Onde está a morte
No tempo em que Nosso Senhor
Jesus Cristo andava pelo Mundo, aconteceu ir com São Pedro por um caminho e
depararam com um grande monte de dinheiro em ouro.
As moedas eram novas e tão
brilhantes e tão lindas, ao sol, que até o bom do Santo parou a contemplá-las,
mas o Mestre tomou-lhe do braço e gritou-lhe, aflito:
— Fujamos depressa, Pedro, que
está a Morte aqui.
O discípulo obedeceu logo.
Estugaram o passo e depressa perderam de vista aquele tesouro.
Mais adiante encontraram dois
homens que se dirigiam para o mesmo sítio e o Santo, que era muito cuidadoso e
serviçal, disse-lhes:
— Ó senhores, por quem são, não
sigam por esse caminho, olhem que está aí adiante a Morte, que os fulminará!
Como se mostrava verdadeiramente
assustado, os homens temeram-se e afastaram-se daquela direção. Mas andando por
outro caminho que ficava perto, e não vendo nada que fosse de amedrontar,
disseram um para o outro:
— Naturalmente o homenzinho
quis-nos enganar, ou talvez tenha pouco juízo. E se nós fôssemos lá ver onde
está a Morte!?
— Pois vamos (respondeu o outro),
não se me dá de a ver, de longe...
Foram-se aproximando,
cautelosamente, até que puderam ver o monte de ouro, que brilhava tanto que
mais parecia o chamejar duma fogueira. Mas como ainda estavam longe não
distinguiram o que assim resplandecia e continuaram a dirigir-se para aquele
sítio. A curiosidade ia-os movendo e, apesar do receio, sempre se aproximaram,
até conhecerem o que era. Então deram gritos de louca alegria e agarraram-se ao
ouro, como se tivessem encontrado a felicidade na Terra.
— O que te parece (dizia um)
aquele maroto não querer que viéssemos por este caminho?!
— É que tinha receio que
encontrássemos o tesouro, que logo, pela calada da noite, certamente viria
buscar.
— Deixa estar, se torno a
encontrar o espertalhão eu lhe direi o que se ganha em enganar gente honrada
como nós!
— E eu que te ajudarei a dar-lhe
uma ensinadela! Mas deixa lá isso agora. Já que fomos os primeiros a encontrar
esta riqueza, é nossa sem sombra de dúvida, porque nós a ganhamos com a nossa
inteligência. Vamos pois a dividi-la, irmãmente.
— Pois vamos. Olha que ficamos os
homens mais ricos do Mundo!
— Vá que seja assim. Que sorte
tivemos nós, louvado seja Deus! Mas ninguém a merecia tanto, porque sempre fomos
honrados e bons.
Depois, como havia tempo não
comiam nem bebiam à vontade, concertaram em que um deles fosse à cidade mais
próxima comprar merenda que satisfizesse, não esquecendo algumas garrafas de
bom vinho. Resolveram que ficasse o mais velho a guardar o tesouro, enquanto o
mais moço, que tinha boas pernas, iria fazer as compras.
Pôs-se este a caminho, e enquanto
andava ia pensando:
Que infelicidade a minha em vir
acompanhado por aquele amigo! Se não fosse ter que dividir o meu tesouro, então
é que eu ficava o homem mais rico do Mundo!...
E, pensando assim, chegou à
povoação onde tinham combinado que se comprasse a merenda. Escolheu do bom e do
melhor e não regateou preços nem se fez sumítico.
No entanto, uma diabólica e
desonesta ambição entrou-lhe na alma com todo o seu mal. Pega em si, o grande
traidor, e comprou também uma data de veneno que deitou na garrafa do vinho
melhor.
De volta ao sítio onde o outro
guardava o tesouro, pensava:
Agora, sim, agora é que eu vou ser
o homem mais rico e mais feliz de quantos cobre a roda do sol!... Mal sabes tu
o que te espera!... Meu caro, é ter paciência, um homem não apanha todos os
dias a sorte grande que eu achei. Até era um crime dividir aquele lindíssimo ouro
que tão ditoso me fará!...
E, muito satisfeito,
considerando-se já o homem mais venturoso do mundo, ia idealizando as coisas
que realizaria no futuro, quando fosse o único proprietário daquela grande
fortuna.
Ora o companheiro, que tinha
ficado junto do dinheiro, sentira e pensara pouco mais ou menos a mesma coisa
e, movido igualmente pela terrível avareza, dizia consigo:
Quem me manda a mim andar com
amigos e companheiros!? Então agora não podia eu estar o homem mais opulento de
quantos existem? Sempre sou muito palerma!... Mas todo o mal tem remédio. Só
para a morte ainda remédio se não encontrou. Deixa tu estar, meu ambicioso, que
eu te direi!...
Chegou o que fora à cidade e,
abrindo o cabaz que arranjara com as iguarias, começou a mostrar ao amigo o
banquete que lhe trazia. Depois, pretextando ter já comido na cidade,
ajoelhou-se diante do ouro, para ir contando e calculando a sua riqueza. O que
ficara guardando o tesouro, quando viu o outro debruçado sobre o dinheiro, foi
por detrás e deu-lhe tamanha mocada na cabeça que logo o deixou morto. Depois
sentou-se muito tranquilamente ao pé da sua vítima e começou a comer e a beber,
regozijando-se por ser o único senhor daquela riqueza toda. Decididamente
ficava o homem mais rico de quantos ricos havia no Mundo!
Mas quando estava nisto, e já
tinha chegado ao fundo da garrafa, sentiu uma grande dor e caiu para o lado,
morto com o veneno que o outro lhe dera.
E assim ficaram pobres até ao
final da sua vida, caídos ali ambos, mortos, ao pé do monte de ouro.
É o que faz a ambição desregrada
e má. Ora São Pedro ficara, como se costuma dizer, com a pedra no sapato, e
repetidamente, ao lembrar-se daquele caso, perguntava a Jesus Cristo:
— Mestre, porque motivo me
tiraste de junto do monte de ouro e me disseste que estava ali a Morte?
— Eu te explicarei um dia
(respondia-lhe sempre o Senhor, com a sua perfeita e santa serenidade).
E assim foi passando o tempo até
que aconteceu tornarem a passar no mesmo sítio. Então Nosso Senhor Jesus Cristo
chamou a atenção do discípulo para os dois esqueletos que jaziam ali, sobre a
imensa fortuna, e disse-lhe:
— Reconheces aqueles homens?
— Senhor, como hei de reconhecer
criaturas humanas naquelas ossadas!?...
— Sabe pois que são os homens que
tu preveniste e chamaste ao bom caminho. Desprezaram os teus conselhos. A
ambição trouxe-os aqui. E a ambição do ouro os matou miseravelmente.
Assim sucede a todos os que só
amam o dinheiro e por ele esquecem todos os bons sentimentos.
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Fonte:
Ana de Castro Osório: Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa (Editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)
Fonte:
Ana de Castro Osório: Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa (Editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)
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