O
Velho da Montanha
De volta de um salão de comédia, onde
vi os meneios moles e ondeantes de uma dançarina, cheguei tonto e atormentado
com aquele espetáculo.
Durante a noite diante de meus olhos
insones via riscas de fogo, que colubreavam como áspides infernais.
Logo cedo procurei o licenciado
Baltazar dos Santos, o teólogo coimbrão a quem sempre eu costumava recorrer nos
apertados transes da vida; e dele inquiri se era realmente aquilo a serpe que
tentara a mãe Eva.
— É a mesma serpente, disse-me ele,
pausado e grave. Os répteis vivem por muitos séculos e são quase eternos.
E neste ponto foi tirar da estante um
pergaminho do século XIV e leu-me em linguagem mais fácil que a do manuscrito,
o capítulo vigésimo oitavo das Viagens de
Marco Polo Veneto.
Mais ou menos foi isso o que leu o
teólogo:
"Que as delícias da sensualidade
foram sempre causa principal de todos os crimes bem poderia demonstrá-lo a
história daquele desonestíssimo tirano Ala-ed-Din ou Aladino, mais conhecido
por "O velho das Montanhas".
Senhoreava esse abominável príncipe as
terras de Mulet onde fundou a seita dos assassinos ou bebedores de haxixe,
bandidos terríveis que saíam a dizimar a gente inerme e descuidosa nos
caminhos.
Escolhera Ala-ed-Din um sítio ameno,
ensombrado de árvores com os seus campos matizados de boninas odorantes, e
nesse paraíso lançara uma legião de mancebos que ali encontravam palácios de
fabricação soberba e mulheres formosíssimas aptas a satisfazer os apetites
daqueles jovens inexperientes...
Quando o velho tirano necessitava
acometer os cristãos que vinham libertar os lugares sagrados do Oriente, fazia
retirar daquele ameno sítio de prazeres os seus jovens legionários
advertindo-os de que era aquele o paraíso dos guerreiros, e os que morressem na
guerra teriam como prêmio o regresso àquele vale de luxuriantes delícias...
Imagine-se o furor com que os
inimigos, acutilando-os, em guerra de extermínio, até que uns e outros
sucumbiam, como desesperados e amoucos para quem a vida era o único obstáculo à
felicidade paradisíaca.
Assim durou por muito tempo a
execranda seita até que um rei tártaro com as suas hediondas e inumeráveis
hostes deu cabo daquela tirania e daquela máquina homicida".
Morreram Ala-ed-Din e os seus sectários,
como no-lo reconta o famoso Marco Polo Veneto no seu livro de viagens e foi o
primeiro a dar-nos a notícia verídica deste sucesso do tempo das Cruzadas.
Mas o que ele não contou e o que não é
fácil conjecturar é o destino daquelas mulheres que foram o instrumento de tão
grande mortandade.
No dizer do viajante, eram elas
"mui bem apostadas e ensinadas a bailar, dançar, tanger, cantar, com as
suas vestiduras de desvairadas feições, feitas de ouro e pedras preciosas, garnidas
de maravilhoso aparato".
Para onde foram?
Provavelmente para o mundo inteiro
onde se pôs a sua prole nefasta a bailar e a dançar para perdição eterna dos
homens.
É sabido que Tamerlão, com ter vencido
o mundo, picado por uma delas, morreu.
Assim disse o teólogo e desde esse dia
fugi dos salões de comédia.
Contudo (tantos são os assaltos do
demônio), por vezes cuido que não seria de todo mau morrer como o grande
Tamerlão.
---
João
Ribeiro (Florestas de Exemplos, 1931)
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes
(2019)
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