O último
romântico
Ao entrar nessa noite na sua solitária
vivenda de solteirão, Manuel encontrou sobre a mesa do escritório, junto duma
jarra de cristal onde agonizavam azáleas brancas, uma carta
que viera pelo correio. Entalou a ponta do charuto nos dentes, pousou a bengala
de castão de ouro, tirou o chapéu, descalçou as luvas e, rasgando Indolentemente
o envelope, procurou em vão uma assinatura que não encontrou. Escrevia-lhe um
anônimo. Para o avisar da infidelidade de alguma das suas amantes? Para fazer-lhe
uma ameaça? A dúvida acirrou-lhe a curiosidade: e, sentando-se numa cadeira
estofada, encetou repousadamente a leitura das poucas linhas enegrecidas de
tinta. Um frio riso de sarcasmo iluminou-se-lhe na boca de lábios delgados e
pá- lidos: e foi serenamente que atirou para o cesto de vime que tinha junto de
si, depois de o amarrotar nas mãos magras e de longos dedos, esse pedaço de
papel inerte.
Era uma ameaça, com efeito! Alguém, um
desconhecido, movido por sentimentos ignorados, avisava-o secamente de que, se
continuasse as visitas noturnas ao jardim duma casa que ficava fora da cidade,
onde ia três vezes por semana, galopando por caminhos desertos sobre o dorso
dum cavalo, podia muito bem encontrar na sua jornada a morte em vez do amor...
Manuel tinha então trinta anos, era
audaz, forte, bravo. Todas as manhãs, antes do almoço, em seguida ao banho frio
que o tonificava, fazia duas horas seguidas de esgrima: e, como possuía
fortuna, dividia o seu tempo pelos prazeres da boêmia elegante e pela adoração
das mulheres. Não o atormentavam curiosidades de espírito e de inteligência,
que jovialmente classificava de estopadas. No seu gabinete de trabalho, em vez
de livros, de quadros, de mármores, da beleza criada pelos poetas, pelos
romancistas, pelos estatuários, pelos pintores, em que pudesse repousar um momento
os olhos cansados, existiam retratos femininos sorrindo convencionalmente, e maços
de cartas amorosas, catalogadas e numeradas por sua ordem. Aos amigos que o
visitavam costumava dizer, com ironia:
— Aqui tenho eu a minha biblioteca e a
minha galeria de pintura. Às especulações filosóficas ou cientificas, prefiro o
lirismo. Ora, as mulheres são os maiores líricos de toda a arte humana. Aquelas
que não sabem exprimir emoções pela música do verso, nem por isso deixam de ser
as grandes inspiradoras. Laura, Virgínia, Catarina de Ataíde, a Joaninha, do
Vale de Santarém, Mimi Pinson, não desaparecem facilmente da história... Que
vos parece?
— Parece-nos que estás na verdade — respondiam
os amigos, entre gargalhadas.
— É claro que estou!...
E placidamente, sem um entusiasmo mais
caloroso e uma palavra mais viva, indicando os retratos, pregados no estofo da
parede, com a ponteira da badine,
narrava o romance perpetuado por cada uma das efígies inexpressivas e banais.
— Vejam esta, por exemplo. No doce tempo
em que a conheci e com ela passeei de braço dado pelas verdes e floridas
campinas que Plorian cantaria em soluçantes estrofes, chamava-se Elvira — não a
Elvira de D. João nem a Elvira de quem Lamartine, num poema lamecha, comparou a
palidez da face à palidez da lua, mas Elvira de Menezes. Tocava no piano a Súplica à Virgem, lia os Ciúmes de Bardo e bordava a miçanga.
Amamo-nos muito; mas um dia, quando a nossa ternura resvalou para o escândalo —
porque não há virtude que resista ao tempo — uma bengala fraterna acabou, providencialmente
para mim, com o arroubo sentimental, de que se salvou apenas o retrato.
— E depois?
— Depois, acabou tudo! Não sei o que foi
feito dela, porque não costumo entregar-me a investigações de arqueologia
amorosa.
Acendendo um charuto, cinicamente Manuel
continuava:
— Com esta Adelaide — Adelaide de Mendonça
— estive eu para casar. Pelo menos, assim lho prometi naquela hora inolvidável
em que, como Paulo e Francesca, nós ambos líamos, no mesmo livro, a meiga
história de Lanceloto... Não sei, porém, que complicações surgiram, que não
pude cumprir as promessas.
— É admirável! — bradaram, em coro, os
companheiros.
— Nas minhas paixões tudo é admirável;
nada existe de trivial.
— Mas revela-nos o segredo dos teus
triunfos, homem feliz!...
— Não se ensina ninguém a triunfar. Vence-se
pelo próprio esforço, por dons que nascem conosco, por qualidades
intransmissíveis. Primeiro, é preciso saber...
— Mentir.
— Assim mesmo! Em amor, a mentira dos
que aspiram à conquista, é indispensável. Pela verdade, embora isso vos pareça
paradoxal, nunca se renderam corações. Mentir, mentir sempre, eis a fórmula!...
— E que fazes tu às iludidas?
— Faço-lhes isto: — eternizo-as pela
fotografia. Meninos, mais tarde, quando chegarem as tristezas, as amarguras da
invalidez, as decadências irremediáveis, a gota, o reumatismo, será suave viver
de recordações e ter presentes as imagens lindas que se amaram. As boas e ingênuas
raparigas que ornamentam este compartimento, transformar-se hão nos meus
espectros inefáveis daqui a vinte anos. Piedosamente conviverei então com elas...
— Devemos confessar que tens espírito —
murmuravam os estúrdios, lisonjeando-o.
— Sois simplesmente equitativos e
justiceiros — concluía Manuel, sorrindo.
Aconchegando-se na sua cadeira de braços
e de flácidas molas, de pernas estendidas, com as mãos cruzadas por detrás da
cabeça indolentemente recostada, Manuel cismava, deixando errar a vista pelas
fotografias pendentes das paredes. A carta, longe de assustá-lo, mais lhe avivara
na memória e no desejo a confiante mulher que, em certas noites, ia ver,
colhendo no ar a flor pura que ela deixava cair do balcão alto. Encontrara-a
uma vez, no teatro, entre a mãe e o pai, um homem de austera aparência e barbas
encanecidas, e logo perdidamente se apaixonou. No meio da velhice, a mocidade
virginal da linda rapariga esplendia ainda mais. Durante a representação, não
desviara a vista do camarote em que ela estava, aureolada pela massa dos cabelos
louros, iluminada pelos jogos de luz das pedrarias que acendiam faiscações no
seu colo ondulante de cisne róseo. Ao descer do pano, esperou no átrio que ela
saísse e seguiu-a de longe até ao hotel. Corrompeu os criados e soube-lhe o
nome. Chamava-se Beatriz, tinha dezoito anos e vivia numa quinta pouco distante
da cidade.
Daí em diante, dirigiu os seus passeios,
a cavalo, para os lados do sítio tranquilo em que ficava a morada da desconhecida
— e o idílio começou, primeiro, em cartas ardentes, apaixonadas, duma
literatura absurda com que Manuel costumava iludir as almas cândidas, e mais
tarde em demoradas conversas fora de horas, no misterioso silêncio da noite
favorável aos que amam. Beatriz esperava que toda a vivenda adormecesse, que
todos os ruídos se calassem, e, abrindo cautelosamente a janela do quarto, que
respirava para o jardim, ali permanecia friorenta e embrulhando-se em pesadas,
moles peles, sob as estrelas, dialogando com Manuel como outrora, em Verona,
Julieta dialogava com Romeu até que os rouxinóis despertassem nas romanzeiras
em flor, ou que as cotovias, batendo as asas no azul, saudassem com seu
vibrante canto o alvorecer da madrugada. Ele chegava já quando, pelas encostas
ou pelos vales, casais e granjas repousavam, prendia o cavalo, pelas rédeas, a
um tronco de árvore, apertava nervosamente na mão a coronha da pistola, saltava
o muro da quinta e lentamente, como um ladrão, espiando as espessuras no receio
das ciladas imprevistas, aproximava-se de Beatriz, que lhe falava em voz baixa
e trêmula de comoção.
Este capricho passional aos trinta anos,
em que já se evocavam saudosamente as recordações das felicidades extintas,
exerceu uma ação profunda na psicologia de Manuel. Deixou de aparecer na roda
jovial dos amigos, de associar-se às ruidosas ceias com champanhe, flores e mulheres,
começou a andar preocupado e melancólico — e isto intrigava os que o haviam
conhecido alvoroçadamente alegre, esquecendo mais depressa as amantes dum dia
do que as rosas frescas que lhe murchavam na lapela. Que seria? Bento de Sousa,
o sagaz psicólogo do grupo, quis explicar a transformação repentina que em Manuel
se operara, dizendo:
— Temos duas coisas essenciais a
considerar neste fenômeno: — o amor e a tênia. São dois fatores de natureza
diversa mas ambos notáveis para as perturbações dum temperamento como o do
nosso pobre amigo. Não se mostra, não há quem o veja, esconde-se, suspira, tem
longas vigílias, fomes de estômago e de ideal? Ou ama intensamente ou a bicha
solitária lhe empobrece o organismo.
— Procuremos, portanto, um remédio heroico
que o liberte — aconselhou o estouvado Tristão, que atirava ao vento os últimos
punhados de ouro duma avultada herança.
— Já o encontrei — acudia Bento,
soprando à brisa o fumo da cigarrilha turca. Ou menina, ou pevides de abóbora...
E logo decidiram, entre furiosa
gritaria, procurar Manuel, obrigando-o a tratar-se. Ele, porém, não os recebeu,
isolando-se ainda mais para que o não interrompessem na doçura das suas
revertes.
A carta anônima prevenindo-o de
surpresas trágicas durante as suas caminhadas noturnas, tinha-a Manuel olvidado
completamente. Possuía uma confiança absoluta no seu destino amoroso, que nunca
o traíra, e nas balas da sua pistola, que sempre o acompanhava nas vagabundagens
a desoras, através de atalhos, de matagais, de brenhas agrestes, que nenhum ser
vivo humanizava com a sua presença.
Embuçado no farto capote, com o
chapeirão de feltro carregado sobre os olhos, as rédeas presas na mão, os pés
bem firmes nos estribos, a brasa do charuto ardendo na boca, afrontava os
fantasmas da sombra altivamente, avançando sem um estremecimento, sem um
desmaio de coragem. Era pontual às entrevistas realizadas na solitude do jardim
de Beatriz, que no encanto, na embriaguez dum amor que nunca experimentara,
tinha para ele a beleza estranha da Ilha da Ventura que tantas vezes idealizara
e onde as flores nunca se fanavam, rescendendo ao vento brando sob um céu
continuamente azul. Desde que nele penetrava e vislumbrava o vulto tímido de
Beatriz, curvada sobre o peitoril da janela, era como se penetrasse na região
lendária da Graça, onde se ignorava o ardor das lágrimas, o travor dos vastos
males, a angústia permanente das almas, a infinita e irremediável desgraça que
deriva do fundo mar da dor. Ela era inocente e casta, tinha adoráveis
delicadezas e a luz dos seus olhos, purificada e brilhante, fazia erguer uma
alvorada no peito de Manuel. Não conseguira, porém, que Beatriz descesse ao jardim,
confiasse uma fragilidade enternecedora à sua força e à sua proteção.
— Por que não havemos de faiar assim?...
Tenho medo, muito medo! — respondia ela, às suas desesperadas solicitações.
— Medo de mim? — preguntava ele, amimando
a voz. Medo de mim, que apenas vivo para ti, para a tua felicidade?
— Não, que ideia! — interrompia ela. Se
tivesse medo de ti, não me encontravas neste logar. Assusta-me a noite, o
receio de que nos surpreendam. Na quinta há criados. Podem acordar, chamar o
papá...
— Bem sei! Não me amas!
— Não te amo?
— Não! O verdadeiro amor não receia, não
sabe fazer cálculos.
— Mas és injusto, injusto! Tem pena de
mim!...
Já Manuel cogitava nos meios de escalar
a janela, de apertá-la nos seus braços, de esmagar-lhe a boca virgínea com um
beijo imaterial, longo, ansioso, em que se exalasse toda a sua emoção e que
apagasse a febre voluptuosa que o devorava, quando Beatriz, por fim, cedeu às
suas súplicas. Fechando vagarosamente as vidraças, para não produzir ruído,
abafou-se numa manta preta e veio, de coração palpitante e rosto abrasado,
encontrar-se com Manuel perto dos chorões, que derramavam a sua desgrenhada cabelugem
verde à beira dum tanque cheio de água transparente e morta.
— É para que não me acuses mais! —
exclamou ela, estreitando entre as suas mãos as de Manuel.
— Obrigado!
— Por ti, quero zombar de todos os
perigos.
Mas respeita a veneração que te tenho e
não me faças envergonhar de mim própria!
— Confia na sinceridade do meu amor!...
A noite estava escura. A aragem enchia
de murmúrio a ramaria dos arvoredos. O rumor das folhas sobressaltava Beatriz,
que se agarrava nervosamente ao braço de Manuel, no seu lento passeio pelas
alamedas areadas.
Ao longe, no silêncio que pesava sobre a
natureza mergulhada em quietude, latiam cães. Da sombra compacta, a cada
momento irrompiam formas espectrais e hirtas de árvores acarvoadas na treva;
mas, para os dois namorados, as horas que tão apressadamente fugiam tinham um
sabor deleitoso e um enlevo inenarrável. A serenidade envolvente comunicava a
essas horas divinas uma suavidade e uma poesia incomparáveis...
Por fim, separaram-se com lentidão e a
tristeza de todo o adeus. Beatriz, arrepiada de frio, reentrou em casa pela
porta que dava para o jardim e que havia deixado cerrada; e subindo novamente à
janela, despediu-se de Manuel que em baixo a saudava, tirando o chapéu e prendendo
no peito a rosa branca que como sempre, ela colhia ao fim da tarde e lhe
ofertava como uma promessa de constância naquela ternura que era a sua ilusão
suprema e a sua suprema esperança. Depois, saltando o muro, tomou as rédeas do
cavalo, montou e partiu a galope, como um cavaleiro-trovador...
Durante muito tempo Manuel entregou-se à
idealização do fino amor que o absorvia e que à sua sequiosa ansiedade emotiva
trouxera a paz, o contentamento, a vontade de viver. O mistério em que esse
amor desabrochava como uma florescência maravilhosa, mais concorria para a sua
exaltação. O segredo, a escuridão, as marchas errantes, sob o pálio fulgurante
das estrelas, romantizavam-no...
Bruscamente, relembrou e carta anônima.
Quem lhe teria escrito? Por certo um despeitado por desdéns invencíveis ou
alguém que quisera
intrigá-lo. Fosse quem fosse, não temia
ninguém! insensivelmente, tirara a pistola do bolso...
Corria agora por uma estreita vereda
esganada entre taludes cortados quase verticalmente.
— Sítio propício para uma traição e para
uma cobardia! — pensou.
Apesar de pretender dominar-se,
agitava-o uma inquietação bizarra; mas galopava sempre.
— Alto! — bradou uma voz vinda do cabeço
dum monte, onde os pinheiros ramalhavam ao vento.
Manuel voltou-se na sela e neste
instante recebeu em cheio, no peito, as balas duma cerrada descarga de
fuzilaria. O cavaleiro tombou para o lado, escabujando sobre as pedras,
enquanto o cavalo, espantado pelo estrondo dos tiros, seguia a desapoderado
galope com os estribos balouçando na carreira e as crinas flutuando à brisa.
O sangue, que escorria em borbotões dos
buracos abertos pelas balas no corpo de Manuel, maculara a brancura da última
rosa que lhe dera
Beatriz e que era, pousada sobre o
cadáver, uma simbólica flor de amor e de morte.
---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...