O Rei, o Ministro e o Carvoeiro
Era uma vez um bom Rei que, para
descanso dos cuidados e trabalho de reger o seu Povo, saía a montear lobos e
javalis.
Destemido e bom cavaleiro, ia
sempre, depois de levantada a caça, na frente das correrias, sem aguardar
qualquer ajuda na luta com as feras acossadas. Certo dia, depois de muito
galopar, perdeu-se da sua gente, e encontrou-se de todo só, no meio de um grande
bosque cerrado, que mal conhecia.
Meteu o cavalo a passo, e foi
andando a procurar caminho. Ouviu, então, ressoar, ao longe, golpes de machado
em troncos de árvores, e, assim guiado, encaminhou o cavalo para o sítio de
onde vinha sinal de gente conhecedora do bosque.
Já perto, viu que todo o
trabalho, que supunha de muitos lenhadores, era feito por um só carvoeiro que,
preparados os fornos de terra, numa clareira do bosque, não descansava na faina
de rachar e juntar lenha para fazer os montes.
Esteve o Rei, por algum tempo, a
olhar e a admirar o trabalho sem descanso de um homem sozinho e sem mais ordens
e obrigação do que a sua vontade. Avançou, depois, para a clareira, deu-se a
conhecer, e, antes mesmo de perguntar ao carvoeiro o melhor caminho para sair
do bosque, disse-lhe:
— Com tão grande trabalho que
tens, deves ganhar muito dinheiro.
— Saiba Vossa Majestade
(respondeu o Carvoeiro) que ganho sozinho para sustentar a família. É mais do
que muito, porque é o bastante para o que eu preciso.
— E quanto ganhas e achas
bastante para a tua vida?
— Eu, Real Senhor, ganho doze
vinténs por dia. E para que Vossa Majestade conheça que é para mim o bastante,
sempre direi mais que destes doze vinténs empresto quatro; pago, com outros
quatro, uma dívida; e os restantes quatro vinténs são para vivermos, a mulher e
eu.
O bom Rei, admirado com as
palavras do Carvoeiro, quis saber como eram aquelas contas, e a razão porque
pagava ele uma dívida e emprestava quantia igual.
O Carvoeiro explicou:
— O empréstimo que faço, é criar
os filhos, que depois trabalharão para mim, quando eu já não tiver forças. A
dívida que pago, é sustentar os meus Pais, que já são velhinhos, e nada podem
ganhar. Os outros quatro vinténs são para os gastos de nós dois, marido e mulher.
O Rei ficou muito satisfeito com
a prontidão e viveza da resposta e com o bom governo familiar que revelava, e
logo pensou experimentar os sábios Conselheiros da sua Corte. Ordenou, por isto,
ao Carvoeiro, que a ninguém desse a explicação dos seus gastos e despesas.
— Só o poderás fazer (esclareceu
o Rei) por minha ordem, ou depois de teres visto a minha cara cem vezes. E
agora ensina-me o caminho mais curto para sair deste bosque.
— Cumprirei as vossas ordens,
Real Senhor. E praza a Deus dar-nos tanto ano de vida que seja possível a
felicidade para mim de eu ver a cara de Vossa Majestade cem vezes.
Vinde, Senhor, que, por este
caminho, oposto ao que trouxestes, depressa estareis em campo aberto. Só
lamento que, passando o caminho tão perto do meu palácio, eu não ouse
oferecê-lo a Vossa Majestade para descansar.
— De outra vez o farás, e eu
aceitarei. Mas antes irás tu, a meu chamado, ver a Choupana Real.
Foram assim conversando, e o Rei
cada vez admirava mais a inteligência festiva e arguta do Carvoeiro. E, por ele
guiado, em breve saiu do bosque, e foi ter com a sua comitiva.
Quando voltou ao Palácio, mandou
o Rei convocar todos os seus Ministros e Conselheiros, e disse-lhes que, no
prazo de uma semana, e diante de toda a Corte, viessem explicar-lhe, com
verdade e clareza, como podia um homem, com a diária de apenas doze vinténs,
pagar uma dívida, fazer um empréstimo igual, e sustentar-se ainda a si mesmo e
à mulher, sem prejuízo do que emprestava ou restituía. E acrescentou que todos
aqueles que dessem resposta justa ganhariam a sua confiança, e os outros a
perderiam, pois que não devia pedir conselhos a quem, embora estudando e
meditando, não fosse capaz de resolver o que ele sabia possível, e da maior
importância para a felicidade e boa conduta do seu Povo.
Ficaram os sábios muito aflitos,
e os que não eram sábios estudaram de noite e dia, mas, por mais que
refletissem, não atinaram com a importância do caso para o bem-estar da gente
do Reino. E acabaram por decidir que Sua Majestade, propondo aquele enigma,
queria apenas avaliar, pelas respostas, o saber e a agudeza dos seus
Conselheiros. E deram-se todos,
alegremente, a compor os seus discursos, em prosa ou verso, para na próxima
reunião da Corte os lerem.
Todos não. O Primeiro Ministro,
que era um ancião inteligente e sábio e com grande experiência dos homens,
ficou muito triste, logo que foi apresentado o problema, porque bem sabia o seu
Rei contrário a divertir-se propondo a inútil resolução de enigmas, e
compreendeu que, por isto, a resposta importava, de fato, ao bem público. E não
percebera logo esse interesse e o seu justo esclarecimento. Custava-lhe muito,
depois de tanto ano de estudo, e após uma vida inteira gasta ao serviço da
governação do Reino, mostrar-se ignorante e falto da luz do pensamento num
caso, posto de modo tão particular, que ele adivinhava ter a maior e mais geral
importância. Mas até o extremo cuidado com que meditava o problema, o tornava,
para ele, cada vez mais difícil de resolver.
Passavam os dias, e cada vez mais
se lhe apertava o coração. Despachado o seu trabalho, saía do Palácio, e
procurava os lugares mais sós, para, durante horas e à vontade, meditar.
Um dia foi até ao bosque, longe
da cidade, no qual o Rei encontrara o Carvoeiro. Mandou que no campo o aguardassem
os seus criados com os cavalos, e sozinho se embrenhou no arvoredo.
Foi andando, triste e cansado,
até que chegou à clareira onde fumegavam fornos de carvão. Sentou-se num
tronco, a olhar aquele sossego, comparando-o com as suas aflições de Governante
e de Conselheiro de um Rei. E, depois de uma vez mais encarar, por todos os
seus aspectos, o problema proposto, descorçoou.
Resolvido a renunciar ao cargo de
Primeiro Ministro e a abandonar a Corte, deu balanço a toda a sua vida, já
longa, de pensamento e ação. E vendo que a terminava por uma derrota, e a pior
de todas, por mostrar a sua incompreensão do bem público, entristeceu mais
ainda, e, sem coragem para se vencer, pôs-se a chorar.
Estava de cabeça baixa, apertada
entre as mãos, quando na clareira entrou o Carvoeiro. E nem por ele deu.
Ao contrário, costumado ao
silêncio do bosque, entendeu o Carvoeiro, ouvindo soluçar, que alguém procurara
aquela solidão para livre desabafo de grandes mágoas. E, abarcando num olhar
toda a clareira, viu a curvada figura de um fidalgo ancião, tristemente alheio
a toda a alegria da natureza em seu redor. Mas quedou-se a distância, com pejo
de se tornar espectador, embora involuntário, do abatimento, porventura
momentâneo, de um coração altivo.
Escondido atrás de um tronco de
árvore, esteve por algum tempo hesitando se deveria afastar-se, para não
ofender quem chorava, ou ceder ao bom desejo de por alguma forma o servir e, se
possível, consolar. Resolveu, por fim, ocultar que tinha surpreendido o ancião
no seu abandono à desgraça, e fazer-se chamar por ele. E fingiu que recomeçava
o seu trabalho de lenhador, descarregando fortes golpes do machado num tronco
de árvore.
Olhando cautelosa e
disfarçadamente, viu o ancião erguer-se, logo que ressoaram as primeiras machadadas,
e, por intenso esforço de vontade, impor serena aparência à fisionomia, embora
ainda pelas faces lhe deslizassem lágrimas. Ouviu-o, depois, chamá-lo com voz
calma, e, deixando o machado, como quem interrompe a tarefa iniciada,
aproximou-se do ancião, mostrando surpresa por o ver ali. Mas o Ministro, com a
sua profunda inteligência, num relâmpago entendera tudo o que se passara, pois
seria impossível um carvoeiro recomeçar o trabalho de lenhador, e logo na orla
da clareira, sem ter vindo primeiro observar os fornos. E disse-lhe:
— Chamei-te para te agradecer a
delicadeza que tiveste, disfarçando teres visto a minha dor. Isto me compensa
do que sucederá na Corte, quando eu, amanhã, a abandonar.
Ao contrário do que tu fizeste, hão
de querer adivinhar, através da minha voz e aparência calmas, todas as mágoas
que eu sofra, e até as que não sinta. Espero recompensar-te, porque bem o
merece o teu procedimento.
— Senhor, não se trata agora de
recompensas, que não esperei nem mereço. Visto que tivestes a maior coragem,
confessando a vossa dor para me agradecerdes, outorgando-me, assim, um prêmio
que eu nunca poderia esperar, na minha humildade, ousarei pedir-vos que me
declareis o motivo de tanta amargura, pois talvez Deus queira que eu de algum
modo vos possa ajudar.
— Já me ajudaste, mostrando-me a
virtude que pode haver no coração de um rude trabalhador. Mas não quero ficar
abaixo dessa nobreza, negando-me a confiar-te o motivo da minha mágoa e da
resolução, que nesta hora e lugar tomei, de renunciar ao cargo de Primeiro
Ministro do Reino e de abandonar a Corte.
E como faz quem a si mesmo
precisa de se ouvir, pela derradeira vez, antes de tomar uma grande e custosa
resolução, o Ministro disse ao Carvoeiro o que se passara na Corte; o enigma
que por Sua Majestade fora proposto aos Conselheiros, com o desejo de uma
resposta certa e da explicação do seu interesse para o bem público; a
impossibilidade em concluir sem base no conhecimento do que escondiam as
palavras ditas ou repetidas por El-Rei; e, finalmente, o desespero por essa
impossibilidade.
Ia o Ministro falando, e o
Carvoeiro entristecendo, cada vez mais. Lutavam nele o remorso, por ter
provocado, com o que dissera ao Rei, os tormentos daquele nobre ancião, a quem
tanto devia todo o País; a obrigação, em que estava, de a ninguém revelar o
enigma, só para ele simples, pois o criara para definir a sua vida; o espanto
de que este pudesse ter qualquer grande significado.
O Ministro notou-lhe a angústia
no olhar. E quase esteve para interromper a sua narração, e talvez
interrogá-lo. Mas viu de repente a alegria substituir-se nele ao negro
desespero, não obstante lhe estar nesse momento referindo a amargura que vivera
no próprio lugar em que falavam, para se decidir ao abandono do seu cargo,
confessando-se incapaz.
Ainda bem o Ministro não findara,
disse, com esperança, o Carvoeiro:
— Tem Vossa Senhoria a certeza
de, conhecendo o enigma, lhe dar uma explicação geral, com interesse para o bem
público?
— Tenho a certeza de a poder
concluir com segurança. Mas de que me serve este orgulho da inteligência e do
estudo, se não conheço o que permitiria a sua aplicação?
— Foi Deus quem quis dar esse
conhecimento a Vossa Senhoria, trazendo-o a este bosque, para nos encontrarmos,
e guiando-nos por forma que eu merecesse ouvir-vos.
E ante a surpresa do Ministro,
continuou o Carvoeiro:
— Sou, meu Senhor, o homem que,
por graça, definiu a sua vida por essas palavras a que chamais enigma, e as
disse e explicou a El-Rei.
É, pois, muito fácil o remédio.
Mas toda a minha aflição era devida a ter-me Sua Majestade proibido que a
ninguém revelasse o que lhe dissera.
— Manterás o segredo (atalhou o
Ministro). É teu dever fazê-lo. E dever ainda maior para mim exigi-lo,
exatamente por ser guardado em meu prejuízo.
— Não será guardado, Senhor
(disse festivamente o Carvoeiro), porque posso respeitar a condição, que me foi
imposta por Sua Majestade, para eu poder explicar-me. Entendi-o, de repente. E
foi este o motivo da minha mudança, da tristeza, em que estava, para uma
alegria que, por certo, haveis notado.
Sua Majestade permitiu-me que eu
falasse livremente sobre este caso, depois de lhe ver cem vezes a cara.
Mostre-me Vossa Senhoria cem moedas de ouro, dessas que têm a cara do nosso
Rei.
Não pôde o Ministro deixar de
sorrir-se perante a sutileza com que a inteligência do Carvoeiro interpretava a
condição que lhe era necessária para poder explicar o seu enigma, sem
desrespeito do que lhe fora ordenado. Mas, porque era para si todo o benefício
daquela habilidade, quis ainda chamar-lhe a atenção para o possível perigo de
ofender o seu Rei:
— Parece-te que cumpres, por esse
modo, a condição que te foi imposta, e equivale a dizer que não deves repetir a
ninguém a explicação que deste a Sua Majestade, a não ser por sua ordem?
Não quero o remorso de te fazer
cair em qualquer desrespeito para com a pessoa do nosso Rei.
— Não podeis ter esse remorso,
meu Senhor. Sua Majestade não me disse que lhe deveria ver pessoalmente a cara
cem vezes.
Cabe a Vossa Senhoria satisfazer
por tal forma o nosso Rei, com a explicação do interesse geral do meu enigma,
que eu, não só seja por ele perdoado, mas ainda premiado, por a ter permitido.
— Pois bem, aceito como graça de
Deus o nosso encontro e a explicação que me darás.
Desprendeu do cinto uma bolsa,
que nele trazia dependurada, e, entregando-a ao Carvoeiro, acrescentou:
— É tua esta bolsa de ouro. Vê
bem e conta exatamente as cem moedas com a cara do nosso Rei. E guarda-as,
depois, juntamente com as restantes.
Não o recuses nem me agradeças.
Esse era o dinheiro para os gastos da jornada que não farei. Bem vês que não
gasto mais do que supunha. E muito mais ficarei a ganhar.
O Carvoeiro venceu a surpresa que
tivera ao ver tão próxima a fortuna; abriu a bolsa; contou as cem moedas; olhou
a cara do Rei, em cada uma delas; e depois, disse, alegremente:
— Nunca eu imaginei merecer tal
prêmio por vos ter apoquentado, Senhor. Bastava-me a alegria de vos servir e
ser justo. Mas aceito a dádiva generosa, porque assim pagarei melhor a minha
dívida e farei maior empréstimo, e viveremos com maior largueza, a mulher e eu.
E o Carvoeiro explicou o que era
a dívida que pagava, sustentando os seus Pais, já velhinhos, e o empréstimo que
fazia, criando os seus filhos, que depois sustentariam, por seu turno, os pais,
quando ele já não pudesse trabalhar.
O Ministro ia ouvindo, com
crescente alegria, e ao mesmo tempo trabalhando sobre aquelas palavras, tão
simples, com a luz da sua poderosa inteligência, e visionando as grandes leis
da vida social que elas resumiam claramente. E não pôde conter-se que não
dissesse:
— Nem tu calculas quantas grandes
e perenes verdades conseguiste definir com tanta simplicidade!
Mereces maior prêmio do que esse
que te dei. Conto satisfazer Sua Majestade, para além do que possa esperar. Não
lhe direi como cumpriste a obrigação que te impôs. Mas deixarei perceber que
não sou decifrador de enigmas. Quando te interrogar, confessa toda a verdade e
a sutileza de que soubeste usar. Não só te perdoará, mas também te quererá ele mesmo
premiar. Lembra-te, nesse momento, de pedires a Sua Majestade que só te seja
dado qualquer prêmio depois de ouvido o meu conselho.
Julgo ficar a conhecer-te bem, e
tenho receio que, não me ouvindo, te prejudiques. Mas, de qualquer modo, terás
sempre um amigo em mim.
E, com amizade verdadeira,
seguiram os dois homens, conversando, até ao sítio onde os criados, com os
cavalos, aguardavam o Ministro. Readquirira, este, perfeita serenidade,
vencendo agora a alegria, da mesma forma que, na vinda, subjugara a tristeza e
a amargura, para a ninguém as descobrir.
Despediu-se do Carvoeiro,
dando-lhe um abraço, montou a cavalo, e galopou para a cidade. Mas, durante o
caminho, ia pensando, sem que a fisionomia nada mostrasse:
— O dia de amanhã, que eu julgava
de inteira desgraça, vai ser de vitória da minha inteligência. E esta mudança
dependeu apenas do acaso, e de um momento de abandono do meu orgulho, e da
súbita confiança de dois corações?
Não posso entendê-lo assim. Foi
Deus que quis descobrir grandes verdades, aos homens, consentindo a completa
explicação de um simples enigma, que, para tantos, e até para quem o criou,
seria apenas gracioso.
***
Estava toda a Corte reunida no
salão magno do Palácio. O Rei e a Rainha sentados nos Tronos; os Infantes, mais
abaixo, em seus bancos; os Ministros, os Conselheiros e outros dignitários e
representantes das ordens e das cidades e vilas, em cadeirais. Donas e
donzelas, gentis-homens e Cavaleiros e demais Cortesãos aguardavam ansiosos
aquele torneio da inteligência, de que poderia advir mudança nos cargos do
Conselho e governação do País.
O caráter de grande solenidade,
que, por ordem real, a reunião tomara, desanimou, porém, os que esperavam
brilhar, com os seus discursos, num simples serão literário. Pior ainda foi quando
o Rei disse:
— Desejo, Senhores, uma resposta
exata e clara ao que vos apresentei para resolver. Todos os que tenham plena
consciência de terem acertado, e só esses, devem declará-lo, seja qual for o
seu cargo e categoria.
Isto, porém, será o menos. O que
eu quero é uma explicação completa do interesse, para a república e a nobreza
dos homens, que tem a realidade expressa no aparente enigma que propus à
solução da vossa inteligência e saber.
Ao contrário do costume, falarão
primeiro os mais novos e de menos altos cargos. Espero, Senhores, ouvir de
muitos a explicação devida.
Um pesado silêncio foi a resposta
às palavras do Rei.
Passados momentos, ergueu-se o
Primeiro Ministro, e olhou, em redor, toda a sala, demoradamente, para
verificar se alguém pretendia tomar a palavra. E porque ninguém mostrasse
querer, ao menos, apresentar uma resposta ao enigma, disse, dirigindo-se ao
Rei, que não ocultara a satisfação por ver confirmada, com o interesse do seu
Primeiro Ministro, a importância para o bem público entendida por ele no que
lhe explicara o Carvoeiro:
— Real Senhor, aguardei uns
momentos para deixar que se pronunciassem outros, mais novos, sobre o problema
que nos foi proposto por Vossa Majestade.
Não parece quererem fazê-lo. E
não é censura, mas grande louvor, que merecem os que venceram a natural
confiança da juventude, propensa a afirmar soluções, sem ponderar, antes, os
seus fundamentos e verdade, e a defendê-las, apesar disto, com teimosia e
paixão.
Louvor igual merecem os que, mais
experientes e sabedores, mediram a dificuldade, quase invencível, de
fundamentarem a explicação justa do interesse, para o bem público, do
procedimento particular sintetizado num enigma, sem terem a certeza da solução
exata deste.
Não vos admireis, meu Senhor, do
silêncio que respondeu à interrogação. Nem diminua por isto a confiança
merecida por todos aqueles que bem serviram e servem o País, a república e a
pessoa de Vossa Majestade.
Também eu pensei, quase até ao
fim, guardar silêncio, ou, porque maiores são os meus deveres, declarar-me publicamente
incapaz de continuar a exercer o cargo de vosso principal servidor.
Quis Deus que eu ouvisse também a
voz do Povo, que Vossa Majestade, com interesse e grandeza de verdadeiro Rei,
interrogou, e de que soube entender o geral e valioso significado com superior
inteligência.
Dizem antigos Sábios que a voz do
Povo é a voz de Deus. Dizem-no com razão e verdade, se por estas palavras
definem o bom senso que Deus nos deu a todos, e que, desgraçadamente, muitos e
muita vez traímos, e o sentimento natural e a longa experiência de homens que
se elevaram à nobreza da vida em família, e aceitaram as suas virtudes,
benefícios e obrigações.
O caso, por Vossa Majestade
apresentado à nossa inteligência, deixa imediatamente de ser um enigma, se
considerarmos que ele é o de um chefe de família. Então compreendemos que,
embora pequeno, o rendimento do seu trabalho deva e possa aproveitar a todos
que dele dependem; que por este modo pague a dívida que tem para com os seus
pais, que lhe deram o ser, a criação e os meios de ganhar a vida; e que,
seguindo o seu exemplo, empreste aos filhos, da mesma forma os criando e
educando para serem homens honestos e trabalhadores, e neles ter, se lhe for
preciso, o amparo na velhice cansada. Então percebemos que empreste quantia
equivalente à que restitui, por duas obrigações igualmente sagradas, e que nem
aquela nem esta prejudiquem o todo que é a vida e economia familiares.
Espero, Real Senhor, ter achado,
por este modo, a solução do enigma.
O Rei ouvira satisfeito e
surpreso as palavras do seu Primeiro Ministro. Umas vezes lhe parecia entender
que só pela dedução e o estudo ele conseguira acertar. Outras vezes, concluía,
das suas palavras, que lhe fora descoberto o segredo que ele impusera ao Carvoeiro.
Mas a alegria de ver confirmado, por modo claro e brilhante, o interesse geral
que soubera ver na simples explicação graciosa de uma vida familiar honesta e
cumpridora, pôde muito mais do que todas as outras considerações. E quando o
Ministro fez uma pausa, parecendo aguardar a confirmação do seu acerto na
solução do enigma, o Rei declarou, com aplauso e alegria de toda a Corte:
— Essa é a solução do enigma que
vos propus. Reconheço que era quase impossível acertar, não aplicando as
palavras que vos disse, a um chefe de família. E, porque sinceramente o
reconheço, não será diminuída a minha confiança em nenhum dos meus
Conselheiros. Mas todos concordarão que devemos grande e muito justo louvor ao
nosso Primeiro Ministro.
E não só por ter achado a solução
do enigma proposto, alegando embora ter ouvido a voz do Povo, mas também por o
ter esclarecido com a sua profunda inteligência e saber.
O esclarecimento foi tal que
dispensaria explicação mais demorada, se não fosse de proveito, para todos nós,
ouvirmos os comentários de tão sábio, prudente e dedicado Conselheiro.
Prossegui, pois, Senhor e
verdadeiro Amigo.
O Ministro fez uma profunda
vênia, em que não havia apenas respeitosa cerimônia, mas também e
principalmente sincera gratidão, e começou, com voz pausada, o seu novo
discurso:
— Real Senhor, merece Vossa
Majestade, mais uma vez, os aplausos da muito sincera dedicação de nós todos,
por saber e querer antepor a caprichos e curiosidade o interesse da república e
o desejo de investigar o que pode mantê-la e melhorá-la.
Digno de louvor é o Rei que sabe
escutar a voz do povo e compreender o interesse geral que podem ter palavras
que parecem de ocasião. Direi, no entanto, que ainda maior louvor merece o Rei
que não se contenta com ouvir a voz do povo, mas quer interpretá-la para o bem
geral e permanente, e não apenas com o fácil intuito de satisfazer aspirações
de momento, que se limitam, por vezes, a traduzir. E mais ainda o Rei que não
confia somente na sua inteligência e conhecimentos pessoais, e quer também
ouvir os Conselheiros que lhe merecem confiança, e comparar os seus pareceres
com os dos Sábios de ontem e de hoje.
É lembrando as verdades que estes
foram entendendo e consignaram, e menosprezando os falsos ou transviados Sábios
que as traíram; é em nome de todos os vossos Conselheiros que hoje aqui estão
presentes, e os que já passaram a melhor vida, e foram do Conselho de vosso Pai
e Avós; é em nome de todos, e só por isto, que eu ousarei deter-me na
explicação de palavras que traduzem, afinal, na sua aparência de facécia e dito
de ocasião, a sabedoria das Nações.
O que Vossa Majestade ouviu da
voz do povo, e por esta me foi também revelado, não define apenas um caso
particular, muito embora digno de louvor. É exemplo e retrato de um dever
geral.
Assim o entendeu logo Vossa
Majestade. E seguindo a mesma luz afirmei que tão grande e pura verdade só
podia tê-la entrevisto a experiência dos que se elevam à nobreza da vida em
família e do trabalho e alegria de a sustentar.
Dessa vida nasceu um dever moral
de união com o passado e o futuro. E posso dizer, por isto mesmo, e com os
melhores Sábios, que não foram os indivíduos, por força ou concordância, que
criaram as sociedades. Foram as famílias, e por este profundo sentimento de
continuidade e todas as obrigações, para com o passado e o futuro, que ele
impõe.
Mas o que criou as sociedades é
também garantia de boa ordem, prosperidade e justiça da sua vida em qualquer
época, sejam quais forem os outros problemas que tenha de resolver.
Um há, Real Senhor, que todas as
épocas, melhor ou pior, enfrentam. É o que resulta do alto dever de protegermos
e assistirmos os que já não podem e os que ainda não podem manter-se com o seu
trabalho.
Se todas as famílias cumprirem
esse dever, de acordo com as posses de quem trabalha e a justa paga que por
isto lhe é também devida, os encargos serão distribuídos por todos os homens
válidos, segundo as condições da vida e trabalho de cada um, e portanto com a
melhor equidade.
Para os Pais que não conseguiram
garantir por outra forma o seu futuro, não pode haver mais justa e honrosa
proteção que a dos filhos que criaram e ajudaram a trabalhar. Deste dever
cumprido nasceu um direito correspondente. Feliz de quem, na riqueza ou na
pobreza, o mereceu e com ele pode contar.
Só faltando aos pobres este
amparo, seriam necessários outros, os da Igreja e os do Estado. Assim, darmos à
grande maioria das famílias a educação e os meios para cumprirem este dever,
cada uma segundo o seu esforço e posses, também tornaria possível que nenhum
amparo viesse a faltar aos que dele precisassem.
Se, muito ao contrário, o
egoísmo, desregrada vida e organização das famílias, exigir a proteção para um
sem número de pobres desamparados, velhos e novos, a proteção da Igreja e do
Estado não poderá chegar a tanto. E, em momentos de geral pobreza e aflição, a
Santa Igreja será acusada, injustamente, de falta de caridade, e o Estado será
perigosa e não menos injustamente abalado por levantamentos, os Ministros e
Conselheiros e todos os poderosos, em geral, difamados, e o Rei mal querido.
De tudo isto e do muito mais que
todos sabeis, podemos concluir a primeira lei que nos revela o exemplo do homem
que paga do seu trabalho a dívida que tem para com os seus Pais, e empresta
outro tanto aos seus filhos.
E não diga ninguém que é melhor
não ter estas obrigações e os trabalhos que nascem delas, porque são, afinal,
para pobres e ricos, a maior felicidade. E, bem compreendido e respeitado, o
alto dever, que é de todos, cabe também, ou mais ainda, embora diferentemente,
aos que por fortuna pessoal ou por desgraça de já não terem Pais a proteger ou
não lhes ter Deus concedido filhos, parecem libertos destas obrigações. Também
eles devem pagar a sua dívida ao passado e emprestar ao futuro, por esta forma
regulando os deveres da Caridade, ou por todos trabalhando com os olhos sempre
fitos na grande lei da continuidade humana, que as obrigações da vida em
família nos deram a conhecer.
Falo, Real Senhor, com a dorida
autoridade que me deu a amargura de não ter filhos a quem diretamente empreste,
compensando o muito que recebi, nem ter já Pais para lhes continuar pagando a
minha enorme dívida. Considero esta maior ainda, para com todo o passado, e
procuro servir no presente as gerações que terão de continuá-lo.
Resignado ao que Deus quis, não
sinto diminuídas, mas imensamente aumentadas as minhas obrigações para com o
passado e o futuro. E neste vejo surgir, sucessivamente, os filhos que
aproveitem do que possa dar-lhes o meu trabalho, que só todo o passado tornou
possível.
É a lei da continuidade para
todos. É, para Vossa Majestade e para toda a Nação, a própria lei, benefício e
grandeza das Dinastias. E é também a lei de todas as sociedades que querem
viver e prosperar.
Em cada vida, em cada época,
devemos conservar a boa herança do passado, não o esquecer e pagar a dívida que
para com ele temos, e emprestar ao futuro, para que corresponda, ao menos,
àquele e, querendo Deus, seja sempre melhor.
Erro grave, para não dizer crime,
será o daqueles que só contam com o presente, que é afinal um momento entre o
passado e o futuro, e os deve ligar e mutuamente servir e engrandecer. Erro dos
que só vivem do passado, sem lhe verem as obrigações no presente e sem
considerarem que chegou a hora do seu trabalho, para pagarem o que lhes foi
transmitido. Erro dos que trabalhando, só pensam em preparar o futuro,
menosprezando o passado e chegando até a condená-lo ou a traí-lo.
O acerto é a ligação perfeita e
compreendida entre o passado, o presente e o futuro. A lei é a continuidade que
a nobreza da vida em família nos ensinou.
Todo o passado, no que teve de
bom, e todo o futuro desejável devem ser considerados no trabalho do presente,
com a dupla obrigação que este exemplo nos deixou esclarecer. Entendemo-lo, em
geral, tarde e quando, já avançados na vida, a nossa inteligência atinge a
serena maturidade e o pleno poder que são frutos de muita experiência e não
menor estudo.
Lembro-me, Real Senhor, de ter
lido, no Poeta da Grécia, versos que declaram, com muito mais belas palavras, a
seguinte verdade: nos seus atos o ancião olha, ao mesmo tempo, o futuro e o
passado, e procede, por isto, com maior equidade.
Melhor elogio não desejo para a
minha forma de proceder e aconselhar. Pago a todo o passado a minha dívida, e
empresto, ou, por desdita pessoal, apenas dou, a todo o futuro o que sei e
posso.
Apenas o Ministro, com um gesto
de resignação, tristeza e altivez, findou o discurso, ergueu-se o Rei, avançou
para ele e abraçou-o, dizendo:
— Emprestais a um filho, e a
estes netos que são os meus filhos e a quantos deles provierem.
Elegeu-vos Deus, até no vosso
isolamento, para que tudo pudésseis dedicar a esta Nação. Mereça eu, por vossos
conselhos, ser um bom elo na Dinastia.
Vinde, meus filhos, saudar a quem
deveis amor e respeito da mesma forma que a vosso Pai.
Rolavam lágrimas pelas faces do
velho Ministro. E toda a Corte com entusiasmo o aclamou, juntando o seu nome ao
do Rei justiceiro que tão nobremente pagava ao Ministro e Conselheiro o que era
devido a muito valor e trabalho, garantindo-lhe a continuidade no futuro.
***
Ficou o Rei com grandes alegrias
no seu coração. Tinha orgulho de logo ter entendido, ele, ainda novo e sem
grande experiência dos homens, o interesse, para a república, das verdades
contidas nas palavras do Carvoeiro, verdades que tão bem esclarecera e tanto
aprofundara o seu grande Ministro. Maior orgulho de merecer a dedicação e os
sinceros conselhos deste sábio ancião, experiente e douto, por quem aumentara a
sua admiração e confiança.
Magoava-o, porém, tê-lo afligido,
a ponto de ele ter pensado em renunciar ao seu cargo no Conselho. E chegava a
agradecer ao Carvoeiro ter-lhe dito o enigma das suas palavras, o que decerto
fizera, pois isto mais de uma vez o percebera no discurso do Ministro.
Por outro lado, também se magoava
de saber-se desobedecido, e para mais por um homem que lhe merecera simpatia, e
de quem não esperava nem o desrespeito nem a quebra da palavra dada.
Supor o ato vil da compra de uma
consciência, não lho admitia o que pensava do seu primeiro Ministro. Mas como
conseguira a confissão e verdadeira desobediência do Carvoeiro, ou como as
admitira, sequer? E como deveriam elas ser castigadas, sem ferir o seu Ministro
e sem esquecimento do benefício que resultara desse mau ato?
Não podia o rei descansar sem
tudo isto saber e resolver. E, assim, mandou que, bem antes da madrugada, lhe
aprontassem um cavalo, pois queria sair, sozinho, para o campo.
Ainda era noite quando partiu a
galope, no seu cavalo, para a floresta onde encontrara o Carvoeiro. E ao romper
de alva chegou à choupana onde ele vivia, e logo o viu, entre portas, pronto a
largar para a faina do dia.
O Carvoeiro saudou o seu Rei,
tirando o barrete e dizendo com voz calma e respeitosa:
— Deus guarde Vossa Majestade, e
lhe dê o que deseja neste dia que começa.
— Deus te salve! (Tornou o Rei, e
continuou em voz severa): Venho visitar o teu Palácio, conforme o convite que
me fizeste, e saber se para o campo se mudaram a deslealdade e o fingimento,
que dizem morar nas Cortes e nas Cidades.
— O bem e o mal andam por toda a parte,
Real Senhor, umas vezes mais e outras vezes menos. Mas não me pesa na
consciência qualquer falta para com Vossa Majestade, e meu Amo, de quem quero
continuar sempre a ser um leal vassalo. (E, segurando o cavalo pelas rédeas,
acrescentou): Peço a Vossa Majestade para se apear e entrar na minha choupana,
onde estará ao abrigo da friagem do alvor.
Apeou-se o Rei, admirado com a
quietação do Carvoeiro, e entrou na modesta casa. Ardiam toros na lareira, e a
sala, caiada e acolhedora na sua nudez, pareceu-lhe enfeitada para o receber.
Só um lugar estava posto na mesa, com seus pratos e copos de estanho. E tinha
diante um cadeirão tosco e forte, enriquecido com muitas peles de lobo.
— Foi o melhor que pôde
arranjar-se, meu Senhor. E agora, se Vossa Majestade quiser dar-me, por
bondade, uma honra sem igual, a minha mulher virá beijar-lhe a mão, e depois
irá aprontar o almoço, que espero aceitará da minha pobreza.
Fez o Rei um gesto de
assentimento, e o Carvoeiro foi buscar a mulher, que veio com timidez
beijar-lhe a mão, e logo saiu para a cozinha.
Sentou-se o Rei, cada vez mais
intrigado com a atitude serena do Carvoeiro e disse-lhe:
— Venho também perguntar-te
porque desobedeceste às minhas ordens e quebraste a palavra dada?
— Se Vossa Majestade me dá
licença (tornou o Carvoeiro) perguntarei, antes, se está satisfeito com o que
se passou na reunião da Corte, em que foram explicadas as minhas palavras.
— Visto isso, confessas ter dito
ao meu primeiro Ministro o que lhe permitiu dar-nos a todos uma grande lição de
sabedoria. Não escondo que por isto devo agradecer-te. Mas nenhum benefício
traz consigo o perdão para a desobediência e para a quebra da palavra.
Não seria capaz de o crer de um
homem dado como exemplo. E muito diminui isso a minha confiança nesse exemplo,
e até, Deus me perdoe, em quem mo explicou com tão alta sabedoria.
Como te poderás desculpar de
teres desobedecido às minhas ordens? E como o pôde aceitar o Conselheiro em que
ponho maior confiança?
— Real Senhor, peço-lhe para me
dizer se Sua Senhoria o Ministro confessou a Vossa Majestade o que entre nós se
passou.
— Nada me disse. E eu não seria
capaz de o ofender, perguntando-lhe fosse o que fosse a tal respeito. De ti
quero, agora, a verdade inteira.
— É um homem, um grande homem, o
Ministro de Vossa Majestade. Quando diz cumpre. E parece prever os
acontecimentos. Por o pensar esperava eu, hoje mesmo, ver aqui o meu Senhor.
E sem medo, porque julgo também
conhecer o grande coração de Vossa Majestade. E calculei que bastava a alegria
que teve, para me perdoar qualquer falta praticada por bem.
— Tudo isso não desculpa a
desobediência e quebra da palavra.
— Eu não desobedeci, Real Senhor.
Mas antes de apresentar as provas do que digo, deixe-me Vossa Majestade contar
o que se passou e o que me decidiu a falar.
A um gesto de assentimento do
Rei, narrou o Carvoeiro toda a cena passada na clareira da floresta, e a dor
que tivera por ter sido causa de uma tão grande amargura como a que vira sofrer
ao nobre ancião.
O Rei, comovido, atalhou:
— Isto me basta para te
desculpar.
— Real Senhor, não bastaria, no
entanto, para me desculpar eu próprio. E tanto assim que, mesmo vendo tão
grande tristeza, não me decidi a abrir mão do segredo que Vossa Majestade me
mandara guardar. E para mais Sua Senhoria também me proibiu que eu o fizesse,
quando lhe disse que poderia falar. E acrescentou que não o consentia,
exatamente por ser do seu interesse conhecer o que chamou enigma das minhas
palavras.
— É um homem, um grande homem,
disseste bem. E eu te perdoo a desobediência a mim e a ele por toda a alegria
que me deu agora ver confirmada a sua grande lealdade. Assim eu pudesse também
ter-te na conta de inteiramente leal e obediente às minhas ordens.
— Mas, Real Senhor, eu não
desobedeci, de modo algum, às ordens recebidas. Se falei, foi por entender que
podia fazê-lo sem quebra do meu dever. Lembra-se Vossa Majestade que me ordenou
que a ninguém desse a explicação das minhas palavras sobre o meu governo
familiar sem vossa ordem ou sem ver a cara de Vossa Majestade cem vezes?
— Assim o disse.
— Pois inspirou-me, decerto, o
meu Anjo da Guarda, a maneira de não desobedecer às ordens expressas de Vossa
Majestade, e poder, no entanto, revelar o meu segredo, e evitar assim a dor e o
desespero de quem vale muito mais do que eu, e tem, por sua atividade na
Governação, muito maior importância do que a minha vida.
Mas confesso que também o fiz sem
receio. Perdoe Vossa Majestade se errei.
— Não te entendo. Ou não entendes
tu, ou finges não entender o que seja desobediência.
— Real Senhor, Vossa Majestade
não me disse que deveria ver-lhe pessoalmente a cara cem vezes, antes de ter o
direito de abrir mão do segredo imposto. E, antes de falar, pude ver a cara de
Vossa Majestade, cem vezes, nestas moedas. Ei-las, com permissão de Vossa
Majestade.
O Carvoeiro puxou da bolsa que
lhe dera o Ministro e despejou-a na mesa, com ar já prazenteiro e de quem goza
com a surpresa que a outro causa.
O Rei não pôde conter o riso,
vendo a esperteza do Carvoeiro, e disse:
— És na verdade, o mais esperto
dos homens que eu tenho conhecido. Assim sempre Deus te inspire para bem. Mas
onde foste buscar tanto ouro? (Perguntou, fingindo-se desentendido).
— Pedi a Vossa Senhoria o Ministro
que me deixasse ver a cara de Vossa Majestade num cento de moedas. E assim fez.
E depois quis que eu as guardasse, junto com as demais contidas nesta bolsa,
como prêmio do serviço que lhe prestara já.
Mas eu só lhes chamarei minhas se
Vossa Majestade o consentir.
— Dás-me agora maior alegria por
tudo ver explicado sem nenhuma quebra da honra. Podes guardar todas essas
moedas.
E quero também dar-te um prêmio
por teres conseguido resolver tão felizmente um caso intrincado. E para bem de
todos e minha satisfação.
Diz o que queres.
— Eu nada quero, Real Senhor,
além do perdão que Vossa Majestade já me concedeu. Com este ouro e o meu
trabalho estou rico. Vou comprar o desbaste de uma parte da floresta, meter
ajudantes e continuar, em grande, no meu ofício. Que mais posso querer, além da
salvação e da saúde para os meus e para mim?
— Seria injusto que eu não te
desse um prêmio, por me ser dada uma grande alegria a viver. É uma nova ordem
minha, que tens de cumprir. Diz-me qual é o prêmio que desejas.
O Carvoeiro recolheu as moedas na
bolsa, guardou-a e começou a sorrir-se. O seu feitio festivo e brincalhão
dominara-lhe novamente a inteligência. E a sorrir disse:
— Pois eu só aceito de Vossa
Majestade uma coisa.
— Diz lá, homem. Se for justo
desde já ta concedo.
— Só quero que Vossa Majestade me
dê o direito de receber um tostão de cada marido que tenha medo da mulher.
— Isso é um disparate, ou mais
uma brincadeira tua, de que não entendo o fim. Pois é possível que muitos
maridos tenham medo à mulher?!
Não, cá no meu Reino pouco terias
a ganhar. E não sei como o ganharias. Pede outra coisa, que eu quero dar-te um
bom prêmio.
— Se Vossa Majestade não me dá
isto, que peço, outra coisa não aceito. (Insistiu o Carvoeiro, já aferrado à
ideia que lhe viera de repente.)
O Rei pensou um momento e disse:
— O mesmo é que recusares o
prêmio dado por mim. Quererás mostrar-te mais generoso do que eu?
Não será, porém, assim.
Concedo-te o direito que me pedes. Creio que não procedo bem, mas não poderá
ninguém dizer que não fui eu o mais generoso.
Quando te julgares bastante rico,
ou quando vires que não ganhas nada com a arrecadação desse imposto sobre o
medo que dizes terem os maridos às suas mulheres, irás ver-me ao Palácio Real.
Então decidirei se mereces melhor prêmio.
E agora vamos ao almoço. A não
ser que a tua mulher não queira, e tu lhe tenhas medo.
— Ela o quer, para servir Vossa
Majestade.
E não há que ter-lhe eu medo,
porque vivemos sós, com os nossos filhos, neste bosque, longe de toda a gente.
— Nesse caso comereis comigo. E
verei os teus filhos, que não ficam já melhorados, por tua culpa.
— Já almoçamos, Senhor, e, para
prêmio de nós todos, basta-nos a honra que Vossa Majestade nos deu, sentado-se
a esta mesa.
Almoçou o Rei, alegremente
falando com o Carvoeiro e a mulher, depois de abençoados os filhos do casal.
Montou, depois, a cavalo, e
voltou para o Palácio, com muita alegria, por ver desfeitas quaisquer dúvidas
quanto ao bom procedimento de dois homens que estimava muito, a cada um na
esfera de atividade que Deus lhes destinara, da mesma forma que para o grave
encargo de reinar o fizera nascer.
***
Passou-se tempo...
Um dia, quando o Rei estava na
varanda principal do seu Palácio, viu aproximar-se uma carruagem suntuosa,
puxada por duas parelhas, e com o cocheiro e lacaios bem vestidos, mas sem
qualquer sinal de Casa Nobre a que pertencessem.
O coche parou no pátio do
Palácio, e o Rei, surpreso e divertido, viu sair, e depois curvar-se a
cumprimentar, feito um figurão, o nosso amigo Carvoeiro.
Mandou que logo o trouxessem à
sua presença e, depois de o saudar com alegria, perguntou-lhe:
— Prosperou o teu negócio tanto
que te permita este luxo, ou como foi que a Fortuna te ajudou, para tanta
riqueza?
Respondeu o Carvoeiro:
— A Fortuna foi o direito que
Vossa Majestade me deu. Já conto como tenho exercido esse direito e o muito que
me tem rendido. Mas, antes, permita Vossa Majestade que eu lhe fale de uma
linda mulher que vi, quando a caminho do Palácio.
Real Senhor, ela tem nas faces a
suave cor das mais belas rosas. Os seus louros cabelos só posso compará-los aos
trigais maduros, ondeando ao vento. De perfumados morangos devem ter sido
feitos os seus lábios. E as mãos, esguias, têm a beleza dos alvos lírios. Pisa
o chão com tanta leveza que parece desceu a andar entre nós a Rainha das Fadas.
Mas os seus olhos, Senhor, esses, não há nada no Mundo a que possa compará-los.
—
Estava o Rei entusiasmado a ouvir
o Carvoeiro feito Cortesão, quando este viu a Rainha entrar na sala onde
estavam. E continuou, em voz mais alta:
— Enfim, Real Senhor, essa mulher
é tão linda que só deveria pertencer a Vossa Majestade.
E logo o Rei atalhou, aflito:
— Fala baixo, que vem aí a
Rainha.
Então o Carvoeiro desatou a rir,
e disse:
— Ah, também!... Passe para cá um
tostão, Real Senhor.
O Rei teve um sobressalto de
surpresa, e depois outro, de cólera, que dominou. E com voz dura e serena, que
tornava terríveis as menores das suas palavras, falou:
— Queres tu dizer que eu tive
medo! E para que viesses brincar comigo, metendo-me um susto, ousaste escolher
tão mal o prêmio que te ofereci! —
Gelara imediatamente o riso do
Carvoeiro. E agora, caindo em si, debatia-se o infeliz entre o medo e a
vergonha. E queria ajoelhar-se diante do Rei, que lhe não consentiu, dizendo:
— Um homem tão sábio e audaz que
põe medo ao seu Rei, não deve ajoelhar-se nem pedir perdão. Tem de aceitar o
castigo dos seus atos.
Medo! O que entendes por esta
palavra, para assim qualificares o que senti?
Seja nosso juiz a própria Rainha,
de quem quiseste que eu tivesse medo.
E vendo aproximar-se a Rainha,
dirigiu-se para ela, e disse-lhe:
— Senhora, quero contar-vos o que
me esteve dizendo este homem, e o erro de que sou culpado perante vós, e como o
atalhei, para que sejais quem diga o seu nome.
— Tudo ouvi, Senhor (disse logo,
sorrindo, a Rainha). Desde o elogio da mais linda mulher do Mundo, verdadeira
ou fingida.
Qual o homem capaz de não se
comover com tanta formosura?
Se foi esta a vossa culpa,
pequena foi e nem carece de perdão.
— Foi essa a minha primeira
culpa, e vos peço perdão. E foi outra, depois. A de ter querido evitar que ouvísseis
palavras que podiam magoar-vos.
Como se chama o que senti,
Senhora?
— Se tivesse havido culpa, seria
remorso ou arrependimento. E bastaria para merecer o perdão. Como não houve
culpa, chama-se delicadeza de sentimento.
— Pois este homem, a quem
estimei, e desejaria estimar ainda, chama-lhe medo. E voluntariamente quis pôr
medo convosco, Senhora, ao seu Rei.
— Senhor (tornou a Rainha), perdoai-lhe,
que não o terá feito por mal, nem por menos respeito, mas por não medir o valor
das palavras.
— Perdoo-lhe por vós, Senhora, e
em desconto da minha culpa de lhe dar ouvidos no louvor de outra mulher, a pena
de morte que merece quem voluntariamente quer pôr medo ao seu Rei, e
rebaixá-lo, assim, a pior de que um servo.
Mas não devo perdoar-lhe outro
castigo nem negar-lhe o prêmio por seus merecimentos anteriores, que tudo fez
para destruir.
— Mereço a forca, na verdade
mereço a forca. E se agradeço a vida a Vossas Majestades, é porque deixaria
viúva e dois órfãos.
— Ao que sentis, bom homem (disse
a Rainha), outros, com erro, chamariam medo. E é muito diversa coisa, porque é
amor de marido e pai.
— E também arrependimento e
remorso, Real Senhora. Sou eu agora quem pede para ser duramente castigado.
A Rainha sorriu-se, por ver tão
bem aplicadas as suas palavras, e, voltando-se para o Rei, seu esposo, disse:
— Retiro-me, Senhor. E vou
sossegada, porque sabereis ser justo.
Curvou-se o Rei, numa vênia de
assentimento, e o Carvoeiro cobriu de lágrimas a mão que a Rainha lhe deu a
beijar.
E depois que ficaram outra vez sós,
voltou o Carvoeiro:
— Não mereço perdão. E o que mais
me pesa é ter magoado um Rei por quem eu daria a vida. Maldito seja este meu
gosto folgazão, que me fez pedir um prêmio para com ele cair em tão mau
procedimento!
Bem me disse logo Sua Senhoria o
Ministro que Vossa Majestade me ofereceria um prêmio, e que não aceitasse nada
sem o consultar...
Mal me veio de me fiar na minha
cabeça.
— Pois será ele quem vai
julgar-te. Porque eu fui o ofendido, e não devo punir. (Concluiu o Rei.) —
Fez sinal a um pajem, ordenou-lhe
que chamasse o Primeiro Ministro, e depois, voltando-se para o Carvoeiro,
continuou:
— Levanta-te. Como homem já te
perdoei. E não te quero ver humilhado perante ninguém.
— Essas palavras e esse perdão,
Real Senhor, são mais do que eu poderia desejar. E nem já o castigo me poderá
ser muito pesado. Creia Vossa Majestade que mais me dói o remorso do que
aviltantes vergastadas.
— Sim, perdoo-te. E lamento o que
sucedeu. Mas o castigo, esse, já, por minhas palavras de Rei, não está nas
minhas mãos. —
Entrava, nesse momento, o
Ministro na sala, e, compreendendo logo o que se passara, disse:
— E assim me arvorais, Real
Senhor, em juiz do homem a quem devo tão grande benefício?
— Confio mais na justiça do reconhecimento
do que na do ressentimento, mesmo depois de abandonado, ou até desaparecido.
E pelas palavras deste homem
compreendi que muito melhor do que eu o soubestes conhecer. Nisto fui também culpado.
Sereis, pois, vós quem o julgará,
para lhe conceder o prêmio prometido por mim e o castigar pela sua falta grave.
Que ele mesmo vos diga quanto se
passou.
— Tudo sei ou adivinho, Real
Senhor. E sei mais, e não o devo esconder. Sei o mal que ele tem feito em
muitas famílias do Reino, usando impensadamente do direito que Vossa Majestade
lhe concedeu. E menos por ganância, creio, do que para se divertir com
fraquezas humanas.
— Desse mal (atalhou o Rei) sou
eu o principal culpado.
— Assim seria, Real Senhor, se
Vossa Majestade suspeitasse o que este homem entendia por medo ou receio de um
marido à sua mulher.
Não tem, pois, Vossa Majestade,
neste mal, qualquer culpa de que se acusar perante Deus, ou que entre os homens
reparar.
Mais depressa eu deveria
confessar-me culpado por me não ter aberto com Vossa Majestade, logo declarando
como e por quem me fora explicado o enigma que significava o bom governo de um
chefe de família, nem o juízo que logo fiz de quem assim me valeu. Deste erro
peço perdão ao meu Rei.
— Nenhum perdão tendes que
pedir-me, Senhor, pois bem sabeis a alegria que tive com os vossos conselhos de
sabedoria, a qual só foi possível por este homem ter aberto mão do segredo que
eu lhe ordenara, e sem cometer falta contra essas ordens e palavra dada.
— Nesse caso continua ainda este
homem a merecer um justo prêmio, por Vossa Majestade prometido.
— Nem eu quero que lhe seja
negado.
— Mas na verdade, Real Senhor,
ele também merece um castigo. No entanto, do mais grave, da impensada falta de
respeito por Vossa Majestade, o podereis talvez absolver.
Eu me explico, Real Senhor. Tem
este homem uma grande inteligência, mas com o defeito, que a muitas acompanha,
do gosto de com ela brincar, sem respeito por essa nobreza concedida por Deus.
Isto faz dos inteligentes mal-intencionados
uma das piores pragas da sociedade. Entram na zombaria sem motivo nem desculpa,
sequer, de qualquer justa revolta. E mais depressa perdem um amigo, ou ferem a
verdade e a própria justiça, do que recusam o prazer doentio de uma chalaça.
Livre-nos Deus de homens dessa condição e mau caráter com autoridade entre o
povo ou qualquer lugar na governação.
Mas o caráter deste homem é bom.
A sentença com que ele resumiu a sua vida, sabe-a Vossa Majestade expressão verdadeira
do seu procedimento familiar.
O que eu lamento é que
precisamente o homem que nos lembrou, mesmo sem o querer, um bom caminho da
governação, baseado no incentivo dos deveres, amor e disciplina das famílias,
tenho sido, também sem o querer, culpado na desunião de muitas delas.
Por este malefício, embora
involuntário, deverá ser castigado. E porque Vossa Majestade quer e manda que
eu julgue e dite a pena, digo que será justo que tudo quanto ganhou com o mau
uso que fez do direito que Vossa Majestade lhe concedeu, seja perdido por ele e
entregue à Santa Casa da Misericórdia, para ajudar viúvas e mal casadas.
— É justo. E assim se fará (disse
o Rei).
— É muito justo! (exclamou o
Carvoeiro). E só vos agradeço ver-me livre de tão mal fadado e triste dinheiro.
Mas, senhor, eu mais ganhei (e me arrependo) em divertimento (maldito seja ele)
do que em dinheiro. Deixai-me, pois, acrescentar a esse o que recebi de Vossa
Senhoria.
— Não. Esse prêmio te consentiu
Sua Majestade que por teu o tivesses. E ainda bem que soubeste guardá-lo para a
tua família, e, qual o outro, o não foste desbaratando em luxo.
— Falta o meu prêmio. (Atalhou o
Rei.)
— Se Vossa Majestade manda que eu
julgue, direi que ele deve ser apropriado à vida que deu a este homem as suas
grandes qualidades, e jamais a qualquer mudança de condição, para que não está
preparado.
Real Senhor, a floresta onde este
homem trabalhava quando Carvoeiro, simples, inteligente e bom, é de Vossa
Majestade, e em parte minha, por vossa dádiva.
Se mo permitis, juntar-nos-emos
no pagamento do prêmio justo a dar ao nosso amigo Carvoeiro. Que toda essa
floresta lhe seja dada em propriedade plena. Que a explore por seu ofício, com
o ouro que lhe dei.
Confirma Vossa Majestade a minha
sentença?
— Confirmo, e com alegria. E
agradeço a nova lição de alta sabedoria que de vós agora aprendi.
— Com vossa licença tenho ainda
uma condição a impor. E é que ele vá também renovando a floresta para benefício
de todos, e mais em particular dos seus filhos e futuros descendentes. Naqueles
ou nestes haverá quem venha a merecer o prêmio de elevação de classe, caso
tenha a sua inteligência, mas a respeite, e para esta subida tenha sido também
educado.
Sei que tens dois filhos, mas não
lhes conheço a inteligência e o caráter. Desejo dar-lhes educação, e se tiverem
o teu feitio serão os continuadores da tua riqueza. Se, porém, um deles for
mais refletido e amigo do estudo, eu lhe ensinarei os cuidados e trabalho da
governação. E será sucessor dos meus bens. Uma e outra coisa com autorização de
Vossa Majestade.
— Tendes a minha autorização, e
com o respeito devido a tão grande e nobre ânimo.
Chorava o Carvoeiro lágrimas de
alegria. E, com palavras de profunda gratidão, beijou as mãos do Rei e do Ministro.
Mas depois o seu gênio festivo tomou de novo conta dele, e não lhe consentiu
que deixasse de acrescentar:
— Mas, afinal, Vossa Majestade e
Vossa Senhoria elevam-me de classe, e muito!...
Fazem-me Carvoeiro-Mor do Reino!
---
Fonte:
Ana de Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)
Fonte:
Ana de Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)
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