Existia uma lenda em torno dessa
pesada construção de granito, que domina o largo em frente do convento. Quando
lá estive, asseguraram-me haver muito tempo que se não viam abertas nenhumas
das quinze janelas rasgadas da frontaria; somente em cada ano, no dia da
procissão do Corpo de Deus, logo de manhã cedo, dos parapeitos das grades das
janelas, sempre fechadas, pendiam magníficas colchas de damasco vermelho, que à
noite desapareciam como por encanto. O povo, na sua credulidade, ajuntava que
nunca ninguém tinha conseguido ver do largo, ou das casas em redor, dependurar
as colchas; e, porque uma vez um homem passara a noite nos degraus da frontaria
do convento, com o fim de surpreender esse mistério fora encontrado na manhã
seguinte, estendido e sem fala, como morto!
Sabia, por informações, da existência
da cadeirinha e indaguei quem na vila, me poderia dar uma carta que me
introduzisse junto da fidalga. Indicaram-me um brasileiro, que, na mesma
festividade do Corpo de Deus, fazia cobrir os seus cavalos com os ricos telizes
de veludo verde bordados a ouro em cujo centro destacava o brasão que se admira
esculpido no frontão do palacete. Conquanto as suas relações não fossem diretamente
com a fidalga, mas sim com o escudeiro, aceitei a recomendação que me deu para
o antigo criado da casa.
Bati por algum tempo ao vasto
portão, e cada argolada que eu feria na chapa de ferro repercutia-se lá dentro
num som cavo e profundo. Os raros transeuntes que passavam paravam um instante,
atônitos e espantados, ao ver que alguém se atrevia a bater àquela casa!
Passados alguns minutos a
porta rangeu vagarosamente nos enferrujados gonzos, aberta pelo próprio
escudeiro. Apesar do seu aspeto aprumado, não era difícil adivinhar-lhe através
dos raros cabelos brancos e das rugas profundas que lhe sulcavam a fisionomia
os seus setenta e oito anos bem contados. Todo vestido de preto, com o pescoço
esguio encaixado num lenço de seda preto alguém, enrolado numas poucas de
voltas por cima do colarinho alto e sem goma da sua grossa camisa de linho,
tinha ao mesmo tempo um ar solene e submisso.
Informei-o do fim da minha
visita; escutou-me com atenção, e, quando acabei, disse-me:
– Devo muitas obrigações ao Sr.
comendador, ou melhor esta casa de que hoje sou, pela força das circunstâncias,
uma espécie de feitor. Nada posso fazer sem ordem da fidalga. Vou falar com ela
e o que lhe posso assegurar é que pela minha parte lhe direi que a cadeirinha,
estando-se para aí a estragar, o melhor é vendê-la!
Apontando-me para um dos
compridos bancos de pinho pintados de azul, de altas costas recortadas e
enfileirados ao longo das paredes, saiu por uma das pequenas portas que
ladeavam o grande arco de cantaria que dava ingresso à escada. Subia esta num
lanço até ao primeiro patamar, onde recebia a luz de duas janelas resguardadas
de alto abaixo por pesadas grades de ferro e separadas por um nicho aberto a meio
da parede e no qual se abrigava uma estátua de lioz, de tamanho natural. Em seguida
bifurcava-se a escada em dois ramos que findavam no andar nobre. No soco da estátua
lia-se em grandes letras a palavra – Felicidade – representada pelo artista
ignorado por uma figura de mulher, envolta em fartas roupagens, entornando
sobre as cabeças de duas crianças, que brincavam aos seus pés, uma cornucópia
de flores. Do fecho da abobada da loja estava suspenso um enorme lampião de
latão esverdinhado pelas nódoas de azebre e com os vidros escurecidos pela
poeira. No interior, no grande depósito de azeite, uma aranha urdira pachorrentamente
a sua teia em volta dos três bicos, viúvos de torcida.
Quando o escudeiro apareceu
diante de mim, trazendo na mão um molho de chaves, pensava eu nos anos que
teriam decorrido desde a última vez que se acendera aquela lâmpada!...
– Se a cadeirinha lhe agradar,
a fidalga consente em vender-lha. Queira acompanhar-me.
Segui-o através dum dédalo de
corredores, de casas escuras, até ao extremo do palacete. Abertas de par em par
as portas das janelas, vi que na espaçosa cocheira não havia senão um grande e
velho churrião e a elegante cadeirinha coberta por uma colcha de chita de
ramagens. Eu próprio me apressei a descobri-la, ansioso por ver se a realidade
correspondia à descrição que dela me tinham feito. Não me haviam enganado, e,
como a fidalga estava disposta a vendê-la, mais libra menos libra, seria minha.
Tinha ganho o dia e dava-me por bem pago do incomodo da minha viagem. O
escudeiro, sempre muito grave, levantou o tejadilho. A vista do forro de cetim
tão bem conservado fez-me o efeito da tampa duma apetitosa caixa de amêndoas
que se tivesse aberto diante de mim! Depois, com o tejadilho ainda suspenso em
alçapão, levantou o gancho do fecho e abriu a porta, dizendo-me:
– Repare bem como tudo isto
está! Até parece que saiu agora mesmo da oficina. Também, desde que sirvo esta
casa, ela não saiu senão uma vez!...
Foi tal a expressão de
profunda melancolia que se estampou no semblante, ao proferir estas últimas
palavras, que eu receoso de o ver arrependido dos seus bons ofícios, atalhei a
conversa inquirindo do preço. Com quanto a quantia exigida não fosse excessiva,
regateei um instante, contando-lhe depois na palma da mão trêmula as libras
ajustadas e perguntei se daí a pouco podia voltar com um carpinteiro para a fazer
encaixotar.
– Sim senhor. Mas sempre me há
de dizer para que é que comprou a cadeirinha. É para alguma senhora doente?
Confirmei a suposição. Se
tivesse dito a verdade, o homem, que visivelmente estava convencido de que eu
tinha dado muito dinheiro, principiaria desde esse momento a desconfiar do negócio.
Na província não se tem a menor ideia do que constitui o valor duma
antiguidade; mas, quando o suspeitam, imaginam logo possuir uma grande riqueza
e não hesitam em pedir as maiores exorbitâncias.
Saí voltando uma hora mais
tarde seguido por um carpinteiro que levava além da serra enfiada no braço a
ceira com os pregos e o resto da ferramenta. Seguia-nos um garoto derreado pelo
peso das compridas taboas de forro com que ia carregado.
O velho escudeiro, depois de
me ter pedido licença para tirar o casaco, principiou, com o desembaraço compatível
com a sua idade, a ajudar a fazer a grade. Findo o trabalho, quando o pretendi
gratificar, não consentiu. Limpou as mãos a um pano, enfiou o casaco e
encostou-se pensativo ao jogo do churrião, enquanto dois homens, que o garoto
tinha ido chamar, levantavam do chão a pesada padiola carregada com a
cadeirinha e os varais. Ao transporem a porta da cocheira, reparei que duas
grossas lágrimas escorriam lentamente pelas faces cavadas do velho e que o seu
olhar tinha a fixidez baça dos olhos dum cadáver! Passados alguns minutos, como
quem desperta dum pesadelo, voltou a cabeça; e, dando comigo que o fitava com visível
inquietação, sorriu com bondade desculpando-se:
– Tontices de velho! Não
repare. Hoje é a cadeirinha que sai para nunca mais voltar! Amanhã serei eu,
depois a fidalga. A todos há de chegar a vez!...
***
Quando cheguei a Lisboa,
mandei dourar de novo os metais das guarnições e lavar com uma mistura de cera
e aguarás o couro dos painéis. Assim restaurada, coloquei a cadeirinha no vestíbulo
da minha casa, no angulo da escada que sobe para o primeiro andar. Um dia, já
passado algum tempo, ao mostrá-la a um amigo, descobri, dissimulada nas pregas
do forro interior da porta, uma enorme bolsa. Cheio de curiosidade meti a mão e
o braço dentro daquela espécie de saco, e, esgaravatando lá dentro, tirei do
fundo um papel amarrotado. O meu amigo sorriu-se ao ler na minha cara o meu
desapontamento! Realmente tinha-me passado pela cabeça que encontraria alguma coisa
curiosa. Ri-me também e só depois de me achar só, quando ia deitar fora o papel
que eu distraidamente reduzira a uma bola, é que me lembrei de o examinar.
Desdobrei-o com cuidado, espalmando-o contra a mesa. Era uma meia folha de
papel ordinário e grosso, escrita de cima abaixo sem uma entrelinha, sem uma
única interrupção. Não me foi fácil a leitura. A letra, pequena e unida,
parecia ter sido feita a sépia; os finos muito tênues e os grossos esbatidos
confundiam-se com o tom amarelado do papel; de longe a longe manchas carregadas
tornavam quase ininteligíveis algumas palavras. Soletrando como uma criança,
consegui decifrar a carta. Dizia assim:
"Não sei para que lhe
escrevo! mas diz-me o coração que logo, ao entrar na igreja, na confusão dum
momento, eu lhe poderei entregar esta carta. Quero que saibas as amaríssimas lágrimas
que tenho chorado, e que agora me impedem de ver as palavras que vou deixando cair
neste papel. Entre a minha felicidade e a obediência que devo a minha mãe, se
hesitei, não tive forças para vencer. Sacrifico a minha ventura. Se tivesse
pai, quer-me parecer que nada disto sucederia. Casaria consigo, seria feliz!
Assim, passadas algumas horas, estarei para sempre ligada ao homem que aborreço,
porque não o amo, porque só a si adoro neste mundo! Perdoe a minha fraqueza, se
fraqueza é não saber desobedecer a minha mãe. Não tive coragem para suportar a
sua maldição. Perdoe-me como Deus me vai perdoar quando logo, diante do altar,
eu, mentindo, repetir as palavras sacramentais que o padre proferir!... Nunca
mais procure ver-me. Fuja para bem longe!
A sua imagem sinto-a tão
gravada no meu coração, que nem a morte conseguirá arrancar-ma cá de dentro; e,
se no meio de todas as amarguras que lhe possam estar reservadas na vida, o
consola a ideia de que a mais desditosa das mulheres lhe consagra pelo
pensamento todos os minutos da sua atribulada existência, juro-lhe que a minha
alma lhe pertence e pertencerá sempre! Adeus!... Perdoe-me como Deus me vai
perdoar!..."
Que mais precioso achado podia
eu ter feito do que esta carta que me dava o sentimento de todo um romance d'amor!
Que fora escrita por uma
infeliz, não era difícil adivinhar. Mas quem?... Quantos anos teriam passado
depois das lágrimas sentidamente vertidas sobre essa pobre folha de papel e
cujos vestígios o decorrer do tempo não pudera ainda apagar!?... Teria morrido,
ou esquecida desse amor e velha, rodeada de filhos, teria encontrado na
felicidade deles a compensação da ventura que em moça lhe roubaram!?... Ou,
sonho de criança, não teria esse amor sido apenas a ilusão dum só instante, e o
marido que tanto lhe repugnava não se tornaria, ao fim de curto espaço, em
amante muito querido?!...
A todas estas interrogações
que no meu espírito se formulavam não me sabia responder a folha de papel muda
e indiscreta, confidente dum coração de criança! Devia ser muito nova quem
assim entregava a sua alma ao caso dum encontro tão fortuito. O que para mim
não oferecia a menor sombra de duvida, recordando-me da comoção do escudeiro ao
ver sair de casa a cadeirinha, é que a noiva tinha sido conduzida à igreja, e,
que na impossibilidade de entregar a carta ao seu amado, a deixara ali
escondida. E estou a vê-la formosa, – por que não havia de o ser? – toda
vestida de branco, coroada da flor de laranjeira, envolta no véu nupcial, tão pálida
como a lua um momento velava por uma nuvem transparente, apertando
convulsamente na mão a carta escondida pelo lenço de cambraia, descer, seguída dos
convidados e entre as alas dos criados, os degraus da larga escadaria! E em
frente dela, que sentia o coração a estalar por debaixo do corpete de cetim do
seu vestido de noiva, a estátua da felicidade com o seu perene sorriso de
pedra, entornando continuamente, numa atitude triunfante, a cornucópia das imarcescíveis
flores da ventura!...
Desgraçada criança!...
Como me não era possível
partir imediatamente para a província, guardei a carta como uma relíquia, até
poder cumprir o dever que a mim próprio me impus de a entregar na mão da velha
fidalga. Iria por certo amargurar os últimos dias da sua vida, relembrando-lhe
por uma forma tão precisa uma cena bem dolorosa, ou talvez avivar-lhe um
remorso, se acaso ela tinha sido a desnaturada mãe que não soubera enxugar as lágrimas
da filha!
Essa carta, porém, não me
pertencia e eu tinha de a restituir. Logo que pude, fiz a minha pequena mala de
viagem e segui para o norte.
Era no verão; o sol, numa pulverização
intensa de luz, alagava de vida a melancólica paisagem do Minho, bela e monótona
como o motivo dum adágio duma musica clássica, que a breves compassos se
repete. Ao voltar à hospedaria, onde um ano antes estivera, perguntei pelo comendador,
que tão útil me tinha sido quando pretendi comprar a cadeirinha. Responderam-me
que tinha partido para o Brasil, havia dois meses. Restava-me o escudeiro. Desse
não indaguei; sabia onde havia de o encontrar. Apenas acabei o meu almoço, acendi
um charuto, e saí, a desempenhar-me da missão que ali me trouxera.
Ao chegar ao largo,
inteiramente deserto àquela hora de calma, estaquei surpreendido ao ver com escritos
as janelas da comprida fachada do palácio e a pedra d'armas do frontão amantada
com um pano preto golpeado! Como a porta da igreja do convento estava aberta,
ocorreu-me que o sacristão me poderia dar informações que naquele momento tanto
desejava.
Ao entrar na igreja
experimentei uma agradável sensação de bem estar. A frescura do ar que se
respirava debaixo das sombrias naves desoprimia-me dos calores sofridos em toda
a viajem. Quando os meus olhos se habituaram à escassa luz, coada pelos vidros
coloridos da lanterna do zimbório e da roseta do coro, descobri, ajoelhado à beira
duma sepultura duma das capelas laterais, a figura de um velho. Do lugar onde
estava não lhe podia ver a cara; reparando, porém, que no fecho do arco da capela
havia o escudo da família da fidalga, adquiri a certeza de que era o escudeiro
quem tão devotadamente orava pelo eterno descanso da sua ama. Se apenas
escutasse os impulsos da minha ardente curiosidade, teria arrancado o bom do
velho às suas orações; mas, como o não devesse fazer, encostei-me ao
guarda-vento, esperando impaciente que ele findasse as suas rezas. Atraído por
uma força invencível não despegava os olhos dele. Vi-o benzer-se e levantar do
chão o chapéu e a forte bengala de cana da Índia. Apoiado a ela, ergueu-se com
muito custo, caminhando depois em direção à porta. Como estava mudo! Tinha
perdido o prumo correto, e, ao andar, já arrastava os pés. Só ao molhar a mão
na pia d'água benta é que deu comigo. Reconheceu-me logo, e, ao ver que lhe
estendia a mão, apertou-ma com reconhecimento. Saímos juntos da igreja. Falei-lhe
da morte da fidalga, da grande magoa que essa desgraça lhe devia ter causado.
Enterneceu-se com as minhas palavras.
No angulo do largo formado
pelo muro da cerca do convento com o muro do jardim do palácio caía uma faixa
de sombra. Três enormes pedras, esquecidas ali, serviram-nos de banco. Uma vez
sentado perguntei-lhe a quem a fidalga tinha deixado a fortuna.
– Como não tinha herdeiros
deixou tudo à Misericórdia da vila e a mim uma pensão enquanto vivo. Nada me
falta; no dia, porém, em que tive de sair daquela casa, até julguei que
morria!...
Não chorava, mas, a cada
instante, limpava os olhos continuadamente umedecidos.
– Como nada lhe falta –
atalhei – é o essencial. Depois acrescentei:
– E eu que vinha para falar
com a fidalga!
– Deus lhe fale n'alma. Era
por certo negócio importante. Vir de tão longe!
– Desejava entregar-lhe um
papel que encontrei dentro da cadeirinha, que o ano passado lhe comprei.
– Um papel?
– Uma carta.
E, como se estivesse inteiramente
ao corrente de todas as particularidades que diziam respeito ao meu achado,
repeti-lhe o romance que, naquele momento, mais natural se me afigurava.
Ouviu-me silenciosamente; somente, de vez em quando, abanava a cabeça; e, como
na sua fisionomia transparecesse uma expressão de vaga desconfiança, tirei a
carta do bolso e depois de a ler em voz alta passei-lha para as mãos. Agarrou nela
beijando-a umas poucas de vezes, e,
sempre sem chorar, apenas com a voz muito mais trêmula exclamou:
– Ai! minha rica menina, minha
rica menina!...
Reposto um pouco do abalo de
tão violenta comoção, referiu-me com uma tocante sinceridade a história fiel desses
amores.
– A fidalga, esta que agora
morreu, não tinha senão aquela filha. Linda como os anjos, era mesmo um botão
de rosa quando se apaixonou pelo João do Cercal. O João não tinha eira nem
beira. Era, segundo se dizia, filho natural do
morgado d’Amiães. Fosse ou não
fosse, o que é certo é que o pai não fazia caso dele. A fidalga, quando soube desses
amores, armou uma trovoada em casa que até parecia que ia tudo raso. A
morgadinha definhava. O padre capelão aventou que o melhor seria casá-la. A
fidalga, Deus lhe perdoe, seguindo este conselho, ajustou-lhe o casamento com o
senhor da torre de Azaméis. Não tinha lá grande fama. Não faltava a uma feira e
gostava de jogar. A menina, que era mesmo uma santa, casou. Que de lágrimas lhe
vi chorar!
O velho escudeiro neste
momento chorava também.
– Nunca vi festa mais parecida
com um enterro do que a desse casamento!...
No próprio dia da boda
partiram para a Torre. O João, esse abalou daqui e foi para a Espanha para os
carlistas. Ao fim de quatro anos, a minha rica menina ficou viúva e sem filhos.
Já muito doente, ralada com os desgostos que o marido lhe dera, veio para a
companhia da fidalga, que Deus tenha, e aqui morreu, passado pouco tempo!...
– Também está enterrada ali
dentro – continuou apontando para a igreja. – Pobre menina! à pobre mãe, Deus a
tenha na sua santa guarda, nunca lhe saiu esse remorso de dentro do coração!
– E o do Cercal nunca deu
novas de si? Nunca ninguém o tornou a ver? – perguntei.
O velho olhou-me fixamente,
agarrou-me na mão, e, em voz baixa, em tom de confidencia, como se alguém nos pudesse
escutar, acrescentou:
– Há de haver vinte anos,
muito depois da morte da menina, apareceu pela primeira vez aqui na vila um doido
a que o rapazio pôs o nome de João da tropa. Não faz mal a ninguém, anda por aí
vestido de soldado e todos os dias vem a este largo fazer exercício com uma
cana. Quando dá a voz de fogo é sempre contra o palácio!
Apertou-me com mais violência
a mão, e, colocando a sua boca muito perto do meu ouvido, murmurou:
– A mim ninguém me tira da
cabeça que é o do Cercal!
E, afastando-se, olhou-me
fixamente para melhor descobrir o efeito da confidencia.
Nisto, do fundo do largo,
elevou-se uma voz aguda e estridente, gritando: – às armas!
Era o João da tropa.
Marchou em passo acelerado até
defronte do palácio, onde estacou à voz de – alto! – Depois, com grandes gestos,
ia executando sucessivamente as vozes que berrava – carregar! apontar! fogo! –
Vestido com uma velha fardeta de soldado, esfrangalhada e a cair aos farrapos,
com uma calça remendada listrada de trapos vermelhos e com um chapéu armado de
papel na cabeça, segurava na mão uma cana, trazendo outra mais pequena pendente
da cinta à laia de baioneta. Com a sua comprida barba e o olhar incerto de
doido, tinha um ar estranhamente fantástico!
O escudeiro chamou-o:
– Oh! João anda cá.
O doido deixou-se ficar
desconfiado; mas, a uma segunda intimação, de olhar cabisbaixo aproximou-se de
nós.
– É este senhor que te quer
dar uma esmola. Dei-lhe qualquer coisa que ele agradeceu, perfilando-se militarmente,
em continência, e, sem bem saber o que fazia, tirei a carta da algibeira e entreguei-lha.
– Lê essa carta; é para ti.
Passando desconfiado vista
pela folha de papel, disse com um riso idiota:
– Não sei ler!...
Mas, como lha quisesse tirar,
carregou o sobrolho, assegurando com firmeza:
– É minha!
Depois desdobrou a carta e
rasgando-a até meio em pequenas tiras no sentido da menor largura fez com
habilidade uma borla; tirou da fardeta um alfinete de ferro que lhe segurava um
rasgão; e, prendendo-a com ele ao bico do seu chapéu armado, carregou-o em seguída
para a testa com a arrogância dum general vencedor. Fitando-nos ainda uma vez
com um soberano desdém, a passo grave e cadenciado afastou-se de nós!...
***
Desde então, nunca mais voltei
de noite a subir a escada que dá para o meu quarto, que não parasse um momento,
parecendo-me ouvir distintamente sair de dentro da cadeirinha um choro
dolorido!
---
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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