fortes sofrem em casos
assim abalos formidáveis. Eu achava-me em tais disposições de ânimo que já imaginava
encontrar o que quer que era sobrenatural nos sons que naquele momento
produziam: o vento pelas fendas inumeráveis da casa, a água a ferver sobre o
lar, o respirar ruidoso do gato, e o cair cadenciado da chuva, filtrada através
do telhado.
CAPÍTULO
6
Momentos depois, novamente escutei o
ruído de passos, mas desta vez vagarosos e trôpegos, e as minhas vistas,
seguindo a direção da porta, encontraram, destacando-se no fundo escuro do
limiar, a figura pálida e macilenta da tia Filomena. Trazia na mão direita um
pequeno lampião, que era provavelmente ao que se reduzia a tão comentada
luzinha do monte. Achava-me na presença da bruxa do pinhal!
A divindade descera enfim ao templo.
A posição que eu continuava ocupando,
envolvendo-me numa quase completa escuridão, evitou que a tia Filomena me
descobrisse logo ao entrar.
— Isto é um dilúvio! — dizia ela
consigo, fechando a porta. — E agora a lenha assim molhada vai-me sufocar com o
fumo.
E aproximando-se do lar, deixou cair
do avental, que trazia sobraçado, um montão de lenha miúda, que provavelmente
andara toda a noite apanhando no pinhal.
O gato, vendo a sua senhora próxima de
si, soltou um grunhido surdo, e, curvando desmesuradamente o dorso, começou a
espreguiçar-se com voluptuosa languidez.
— Olá, Fusco! — disse a tia Filomena,
batendo-lhe amigavelmente na cabeça. — Então estás com frio, meu velho? Deixa
que te vou acender uma fogueira que nem para um magusto.
E enquanto escolhia a mais seca lenha
da regaçada que pudera obter nas suas explorações, a velha, com a tal voz de
que eu já falei, pôs-se a cantar — cantar aquilo! — uma cantiga usada nos
arredores e cuja letra extravagante e até burlesca, conhecida talvez de muitos
dos meus leitores, dizia assim:
— Donde vens, ó velha?
— Venho do eirado.
— Que trazes na cesta?
— Bacalhau salgado.
— Ai, oh! ai, que eu morro,
Que
estou para morrer,
Nos
teus braços, linda,
Bem
pudera ser,
Bem
pudera ser,
Ó
meu bem.
E este em prolongava-se numa nota
indefinida, nasal, monótona, rouca, desafinada e melancólica, que nem eu posso
descrever o efeito que me produzia.
A ária, a cantora, o lugar, as meias
trevas que ali reinavam, o adiantado da noite, e a tempestade lá fora num
crescendo furioso, tudo concorria para me impressionar desagradavelmente.
E no entretanto estava dando tratos à
imaginação para descobrir a maneira mais conveniente de fazer junto da tia
Filomena a minha apresentação em forma.
A cantora continuava sempre na mesma
toada e estribilho.
Depois levantou-se para avivar com os
dedos a luz do lampião, que suspendera num prego da parede. Quando de novo ia
entregar-se ao trabalho interrompido, deu de repente com os olhos em mim e
involuntariamente recuou por um movimento de surpresa.
Fui por isso constrangido a
apresentar-me.
— Tia Filomena — disse adiantando-me —
a noite surpreendeu-me no pinheiral e com a noite a trovoada; passei por aqui,
vi a porta aberta, umas brasas no lar e não pude resistir-lhes. Peço desculpa...
Enquanto eu falava, a tia Filomena
medira-me com os olhos de alto a baixo e imediatamente se lhe desvaneceu no
rosto a primeira expressão de espanto, que se manifestara ao ver-me.
Foi já com a voz cheia de segurança e
de completa impassibilidade que me respondeu:
— Fez bem; era uma imprudência
meter-se assim ao caminho. Aquilo nas azenhas está um mar. E para quem não
conhece os sítios, tanto pior. O que eu sinto é ter tão má casa para o receber.
Em seguida, foi a um canto procurar a
menos manca das duas únicas cadeiras que possuía, estendeu-lhe em cima uma
velha, mas lavada toalha de linho, e, oferecendo-ma, acrescentou:
— Faça o favor de se sentar e perdoe.
— Obrigado, tia Filomena, não se
incomode pela minha causa. Continue no seu trabalho. Estava a escolher a lenha,
peço-lhe que continue.
— Então, se me dá licença... E que, vê
o senhor? — prosseguiu ela, deitando-se de novo ao serviço — esta lenha assim
úmida levanta um fumo que sufoca a gente. É preciso primeiro chegá-la ao ar do
lume para a secar. Não tem dúvida, que por hoje pouca me é precisa já. Sabe o
senhor? Cá a gente prepara depressa os seus cozinhados, não temos vagar para
temperos. Uma fervura faz um caldo, um cinzeiro coze um ovo, um tijolo quente
assa uma sardinha ou uma febra de bacalhau. Eh! eh! eh! É que nós também não tínhamos
tempo para mais. Não se vive para cozinhar, cozinha-se para viver. Não é assim?
Lá os senhores foram criados noutra educação, não admira. A desgraça está
quando se nasce pobre e se tem gostos e vaidade de rico. É a perda da criatura.
E, fazendo esta reflexão, a velha, que
aliás não mostrava primar em laconismo, calou-se por algum tempo, parecendo
absorvida por um pensamento doloroso.
— Mas, tia Filomena, o seu sistema de
fazer provisão de lenha é que me não parece dos melhores — disse-lhe eu passado
tempo. — Não lhe era preferível para isso a luz do Sol à desse lampião que nada
ilumina?
A tia Filomena meneou a cabeça ao
ouvir-me.
— O senhor diz bem. Mas não sabe que
de dia estão todos estes caminhos por aí cheios de rapaziada, que me não deixa
em sossego. Crianças, coitadas! Mas quando se tem sessenta e quatro anos, como
eu, a paciência vai fugindo e nem sempre se ouvem com a humildade que Deus
manda as injúrias, mesmo que venham da boca das crianças. Melhor é fazer por
não ouvi-las. De noite deixam-me ao menos em paz. Se todos têm medo de mim! Vê
o senhor? Por coisa nenhuma do mundo, pessoa destes arredores quereria entrar,
como o senhor entrou, na casa da tia Filomena, e então a que horas! Logo que vi
aqui gente, conheci que era de fora da terra.
— E donde provém esse medo?
— Ora! pois não sabe que me chamam a
bruxa do pinhal? Eh! eh!
Havia neste riso um fundo de tristeza,
que me compungiu.
— Contudo, tia Filomena, faz mal em
deixar assim desamparada esta casa; da mesma maneira que eu entrei, outros o
podem fazer...
— Que entrem; não serei eu que lhes
feche a minha porta. Nunca a fechei em tempos mais felizes, quando me podia
recear dos maus; hoje, seria uma loucura.
— Mas olhe, tia Filomena: vou
dizer-lhe uma coisa.
— Diga.
— Quando eu me aproximava, pareceu-me
ver sair daqui alguém que, pela figura, mostrava ser um homem corpulento e de
aspeto suspeitoso — disse eu, não querendo revelar ainda de todo a cena que
presenciara.
Ao ouvir estas palavras, a tia
Filomena desviou os olhos na direção do prateleiro e fixou-os por algum tempo
na fileira dos pequenos embrulhos que me tinham já por vezes atraído a atenção.
— Ah! mais outro! — disse ela a meia
voz, ao passo que se lhe desenhava nos lábios um sorriso amargo e quase
sarcástico — continuam! eles se cansarão. — E voltando-se para mim: — Viu sair
há muito esse homem?
— Haverá alguns minutos.
— Só eu o não hei de ver um dia?
queria dizer-lhe... — E de repente, como fugindo à corrente de pensamentos que
a arrebatava, continuou em tom muito diverso: — Sempre está um tempo! Louvado
seja Deus! Parece que arrebentou alguma nuvem. O senhor há de vir muito
molhado. — E, ato contínuo, apalpando-me a roupa, acrescentou com uma
exclamação de surpresa pouco melodiosa: — Santo nome de Jesus! vem num lago!
chegue-se aqui mais para junto do lume!
— Deixe, tia Filomena, deixe; isto não
me faz mal nenhum.
— Que diz? Há lá coisa como a roupa
molhada no corpo? — E um reumatismo certo. A água é inimiga dos ossos —
acrescentou ela em tom aforístico. Eu observei-lhe:
— Pois olhe, tia Filomena, hoje usam
os médicos lá por a cidade mandar tomar aos doentes banhos de chuva, até para
moléstias dos ossos, se me não engano.
A tia Filomena encolheu os ombros.
— Isso... os médicos de hoje! Olhe,
senhor — continuou ela, avivando pelo meu respeito a labareda no lar — eu bem
sei que sou uma ignorante; mas toda a minha vida vi tratar as bexigas com
agasalho e chás para fazer suar; por que, vê o senhor? com o suor saem cá para
fora todos os maus humores e o veneno que anda na massa do sangue. Pois, senhores,
não mandou o médico da minha terra, o Senhor lhe perdoe, abrir as janelas e
arejar o quarto de um pobrezinho que estava com bexigas! Em termos de elas se
assanharem, que foi afinal o que aconteceu. Por isso dizem... Eu cá, olhe, vê
aquelas panelas? Aí está a minha medicina. A gente há de morrer quando tiver os
seus dias contados e os médicos não servem senão para fazer uma pessoa gastar dinheiro.
Este ceticismo médico da tia Filomena
era talvez o único ponto pelo qual ela se podia dizer uma pessoa da sua época.
Ainda assim, com uma diferença importante, é que nela esta descrença
sobreviveria ao menos, creio eu, aos prelúdios da mais insignificante
indisposição.
— Mas, tia Filomena — disse-lhe eu
aproximando-me do fogo — Deus manda-nos olhar pela nossa saúde e então...
— É fazer por não estar doente, é
fazer por não estar doente, porque depois o remédio é entregarmo-nos nas mãos
do Senhor. Sai para acolá, Fusco — acrescentou ela, desviando o gato, que se
lhe viera roçar voluptuosamente pelo vestido; e daí a pouco:
— Quer o senhor um chá de cidreira?
— Agradecido, tia Filomena.
— Olhe que ainda tem que ir para
longe.
— Pois sabe onde eu moro?
— O senhor é o hóspede que chegou há
dias à quinta do senhor beneficiado; não é?
— Exatamente.
— Logo me pareceu. Não sei como se
meteu ao caminho com uma noite destas.
— Fui à caça e...
A velha pôs-se a olhar em roda
significativamente e fez-me compreender que tinha dito uma tolice. Andar à caça
com uma simples vara de castanho, um longo capote e àquelas horas, era de fato
uma esquisitice inexplicável. Emendei o melhor que pude o desacerto,
acrescentando:
— Enviei a arma para casa por o criado
e, persuadindo-me que conhecia melhor os caminhos, perdi-me.
— A caça é um mau divertimento — disse
a tia Filomena, dispondo o braseiro para a operação culinária. — Já têm
sucedido muitas desgraças por causa dela. Um tio meu, que Deus tenha em glória,
aliás muito bom cristão e temente a Deus, ia fazendo uma morte por via da caça.
Muitas vezes lho ouvi eu contar, quando era pequena. Andava caçando ele e um
primo, que depois foi para o Brasil, e lá casou — e por sinal que não encontrou
a felicidade que esperava; era já quase noite, e tinham-se separado um do
outro, quando meu tio, ao atravessar uns campos, julgou ouvir o rumorejar de
folhas nuns silvados vizinhos e, suspeitando ser caça escondida, preparou a
espingarda e aproximou-se; mais perto, pareceu-lhe ver por entre as folhas
bulir uma coisa escura, e ainda que pelo adiantado da hora não pudesse bem
afirmar-se, não teve dúvida que seria alguma ave e, fazendo pontaria,
preparava-se já para disparar: quando viu sair detrás do silvado, onde se
escondera para lhe meta um susto, o primo que lhe gritou: — Ai, João, que me
matas! — O meu tio deixou cair logo a arma e ficou como morto. Pois desde então
nunca mais o viram caçar. E muitas vezes dizia, ainda me lembro bem, que nem
com armas vazias era prudente brincar; porque o demo é capaz até de carregar
uma tranca.
Passado algum tempo de meditativo
silêncio, a velha acrescentou:
— E depois que mal nos fazem os
passarinhos do Senhor? — E dizendo isto, estendia na pedra quente do lar duas
sardinhas que deviam constituir a parte principal da refeição da noite.
— A tia Filomena tem razão; mas também
que mal nos faziam as pobres sardinhas que se vão agora tostar nesse brasido e
que já exalam daí um cheiro que me faz crescer água na boca?
— Apetecem-lhe?
— Convidam.
— Estão às suas ordens.
— Agradeço, mas a tia Filomena tem-nas
para a ceia e eu não quero...
— Graças a Deus que ainda ali estão
mais. — E, sem esperar nova observação da minha parte, estendeu ao lado das
duas já meio assadas outras curvas e azuladas, que pareciam, segundo a frase
das vareiras, ainda a saltar vivas.
E dentro de alguns minutos achava-me
eu ao lado da tia Filomena, participando da sua mais que sóbria refeição.
Não há nada para aumentar a intimidade
entre duas pessoas como um repasto em comum.
O estômago é um grande conciliador;
tem um poder persuasivo tal que poucos corações lhe resistem, quando ele prega
a concórdia — o que sempre faz estando satisfeito. Cedendo pois à familiaridade
que pouco a pouco entre nós se estabelecera, perguntei à tia Filomena
pormenores do seu modo de viver atual.
— A minha vida conta-se como um
Padre-Nosso rezado. Fio, apanho lenha e farrapos e com isso vou vivendo. Não é
preciso muito para uma mulher da minha idade se sustentar, e por isso...
— E está há muito nesta terra?
— Há cinco anos.
— Até aí onde residia?
Em vez de me responder, pôs-se a olhar
para mim daquela maneira particular às pessoas abstratas, que nos dá a
conhecer, sem ilusão possível, a nenhuma atenção que prestaram à pergunta.
— Veio de longe para aqui? — insisti
eu.
— De muito longe.
— Admira como nessa idade ainda se
resolveu a mudar de terra. De ordinário há raízes a prenderem-nos aos lugares
onde nascemos e onde passamos os nossos primeiros anos, e é sempre doloroso
cortar pelas raízes.
— E, é, mas...
Há reticências que são mais
definitivas do que um ponto final. Tudo está em lhes dar cena modulação, como
aquela que eu ouvi neste momento à tia Filomena.
Percebi que por esse lado se me
fechara a porta a indicações ulteriores e tomei outra direção.
— Então é esta toda a sua morada?
— Como vê. Aqui durmo, aqui janto,
aqui trabalho e aqui hei de morrer.
— Quem sabe?
— Sim, quem sabe: diz bem o senhor.
Mal pensaria eu há seis anos que tão longes terras me tinham de guardar os
ossos.
A melancolia da observação conseguira
até disfarçar aos meus ouvidos o timbre desagradável daquela voz.
Pus-me a olhar para esta mulher por
algum tempo em silêncio. Suspeitava que ela devia ter sofrido no passado, mas
havia naqueles lábios uma espécie de enérgica constrição, que me tirava a
esperança de poder extrair de lá o menor segredo, se segredo houvesse.
Levantei-me e comecei a passear no
quarto. Ela conservou-se sentada, de braços cruzados, balanceando o corpo com
vagaroso movimento e como sem consciência da minha presença ali. Parei, com
intenção, diante do prateleiro que tanto me excitava ainda a curiosidade.
Esta tática da minha parte não me
valeu porém mais satisfatórios sucessos.
— Tia Filomena! — exclamei enfim ex abrupto, impacientado já com tanta indiferença.
— Senhor?
— Este papel vem de longe?
— Que papel?
— O destes pequenos volumes.
— Ah!
Pareceu-me alguma coisa embaraçada com
a pergunta e respondeu, suspirando:
— Nem eu sei...
— São por certo objetos da cidade;
encomendas, não!
— Talvez...
Olhei para ela, fingindo uma surpresa
que estas hesitações e respostas ambíguas me tivessem causado; ela acrescentou:
— Da cidade vêm, mas... não
encomendados.
Na maneira porque pronunciou aquele —
encomendados — adivinhava-se um pensamento oculto, que não pude porém
determinar.
— Aí tens, Fusco — disse ela em
seguida, dando ao gato os restos da nossa modesta refeição. — Vá, hoje podes
regalar-te.
Depois, chegando à porta, continuou:
— Felizmente que já lá vai o mau
tempo. O vento virou ao norte.
Maneira muito delicada de dar a
entender que iam sendo horas de terminar a minha visita.
Aceitei a advertência.
— Tia Filomena — disse-lhe eu — é
tempo de me retirar; mas não posso consentir que a minha visita lhe fique sendo
pesada. As suas posses não são grandes, consinta-me por isso que eu remunere...
A tia Filomena fez um gesto com a
cabeça, respondendo:
— Eu sou de uma família pobre, mas na
qual se ensinava às crianças a não vender a hospitalidade. — E depois,
sorrindo, acrescentou: — São costumes de soberba que trouxe para a desgraça.
Muito boas-noites, meu senhor, e Deus o guie.
— Mas, tia Filomena...
— Adeus, adeus. E olhe se vai cair,
tenha cautela.
Não havia que lutar da minha parte;
correspondi-lhe às boas-noites e pus-me a caminho de casa.
CAPÍTULO
7
Bonito! — dizia eu comigo mesmo
enquanto ia vencendo o K melhor que podia as sucessivas dificuldades que
parecia de momento para momento surgirem-me debaixo dos pés. — Passo uma hora
na presença desta mulher enigmática, suspeito-lhe um segredo, vejo que há na
existência dela um mistério, e retiro-me sem ter penetrado este caráter, sem
haver decifrado este enigma. Quando hei de eu ser observador?
A balda dos rapazes naquele tempo eram
estas aspirações a profundos conhecedores do coração humano. Deus perdoe a
Balzac, que foi o autor involuntário dessa mania, que afinal de contas não
passava de impertinente. Todo o adolescente imberbe se considerava talhado a
molde para analista do coração, e colocava-se diante de qualquer pessoa com o
sobrecenho contraído, o olhar fixo e o ar gravemente sisudo que caracteriza o
observador pur sang.
Dessa época data o uso imoderado das
lunetas, não reclamadas por defeitos visuais, mas como emblema de espírito
analítico e investigador.
Um suposto estudo de caracteres era o
que mais tempo absorvia aos rapazes nas universidades e nas academias.
Pospunham-se, com grande desespero dos professores, os Laplaces, os Savignys,
os Says, os Richerands e os Hufelands, ao Balzac, George Sand e a todos os
romancistas da escola filosófica.
Eu andava um pouco imbuído do mal da
época; para que hei de negá-lo? Não obstante nunca ter sido dos mais crentes
nesses tais olhares, com privilégio de estiletes, que vos vão direitos ao
coração, para desalojar debaixo da mais imperceptível prega onde se aninhara o
vosso sentimento predominante, a mola oculta do vosso caráter; adotara contudo
também as minhas teorias a tal respeito, tão boas como outras que ouvia
expender nas mesas de mármore e no seio da atmosfera asfixiante dos nossos
botequins. Por vezes até cheguei a querer realizá-las na prática.
Aí porém é que me esperavam grandes desilusões,
que foram pouco a pouco abalando o aparatoso edifício da minha ciência do
coração humano.
De cada vez que ensaiava o poder
perscrutador do meu olhar nas menos dissimuladas criaturas do Senhor, chegava a
resultados realmente pouco de animar, verdadeiros disparates que devera
registrar aqui para instrução e experiência dos leitores. Porque sabido é que
os disparates também encerram instrução.
Uma das minhas derrotas mais completas
acabava de experimentá-la na presença da tia Filomena; e o mau humor que
resultara daí seguira-me até casa, onde cheguei depois da meia-noite.
Deitei-me descontente comigo e incapaz
de tudo que não fosse adormecer. Quando porém me dispunha a realizar esta única
aptidão racional que sentia naquele momento, uma visita me impediu.
Junto do meu quarto dormia o filho
morgado da hospitaleira família que me acolhera em casa; este rapaz, meu antigo
condiscípulo e em quem a tal bossa da análise do coração humano possuía também
um desenvolvimento extraordinário, era ainda a mais sujeito a insônias; e por
isso, percebendo-me no quarto, vestiu à pressa o robe-de-chambre e veio
visitar-me.
— Então ainda agora?! — disse ao
entrar e com maneira de admirado. — Que diabo fizeste tu até estas horas numa
terra selvagem como é o meu pátrio ninho? Aposto que os olhos de alguma
patrícia...
— Adivinhaste. A causa da minha demora
foi uma patrícia tua — de adoção pelos menos.
— Ainda Luisita?
— Não; e desde já te previno que te
não dês ao trabalho de querer adivinhar, porque nada consegues.
— Porque nada consigo! Mas se eu me
sinto habilitado para te fazer inventário completo de todas as mulheres em
circunstâncias de se apanhar por causa delas um reumatismo para o resto da
vida?
— Ainda assim.
— É singular!
— Olha, não quero abusar da minha
posição. A mulher por quem me sujeitei aos rigores desta endiabrada noite foi a
tia Filomena.
— Quem é a tia Filomena?
— A bruxa do pinhal.
— Estás a gozar?
— Venho de casa dela, onde ceei.
— E que diabo foste lá fazer?
— Estudá-la.
— Ah! e então? — disse o meu amigo com
um tom de voz que mostrava achar de sobra justificada a minha excentricidade
por um motivo daqueles.
— O resultado da empresa fez-me
lembrar de quando dantes, nos nossos tempos de estudante, me sentava à banca
com firmes tenções de me pôr ao fato da lição do dia seguinte, e afinal, sem
bem saber como, ia-me deitar, deixando a pobre intacta, como a procurara.
— Pois olha, eu já estudei essa mulher
e tenho o meu juízo formado a respeito dela.
— Ora pois, vamos lá a ver isso. Mal
sabes como eu estimo sabê-lo. Começa.
O meu amigo acendeu um charuto,
recostou-se na cadeira, elevou os pés à altura do fogão e expôs-me assim o
resultado do seu estudo:
— O coração do homem...
— Perdão — disse eu interrompendo-o —
poupa-me a dissertação sobre o coração do homem em geral e limita-te ao da tia
Filomena em particular, que já é bastante.
— Seja. A tia Filomena — continuou ele
— ficou definida por mim depois de alguns momentos de observação. Regra geral,
quando às aparências da miséria vires associadas as precauções da riqueza, a
desconfiança que acompanha a possessão, a reserva do egoísmo, acredita que uma
única solução pode ter o problema do caráter do indivíduo em quem se observa
esta, deixa-me assim chamar-lhe, antinomia de manifestações.
— Chama-lhe o que quiseres e continua
— disse eu bocejando.
— O sentimento que nele predomina —
continuou o meu amigo — deve ser de natureza a bastar a si mesmo para a sua
satisfação total, a tirar de si os meios de a realizar. Não aspira a
irradiar-se; pelo contrário, tende à concentração; não é o farol que transmite
em roda de si a luz a distâncias longínquas, é o revérbero que reflete os raios
do foco para o foco donde partiram. O orgulho deleita-se em observar com o
olhar de águia tudo quanto lhe fica inferior; a glória folga de ver o reflexo
do seu esplendor nos rostos extasiados; o amor é um som que reclama um eco...
mas há um sentimento que dispensa o concurso, que busca a solidão, que
intencionalmente semeia em volta de si as aversões — é a avareza...
Eu nesta passagem adormeci e não sei
por isso até que ponto o meu amigo levou à evidência aquela suposta qualidade
da tia Filomena.
Sinto-o por não poder registrar aqui
uma bem elaborada dissertação metafísica, que só poderia pecar em exatidão e
mais nada.
CAPÍTULO
8
Não foi porém impunemente que arrostei
na véspera com a intempérie de uma noite ultra-romântica.
Na manhã do dia seguinte acordei
rouco, a ponto de julgar prudente não sair de casa.
Ao meio-dia encontrei-me com Luisita,
por aquele tempo empregada em não sei que serviço campestre na quinta onde eu
residia.
— Bons-dias, Luisita, — disse-lhe eu —
vê o resultado da feitiçaria? Estou rouco. O bruxedo atacou-me a garganta.
— Que quer dizer?
— Que visitei ontem à noite a tia
Filomena...
— Ora!
— Palavra de honra, e até me deu de
cear com a melhor vontade deste mundo.
— É impossível que se atrevesse...
— Posso jurar-lhe.
— E que viu lá? — perguntou a
rapariga, fitando-me aterrada.
— Ora o que vi? A casa de uma pobre
mulher que vive a mais santa vida deste mundo, ela e o seu gato, animal de
hábitos caseiros, muito amigo do borralho e que para diabo me parecia bem
morigerado.
— Então não viu o cabo da vassoura?
— A falar verdade, tanto não reparei;
mas também, se isso é prova de feitiçaria, aposto que nem a Luisita se salva?
Ela riu-se.
— Olhe: quer então que lhe diga o
único objeto menos natural que descobri em casa da tia Filomena?
— Foram as cartas?
— Não. Ela não costuma dar partidas.
— Foram...
— Foram uns embrulhos de papel fino e
do mais fino, postos em carreira sobre um pobre prateleiro de pinho. Eram, pode
dizer-se, a única riqueza da casa.
— Ah! pois não sabe o que isso é?!
— Eu não.
— São os novelos!
— Os novelos?
A expressão da fisionomia com que
Luisita acompanhou aquela palavra foi tal que, não obstante eu não lhe
compreender bem a verdadeira significação, não pude deixar de pela minha parte
manifestar quase igual estupefação.
— Mas que novelos?
— Que novelos? Os dela. Pois não sabe
que as bruxas têm todas uns novelos?
— Ah! não sabia. E para que querem
elas isso?
— É que todo o seu poder está ali e
quando morrem...
— Ah! então as bruxas também morrem?
— Morrem, sim, que dúvida.
— E então que fazem elas quando
morrem?
— Deixam os novelos às pessoas que mais
estimam.
— E é boa ou má a herança?
— Deus nos livre dela.
— E por quê? morre-se também?
— Nada, não senhor.
— Então?
— Fica-se sendo feiticeiro e...
— E acha isso mau?
— Está a brincar?
— Eu pela minha parte não se me dava e
Deus queira que a tia Filomena se lembre de mim no testamento.
— Que diz, que diz; não repara que
está dizendo um pecado?
— É ver como a tia Filomena lhes quer,
aos tais novelos, que tão resguardados os traz.
— Se neles está todo o seu condão.
— Mas, por outro lado, sai de noite e
deixa-os assim tanto à vista que tentam os mais escrupulosos. Eu confesso que
se não fosse o gato...
— Quem se atreveria a tocar-lhes? Não
que só a vista deles faz tremer.
— Eu não tremi.
— Ora! se os senhores são hereges!
Esta reflexão tapou-me a boca.
Luisita deixou-me para ir contar às
amigas que a tia Filomena tinha uns novelos, que eu os vira e que só de os ver
ficara sem fala, a ponto de ainda me achar rouco; e à semelhança das vizinhas
de que fala o La Fontaine, as ouvintes divulgaram a história de maneira que,
pouco tempo depois, me voltou aos ouvidos debaixo da seguinte versão e tão
transfigurada, que me custou a reconhecê-la.
A tia Filomena tinha uns novelos —
isso era ponto incontestado. Uma noite, passeando eu pelos campos, fora atraído
para casa dela por um cantar de sereias e por uma corça da alvura da neve; a
corça andava, andava, e eu, cego com tanta beleza ia-a seguindo por montes e
vales, por abismos e ribanceiras, como se tudo fora planície, até que à entrada
da casa o canto das sereias transformou-se de repente numa surriada infernal e
num frenético bater de palmas, que atordoava; a corça metamorfoseou-se ao mesmo
tempo num gato preto que me saltou ao gasnete e logo um bando de feiticeiras
começou a dançar em volta de mim uma valsa diabólica. Eu caí logo a dormir, já
se sabe, e elas então a envolverem-me com o fio dos tais novelos e com uma
pressa que metia medo. Era porque antes da meia-noite devia a tarefa ficar
pronta e eu todo envolvido no fio, e a servir de núcleo àquela espécie de
monelho. Então seria a morte certa, e elas poderiam à vontade sugar-me o
sangue, do qual, pelos modos, tinham grande apetência.
Mas, por felicidade minha, no momento
em que davam uma volta ao fio — alguém dizia até ser a penúltima — soou a
meia-noite e o encanto terminou. O fio partiu com um estampido que parecia de
uma bomba, houve o fumo e cheiro de enxofre do estilo, o gato preto fugiu por a
trapeira, as feiticeiras desapareceram feitas em morcegos, a tia Filomena caiu
redonda no chão e eu achei-me num pântano, metido em água até ao pescoço e sem
fala!
Um pobre homem que passava tirou-me do
atoleiro, mas quase em perigo de vida. O que ninguém dizia era quem tinha sido
esse pobre homem que passava; razão pela qual não pude manifestar-lhe o meu
eterno reconhecimento, como fora do meu dever. Alguns acrescentavam ainda, à
laia de moralidade, que o motivo destas minhas desventuras fora a incredulidade
que professara na véspera a respeito de bruxas e feitiços. À pessoa de cuja boca
recebi esta edição, correta e aumentada, da minha aventura noturna, tentei
debalde fazer compreender toda a escandalosa falsidade dela. Quando negava,
respondiam-me, sorrindo, que a memória não conserva estas coisas, sem que por
isso elas deixem de ter existido. Contra tal modo de argumentar, não valiam
objeções.
Cumpria-me pois resignar com o papel
que me tinham distribuído naquela espécie de mágica de grande aparato e
revestir-me das romanescas aparências de Roberto de Normandia, de endemoninhada
memória.
Não era feio e tornava-me no herói da
terra; porém custou-me haver assim involuntariamente concorrido para aumentar a
má reputação de que havia muito gozava a tia Filomena, a qual desde então ficou
sendo universalmente odiada em todas aquelas freguesias circunvizinhas.
Passaram-se quase duas semanas de
continuado inverno, durante as quais raras vezes saí, e essas apenas para casa
do boticário, onde me divertia a ouvir da boca dele, como novidades, coisas que
tinham já envelhecido antes de eu partir da cidade; bem como profundas
considerações suas sobre o destino das nações europeias. Este boticário era um
decidido amante da ordem, e professava por os perturbadores do equilíbrio
político um ódio francamente cordial. Eram dignas de se ouvir as expressões
virulentas e as frases acerbas de que se servia então.
Em matéria de revoluções pensava que
as piores eram as que procediam de baixo para cima. À de França chamava-lhe um
escândalo de sangue e de horrores; em relação ao poder temporal do Papa dizia:
que o melhor era não bulir no que está quieto; lá os seus homens eram
Palmerston, Palmela e o general Concha, este — por acabar com a patuleia —
palavras suas. Falava vagamente na dificultosa questão do Oriente, a qual,
segundo ele, se poderia resolver por um plano que nunca pude conseguir que me
revelasse; a respeito da Polônia, muitas vezes lhe ouvi dizer: assim o
quiseram, assim o tenham, frase sibilina que igualmente nunca desenvolveu.
Meses depois dos sucessos que vou
narrando, indo visitá-lo, encontrei-o muito entusiasmado com o engrandecimento
das raças latinas, ao qual, à semelhança de grandes capacidades políticas,
filia ainda hoje todos os acontecimentos e que, segundo ele, é o pensamento
reservado de Napoleão. Palmerston, que para este seu entusiasta ainda vive, promete
sério apoio, sem o qual nada se faria, impondo só, como condição, a anexação da
Dinamarca à Inglaterra.
Esta última novidade, cujo interesse
político os leitores devem apreciar, e na qual o homem depositava a mais
fervorosa crença, viera-lhe, disse-me, de origem fidedigna.
Não sei se me será fiel a memória para
poder reproduzir aqui na íntegra o substancioso diálogo travado desta vez entre
mim e este sábio diplomata.
— Verá! verá! — dizia-me o homem,
aviando dez réis de farinha de linhaça a um freguês. — O ponto está que eles
queiram. As raças latinas hão de tomar o lugar que lhes compete.
— Não duvido.
— É certo. Napoleão III disse que
havia de deixar assinalado o seu império por essa grande obra.
— Mas como entende o senhor o
engrandecimento das raças latinas?
— É que tudo isto há de vir a formar
três grandes impérios: a França com a Bélgica e a Holanda; a Itália governada
toda pelo Papa; e Portugal, ao qual se há de dar a Espanha e restituir o
Brasil.
— Bonita combinação! E para quando
será isso?
— Não sei; mas fala-se em que Napoleão
disse ao seu ministro: Meu duque...
— Que duque era esse?
— Um dos ministros...
— Adiante.
O meu interlocutor pelos modos fazia
duques natos a todos os ministros.
— Meu duque, o ano que vem há de
presenciar grandes acontecimentos.
— Real Senhor! — respondeu o ministro
— saiba vossa majestade que aqui estamos nós para cumprir as suas ordens. E
então o imperador, batendo-lhe no ombro, disse-lhe: — Conto convosco!
— É importante essa notícia, mas que
pensa disso Palmerston?
— Palmerston escreveu uma nota ao
embaixador em Paris, na qual lhe dizia: “My lord. A Inglaterra não corta as
asas às legítimas aspirações dos povos, enquanto elas não espezinham os seus
direitos de nação livre. Sede prudente e deixai marchar o progresso, Deus vos
guarde.”
— E o embaixador em vista disso...
— Em vista disso, limitou-se a
reclamar a anexação da Dinamarca, por causa do equilíbrio.
— E consegue-a?
— Decerto que sim. Eles não querem
descontentar o velho lord. De uma vez, no conselho de ministros em Paris, houve
quem dissesse, falando de Palmerston: Ora deixem lá o bom do homem; daquela
idade só mete medo a crianças. E sabe o senhor o que disse o imperador?
— Eu não.
— As velhas raposas, meus senhores,
são as mais ardilosas e atrevidas.
E comunicando-me esta profunda
sentença de Napoleão III, que não sei porque via privativa lhe chegara ao
conhecimento, o meu interlocutor, piscando os olhos, assumia um ar de completa
aquiescência, que devia lisonjear Palmerston, se o tivesse observado.
Nisto interrompeu o discurso de
polícia transcendente, para pesar meia onça de raspa de veado, e onça e meia de
óleo de rícino, e depois continuou:
— Muito se há de ver em pouco tempo! O
latim há de deixar de ser língua morta.
— Ah! pois ainda viremos a falar
latim!
— Decerto. Isso depois é questão de
anos. Em França já se estão organizando os estudos dos liceus nesse sentido.
— Não será então mau irmos desde já
recordando o há muito abandonado Novo Método!
— Abandonado? Não por mim que nunca
dei de mão ao estudo dos clássicos latinos.
Era esta outra corda sensível do pobre
homem; supunha-se um profundo latinista, não obstante as continuadas silabadas
com que deixava a escorrer sangue a língua de Cícero e de Virgílio.
Desculpe-se-me a ambiguidade da expressão.
Depois passou a convencer-me dos erros
de palmatória que tinha cometido o general Mac-Clelan nas campanhas da América;
falando de Garibaldi, chamou-lhe um troca-tintas, e a respeito do México,
disse-me, abanando a cabeça com ar ponderoso: Eles hão de pagar o que fizeram
aos cristãos. — Como se vê, da latitude do México por diante começava a reinar
grande cerração nas ideias do nosso diplomático.
Foi na instrutiva conversa deste
ilustre pensador que passei algumas horas dos quinze dias chuvosos e escuros
que sucederam ao da minha visita à bruxa do pinhal.
CAPÍTULO
9
Uma tarde, em que o aspeto do céu se
mostrava já mais favorável, e uma extensa zona de púrpura, prenúncio certo de
favoráveis reformas meteorológicas, tingia todo o Ocidente, onde o Sol acabava
de mergulhar-se, dei maior latitude ao meu passeio, estendendo-o até o ponto
principal de reunião das raparigas. Fui-as encontrar juntas em grupo, voltadas
para o lado do monte e aparentemente empenhadas numa discussão, que prometia
ser interessante.
Aproximei-me.
— Nada, nada — dizia uma, como em
conclusão dos argumentos que extensamente acabara de expender — aquilo foi
decerto coisa que lhe sucedeu.
— Esperem, esperem — exclamava outra,
fazendo o gesto de quem procura alguma coisa na reminiscência — a última vez
que eu a vi foi... foi... ora deixem ver... foi há seis dias, lá embaixo nas
azenhas. Bem me lembra. Ia muito amarela e mal se podia arrastar. Pareceu-me
até que gemia.
— E que lhe disseste? — perguntou
Luisita, interessada com as palavras da companheira.
— Eu?! Se mais pudesse, mais corria.
Arrenego tais encontros! Olhem os meus pecados!
— E há muito que eu não vejo a luzinha
pelo monte.
— Nem eu.
— Nem eu.
Disseram, umas após outras, várias
vozes.
— Há de haver oito dias que a mim me
disse a ti Rosa do Aidro que a mulher tinha decerto a espinhela caída —
acrescentou, com ar de quem comunica uma importante novidade, a mais trigueira
das preopinantes.
— Aí temos outra! Bem sabe a ti Rosa
também o que são espinhelas caídas! — disse com mau humor a primeira que
falara.
— Não, não sabe; que ela não tem o
primo endireita em Fiães, sim.
— E anda a outra sempre a encher os
ouvidos à gente com o seu primo endireita. Nem que nunca se visse um endireita
senão aquele!
— Olhem! olhem! Põe-te agora a dizer
mal dele também!
— Grande endireita, que deixou ficar
mouco o nosso Antônio, depois de ganhar com ele um par de moedas.
— Sim? pois olha que nem os médicos da
cidade têm que lhe dizer.
— Credo! credo! Santo nome de Jesus!
Nem que fosse algum doutor de capelo!
Enquanto as duas continuavam
discutindo a ciência ortopédica do primo da ti Rosa do Aidro, prosseguia o
resto das circunstantes no assunto primitivo.
— O que eu posso dizer é que há muito
não vejo sair fumo da casa dela.
— A mulher morreu decerto ou está para
isso.
— E se se fosse ver? Também para a
deixar assim... — disse Luisita, como a aventurar uma opinião que não tinha
firmes tenções de sustentar.
— Vá lá quem quiser, nanja eu —
respondeu imediatamente uma mocetona de constituição atlética.
— Ir lá?! Fazer o quê? Então vocês
julgam que se vai assim sem mais nem menos a uma casa daquelas?
— Perguntem ali ao senhor — dizia
outra, designando-me com o gesto.
Estas palavras fizeram-me dar mais
atenção à conversa.
— Quem lá entrasse tinha logo o gato
preto a saltar-lhe ao pescoço.
A referência a esta evolução ginástica
do gato preto acabou de me demonstrar que se tratava da tia Filomena.
— Então que há de novo? — perguntei,
aproximando-me. — De quem falavam?
— É que pelos modos — respondeu-me uma
das do grupo — andam agora os demônios no pinhal.
— Fazendo o quê?
— Para levarem a alma da bruxa.
— De qual bruxa?
— Da tia Filomena.
— Aí voltam as preocupações! Mas que
sucedeu à tia Filomena?
— Há muito que não sai de casa e que
se lhe não vê fumegar o telhado. Aquilo ou está morta ou para breve.
— E então ninguém tem ido ou mandado
ver?
— Quem?
— Não que o que lá for não volta.
— Ora, sempre é levar muito longe a
superstição! Visto isso, há de se deixar morrer assim uma pobre velha ao
desamparo?
— Deixe lá; aquelas têm por si outros
poderes. Não precisam do socorro da gente.
— Pelo que vejo não há aqui ninguém
que queira ir ao pinhal saber da tia Filomena?
Ninguém respondeu.
— Pois bem, nesse caso vou eu.
— Olhe o que faz! — disseram algumas
vozes, em tom de advertência.
— Ainda não escarmentou? — murmuravam
outras.
Luisita chegou-se a mim e,
apertando-me o braço:
— É demais! Isso é desafiar o Senhor.
— Ora adeus, Luisita.
— Não vê...
— Vamos. Quando for velha há de gostar
que lhe chamem também bruxa e que a deixem morrer de fome e ao desamparo?
— Mas...
— Pois olhe, Luisita, se tem muito
receio, reze por mim. Eu gosto de ser recomendado aos santos por uma boca tão
bonita.
Luisita não deu palavra mas
conheci-lhe no gesto que ficava agourando grandes desgraças da minha excursão
ao pinhal.
CAPÍTULO
10
Acompanhado dos responsos e comentários das
circunstantes, pus-me pois a caminho da casa da tia Filomena, cuja sorte me
estava profundamente inquietando.
A noite aproximava-se, e uma nebrina
densa, levantando-se dos vales, ia, a pouco e pouco, circunscrevendo em volta
de mim o horizonte e estreitando-me num círculo cada vez mais cerrado de
espessos nevoeiros.
O grupo das raparigas, que me seguiam
com a vista quando eu começava a subir a colina, cedo se me encobriu debaixo
deste véu de vapores impenetrável; circunstância que devia mortificar
profundamente todas aquelas curiosidades femininas, ansiosas por gozar de longe
do espetáculo que, com grande risco do corpo e da alma, eu lhes proporcionara.
Depois de ter andado alguns minutos, e
quando subia já por um pedregoso e alcantilado caminho de cabras, desenvolvendo
todos os meus recursos ginásticos para não rolar com uma avalanche até ao fundo
da ribanceira vizinha, pareceu-me perceber o ruído dos passos de alguém que, a
pequena distância, me precedia.
Apressei-me para poder alcançar quem
quer que fosse e concluir em companhia o resto da minha excursão. Em breve me
foi dado consegui-lo.
A pessoa que assim caminhava adiante
de mim era o pároco da freguesia, jovem sacerdote que eu mal conhecia ainda,
mas cujas maneiras afáveis e delicadas e seriedade superior aos seus anos me
tinham feito já simpatizar com ele. Vendo-me, parou a esperar-me.
— Por estes sítios! Agradam-lhe também
os passeios dos montes?
— Não foi para passear que vim até
aqui, mas para socorrer uma pobre mulher que a cega superstição desta gente ia
talvez deixar morrer ao desamparo. E quem sabe se ainda chegarei a tempo.
O reitor olhou para mim,
perguntando-me:
— Refere-se à tia Filomena?
— Exatamente, a ela mesma.
— Então ofereço-lhe companhia, eu
também me dirijo para lá.
— Também?!
— É verdade. Todas as sextas-feiras
essa pobre mulher me procurava.
Faltou-me esta semana, esperei-a ontem
debalde e por isso pus-me a caminho hoje, por igualmente recear alguma
desgraça.
— Mas não é uma bárbara crença a deste
povo?
— Então que quer? A ignorância é
sempre supersticiosa.
— Mas... e perdoe-me dizer-lhe isto,
senhor reitor; não poderiam algumas palavras da sua parte desvanecer essas
abusões?
O reitor sorriu melancolicamente.
— E pensa que as não tenho dito? Há
apenas dois anos que vim para esta abadia. O meu predecessor era, pelo que pude
saber dele, um santo homem, esmoler e honrado, mas de uma superstição
grosseira, eivado de erros e de preconceitos que a falta de instrução e nenhuma
cultura de espírito tinham feito pulular. Era ele o primeiro a acreditar em
todas as tradições de duendes e de almas penadas e a usar de esconjuros,
amuletos e ervas contra feitiços. Na residência deparou-se-me uma abundante
coleção desses objetos, com que o bom do homem julgava prudente munir-se contra
os ataques dos maus espíritos e das feiticeiras. Faça ideia de como devia andar
a imaginação desta gente quando um pároco, que residia aqui havia perto de
dezoito anos, lhe dava tais exemplos. Nos primeiros dias em que assumi as
funções paroquiais, percorrendo os papéis do meu antecessor, encontrei entre
outros documentos não pouco curiosos, nos quais ele registrava várias
observações criticas a respeito dos seus paroquianos, um que mais que todos me
interessou. O conteúdo era, pondo agora de parte a ortografia muito sua, pouco
mais ou menos o seguinte:
“Em Agosto de 50 veio residir para
esta minha paróquia, escrevera ele, uma velha mulher que diz chamar-se Filomena
— nome pouco de gente cristã e batizada. Vinha miseravelmente vestida e foi
viver para uma pequena casa do Pinhal. Ainda não procurou sacramentos e é de
poucas falas. Logo que ela aqui chegou, começaram a morrer crianças de um modo
nunca visto. Ficavam roxas e chupadinhas que fazia dó. Depois deu a mortandade
nos carneiros, que caíam nos campos, como tordos. Bem se vê que a mulher é
suspeita. Pelos modos, ouve-se por altas horas em casa dela gritos agudos, e de
noite corre fadário nos montes feita numa luzinha. De vez em quando, vem
visitá-la um homem de má catadura. Tudo faz crer ser ela bruxa refinada. Há
tempo, falando-lhe, ouvi-lhe palavras sacrílegas. E ovelha que já não espero
salvar.”
Assim terminava o original apontamento
do pobre cura, o qual, como é de crer, me excitou mais interesse ainda do que
simples curiosidade. Indaguei de várias pessoas relativamente a Filomena e pude
então reconhecer como se tinham já arraigado nestas imaginações incultas as
ideias supersticiosas do pároco. As informações que me foi possível colher
representavam-me de fato Filomena como um ente sobrenatural, em relação íntima
com os espíritos maléficos e dotada de poderes extraordinários para evocar as
almas dos mortos em pecado e outros absurdos semelhantes.
Quis desvanecer esses preconceitos,
combati-os como pude; consegui apenas ser daí por diante olhado com suspeita
pelo povo, que via na minha incredulidade uma espécie de heresia. Decidi-me a
procurar a tão falada tia Filomena. O que fui encontrar, procurando-a, deve
supô-lo o senhor, que, pelo que vejo, mostra conhecê-la também. Uma desgraçada
e nada mais. — Filomena veio de longe para aqui. O motivo desta emigração foi
uma desgraça de família, que ela me revelou sob o sigilo da confissão. Quando
chegou a esta terra, trazia a pobre mulher no coração o desespero, e nos lábios
a blasfêmia que o delírio lhe arrancava.
Se não tivesse encontrado um pároco
sem preconceitos, que compreendesse as causas daquele estado doloroso, que
tentasse sanar as feridas, ainda gotejantes de sangue, daquele coração aflito,
a cura seria fácil. Mas o desprezo de que se viu rodeada exacerbou-lhe os
padecimentos e, cada vez mais entregue ao infortúnio, ia perdendo até os
sentimentos religiosos, que por tanto tempo tinham sido seu único e eficaz
auxílio. Uma epidemia de garrotilho que fez mil vítimas nas crianças e não sei
que moléstia que por aqueles tempos grassou no gado, chegando a sacrificar
rebanhos inteiros, vieram concorrer para arraigar estas superstições, que tão
amarga tornaram a sorte, já mal-aventurada, da pobre Filomena. Quando pela
primeira vez lhe falei, senti-me desanimar; confesso a verdade, tão desesperada
a vi, que julguei ter chegado tarde: pareceu-me que seriam baldados todos os
esforços para chamar de novo à comunhão das ideias cristãs aquela pobre alma
abatida pelo infortúnio. Enganei-me todavia; consegui-o em pouco tempo e hoje é
uma das mais religiosas criaturas da minha freguesia.
— O que não evita continuar a ser
olhada pelo povo como bruxa e cruelmente odiada.
O reitor notou, sorrindo:
— E o melhor da história é que nem
todos me poupam também; aqui onde me vê, tenho adquirido a minha reputaçãozinha
de feiticeiro ou coisa parecida.
À verdade desta observação servia de
testemunho a conversa que eu ouvira dias antes às raparigas do lugar a respeito
do reitor.
Tínhamos enfim chegado à porta da
humilde habitação da imaginária bruxa, quando perguntei ao meu companheiro o
que ele conjeturava dos pequenos embrulhos de papel a que Luisita chamara os
novelos da tia Filomena.
Ouvindo esta pergunta, o jovem reitor
olhou para mim tristemente e, com uma voz reveladora de verdadeira comoção,
respondeu-me:
— Isso resume quase toda a história
desta mulher. E um ente singular e tão digno de respeito e estima como de
compaixão.
Foi o único esclarecimento que obtive.
Entramos enfim no quarto da tia
Filomena.
CAPÍTULO
11
Era já noite fechada; a última
claridade do dia desmaiara a pouco e pouco no ocidente, apenas agora tingido de
uma uniforme cor de violeta. Do lado oriental, começava a surgir a Lua por
detrás dos pinheiros, que se desenhavam em negro sobre o fundo de nuvens em que
o astro difundira um colorido inimitável. A única porta da habitação da tia
Filomena ficava voltada para este lado e os raios do luar, penetrando por ela,
davam a todo o recinto um aspeto indefinível de tristeza e de pavor.
Paramos no limiar escutando se algum
ruído nos advertia da presença da solitária velha, cuja vida tão
desfavoravelmente comentada estava sendo em toda a aldeia e os seus arredores.
Reinava o mais completo silêncio.
— Saiu talvez — disse eu, enquanto que
outra coisa bem diversa me pressagiava o coração.
— Saiu ou... quem sabe? — respondeu-me
o reitor, expressando nesta hesitação o mesmo triste pressentimento que eu
tivera.
Demos alguns passos dentro da sala. —
O mesmo silêncio.
— Tia Filomena! — exclamei então,
erguendo a voz.
Ninguém me respondeu.
Guiados pelo luar, chegamos ao fundo
do quarto, onde sabíamos estar situado o leito da pobre mulher.
Então pudemos distinguir uma forma
alvacenta, como de corpo inanimado, que involuntariamente nos fez recuar de
terror.
Vencemos porém este primeiro movimento
de repulsão e aproximamo-nos.
Era ela! a tia Filomena regelada, hirta,
com os braços pendidos fora do leito, os olhos abertos, a vista fixa, imóveis e
contraídos os lábios, e as faces mais emaciadas e pálidas que nunca!
— Que desgraça! — exclamou o jovem
reitor, juntando as mãos. — Pobre mulher, morta, morta assim!
Palpando-lhe o peito, julguei sentir
ainda bater-lhe frouxo e compassado o coração.
— Morta ainda não — disse ao reitor,
comunicando-lhe a minha descoberta — parece-me perceberem-se-lhe ainda uns
restos de vida prestes talvez a abandoná-la de todo.
Como para confirmar a verdade das
minhas palavras, a mísera fez um movimento e, com voz sumida, perguntou:
— Quem é que está aqui?
— E o senhor reitor — respondi-lhe,
curvando-me sobre o leito.
— Ah! pois veio?! — disse a pobre
mulher, em cujo rosto percebi desenhar-se uma expressão de suprema felicidade.
— Ainda bem, ainda bem! Onde está ele?
— Estou aqui — disse o reitor com a
voz presa pela comoção que experimentava.
Filomena agarrou-se-lhe à mão.
— Como foi bom em vir! Não me deixe,
enquanto não estiver morta, não? Tenho tido medo de me ver só. Como é triste
ver-se a gente morrer só, só!... sem amigos, sem ninguém que chore, sem ninguém
que console! Nunca pensei que chegaria a isto, meu Deus!
— Sossegue. Aqui nos tem. Mas não há
de morrer ainda.
— Morro, morro, eu sinto que morro e
ainda bem que assim é. Viver como tenho vivido há anos é pior, muito pior. Eles
pensavam que a feiticeira... como sempre me chamavam, coitados! não sofria por
se ver assim aborrecida e desprezada; ai, se sofria! se soubessem a minha vida
toda!... — E depois, interrompendo-se, apertou com violência a mão do reitor,
bradando como sufocada: — Senhor reitor, ai, senhor reitor, a sua bênção
depressa, eu sinto que vou morrer. Sinto, sinto!
E erguia-se com a contração enérgica
da última agonia.
O reitor, após uma fervorosa oração,
elevou os olhos ao céu e abençoou a moribunda, que na aparência se diria já
cadáver.
De repente ainda meia erguida e
sustentada por nós ambos, e com olhar vago, as mãos juntas e os lábios
desmaiados e trêmulos, ela começou murmurando uma prece, cujas palavras não
pude perceber. O reitor observava-lhe os movimentos com um gesto de compaixão e
em voz baixa rezava também as orações da agonia.
A meia claridade que reinava no
aposento, refletindo-se naquele triste grupo, aumentava-lhe o aspeto lúgubre e
melancólico, e infundia no ânimo não sei que íntimo e religioso pavor.
Passados alguns instantes, em que eu
só podia ouvir o respirar ansiado da agonizante e o murmurar das orações do
reitor, aquela elevou a voz e interrompendo-se a cada passo, extenuada pelo
esforço, começou dizendo como em delírio:
— Era o meu dever; não era, senhor
reitor? Olhe, ele aí está todo. — E apontava para os objetos do prateleiro. —
Não lhes toquei... Se vier... diga-lhe... que eu cumpri o meu juramento... mas
que lhe perdoei... Já agora...
Calou-se por algum tempo; depois com a
voz cada vez mais sumida, acrescentou com aquela carinhosa meiguice só das
crianças e dos doentes conhecida:
— Deitam-me para baixo? deitam?
Ajudamo-la a deitar.
— Assim — continuou ela — obrigada.
Ai, sinto-me tão fraca... parece-me que vou dormir. Se me apagassem aquela
tocha? Não sei para que a acenderam.
Coloquei-me diante da porta, para
encobrir aos seus olhos a claridade da Lua, que parecia incomodá-la.
— Ora agora, não façam ruído, porque
tenho sono e bem conheço que vou dormir... bem conheço...
Fechou os olhos por algum tempo,
abrindo-os logo depois angustiada.
— Ai, não estou bem! Por quem são,
virem-me, virem-me para o outro lado.
Voltamo-la como ela desejava.
— Ah! — disse depois, suspirando
profundamente. — Agora sim... estou bem!
Estava morta.
O reitor caiu de joelhos junto daquele
pobre leito abandonado de todos.
Deste recinto que os boatos da aldeia
faziam habitado por espíritos malignos, acabava de subir ao Céu a alma de uma
santa criatura.
A impressão que me causou toda esta
cena manteve-me imóvel e silencioso, fitos os olhos naquela mulher que se
finara e no sacerdote que murmurava ao lado dela, e quase soluçando, as orações
mortuárias.
Pouco a pouco um tumulto de vozes e
passos apressados, que havia já alguns instantes me chegava confusamente aos
ouvidos, veio distrair-me a atenção. Por as frestas da porta, que o vento tinha
cerrado, percebia-se um clarão avermelhado, que, projetando-se na parede fronteira
e no leito onde jazia o cadáver, dava ainda, se era possível, à cena mais
sinistra aparência.
O sussurro ia-se de momento para
momento fazendo mais distinto. Era evidente que procuravam a casa da tia
Filomena.
Receoso de que as ideias
supersticiosas do povo e a aversão que lhe inspirava a suposta bruxa o
conduzissem a algum ato de violência, ao qual a minha demora, decerto
interpretada para mal, servisse de pretexto, corri para a porta com o fim de
evitar, se fosse possível ainda, a profanação de umas cinzas.
Nesse mesmo instante porém reconheci a
voz de Luisita, exclamando:
— E aí.
E imediatamente a porta abriu-se com
violência, penetrando logo no interior o clarão de muitos archotes acesos,
sustentados por criados de libré, cuja figura e trajo não eram conhecidos na
aldeia.
Ainda eu não voltara a mim da surpresa
que o inesperado da cena me produzira, quando vi sair dentre a multidão, que
parecia afastar-se com respeito para lhe dar passagem, uma mulher elegante,
distintamente vestida e que pelas formas e vivacidade de movimentos supus ser
ainda jovem. Encobria-lhe as feições um comprido véu de cor escura, mas não tão
discretamente que lhe não denunciasse a beleza ainda que deixando muito a
adivinhar.
Entrou na sala com passos rápidos e
agitada; e, encontrando-se de frente comigo, disse-me, juntando as mãos e com
um gesto em que se reconhecia uma não simulada ansiedade.
— Ainda vive?
— Está morta — respondeu o reitor, em
pé junto à cabeceira do leito; e na inflexão de voz com que pronunciou estas
palavras julguei reconhecer não sei que tom de severidade, que me impressionou.
Esta notícia pareceu fulminar a
desconhecida.
Levou as mãos ao seio e soltou um
gemido, tão profundamente expressivo de dolorosa angústia, que me fez subir as
lágrimas aos olhos.
Depois, como cedendo a atração
irresistível, correu ao leito, apoderou-se de uma das mãos regeladas da morta
e, pousando-lhe os lábios, caiu de joelhos, bradando entre soluços, que lhe
sufocavam a voz:
— Minha mãe! oh! minha pobre mãe!
O meu espanto era completo. Olhei para
o reitor. Vi-o imóvel e mudo, presenciando com gesto austero e impassível esta
cena comovente.
Quem era pois esta mulher, a chorar
assim junto do cadáver da infeliz que tão esquecida vivera, mais aborrecida do
que estimada, e tanto ao desamparo vira aproximar-se-lhe a hora da agonia
final?
— Minha mãe — continuava a pobre
senhora ainda de joelhos — agora que eu vinha receber as suas bênçãos, agora
que eu me julgava feliz, que esperava enxugar-lhe as lágrimas e obter o seu
perdão... para que me castiga assim, morrendo sem me perdoar?
— Perdoou-lhe! — disse o reitor com
voz firme e austera.
A recém-chegada ergueu os olhos para
ele, mas, como se compreendesse a severidade daquele olhar, que parecia
desafiar o seu, baixou-os imediatamente, perguntando lacrimosa e trêmula:
— Viu-a morrer?
— Assisti-lhe até ao último suspiro.
— E ela... falou-lhe de mim?
— Havia-me contado a sua história.
— Disse-lhe...
— Tudo.
— E perdoou-me?
— De todo o coração.
— Mas ignorava que eu havia enfim
conseguido merecer-lho, esse perdão que tantas vezes lhe implorei.
— Mais grato será a Deus.
— Ó minha mãe! pobre mãe! Se eu te
escutasse ao menos as últimas palavras. Quero vê-la. Como aqui está escuro! Uma
luz, uma luz.
Um dos criados aproximou-se com o
archote. A jovem senhora desviou então o véu que a encobria até ali,
patenteando o rosto, verdadeiramente deslumbrante de beleza, e naquele momento
as lágrimas mais faziam realçar.
Fitando os olhos no aspeto macilento e
decomposto da mãe, soltou um grito dilacerante, e, cobrindo o rosto com as
mãos, desatou em soluços que comoviam o coração de quantos os escutavam.
— Jesus, meu Deus! O que fizeram seis
anos de infortúnio! Oh, desgraçada de mim! Pobre mãe! — continuou ela, cobrindo
de beijos aquelas faces já frias. — Como não sofreste para assim envelhecer em
seis anos! Seis anos! Aqui, só, neste monte, nesta casa, tão mal abrigada, tão
mal vestida! Mas... Jesus, meu Deus... acaso... — e pôs-se a olhar em volta de
si com a vista perturbada.
O reitor, que pareceu compreender
aquela interrogação muda, segurou-lhe no braço e, encaminhando-a para junto do
prateleiro, onde se divisavam os misteriosos volumes de que tenho falado,
disse-lhe, apontando para eles:
— Olhe. A sua infeliz mãe morreu pobre
e desamparada.
A aflita senhora, olhando para os
objetos que lhe designava o reitor, fez-se pálida e pareceu prestes desfalecer.
— Meu Deus! Ai, meu Deus! — bradou,
torcendo as mãos — a minha culpa foi pois tamanha que merecesse este castigo?
O reitor mostrou-se comovido, ouvindo
este grito de não fingido desespero, e pela primeira vez se desarmou da fria
insensibilidade, que eu até então estranhara nele.
— Perdoou-lhe, senhora. Sossegue. E se
o que ela havia tanto desejava para lhe estender os braços de mãe se realizou
enfim, confie que do Céu, onde está, o saberá, como o poderia saber na terra,
que para sempre deixou.
A filha da tia Filomena, depois de
mais uma vez abraçar o cadáver da mãe, chamou os criados, que entraram no
aposento. Junto com eles vinha Luisita, cuja curiosidade pudera enfim abafar os
supersticiosos terrores.
— Procurem pousada na aldeia —
disse-lhe a senhora, dominando ainda a custo a comoção — e mandem-me alguma
mulher que queira ficar hoje comigo aqui.
Espanto entre a criadagem.
A senhora continuou:
— Aqui, junto do corpo da minha
querida mãe.
E, dizendo isto, corriam-lhe as
lágrimas pelo rosto abaixo.
— Fico eu, senhora — disse Luisita,
adiantando-se e chorando também.
D. Margarida — que tal era, como depois
soube, o nome da senhora — viu estas lágrimas, e recompensou-lhas com um beijo
afetuoso!
O bom coração de Luisita ganhara neste
momento uma grande vitória sobre a sua má cabeça.
Os criados voltaram à aldeia,
comentando cada qual ao seu modo o sucedido.
Eu vim para casa só. O reitor ia
retirar-se comigo, quando D. Margarida lhe disse com voz triste:
— Quer ouvir o resto da minha
história, senhor reitor? Preciso da sua absolvição e dos seus conselhos.
O reitor anuiu.
CAPÍTULO
12
Eram seis horas da manhã do dia
seguinte, quando me vieram acordar, dizendo-me que era procurado.
— Por quem?
— Por o senhor reitor.
Apressei-me a descer à sala, onde
efetivamente o reitor me estava esperando.
— A que devo a felicidade desta
visita?
— Reclamo os seus serviços.
— Estou à sua disposição.
— Trata-se de umas exéquias solenes à
tia Filomena; coisa, a falar a verdade, tão rara na aldeia, que me vejo
embaraçado para lhe dar expediente. Não tenho conhecimentos na cidade e
portanto...
— Deixe isso ao meu cuidado. Escrevo a
um amigo meu, muito visto nestas coisas e que espero que sairá bem do negócio.
— Então acompanha-me à residência para
alguns esclarecimentos e mais almoçará comigo?
— Às ordens.
Vesti-me e segui o reitor.
A residência não ficava distante;
demos aviamento ao necessário. De lá mesmo escrevi uma carta a um amigo do
Porto, encomendando-lhe os aprestes para as exéquias, e após subi para o quarto
do reitor, quarto modestamente mobiliado, sem trastes de luxo, mas com uma
simplicidade que revelava bom gosto.
Numa só coisa desdizia este quarto dos
hábitos singelos de vida do jovem sacerdote; era na livraria, bastante
fornecida e seleta e que, pela desordem em que a vi, conjeturei não gozar de
prolongados remansos.
Junto à cabeceira do leito e ao lado
do velador encontrei, ainda aberto, o Gênio do Cristianismo. Outros livros
porém, menos ortodoxos, cobriam a mesa, as cadeiras e até o pavimento. Fácil me
foi descobrir a um lado o Jocelyn, mencionado pela cúria no Index librorum prohibitorum junto dele,
o Eurico, de igual imoralidade; mais além, os Lusíadas — não obstante o seu
escandaloso amálgama de religiões; sobre o Paradise
lost, o pagão do Homero; ao lado dos Mártires, a Eneida; de envolta com a
Crônica de São Domingos e a Vida do Arcebispo, a História dos Girondinos; a
Guerra dos trinta anos, em contacto íntimo com os Anais da propagação da fé; o
Memorial de Santa Helena, ao pé da Imitação de Jesus Cristo, e o Teatro de
Vítor Hugo, de Schiller e de Garrett, não muito longe dos Sermões de Vieira, das
obras de Fênelon e da Nova Floresta de Bernardes.
O reitor, vendo-me a examinar a
biblioteca, corou e disse-me com certo enleio:
— Ainda me não pude desfazer de
antigos hábitos. Leituras dos meus primeiros anos e dos tempos de rapaz, pouco
próprias talvez hoje. À batina só fica bem o breviário.
— Não se justifique para comigo,
porque não lhe admito a culpa. O breviário de per si nem sempre é bom
conselheiro. Haja vista o seu predecessor, que pelos modos não tinha cometido
esse pecado que parece estar a pesar-lhe na consciência.
O reitor sorriu.
Sentamo-nos à mesa para almoçar, e no
entretanto disse-me o reitor com expressão de sentida melancolia:
— Vai saber a história da Filomena.
Quer ouvi-la?
Fiz-lhe sinal de que o desejava.
— É muito curta. Esta desgraçada
mulher vivia a oito léguas daqui com uma filha única, que lhe ficara da idade
de seis anos, quando o marido, morto numa dessas lutas civis que assolaram o
reino, a deixou na mais triste e indefesa viuvez. Os sacrifícios que fez a
pobre mãe para evitar a miséria, que temia menos por si do que por a tenra
criança de quem era o único amparo, foram imensos e só talvez bem compreendidos
por quem, como nós outros párocos, vive em contacto com esta infortunada gente,
para a qual cada dia, cada instante de vida é uma vitória ganha sobre a
adversidade. Trabalhava de noite e de dia; à luz do Sol, como à luz da lâmpada;
nas longas e frias noites de Inverno, como nas formosas noites de Estio; sempre
curvada à mesa do trabalho, sempre vergada sob o peso de tão dolorosa cruz!
Assim passaram muitos anos daquela existência de amor e de abnegação, assim se
exauriram as forças e o vigor daquela mãe extremosa; e o resto de vida que lhe
não absorvia o trabalho, consumia-lho a maternidade, difundia-se nos mil desvelos
e carícias com que rodeava o berço da inocente; — com os adornos de afetos, já
que lhe escasseavam os da riqueza, que para ela só invejara. A filha crescia,
sorrindo no meio da miséria e desconhecendo-a; ignorância feliz dos primeiros
anos, comparável à da flor, que desabrocha à borda do abismo. Vivia dos
sacrifícios e abnegação da mãe, e de tão pequena vivera deles, que desaprendera
a apreciá-los, por essa involuntária ingratidão dos filhos, que mais parece uma
lei a que obedecem os afetos humanos. Crescia em idade e em formosura a ponto
de ser o enlevo dos habitantes do lugar. Aos dezoito anos, fascinava; falava-se
dela léguas ao redor. Foi a desgraça da mãe, que então se revia ainda em tanta
beleza, à semelhança dessas crianças imprudentes que se debruçam na corrente,
fascinadas pela limpidez que lhes reflete o céu.
O filho de uma rica família das
proximidades viu a inexperiente rapariga, apaixonou-se por ela, confessou-lhe o
seu amor, soube fazer-se correspondido e um dia... Margarida desaparecia de casa.
Espalhou-se a nova na aldeia; a mãe esteve quase louca, muito tempo correu como
perdida por todos os lugares, encontravam-na de noite e de dia; às vezes
adormecida de cansaço nos marcos das estradas; até que depois a perderam de
vista na aldeia e disseram-na morta.
Foi então que veio para aqui com o
desespero no coração, alucinada a ponto de blasfemar; por isso o velho reitor,
como já lhe disse, a julgou possessa. A crença espalhou-se, a coincidência de
certos sucessos parecia justificá-la; e esta desgraçada mãe, só digna de
compaixão, viu-se repelida, odiada e desprezada de todos!
No entretanto a filha, que cedera à
sedução, inquieta pela sorte da mãe, procurava-a. Soube do seu desaparecimento
da aldeia, enviou emissários para averiguarem o lugar da sua nova residência,
se é que ela ainda existia. Foi feliz em tais pesquisas. Vieram da parte da
filha procurar Filomena, trazendo-lhe cartas dela; a pobre mãe, cujo coração
todo se alvoroçava só de vê-las, rejeitou-as sem sequer as ler, dizendo: — que
nunca essa malfadada voltasse para junto de si enquanto não tivesse purificado
pelas bênçãos da Igreja o erro da sua juventude. — Esta obstinada recusa,
fundada num arreigado sentimento de honra e decoro, dilacerava o coração das
duas!
O amante de Margarida era de nobres e
generosos sentimentos; mas, sujeito à vontade de uma família cheia de
preconceitos de nobreza e das distinções hierárquicas, nem ao menos ousava
falar-lhe num a união, que ele também cordialmente desejava.
Margarida quis acudir à miséria da mãe
enviando-lhe algumas somas de dinheiro. Filomena rejeitou-lhas, dizendo que
antes quereria morrer de fome do que viver de vergonha. A filha propôs-lhe
abandonar o amante, voltar para junto dela e trabalhar para lhe sustentar a
velhice; repeliu igualmente a oferta, com a mesma pertinaz firmeza com que
tinha rejeitado as outras.
Isto há de lhe parecer talvez um mal
entendido rigor, mas verá que se baseava no afeto profundo que alimentava o
coração.
Margarida recorreu então a um piedoso
expediente. Sabendo que Filomena saía a miúdo e que nunca se dava ao trabalho
de fechar a porta da pobre casa, mandava todos os meses um criado de confiança
a espiar o momento em que ela estivesse fora, para lhe remeter os socorros
pecuniários. Era quase sempre de noite que isto se efetuava, pois Filomena,
para evitar os insultos com que a perseguiam, raras vezes saía de dia. Este
homem entrava-lhe então em casa, pousava o dinheiro de Margarida sobre um
prateleiro que havia na sala: eram os embrulhos de que me falava ontem.
— Os novelos da tia Filomena, como me
dizia Luisita. Adiante.
— Filomena suspeitava a procedência da
remessa e por isso nem lhe tocou. Quatro anos sucessivos, mês por mês, se
renovou a oferta; enfileiravam-se os pequenos rolos de dinheiro que o mensageiro
religiosamente depunha no lugar costumado e Filomena nem ao menos sabia a
quanto montava já a soma assim acumulada. O criado, que estranhara esta
abstenção da velha, comunicou tudo ao amo. Este porém, para não afligir
Margarida, recomendou-lhe segredo e ordenou-lhe que continuasse de igual forma
a cumprir a sua missão. As somas sucediam-se e Filomena, que tantas vezes
lutava com a necessidade, deixava-as no mesmo sítio em que as encontrara.
Quando a conheci, contou-me tudo. Os
instintos religiosos, renascendo nela, aumentavam-lhe mais ainda os escrúpulos
e firmavam-na nas suas resoluções. Se alguma vez eu lhe falava em perdoar à
filha, a pobre mulher respondia-me, soluçando:
— Isso me diz há muito o coração,
senhor reitor, mas, se eu o fizesse, a infeliz vinha-se-me lançar nos braços e
esse homem, que a ama ainda, esquecê-la-ia em breve e com ela as promessas que
lhe jurou. Ele não é mau. E se, para que eu perdoe, souber necessária a
reparação, tarde ou cedo lha dará.
Eu não confiava muito nisso, mas como
teria alma de tirá-la desta crença?
Os socorros que recusara à filha
recebia-os com humildade das minhas mãos. Sabia da repugnância que lhe tinham
na aldeia, e nunca por isso de dia ali desceu mais. Quis obrigá-la a ir à
missa, não o pude conseguir. Havia no caráter desta mulher um misto de firmeza
e timidez notável! — Essa gente, coitadinha — dizia ela muitas vezes — não
assistiria com fervor à missa se me vissem ao seu lado. — E contudo afligia-se
por ser privada de assistir ao santo sacrifício.
Lancei mão de um expediente. Há aí por
detrás do monte uma pequena capela abandonada há muito. Um dia na semana lá ia
eu celebrar missa só para a pobre mulher. O meu ajudante, que era o sacristão,
é talvez o único homem na aldeia que não participa já da opinião do público a
respeito da tia Filomena. Coitada! não pôde ver na terra realizado o seu mais
ardente desejo! Quando expirava, corria a filha aos seus braços a dar-lhe
alvoroçada a notícia de que as orações de tantos anos tinham sido ouvidas. Fora
enfim recebida como esposa pelo homem que motivara estas desgraças. Por morte
do pai e atingindo a maioridade, ele não quis retardar muito tempo a realização
do desejo de ambos.
O fim já o não ignora. A filha
inconsolável quer satisfazer para com a mãe a dívida contraída, por meio de
umas exéquias solenes na igreja paroquial. O dinheiro acumulado e intacto das
sucessivas mesadas, que enviou a Filomena e que monta à quantia de novecentos
mil réis, vai ser distribuído pelos pobres da freguesia, sendo eu o encarregado
da distribuição.
Aí tem a história da tia Filomena, de
cujo sigilo fui remido por a filha, que, divulgando-a, pretende justificar a
memória da mãe, tão caluniada em vida. — E, erguendo-se da mesa do almoço, o
reitor acrescentou:
— Era uma santa!
CAPÍTULO
13
Esta história divulgou-se: mas não fui
eu que a contei. Luisita, cuja crença nos feitiços da tia Filomena ficara muito
abalada depois da triste cena a que assistira, foi, como já disse, a única que
ousou passar a noite com a filha da defunta. Como é de crer, não era para
dormir que aí se achavam as duas. Conversaram, e D. Margarida, simpatizando com
a sua jovem companheira, contou-lhe toda a história. No dia seguinte Luisita,
um pouco por vontade de falar, um pouco com o desejo de desvanecer as más
opiniões da aldeia a respeito da tia Filomena, pôs-se à obra, e dentro em pouco
era o fato de todos sabido.
Fez-se justiça, ainda que tardia, a
Filomena, e já corriam todos para a casinha do pinhal, como para uma ermida de
Senhora aparecida. Duas velhas beatas disputaram, quase a murro, a posse do
gato, que no resto da vida se tornou o mais benquisto da aldeia. A fantasia
popular, tão fecunda em inventar lendas milagrosas como traças de Satanás e dos
seus adeptos, referia agora virtudes da tia Filomena que deixavam a perder de
vista as antigas façanhas de feitiçaria que lhe atribuíam.
Também me ri muito com o meu amigo da
sua espantosa ciência do coração humano.
Aquela monumental dissertação era de
uma solidez de alicerces formidável, só tinha o pequeno defeito de ser
completamente inexata.
Oito dias depois faziam-se esplêndidas
exéquias à tia Filomena; assistiu toda a gente do lugar. Foi coisa ali nunca
vista.
Após, fez o reitor a distribuição das
esmolas, colhendo as bênçãos dos pobres, que choravam de alegria.
À porta da igreja encontrei Luisita a
limpar os olhos, comovida pelo fato edificante que presenciara.
— Então, Luisita — disse-lhe eu
aproximando-me — e os novelos da tia Filomena?
A engraçada rapariga levantou para mim
os olhos mal enxutos, sorriu melancolicamente e não deu resposta.
— Abençoados novelos — acrescentei eu
— que deram para tecer tantas camisas aos pobres!
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Pesquisa e atualização
ortográfica: Iba Mendes (2019)
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