O presente de bodas
Prelidiano Gonçalves
de Távora desposara, havia quase vinte e cinco anos, uma mocinha de
Iguape, franzina, meiga e cheia de sardas. Naquela época, ainda não era
("lê escrivão nem qualquer outra coisa. Entrou para o cartório mais tarde,
instado pela sogra a cujas costas vivia e que se não cansava de pregar todos os
dias um sermão contra "certos maridos troca-tintas que deixam a mulher em
casa, a trabalhar, e vivem trocando as pernas, pelas esquinas..."
A temível senhora
morria pouco depois, de um antraz ao peito e só então veio a conhecer Freudiano
a dura contingência de prover ao combustível para a máquina doméstica,
contingência tanto mais imperiosa quanto a família prosperara (em número, já se
vê...), havendo a franzina iguapense em menos de dois anos brindado ao aturdido
escrivão com três magníficos exemplares da última edição dos Gonçalves de
Távora.
Essa assustadora
fecundidade assombrou o pobre pai; vieram primeiro aquelas meninas gêmeas.
Laura e Leonor, depois o seu morgado, como ele dizia aludindo ao rebento varão,
a que chamou Mariano, em honra de sua esposa, Marianinha.
Mas, foi um susto
apenas; a fecundidade de Marianinha esvaiu-se, estacou, desapareceu, como
esses veios de água límpida que correm sob as florestas e de súbito somem
na terra. Tranquilidade para Freudiano... Tranquilidade logo depois
convulsionada por uma dor aguda: o seu morgado que, aos sete anos já era
um grandíssimo peralta, certa manhã, em outubro, levava uni trambolhão dos
píncaros de uma jabuticabeira, de tal sorte que se lhe torceram os gorgomilos e
morreu.
Ficou o doce
sentimento da paternidade reduzido, em Freudiano, a passear da cabeça de Laura
para a de Leonor, da cabeça de Leonor para a de Laura. E, como a família era
pequena, entenderam as suas cunhadas de Iguape que seria agradável e consolador
virem-se aboletar com ele, nada menos de três, uma das quais viúva, reumática,
e com quatro filhos. A máquina doméstica exigia agora o dobro em cavalos-vapor
de autos, translades e públicas-formas, e a figura de Prelidiano a suportar
todo o estafante e pesadíssimo encargo daquela família lembrava bem o símbolo
mitológico de Atlas, mas de um Atlas pigmeu, condenado a aguentar o mundo.
***
Aproximavam-se para o
venturoso casal as bodas de prata e a suave Marianinha lembrara-se de que bem
podiam festejar aquela data casando as duas filhas, pois tanto Laura como
Leonor traziam namoro, a primeira com um escrevente de cartório, a segunda com
certo oficial de polícia. Estavam ambos prontos a pedi-las, era questão de um
sinal de cabeça das meninas...
— Seria a maneira
mais bonita, dizia a romântica Marianinha, de comemorar-se aquele dia...
Mas, objetava o marido, para isso eram precisos meios, recursos para o enxoval,
para os consertos da casa, para a mobília dos quartos!
A casinha era própria,
uma casinha na Rua do Carmo, pequena é verdade, mas era deles, ou antes dela,
Marianinha, legado de certa baronesa rica que n levara à pia do batismo e cuja
proteção e amizade foram para a iguapense, ao lado do encanto dos seus olhos,
as coisas que mais enfeitiçaram Freudiano.
O escrivão achara a
ideia dos casamentos verdadeiramente genial, tanto mais que se lembrara de
estabelecer com os genros uma espécie de comandita para aguentar o lar
doméstico. E andava preocupadíssimo com a lembrança dos enxovais, da mobília
dos quartos, dos consertos da casa, sonhando mil recursos diferentes, embalando-se
nas mais frágeis miragens, lançando a âncora da esperança aos bilhetes de
loterias, ao acaso, a algum testamento desconhecido.
Mas nada, nada!
Com os seus proventos
de escriba, magros, que mal chegavam para o feijão diário, nem era bom contar.
Naquele caso só uma intervenção providencial, algum fenômeno benéfico da
fortuna, coisas que escapavam inteiramente aos seus esforços e à sua energia.
E, entretanto, contava
de tal forma com essas forças estranhas, que as duas raparigas já haviam
acenado aos namorados o "peça-me a papai", e tal pedido já fora feito
e dado o Sim, tudo isso em duplicata, infestado, como dizia um caixeiro da
vizinhança, amigo do escrivão.
Faltavam apenas
quatro meses para a data venturosa e fatal, o amoroso idílio das pequenas
corria o mais ardente possível, sob o olhar de cérebros tutelares da mãe e das
tias, e só Freudiano andava cada vez mais sorumbático e triste.
A fortuna não dera
ainda um passo a seu favor! Os enxovais estavam por fazer, as mobílias por
comprar, a casinha inteira esperando a mão de tinta prometida e urgente.
A sua Marianinha
desfazia toda a suavidade em objurgatórias constantes, terríveis catilinárias
que desabavam como pedras sobre a cabeça do escrivão, atos esses em que
colaboravam as três cunhadas vindas de Iguape, uma certa comadre da vizinhança,
e até as meninas com expressivos muxoxos e dengues cheios de ironia e
desprezo.
— Arre! Graças a
Deus, tia Antonica, já me deu seis camisas, dizia uma.
— E eu, para o meu
vestido, já tenho uma peça de tira bordada, volvia a outra.
— E vocês se contentem,
meninas, que o enxoval há de ser pouco maior, gorgolejava uma das tias, que era
um tanto papuda.
— E, se formos
esperar por mais, não casamos, respondiam ambas.
Estas palavras,
entrecortadas de sorrisos escarninhos, olhares mofadores e ferinos,
transpassavam a alma do escrivão como sete espadas. Era quase sempre à hora do
almoço que se passavam tais escaramuças e o pobre homem saía para o trabalho
varado e humilde como um cão.
Sofria aquela
injustiça dos seus com resignação estoica. Que pretendiam, santo Deus? Que
fabricasse moeda falsa, roubasse, descobrisse uma mina de ouro? Já se não
lembrava porém de que aquela suntuosidade de enxovais, de mobília, de casinha
pintada, fora ele próprio que despertara no espírito das filhas, sugerindo-lhes
coisas que, á sua imaginação de visionário, se auguravam realiáveis e
possíveis.
O pobre homem tomava
tristemente o chapéu, a bengala, um maço de autos que levara a copiar toda a
noite, e o jornal. Acendia um cigarro grosseiro, de palha, e lá se ia
vagarosamente, lendo a folha pela rua. A primeira coluna por onde soltava os
olhos febris e esperançosos era a das loterias. Nunca deixava de ter um
bilhetinho a conferir. Era o seu grande sonho! Cinquenta contos, bastavam... E
imaginava o seu número premiado, notas dos bancos bailando em torno à figura,
num frenesi. Não dizia nada a ninguém; depositaria o dinheiro em um banco,
afetaria em casa a mesma pobreza, o mesmo desânimo... Deixaria que fizessem um
enxovalzinho modesto, simples, muito escasso... Ouviria as recriminações da
mulher contra o mau estado da casa, a feia e velha mobília dos quartos:
suportaria o desdém e má vontade das filhas, tudo com um sorriso superior,
enigmático, de quem traz um mistério dentro de si.
Ah! mas no dia,
depois de realizada a cerimônia, ele se chegaria aos dois pares, na presença do
juiz de paz, do cônego, dos convidados, metido naquela mesma sobrecasaca ruça
que também passava as bodas de prata e, depondo nas mãos de cada filha um
rolo de papel, dizia:
— Eis aí, meninas, o
presente de bodas do vosso pai!
Eram vinte apólices,
vinte contos para cada uma. E todos ficariam atônitos, e ele, radiante, alegre,
triunfador, seria abraçado e beijado pelas filhas, pela mulher, pelas
cunhadas, e até pelos dois genros, sem dúvida, principalmente pelos dois
genros.
E o pobre Gonçalves
de Távora repetia na rua o seu grande gesto, vibrando o rolo dos autos e do
jornal, a dizer em voz alta para os transeuntes espantados:
— Eis aí, meninas o
presente de bodas do vosso pai!
Mas o som das suas
próprias palavras vinha fazê-lo cair em si, despenhando-se do alto da sua
quimera para a dureza da realidade e do asfalto.
***
Diariamente era a.
procura dos números da loteria que o levava a sonhar; e diariamente a sorte
fugia dele numa obstinação cruel. Da coluna das loterias passava os olhos pelo
jornal todo, com indiferença. Lia-o, entretanto, linha por linha, até o fim,
mas às vezes a leitura estava para um lado e a sua imaginação se desgarrava por
outro, aos saltos, atrás do belo sonho de sempre.
Certa vez em que
procedia distraidamente a essa leitura, sentado a sua mesa de trabalho, antes
de encetar a labutação enfadonha de encher folhas e folhas de almaço,
surgiu-lhe pela frente uma notícia que lhe soube prender os olhos e a atenção.
Vinha no obituário e dizia:
"Suicidou-se
ontem, ingerindo uma forte porção de láudano, o conhecido negociante desta
praça, Sr. A. de L.
Atrasos comerciais
levaram-no a esta solução extrema. Sabemos, porém, que deixa a família amparada
graças a um seguro de cem contos que fizera na companhia tal"...
Como! Exclamou
consigo Freudiano, as companhias pagam o seguro em caso de suicídio! Não é
possível... Mas, daí a três ou quatro dias, tinha a confirmação daquilo lendo
no mesmo jornal o recibo firmado pela viúva do morto, acompanhado de
agradecimentos à companhia de seguros pela prontidão com que satisfizeram o
pagamento, etc.
Segundo o costume,
logo subordinou aquele caso à sua fantasia. Releu vagarosamente o recibo, mas
firmado por Marianinha, e o segurado extinto, suicida, tinha o nome dele, bem
claro, com todas as letras — Freudiano Gonçalves de Távora! Aquela ideia
sulcou-lhe a mente como as rodas de pesado caminhão um terreno fofo e
compreensível. Sim, realmente, era uma solução, pensava ele. E, depois, que
heroísmo, quanta abnegação naquele sacrifício pela família!...
Faltavam dois meses
apenas para as> suas bodas de prata e até agora a fortuna, o acaso, as
loterias, nada quisera vir ao seu encontro.
Guardou no fundo
d'alma aquela resolução. Desde esse dia, quando, em casa, a mulher e as filhas
o primiam sob uma saraivada de remoques e ditos, ele sorria, tinha um ar
transfigurado de mártir, parecendo gozar daquele sofrimento. Os ápodos, as
recriminações, as continuadas invectivas que dantes o abatiam e torturavam,
constituíam agora para ele delícias esquisitas.
— Como se hão de
arrepender, pensava ele, como se hão de arrepender!...
E, em segredo, sem
participar a ninguém, conheceu a prestação que, na sua idade, se deveria pagar
por um seguro de cinquenta contos, sujeitou-se ao exame médico no consultório
da companhia, tudo misteriosamente, às escondidas, com terror pânico de ser
pilhado e descoberto durante aquelas disposições.
Homem de ordinário
inerme, sem expedientes, Prelidiano se transformara naqueles dias,
desenvolvendo atividade e astúcia até então desconhecidas na sua pessoa.
Assim foi que, ao
saber que uma só prestação lhe custaria dois contos de réis, devido à sua
avançada idade, não desanimou; foi a um capitalista seu amigo e fê-lo, pedindo
o maior sigilo, dizer se lhe emprestava aquela quantia sob a hipoteca de sua
casinha. Obtida resposta favorável do argentário, fez lavrar em cartório a competente
escritura que apresentou à sua mulher, fazendo-a assinar como se fossem papéis
para os casamentos. A simples e suave Marianinha assinou confiante-
Freudiano, nadando cm
júbilo, partiu de casa para o escritório do capitalista que o embolsou do dinheiro.
Ao tocar aquelas notas, numa quantia que nunca tivera em mãos em dias de sua
vida, o escrivão não teve a menor sensação de horror. Não eram a sua sentença
de morte; eram os esponsais, a felicidade das filhas, o seu presente de bodas.
Levou toda a
importância à agência da companhia, recebendo imediatamente a sua apólice de
cinquenta contos. Cinquenta contos! O que não pudera adquirir, em trinta anos
de trabalho e de sofrimento, para legar à família, ia conseguir de uma hora
para outra, rapidamente, graças a uma dose de láudano. Andou, de farmácia em
farmácia, comprando o tóxico em pequenas quantidades para não suscitar
suspeitas... E, guardando no bolso aquele arsenal de vidrinhos, ao lado da
apólice do seguro, partiu para a casa feliz, cheio de tranquilidade,
trauteando cançonetas alegres.
Certa manhã, a mulher
dirigiu-se-lhe de mau-humor:
— Não sei se te
lembras de que faltam vinte dias para os casamentos! E estamos tão adiantados
como há seis meses... Santo Deus, que palerma de marido!
— É hoje, pensou o
pobre homem — E respondeu: — Não te aflijas, Marianinha, juro-te que os
casamentos serão feitos. Amanhã mesmo terás todo o necessário para isso...
— Todo o
necessário... É bom dizer mas não de arranjar. Esperas que caia do céu, não é?
— Verás, Marianinha,
verás...
Tomou o chapéu, a
bengala e os jornais, como de costume, mas, em vez de sair para o cartório,
dirigiu-se sorrateiramente para um compartimento da casa que lhe servia de
escritório e fechou-se por dentro.
Sentou-se à sua
velha escrivaninha, onde tantos milhares de autos, translades, públicas-formas
e escrituras copiara durante a vida e escreveu estas linhas derradeiras e
fatais:
Marianinha
Nesta gaveta acharás
uma apólice de seguro de vida no valor de cinquenta contos. É meu desejo que no
dia dos casamentos, seja dada a cada uma das meninas, como presente meu, a
quantia de, vinte e cinco contos. O resto é para ti e para as despesas. Adeus.
Prelidiano.
E deitando-se num
velho canapé ingeriu, de um por um todo o conteúdo dos
frasquinhos que trouxera.
Seria uma hora da
tarde quando um solicitador do foro bateu à porta da casinha da Rua do
Carmo, perguntando pelo escrivão.
— Foi para o
tribunal, disseram.
— Mas lá não está,
respondeu o homem.
E acrescentou
precisar de uns papéis que deveriam estar na escrivaninha de Prelidiano e pedia
às senhoras licença de procurá-los.
— Pois não! Entre e
faça o favor, respondeu uma das filhas introduzindo o recém-chegado.
E Marianinha e as
duas raparigas lá conduziram o rapaz, através dos corredores da casa, até o
gabinete do escrivão. Notaram com espanto que a porta estava fechada e a chave
pelo lado de dentro, na fechadura. O espanto degenerou em pânico e terror
quando lhes pareceu, a todos, ouvir gemidos trágicos, dolorosos, que provinham
do aposento.
Gritos e lamentações
de Marianinha e das filhas, enquanto o solicitador metia ombros à porta que,
depois de várias e enérgicas tentativas não teve senão ceder.
No chão, sobre o
tapete esgarçado, caído do canapé, jazia o Prelidiano mísero! A mulher
atirou-se aos gritos para ele, as meninas saíram correndo, a pedir socorro,
entrou gente estranha na casa, apareceu um médico, reinando por algum tempo uma
confusão terrível.
Quando o enorme
alarido serenou, é que deram com o bilhete em cima da secretária.
Marianinha, ao lê-lo, teve um delíquio e foi necessário retirá-la do gabinete.
O solicitador que, no
meio daquilo tudo, não esquecera os seus papéis e remexia as gavetas a procurá-los,
tirou de uma delas a apólice do seguro e leu-a.
— Datada de quatro
deste mês, disse ele para o médico que neste momento acabava de declarar
perdido aquele caso, mas esta apólice não vale nada...
— Como? perguntou um
dos presentes.
— A companhia só paga
o seguro em caso de suicídios quando o sinistro se dá depois de cinco anos de
prestações.
O pobre envenenado
teve um momento de lucidez extrema ao ouvir aquelas palavras. Pensou na sua casinha
hipotecada e expirou.
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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica:
Iba Mendes (2019)
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