6/26/2019

Origens do teatro moderno (Ensaio), de Alexandre Herculano



Origens do teatro moderno
O país onde primeiro apareceu a arte dramática moderna foi a Inglaterra, se arte dramática podemos chamar a espetáculos tirados de passos históricos da Bíblia, sem invenção ou enredo, e só copiados literalmente em discursos e ações. Estas primeiras tentativas teatrais, a que depois os franceses e italianos chamaram mistérios, apareceram na Grã-Bretanha durante o século XI. Os monges as compunham e representavam, e ainda no fim do século XVI eles pediam a Ricardo II embargasse os comediantes de exercerem uma profissão que julgavam ser um privilégio seu, porque ordinariamente o objeto dos dramas se tirava do velho e novo Testamento.
Pelas muitas relações que havia entre a Inglaterra e a França, parece que os mistérios ingleses não tardaram em introduzir-se neste último país. A Morte de Santa Caterina, representada na abadia de Dunstaple, em mil cento e tantos, foi no século seguinte posta de novo em cena no mosteiro de Santo Albano em França, e é talvez esta a memória mais antiga que temos da arte dramática francesa. Depois esta continuou e cresceu, chamando se às farsas profanas jogos ou representações, e aos dramas sacros mistérios.
A Itália começou mais tarde, com este gênero de composições bárbaras: mas, tendo primeiro que nenhuma outra nação seguido o gosto da literatura grega e romana, brevemente o tomou também no teatro. Os dramas de Mussato compostos no princípio do século XIV, e em latim, são Ezzelino e Aquiles, imitações de Sêneca, escritas com um tão falso estilo como o do dramaturgo romano. Foi no XV século que apareceram na Itália os primeiros dramas vulgares: Lourenço de Medicis publicou a Representação de São João e São Paulo, e Ângelo Políciano deu pouco depois a sua tragédia intitulada Orfeu.
Desde o século XIV apareceram dramas na Alemanha; mas estes nada mais eram do que imitações dos mistérios franceses, e escritos em latim pelos monges. Em meado do século XV foi que verdadeiramente começou neste país o teatro nacional. Hans-Folz e Rosemblut compuseram diversas farsas, que se representaram em Nuremberg e Calmar: estas farsas, obra de homens rudes, são um tecido de grosserias e indecências apenas dignas de se recitarem diante da plebe mais disfarçada. Depois de 1500 é que apareceu Hans-Sachs, a quem podemos chamar o Gil Vicente da Alemanha.
Na Espanha, ou porque os árabes o introduzissem, ou porque os espanhóis o inventassem, ou, enfim, porque muito cedo o imitassem dos franceses, o drama remonta aos primeiros tempos da monarquia. Só, na verdade, do princípio do século XIV conhecemos a cena espanhola; mas restam memórias dela muitíssimo mais remotas, e pouco depois de 1200, dizem que apareceram dramas em Valenciano. Do século XV ainda existem muitas composições neste gênero de literatura.
Essas primeiras tentativas dramáticas eram forçosamente um tecido sem nexo, sem ordem, e ridículo: os seus autores se entregavam desenfreadamente a todos os caprichos de uma imaginação fervente, e as produções desse tempo são em geral monstruosas e absurdas. Rodrigo de Cota começou a dar alguma regularidade ao drama na comédia de Calisto e Melibea; mas a licença de seus quadros e expressões mancha o merecimento desta peça, que depois foi algum tanto corrigida e acrescentada por Fernando de Roxas, autor de outra comédia — Progne e Filomela. Apesar de assim emendada a obra de Cota ainda é monstruosa. Uma série de enredos amorosos e de crimes se encruzam e estendem aí através de vinte e cinco atos. Entretanto a verdade dos costumes e caracteres e a verossimilhança dos episódios lhe deram celebridade; e com o título de Celestina ela foi muitas vezes reimpressa, traduzida em diversas línguas e até na latina pelo célebre Bartius. A reputação da Celestina fez nascer os imitadores; e novas composições, com o mesmo ou diferente título, mas que estão longe de ter o mérito da original, surgiram brevemente em Espanha.
Por este tempo floresceram mais outros dois autores dramáticos, o Marquês de Vilena e João de la Enzina, que foi o principal modelo do nosso Gil Vicente. Os dramas do primeiro foram representados em Saragoça na corte de D. João II, pelo meado do XV século; os do segundo o foram também, na corte de Fernando e Isabel nos fins daquela mesma era.
Ressurgiam então as letras gregas e romanas, e a admiração do teatro antigo despertou na Espanha o gênio da tragédia. Oliva publicou duas composições trágicas — Hécuba triste e La venganza de Agamenon, as primeiras que neste gênero se escreveram na Península. Restritas e acanhadas imitações dos gregos, elas se podem considerar como traduções livres da Hécuba de Eurípides e da Electra de Sófocles.
Em Portugal é provável começassem as representações cênicas pelo mesmo tempo em que principiaram na Espanha; mas nenhuns vestígios restam desse teatro primitivo. O que é certo é que já nos fins do século XIV havia em Portugal entremeses. Garcia de Rezende na crônica de D. João II, narrando as festas que se fizeram em Évora no casamento do príncipe D. Afonso com a infanta D. Isabel de Castela, fala, em vários capítulos, dos entremeses representações, que nessa ocasião se fizeram, dando a entender pelo modo porque acerca deles se exprime, que eram uma coisa bem conhecida e vulgar, e não é impossível que ainda se nos depare algum monumento desse nosso primitivo teatro.
Porém, o mais antigo drama que hoje conhecemos é um de Gil Vicente, representado em 1502 na corte de D. Manoel, e Gil Vicente é, no estado atual da nossa história literária, considerado como o fundador da cena portuguesa, pela mesma razão porque o podemos ter por inventor dos rimances, ou xácaras, dos quais os mais antigos que existem são os que ele entressachou pelos seus Autos, e o que ele dedicou à morte de el-rei D. Manoel.
Gil Vicente dividiu em quatro livros as suas composições dramáticas, incluindo no primeiro todos os autos a que chamou de devoção, por versarem em geral sobre objetos bíblicos e religiosos; mas estas obras de devoção parecem as menos devotas de todas, se das outras excetuarmos a comédia de Rubena que pertence ao segundo livro. Tais autos são na essência o mesmo que os mistérios franceses, como eles cheios de indecências, porém ao mesmo tempo ricos de sal e chistes. O poeta abominava cordialmente o clero, sobretudo os frades, e não desaproveitou ocasião alguma de os presentear com chascos e epigramas. Os autos das barcas, que são como continuação uns dos outros, e formam a trilogia, ou drama em três quadros, mais antiga da Europa, constituem com Mofina Mendes e Rubena a flor do teatro de Gil Vicente; porque talvez em nenhuma das cenas que os compõem deixa de patentear-se em subido grau o gênio da comédia. Este poeta reunia à qualidade de autor a de ator; e com seus filhos representava os próprios dramas na corte de D. Manoel e de D. João III. Apesar de cortesão, o poeta morreu pobre, em Évora, depois de 1550. As suas obras se imprimiram em Lisboa em 1562, e muito mutiladas em 1586. Uma nova edição completa se publicou ultimamente em Hamburgo em 1833.
Gil Vicente teve um filho do seu mesmo nome, que dizem desterrou para a Índia, levado pelo ciúme de este o exceder no gênio dramático.
Ao moço Gil Vicente se atribui a composição de um autointitulado D. Luís de los Turcos.
Pelo meado do século XVI apareceram em Portugal vários poetas que mais ou menos seguiram as pisadas do autor de Rubena. Ao infante D. Luís se atribui o auto de D. Duardos, que anda impresso como de Gil Vicente. Antônio Ribeiro Chiado, tão conhecido na corte de D. João III e de D. Sebastião, pelos seus gracejos e agudezas, e pela propriedade com que remedava a voz e o gesto de todos, nos deixou dois autos assaz engraçados, o da Natural Invenção e o de Gonçalo Chambão. Na Primeira parte dos Autos e Comédias Portuguesas, publicada em 1587, livro hoje bastante raro, se imprimiram sete autos de Antônio Prestes, que revelam espírito cômico não inferior porventura ao de Gil Vicente, cuja escola Prestes seguiu, bem como Jorge Pinto, autor de Rodrigo e Mengo, e Jerônimo Ribeiro Soares, autor do Auto do Físico, que vem naquela coleção cuja segunda parte nunca se deu à estampa. O nosso Jorge Ferreira de Vasconcelos, autor dos dois romances da Tavola Redonda, floresceu também por estes tempos. Três composições suas nos restam, AulegrafiaEufrosina e Ulissipo, a que ele chamou comédias, e que, realmente, são antes diálogos do que dramas. Nelas teve por alvo Jorge Ferreira reunir os provérbios e anexins da língua ou a filosofia popular do seu tempo, e por este lado são elas, na verdade, dignas da maior estimação; mas se as quisermos considerar como dramas bem pequeno é o seu mérito.
No reinado de D. Sebastião, o cego Baltasar Dias, poeta natural da Madeira, publicou um grande número de autos e outras obras, humildes pelo estilo, mas com toques tão nacionais e tão gostosos para o povo, que ainda hoje são lidos por este com avidez. Correi as choupanas nas aldeãs, as oficinas e as lojas dos artífices nas cidades, e em quase todas achareis uma ou outra das multiplicadas edições dos Autos de Santo Aleixode Santa Catarina e da História da Imperatriz Porcina, tudo obras daquele poeta cego do século XVI.
Este era o teatro verdadeiramente nacional até o ano de 1600, em que floresceu Simão Machado, autor do Cerco de Diu e da Pastora Alfeia. Muitas composições deste gênero se perderam, ou não chegaram à nossa notícia, como os Autos de Antônio Pires Gonge, de Sebastião Pires, e de Antônio Peres, que dizem que escrevera mais de cem dramas. O auto do Fidalgo de Florença, composto por João de Escobar, no reinado de D. Sebastião, teve nesse tempo grande celebridade, e se imprimiu repetidas vezes: porém dele ainda não encontramos um único exemplar.
Enquanto assim a escola formada por Gil Vicente progredia, e, em nosso entender, se aperfeiçoava, independente de estranha influência, poetas de grande nome trabalhavam por introduzir em nossa literatura as formas do teatro grego ou romano. Francisco de Sá de Miranda escreveu duas comédias intituladas Vilhalpandos e Os Estrangeiros, as quais se imprimiram, depois de sua morte, em 1560 a primeira, e a segunda em 1569. Nestas procurou ele seguir as pisadas de Planto e Terêncio, como o confessa no prólogo dos Estrangeiros, e com efeito elas se podem comparar com as dos dois cômicos latinos. Antônio Ferreira compôs quase pelos mesmos tempos as comédias Bristo e Cioso e a tragédia D. Inês de Castro, a segunda que apareceu na Europa conforme a todas as regras clássicas, sendo a primeira a Sofonisba do poeta italiano Tríssino; mas a de Castro é superior; e nós a temos por um milagre dramático, atendendo à falta de modelos modernos e ao século em que foi escrita. O ilustre Camões também nos deixou, com o título de autos, duas comédias — Os Anfitriões e Filodemo, das quais a primeira é quase uma tradução de Plauto. Desde esta época o teatro português foi caindo e podemos dizer que nunca mais tornou a restaurar-se.
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ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1837, e publicado em: Opúsculos, tomo IX, 1909.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019
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