Este padre Borregana,
cônego da Sé, tem uma história.
Toda a gente
tem uma história, é claro; mas a do padre Borregana é uma história singular,
digna de contar-se e de ser ouvida.
Padre
Borregana nasceu padre como outros nascem militares, ou poetas, ou oradores, ou
assim... Nasceu padre. Desde muito novo revelou uma grande queda para aquele
mister. Compleição débil, espírito supersticioso e timorato, era ele quem
acendia as velas do altar-mor nos dias de missa cantada; quem ajudava a dobrar
o sino dos enterros; quem levava a caldeirinha e o hissope entoando
o Bendito com
o Senhor; quem dizia ora pro nobis atrás do pálio nas procissões; quem
informava as beatas dos ataques hemorroidários do Sr. arcebispo no tempo do
arroz de tomate...
— Podia ter
nascido corcunda, podia ter nascido zanaga, dizia o pai, a justificá-lo;
ninguém se faz...
E não.
Velhos
condiscípulos dele no liceu e depois no seminário, ainda hoje diziam que o
padre Borregana fora a mais decidida vocação que tinham conhecido para o
sacerdócio — para a castidade sobretudo, — o que aos seus olhos de pecadores
inconfessáveis o tornara particularmente famoso, votado sem esforço ao
sacrifício duma existência de renúncia, frouxo de vontade como era, e então com
um apelido que lhe assentava como uma luva...
Quando, — já
depois de ordenado — desceu o estribo do comboio na estação do Rocio, uma
tarde, padre Borregana ficou atarantado, hesitante, como uma criança que
perde a ama, no meio da barafunda, do vozear confuso da multidão que se
acotovelava a sair da gare.
— Ó padre
Borregana! ó padre Borregana!...
Voltou-se.
Quem o chamava? Que lhe queriam?... Diante dele um sujeito alto, encorpado,
abria-lhe uns grandes braços, oferecia-lhe o peito largo para o receber. Padre
Borregana trepidou.
— Não me
reconheces, homem? Sou eu!... Olha bem p'ra mim: o Ataíde!
O Ataíde! Quem
havia dizer! Com aquelas barbas, aquele todo distinto, aquele ar de pessoa
importante e abastada!...
— Tu! Pois
tu!... — murmurou o padre.
E abraçaram-se
enternecidamente.
Enquanto iam
saindo da estação, o outro explicava-lhe: tinha subido, tinha trepado,
formara-se... arranjara um casamento rico e uma boa colocação...
— Sim?!
— É verdade.
Padre
Borregana estacou, admirado.
— Mas ouve cá,
disse, como demônio conseguiste tudo isso? Tu, demais a mais, — desculpa que te
diga — mas nem eras dos mais atilados...
O outro
sorriu, superiormente:
— Dos mais
atilados! Pobre rapaz! Consegui isto como se consegue tudo na vida... como se
consegue ser homem, ser gente, ser alguém neste mundo: à custa de muito
pontapé!...
E
separaram-se.
Mais adiante,
Borregana, que caminhava apreensivo, cismático, no encalço do moço de fretes,
em demanda dum albergue pacato, sentiu a ponta duma bengala tocar-lhe
discretamente no ombro:
— Psst!...
Borregana!
Voltou-se de
novo, e deu de cara com outro velho conhecimento, a quem a sua presença
inesperada causou igualmente grande surpresa e alegria. Repetiu-se, mutatis mutandis, a
mesma cena: também este trepara, também este vencera, também tinha uma
linda posição...
— É boa! E
tudo isso... — balbuciou.
— À custa de
muito pontapé!
— !!
Ao desandar da
rua do Carmo para o Chiado maior espanto o aguardava. Desta vez o velho amigo
era um ministro — e ministro da Justiça! — que lhe abriu os braços como os
outros (o que fez juntar gente...) e como os outros lhe confessou que tinha
subido, trepado — á custa de muito pontapé!...
Dias passaram.
Padre Borregana regressou a penates. Um domingo, logo depois da missa, chamando
de parte o sacristão, leal companheiro e confidente, segredou-lhe:
— Cristóvão!
vais-me aqui prestar hoje um grande serviço...
O sacristão,
um diab'alma alentado e grosso, bruto como umas casas, muito respeitador das
qualidades e ornamentos do cura, murmurou, comovido e modesto:
— Um serviço?
Oh! Sr. prior!... Queira vossa reverendíssima ordenar... Cá por mim só se não
puder...
— Um grande
serviço, Cristóvão, um grande serviço...
Botou uma
olhadela à igreja, outra ao São Jerônimo do altar, outra a bandeira das almas,
e erguendo por fim as abas da batina ensebada, revirou-lhe o nédio cesso,
exclamando:
— Ferras-me aí
um pontapé!...
— Quem, eu?
— Já disse,
Cristóvão: um pontapé.
O sacristão
presumiu-o doido. Hesitou, mas por último, vendo o ar decidido do presbítero,
para o não irritar, fez-lhe a vontade, encostando-lhe a biqueira ferrada ao
hemisfério sul, devagarinho...
— Força,
homem! isso não é nada, suplicou o padre, cuja estranha flagelação parecia
dever enchê-lo de infinito gozo — isso não é nada!
— Ó Sr. prior,
mas eu... — tartamudeou o Cristóvão, condoído.
E o padre
Borregana, num palpite, de mãos postas:
— Depressa!
depressa!... Pelas cinco chagas! pelas cinco chagas, Cristóvão!
— Ele é isso?,
rosnou o sacristão com os seus botões; e desprezando escrúpulos, atirou-lhe um
coice, com tal violência, que o fez baquear e gemer:
— Ui!
— Ah, já?... —
e atirou-lhe segundo.
Nisto um
matraquear de tamancos no lajedo da igreja.
— Quem é? quem
vem aí?, bradou o padre aflito, cheio de dores, estorcendo-se.
— É para o Sr.
prior, esta carta...
— Para mim?!
Era um
telegrama.
O prior
precipitou-se, rasgou todo trêmulo a obreia do sobrescrito: "Por ordem de
São excelência..." (turvou-se-lhe a vista)... "nomeado cônego."
Caiu sobre um
banco que para ali estava a um canto, aniquilado, morto de comoção. Quando
despertou daquela espécie de síncope o prior estava triste... Em volta
houve um alarido, um espanto, mal constou o milagre... Porque fora um milagre!
Tudo quis ver e visitar o Sr. padre Borregana, feito cônego — a pontapé. Não
recebia? Porquê?... Talvez dorido, coitadinho, talvez de ferido no pousadouro
com a brutalidade da operação. E invectivava-se o Cristóvão — bruto! verdugo! —
que se desculpava, dizendo:
— Pois sim,
pois sim, mas se não fosse eu...
Tinha razão.
A roda das
beatas da terra toda se desfazia em favores e conselhos de arnica, de unto de
cobra e semicúpios de malvas, para aliviar as dores e a tristeza do prior,
cujos nadegueiros — já agora uns nadegueiros de cônego — intumesciam e
grelavam...
Dizia-lhe a
criada:
— Parece que
ficou a modos triste, Sr. cônego?...
— E fiquei,
pudera, se não tenho de quê, cachopa! — queixava-se.
— De quê?!
Homessa! Depois duma nova assim!...
— Depois duma
nova assim; admiras-te? Com dois pontapés arranjei a ser cônego, mas se aquele
alarve se não demora e me prega logo uma dúzia deles, quando eu dizia, estava a
estas horas bispo! Bispo, imagina!... Se não hei de estar aborrecido...
O milagre não
obstante ficou de pé, íntegro, documental, palpável, a atestar o dedo da
Providência na ferradura do Cristóvão. A religião, vigilante, viu logo na
pessoa do padre virtudes canonizáveis...
Apenas o
Sequeira, funcionário de finanças, livre pensador e ateu— um doido! — zombava,
fazia menos daquilo, afirmando em toda a parte que o padre Borregana tinha tido
um cônego pelo traseiro, e que o pai da criança era o sacristão!
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Fonte do texto: Project Gutenberg
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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