O rio
Tive
um sonho cruel esta noite, meu filho...
—
Sonhos de nada valem, minha mãe.
—
Mas o meu foi horrível. Acordei debulhada em prantos, o travesseiro ensopado de
lágrimas.
—
Um pesadelo... Estavas em má posição, com certeza.
—
Vê como estou fatigada. Parece que saí de um tresnoite sem fim... Tenho os
olhos fundos e amortecidos, a garganta seca, um tremor convulsivo na pele.
Doem-me os ossos da cabeça e o meu coração está pesado.
—
Leste alguma história triste?
—
Não.
—
Contaram-te, então, alguma cena de desastre.
—
Também não, meu filho. O sonho veio espontaneamente, como um aviso. Não sei,
não vejo relação da vida real para ele.
—
Talvez tivesses uma antiga impressão adormecida no cérebro...
—
Não, não. Meu sonho foi tão feio, tão negro, que nunca pude imaginar coisa
parecida com ele.
—
Esquece-te disso. Olha que lindo dia faz lá fora, que luz ardente e que céu
azul. Vem cá. Vem até a janela... Vê, lá ao longe, como o rio reflete o céu.
—
O rio... Filho, abandona a janela, vem para dentro.
—
Por que, minha mãe?
—
Foi o rio o meu pesadelo. Sai. Vem: é horrível!
—
Conta o teu sonho.
—
Não tenho coragem...
—
Não te impressiones. Conta...
—
Pois bem, conto. É preciso contar para que não aconteça. Sorris? Achas-me ingênua...
Não rias, filho. Escuta: sonhei que tinhas morrido afogado no rio...
—
Ora, que ideia! Amanhã sonharás que morri de repente. E afinal, minha mãe,
morrerei do que tiver de morrer. Não penses nisso, não acredites em sonhos.
—
Queria fazer-te um pedido.
—
Por que não fazes?
—
Só se jurares cumpri-lo.
—
Assim, não. Podes pedir qualquer coisa que não esteja ao meu alcance.
—
Está.
—
Pede.
—
Não vás mais ao rio...
—
Ora, que pedido! Como não ir ao rio, se é ele que me dá trabalho?
—
Arranja outro meio de vida. Em terra...
—
Que tolice! Não vejo nenhum perigo no que faço: chega um vapor, atravesso o rio
numa lancha seguríssima e volto à terra. Onde está o perigo? Não penses no
sonho que tiveste. Vê bem como é fácil meu trabalho. Ganho o bastante para
vivermos. Por que abandonar uma casa séria, segura, onde sou estimado, onde
tenho futuro, por um emprego talvez inferior e efêmero? Seria recomeçar a vida.
Uma superstição vale tão grande sacrifício?
—
Se eu te arranjasse coisa equivalente?
—
Não. E depois, se eu tiver de morrer afogado, não haverá precaução que me furte
a isso. Fica tran-"la, minha mãe.
—
Deixa-me ver tua mão.
—
Aí tens. Que é isso? Vais dar-me este anel?
—
Toma. Fica com ele. Era de teu pai. Está muito bem no anular da mão esquerda.
Este anel livrar-te-á dos males...
—
Obrigado. É um lindo presente. Agora, esquece o sonho.
***
Correm sucessivamente os dias. A vida
ribeirinha é calma e doce. Entre as duas margens rasas, pelas
quais se estendem as povoações, rola, com preguiça, largo a perder de vista, o
rio imenso. Terra adentro, envolvendo as casarias, num cerco fantástico,
alastra-se a prodigiosa floresta, cheia de beleza e mistério, dadivosa e
pérfida, guardando mortes e tesouros. Nas casas, escoa-se uma existência
pacata. A fita lustrosa d'água serena, uma vez e outra é revolvida pela
passagem de um navio que lança ferro em frente à cidade; ou as embarcações
leves e ligeiras, em rápido surto, deixam no espelho líquido um rebojo manso
que logo se desfaz em pequeninas vagas fugitivas. A cabeça de um réptil que emerge
abre círculos que se vão alargando mais e mais. Com os dias, correm
sucessivamente os meses. E sobre as florestas, sobre as casas, sobre o rio,
transluz a porcelana do céu tropical.
***
—
Minha mãe, vou fazer hoje um delicioso passeio. Que pena não poderes vir também...
—
Onde é o passeio?
—
Perto.
—
Na mata?
—
Não, no rio.
—
Ah! meu filho, no rio?
—
Sim, que mal faz?
—
Não, não vás.
—
Por quê?
—
Meu filho, porque faz hoje exatamente um ano que tive aquele sonho. Lembras-te?
—
Ainda te lembras dele?
—
Como não, meu filho, se nunca o esqueci um dia só...
—
Esquece-te. Olha o rio como está manso e o tempo como está seguro. Vai ser um
lindo passeio. Já viste o cutter novo?
—
O de teu amigo? Sim, já vi. É nele o passeio?
——É.
O cutter é muito seguro.
—
Tão pequeno...
—
Também o passeio é pequeno. Em meia hora teremos ido e voltado.
—
Até onde vão?
—
Até aquela ponta, vês?
—
Vejo. Ë longe...
—
Em dez minutos vai-se lá. Deixas?
—
Tens realmente muita vontade?
—
Muita. Não corro o mínimo risco.
—
Não tens medo?
—
Nenhum. O barco é forte. O tempo é bom. Ambos nós sabemos nadar. E é um
instante.
—
Lembra-te que faz um ano...
—
Tolices... Nada acontecerá. Até logo.
—Já?
—Já-
—
Tem cuidado. Não vás muito longe.
—
Vamos apenas fazer a volta da ponta. Dá-me o meu chapéu desabado. O sol está
ardente. Que lindo dia! Até logo, minha mãe.
—
Meu filho, até logo.
—
Como me beijas! Parece que vou para uma longa viagem.
—
Até logo. Toma cuidado.
—
Não haverá risco; o rio é meu amigo. Até já.
Uma asa de garça,
leve, raspa a água do rio. É o cutter. Partiu
nesse mesmo instante, para dobrar a ponta, ao longe. A vela inflada é como um
seio túmido. O vento é bom e a água, arrufada, lampeja à luz. O cutter vai à bolina e já está a alcançar
a ponta de terra. Olhos indiferentes seguem a marcha graciosa da embarcação,
que é uma asa de grande pássaro branco esfrolando a prata líquida da torrente.
***
Calma, quente, cheia de astros, a noite
caiu. Dentro das casas, a gente repousa, após o
labor diário. Numa sala humilde, que uma lâmpada fumarenta ilumina, há alguém
que não descansa, alguém que, de bruços na janela, os olhos penetrando a
escuridão da rua, há longas horas espera ver chegar alguém que tarda. No firmamento
alto, remoto, continua a ronda dos astros...
***
—
Tenha coragem...
—
Meu filho morreu!
—
Isso que é?
—
São as joias, os botões de ouro dos punhos, o alfinete...
—
Meu filho, meu pobre filho...
—
Chore, minha senhora, chore...
—
Bem eu lhe disse... Um ano justo!
—
Aqui está a carteira...
—
Como foi? Conte-me. Eu terei coragem...
—
Foi ao dobrar a ponta. O barco virou...
—
E o outro? Também?
—
Também...
—
Mas, falta aqui o botão de um punho...
—
E o anel que eu lhe dera no dia seguinte ao sonho, havia um ano...
—
O anel que fora do pai...
—
Não sei... Só me deram isso...
—
E o corpo?
—
Já o enterraram.
—
Meu pobre filho... Mas o anel, hem?
—
Não sei...
—
O anel que estava na mão esquerda. Este botão é o do punho direito. Vê? Falta o
outro... O do esquerdo... Meu filho...
—
Tenha coragem... Venha para dentro... Eu lhe farei companhia... Faltava todo um
braço ao corpo...
Um grande choro se desata, abundante, largo,
ardente, choro que nunca mais devia cessar.
---
Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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