6/07/2019

O último romântico (Conto), de João Grave



O último romântico

Ao entrar nessa noite na sua solitária vivenda de solteirão, Manuel encontrou sobre a mesa do escritório, junto duma jarra de cristal onde agonizavam azáleas brancas, uma carta que viera pelo correio. Entalou a ponta do charuto nos dentes, pousou a bengala de castão de ouro, tirou o chapéu, descalçou as luvas e, rasgando Indolentemente o envelope, procurou em vão uma assinatura que não encontrou. Escrevia-lhe um anônimo. Para o avisar da infidelidade de alguma das suas amantes? Para fazer-lhe uma ameaça? A dúvida acirrou-lhe a curiosidade: e, sentando-se numa cadeira estofada, encetou repousadamente a leitura das poucas linhas enegrecidas de tinta. Um frio riso de sarcasmo iluminou-se-lhe na boca de lábios delgados e pá- lidos: e foi serenamente que atirou para o cesto de vime que tinha junto de si, depois de o amarrotar nas mãos magras e de longos dedos, esse pedaço de papel inerte.

Era uma ameaça, com efeito! Alguém, um desconhecido, movido por sentimentos ignorados, avisava-o secamente de que, se continuasse as visitas noturnas ao jardim duma casa que ficava fora da cidade, onde ia três vezes por semana, galopando por caminhos desertos sobre o dorso dum cavalo, podia muito bem encontrar na sua jornada a morte em vez do amor...

Manuel tinha então trinta anos, era audaz, forte, bravo. Todas as manhãs, antes do almoço, em seguida ao banho frio que o tonificava, fazia duas horas seguidas de esgrima: e, como possuía fortuna, dividia o seu tempo pelos prazeres da boêmia elegante e pela adoração das mulheres. Não o atormentavam curiosidades de espírito e de inteligência, que jovialmente classificava de estopadas. No seu gabinete de trabalho, em vez de livros, de quadros, de mármores, da beleza criada pelos poetas, pelos romancistas, pelos estatuários, pelos pintores, em que pudesse repousar um momento os olhos cansados, existiam retratos femininos sorrindo convencionalmente, e maços de cartas amorosas, catalogadas e numeradas por sua ordem. Aos amigos que o visitavam costumava dizer, com ironia:

— Aqui tenho eu a minha biblioteca e a minha galeria de pintura. Às especulações filosóficas ou cientificas, prefiro o lirismo. Ora, as mulheres são os maiores líricos de toda a arte humana. Aquelas que não sabem exprimir emoções pela música do verso, nem por isso deixam de ser as grandes inspiradoras. Laura, Virgínia, Catarina de Ataíde, a Joaninha, do Vale de Santarém, Mimi Pinson, não desaparecem facilmente da história... Que vos parece?

— Parece-nos que estás na verdade — respondiam os amigos, entre gargalhadas.

— É claro que estou!...

E placidamente, sem um entusiasmo mais caloroso e uma palavra mais viva, indicando os retratos, pregados no estofo da parede, com a ponteira da badine, narrava o romance perpetuado por cada uma das efígies inexpressivas e banais.

— Vejam esta, por exemplo. No doce tempo em que a conheci e com ela passeei de braço dado pelas verdes e floridas campinas que Plorian cantaria em soluçantes estrofes, chamava-se Elvira — não a Elvira de D. João nem a Elvira de quem Lamartine, num poema lamecha, comparou a palidez da face à palidez da lua, mas Elvira de Menezes. Tocava no piano a Súplica à Virgem, lia os Ciúmes de Bardo e bordava a miçanga. Amamo-nos muito; mas um dia, quando a nossa ternura resvalou para o escândalo — porque não há virtude que resista ao tempo — uma bengala fraterna acabou, providencialmente para mim, com o arroubo sentimental, de que se salvou apenas o retrato.

— E depois?

— Depois, acabou tudo! Não sei o que foi feito dela, porque não costumo entregar-me a investigações de arqueologia amorosa.

Acendendo um charuto, cinicamente Manuel continuava:

— Com esta Adelaide — Adelaide de Mendonça — estive eu para casar. Pelo menos, assim lho prometi naquela hora inolvidável em que, como Paulo e Francesca, nós ambos líamos, no mesmo livro, a meiga história de Lanceloto... Não sei, porém, que complicações surgiram, que não pude cumprir as promessas.

— É admirável! — bradaram, em coro, os companheiros.

— Nas minhas paixões tudo é admirável; nada existe de trivial.

— Mas revela-nos o segredo dos teus triunfos, homem feliz!...

— Não se ensina ninguém a triunfar. Vence-se pelo próprio esforço, por dons que nascem conosco, por qualidades intransmissíveis. Primeiro, é preciso saber...

— Mentir.

— Assim mesmo! Em amor, a mentira dos que aspiram à conquista, é indispensável. Pela verdade, embora isso vos pareça paradoxal, nunca se renderam corações. Mentir, mentir sempre, eis a fórmula!...

— E que fazes tu às iludidas?

— Faço-lhes isto: — eternizo-as pela fotografia. Meninos, mais tarde, quando chegarem as tristezas, as amarguras da invalidez, as decadências irremediáveis, a gota, o reumatismo, será suave viver de recordações e ter presentes as imagens lindas que se amaram. As boas e ingênuas raparigas que ornamentam este compartimento, transformar-se hão nos meus espectros inefáveis daqui a vinte anos. Piedosamente conviverei então com elas...

— Devemos confessar que tens espírito — murmuravam os estúrdios, lisonjeando-o.

— Sois simplesmente equitativos e justiceiros — concluía Manuel, sorrindo.

Aconchegando-se na sua cadeira de braços e de flácidas molas, de pernas estendidas, com as mãos cruzadas por detrás da cabeça indolentemente recostada, Manuel cismava, deixando errar a vista pelas fotografias pendentes das paredes. A carta, longe de assustá-lo, mais lhe avivara na memória e no desejo a confiante mulher que, em certas noites, ia ver, colhendo no ar a flor pura que ela deixava cair do balcão alto. Encontrara-a uma vez, no teatro, entre a mãe e o pai, um homem de austera aparência e barbas encanecidas, e logo perdidamente se apaixonou. No meio da velhice, a mocidade virginal da linda rapariga esplendia ainda mais. Durante a representação, não desviara a vista do camarote em que ela estava, aureolada pela massa dos cabelos louros, iluminada pelos jogos de luz das pedrarias que acendiam faiscações no seu colo ondulante de cisne róseo. Ao descer do pano, esperou no átrio que ela saísse e seguiu-a de longe até ao hotel. Corrompeu os criados e soube-lhe o nome. Chamava-se Beatriz, tinha dezoito anos e vivia numa quinta pouco distante da cidade.

Daí em diante, dirigiu os seus passeios, a cavalo, para os lados do sítio tranquilo em que ficava a morada da desconhecida — e o idílio começou, primeiro, em cartas ardentes, apaixonadas, duma literatura absurda com que Manuel costumava iludir as almas cândidas, e mais tarde em demoradas conversas fora de horas, no misterioso silêncio da noite favorável aos que amam. Beatriz esperava que toda a vivenda adormecesse, que todos os ruídos se calassem, e, abrindo cautelosamente a janela do quarto, que respirava para o jardim, ali permanecia friorenta e embrulhando-se em pesadas, moles peles, sob as estrelas, dialogando com Manuel como outrora, em Verona, Julieta dialogava com Romeu até que os rouxinóis despertassem nas romanzeiras em flor, ou que as cotovias, batendo as asas no azul, saudassem com seu vibrante canto o alvorecer da madrugada. Ele chegava já quando, pelas encostas ou pelos vales, casais e granjas repousavam, prendia o cavalo, pelas rédeas, a um tronco de árvore, apertava nervosamente na mão a coronha da pistola, saltava o muro da quinta e lentamente, como um ladrão, espiando as espessuras no receio das ciladas imprevistas, aproximava-se de Beatriz, que lhe falava em voz baixa e trêmula de comoção.

Este capricho passional aos trinta anos, em que já se evocavam saudosamente as recordações das felicidades extintas, exerceu uma ação profunda na psicologia de Manuel. Deixou de aparecer na roda jovial dos amigos, de associar-se às ruidosas ceias com champanhe, flores e mulheres, começou a andar preocupado e melancólico — e isto intrigava os que o haviam conhecido alvoroçadamente alegre, esquecendo mais depressa as amantes dum dia do que as rosas frescas que lhe murchavam na lapela. Que seria? Bento de Sousa, o sagaz psicólogo do grupo, quis explicar a transformação repentina que em Manuel se operara, dizendo:

— Temos duas coisas essenciais a considerar neste fenômeno: — o amor e a tênia. São dois fatores de natureza diversa mas ambos notáveis para as perturbações dum temperamento como o do nosso pobre amigo. Não se mostra, não há quem o veja, esconde-se, suspira, tem longas vigílias, fomes de estômago e de ideal? Ou ama intensamente ou a bicha solitária lhe empobrece o organismo.

— Procuremos, portanto, um remédio heroico que o liberte — aconselhou o estouvado Tristão, que atirava ao vento os últimos punhados de ouro duma avultada herança.

— Já o encontrei — acudia Bento, soprando à brisa o fumo da cigarrilha turca. Ou menina, ou pevides de abóbora...

E logo decidiram, entre furiosa gritaria, procurar Manuel, obrigando-o a tratar-se. Ele, porém, não os recebeu, isolando-se ainda mais para que o não interrompessem na doçura das suas revertes.

A carta anônima prevenindo-o de surpresas trágicas durante as suas caminhadas noturnas, tinha-a Manuel olvidado completamente. Possuía uma confiança absoluta no seu destino amoroso, que nunca o traíra, e nas balas da sua pistola, que sempre o acompanhava nas vagabundagens a desoras, através de atalhos, de matagais, de brenhas agrestes, que nenhum ser vivo humanizava com a sua presença.

Embuçado no farto capote, com o chapeirão de feltro carregado sobre os olhos, as rédeas presas na mão, os pés bem firmes nos estribos, a brasa do charuto ardendo na boca, afrontava os fantasmas da sombra altivamente, avançando sem um estremecimento, sem um desmaio de coragem. Era pontual às entrevistas realizadas na solitude do jardim de Beatriz, que no encanto, na embriaguez dum amor que nunca experimentara, tinha para ele a beleza estranha da Ilha da Ventura que tantas vezes idealizara e onde as flores nunca se fanavam, rescendendo ao vento brando sob um céu continuamente azul. Desde que nele penetrava e vislumbrava o vulto tímido de Beatriz, curvada sobre o peitoril da janela, era como se penetrasse na região lendária da Graça, onde se ignorava o ardor das lágrimas, o travor dos vastos males, a angústia permanente das almas, a infinita e irremediável desgraça que deriva do fundo mar da dor. Ela era inocente e casta, tinha adoráveis delicadezas e a luz dos seus olhos, purificada e brilhante, fazia erguer uma alvorada no peito de Manuel. Não conseguira, porém, que Beatriz descesse ao jardim, confiasse uma fragilidade enternecedora à sua força e à sua proteção.

— Por que não havemos de faiar assim?... Tenho medo, muito medo! — respondia ela, às suas desesperadas solicitações.

— Medo de mim? — preguntava ele, amimando a voz. Medo de mim, que apenas vivo para ti, para a tua felicidade?

— Não, que ideia! — interrompia ela. Se tivesse medo de ti, não me encontravas neste logar. Assusta-me a noite, o receio de que nos surpreendam. Na quinta há criados. Podem acordar, chamar o papá...

— Bem sei! Não me amas!

— Não te amo?

— Não! O verdadeiro amor não receia, não sabe fazer cálculos.

— Mas és injusto, injusto! Tem pena de mim!...

Já Manuel cogitava nos meios de escalar a janela, de apertá-la nos seus braços, de esmagar-lhe a boca virgínea com um beijo imaterial, longo, ansioso, em que se exalasse toda a sua emoção e que apagasse a febre voluptuosa que o devorava, quando Beatriz, por fim, cedeu às suas súplicas. Fechando vagarosamente as vidraças, para não produzir ruído, abafou-se numa manta preta e veio, de coração palpitante e rosto abrasado, encontrar-se com Manuel perto dos chorões, que derramavam a sua desgrenhada cabelugem verde à beira dum tanque cheio de água transparente e morta.

— É para que não me acuses mais! — exclamou ela, estreitando entre as suas mãos as de Manuel.

— Obrigado!

— Por ti, quero zombar de todos os perigos.

Mas respeita a veneração que te tenho e não me faças envergonhar de mim própria!

— Confia na sinceridade do meu amor!...

A noite estava escura. A aragem enchia de murmúrio a ramaria dos arvoredos. O rumor das folhas sobressaltava Beatriz, que se agarrava nervosamente ao braço de Manuel, no seu lento passeio pelas alamedas areadas.

Ao longe, no silêncio que pesava sobre a natureza mergulhada em quietude, latiam cães. Da sombra compacta, a cada momento irrompiam formas espectrais e hirtas de árvores acarvoadas na treva; mas, para os dois namorados, as horas que tão apressadamente fugiam tinham um sabor deleitoso e um enlevo inenarrável. A serenidade envolvente comunicava a essas horas divinas uma suavidade e uma poesia incomparáveis...

Por fim, separaram-se com lentidão e a tristeza de todo o adeus. Beatriz, arrepiada de frio, reentrou em casa pela porta que dava para o jardim e que havia deixado cerrada; e subindo novamente à janela, despediu-se de Manuel que em baixo a saudava, tirando o chapéu e prendendo no peito a rosa branca que como sempre, ela colhia ao fim da tarde e lhe ofertava como uma promessa de constância naquela ternura que era a sua ilusão suprema e a sua suprema esperança. Depois, saltando o muro, tomou as rédeas do cavalo, montou e partiu a galope, como um cavaleiro-trovador...

Durante muito tempo Manuel entregou-se à idealização do fino amor que o absorvia e que à sua sequiosa ansiedade emotiva trouxera a paz, o contentamento, a vontade de viver. O mistério em que esse amor desabrochava como uma florescência maravilhosa, mais concorria para a sua exaltação. O segredo, a escuridão, as marchas errantes, sob o pálio fulgurante das estrelas, romantizavam-no...

Bruscamente, relembrou e carta anônima. Quem lhe teria escrito? Por certo um despeitado por desdéns invencíveis ou alguém que quisera
intrigá-lo. Fosse quem fosse, não temia ninguém! insensivelmente, tirara a pistola do bolso...

Corria agora por uma estreita vereda esganada entre taludes cortados quase verticalmente.

— Sítio propício para uma traição e para uma cobardia! — pensou.

Apesar de pretender dominar-se, agitava-o uma inquietação bizarra; mas galopava sempre.

— Alto! — bradou uma voz vinda do cabeço dum monte, onde os pinheiros ramalhavam ao vento.

Manuel voltou-se na sela e neste instante recebeu em cheio, no peito, as balas duma cerrada descarga de fuzilaria. O cavaleiro tombou para o lado, escabujando sobre as pedras, enquanto o cavalo, espantado pelo estrondo dos tiros, seguia a desapoderado galope com os estribos balouçando na carreira e as crinas flutuando à brisa.

O sangue, que escorria em borbotões dos buracos abertos pelas balas no corpo de Manuel, maculara a brancura da última rosa que lhe dera
Beatriz e que era, pousada sobre o cadáver, uma simbólica flor de amor e de morte.



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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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