Os companheiros felizes
Um Gato, muito senhor da sua
pessoa, teve não sei que pendência com outros bichanos e resolveu ir a Roma
falar com o Papa, a fim de tirar o negócio a limpo.
Ia já de caminho, muito
esbaforido pela pressa e pelo calor, quando viu um Galo empoleirado numa árvore,
o qual lhe cacarejou lá de cima:
— Ó amigo, para onde vais tão
açodado?! Viste por aí alguma ratazana para o jantar?
— Eu, não. Trato agora lá disso!
Vou para Roma, para Roma!
— Então espera aí, que eu também
vou. Também preciso falar ao Papa sobre negócio particular.
Desceu do poleiro e seguiram os
dois muito satisfeitos. Passaram por uma aldeia onde viram um Porco deitado ao
sol.
— Para onde vão vocês (grunhiu
ele)?
— Para Roma, para Roma!
— Também vou! Que já me aborrece
foçar sempre a mesma terra!
Espreguiçando-se demoradamente,
lá se levantou e seguiu os dois.
Mais adiante atravessaram um
prado onde um Carneiro pastava. Gritou-lhes ele de lá:
— Para onde vão com tanta pressa?
— Para Roma, para Roma, consultar
o Papa (respondeu o Gato, que era o diretor da caravana).
— Então esperem um pouco, que eu
também vou. Há muito que sentia ganas de viajar, para ver outras pastagens e
terminar a minha educação. Mas não ia por não ter bons companheiros como vocês
me parecem.
Partiram os quatro, cada vez mais
satisfeitos.
Adiante encontraram uma Pata, que
nadava num grande tanque. Mal os viu, perguntou:
— Para onde vão vocês quatro,
assim tão empoeirados?
— Para Roma, para Roma, consultar
o Papa.
— Então esperem aí, que eu também
os acompanho. Já me aborrecem estes sítios onde me criei, e que tão feios devem
ser em comparação com os outros.
Saltando para fora da água,
sacudiu as asas. E, alegremente, puseram-se todos cinco em marcha.
Foram indo, até que num
descampado lhes anoiteceu, e não sabiam que fazer nem onde se recolheriam.
Começavam a afligir-se quando o Galo subiu a uma árvore e de lá avistou ao
longe uma luzinha animadora.
Dirigiram-se para a casa donde
ela partia e o Carneiro bateu à porta com estrondo. Os donos, que eram
salteadores, ouvindo bater com força, cuidaram que era
a polícia que vinha prendê-los, e
fugiram assustados. Foi qual havia de saltar primeiro pela janela e correr, sem
destino, através dos campos.
Os cinco companheiros que isto
viram, trataram de entrar, puseram-se à mesa e comeram a ceia dos ladrões com o
melhor dos apetites. No fim de bem fartos e satisfeitos, levantou-se o Gato e
disse:
— Meus amigos e companheiros,
temos que nos pôr em guarda, porque não tarda aí o inimigo. Eu fico na chaminé
e vocês escolham os seus postos.
— Eu vou para trás da porta
(disse o porco).
— Eu salto já para o caniço
(acudiu o galo).
Respondeu o Carneiro:
— Pois eu vou para o corredor.
— Sim? E eu vou para a janela.
Combinado isto, apagaram as luzes
e trataram de adormecer, para descansarem das fadigas da jornada.
Os ladrões, que de longe
espreitavam a casa e diziam mal à sua vida, pois a fome e o frio apertavam, logo
que deixaram de ver luz, combinaram mandar um deles observar o que se passava.
O capitão mandou um dos mais
corajosos, mas ainda não tinha passado uma hora e já o viam voltar feito um
lázaro e a gritar destemperadamente.
— Bem fizeram em lá não ir! Vejam
como venho ferido e arranhado!
— É verdade! Quem te pôs em tão miserável
estado (perguntaram os companheiros)?
— Vocês não imaginam o que está
na nossa casa! Entrei e, como visse dois carvões a luzir entre a cinza da
chaminé, fui acender um pavio. Saltou de lá um cardador que me atirou com as
cardas à cara, arranhou-me como veem, e
por pouco me não tira os olhos.
— Depois? Depois (perguntaram
todos)?
— Ora, não lhes conto nada! Fugi
para o corredor, mas encontrei um carpinteiro que me atirou com os martelos às
pernas e me tirou um bocado de carne. Neste meio tempo saltou do caniço um
alfaiate que me picou com agulhas e alfinetes, até me deixar a escorrer sangue.
À porta estava um sapateiro que me deitou as torqueses às barrigas das pernas e
mas deitou abaixo. E uma senhora à janela, gritava: passe, passe, passe! Não
imaginam o susto que apanhei! Eu é que lá não volto, nem que me levem de
rastos.
— Nem eu! Nem eu (gritaram todos!)
É claro, o cardador era o Gato,
com as suas unhas afiadas; o carpinteiro era o carneiro; o alfaiate, nem mais
nem menos, o galo; o sapateiro, o porco; e a senhora era a pata que saltara
para a janela.
Mas os ladrões apanharam tal
susto que abandonaram aos cinco amigos e companheiros felizes todas as riquezas
que tinham roubado e guardavam naquela casa, trocando-a por outra mais bem
guardada.
O Gato, vendo que ninguém ali os
incomodava, chamou os seus amigos a conselho e disse-lhes que, em vista daquela
fortuna inesperada, seria melhor desistirem de ir a Roma e passarem ali, no
sossego e abundância, o resto dos dias.
Os outros concordaram plenamente
e, esquecendo agravos e pendências que facilmente se esquecem com a riqueza,
foram sempre felizes e respeitados.
Desconfio até que ainda hoje lá
estão, já velhinhos, mas sempre afortunados e alegres.
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Fonte:
Ana De Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)
Fonte:
Ana De Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)
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