6/13/2019

O Mestre assassinado (Conto), de Alexandre Herculano



O Mestre assassinado
(Crônica dos Templários: Ano de 1320)  
Na ponta de um promontório, que fica ao leste, na ilha de Mull, uma das Hébridas, campeavam ainda as paredes e tetos meio arruinados da gótica ermidinha de São João. Os Sarracenos, pirateando até os mares do Norte, tinham-na acometido e roubado. Deserta desde então, só era frequentada pelos pescadores que junto ao cabo vinham às vezes lançar as suas redes, e que nela se abrigavam, quando alguma tempestade os salteava de improviso.


Era ao fim da tarde. Antes de tempo um bulcão negro e medonho tinha espalhado as trevas da noite: a tormenta soava nos mares com temeroso ruído e o vento assoviava pelas escadas da ermida; e pedaços de vidros quebrados tiniam caindo das frestas esguias.
Patrício, o jovem barqueiro, tinha-se abrigado debaixo da alpendrada da igreja com o pequeno Davi, seu companheiro: debalde havia batalhado por cortar, através das penedias, para o interior da ilha, onde habitava; em vão acendera um facho: o vento lho apagara logo. Esperava ali, portanto, que a tempestade se aquietasse. A sua barca, presa por um forte cabo, jazia segura na enseada, posto que batida pela inquieta ressaca.
Pouco a pouco foi quebrando o vento: as nuvens se espalhavam para o ocidente, as vagas cruzadas que trepavam aos rochedos estoiravam com menos horroroso bramido. A Lua tinha surgido nos céus, e mandava seus raios suaves a consolar a Terra.
Era tempo de voltar a casa: o pobre Davi com instância o pedia ao barqueiro; mas este não o escutou. Atento aplicava o ouvido para o lado do eremitério. De repente, com voz sumida e trémula, disse, tapando a boca ao rapaz:
— Anjo da minha guarda! Que ouço! Vozes de homem neste ermo! Não vês o clarão frouxo que sai daquela janela que está ao rés do chão? Vai rapaz, manso, manso, examina o que é: porque dali sai o som. Mas toma sentido: olha não te pressintam. Mas vai; senão!
Posto que tremendo, assim o fez Davi. Manso, e manso, se foi chegando à janela; e com pasmo viu o que se passava dentro daquele recinto.
Um subterrâneo comprido se estendia ao longo do eremitério — esta janela ficava num dos topos: mas desde muitos anos que nenhum habitante de Mull passava por junto dela. Contavam-se muitas histórias a respeito daquela janela, e os crédulos pescadores, não tendo necessidade de examinar esse mistério, quando iam ao promontório procuravam sempre afastar-se dela.
Ao clarão de uma luz baça, grande número de homens desconhecidos ali estavam, e em linguagem ininteligível pareciam altercar uns com outros. Cobertos com mantos brancos, cada um tinha na mão uma espada reluzente. A débil claridade do subterrâneo e o terror do rapaz lhe tolheram o divisar mais nada.
Patrício sentiu correr-lhe pelos membros um suor frio, quando Davi lhe veio dizer o que vira, e fez o sinal-da-cruz.
— Santo Deus! São certamente aqueles fidalgos franceses que vieram há anos ter a esta ilha, e que em certos dias se juntam neste ou em outro sítio. Vamo-nos daqui embora não nos suceda alguma! Ai de nós se percebem que os espreitamos. Um deles cegou Murray só porque lhe disse algumas palavras pesadas. Anda! Vamo-nos embora.
Dito isto agarrou na mão a Davi, e o foi quase a rastos levando atrás de si pelos fraguedos da serra. Os socos dos dois barqueiros ressoaram pelas pedras, e a sombra dos seus corpos se prolongava pelos penhascos, onde o luar batia de chapa: foram sentidos!
O grito de alto lá! que reboou por aquelas quebradas, os fez parar de repente. Um homem vestido de branco e com a espada nua na mão se lhes pôs diante: o seu ar era ameaçador. Davi se arrojou por terra, e Patrício, aterrado, deitou para trás o capuz do felpudo gibão, e clamou com voz truncada:
— Perdão! Perdão! Eu não o sabia! Foi o acaso e a tempestade quem me trouxe ao pé da ermida!
— Que é lá isso, irmão? — perguntou outro, que saiu da porta da ermida, também vestido de branco.
— Chove! — respondeu energicamente o primeiro.
— Tende mão nos profanos! — replicou o outro, recolhendo-se apressadamente para dentro.
Não era necessário usar de força para executar esta ordem; já o terror tinha tornado imóveis os dois miseráveis. Bem viam que o terrível estrangeiro não gracejava com eles.
Entretanto, de toda a parte, no dilatado firmamento, cintilavam as estrelas no fundo do azul espaço, e nem uma pinga só de chuva caía do céu, onde passava a Lua em toda a sua majestade. Patrício estava calado, resolvido a fazer uma confissão sincera de tudo o que sucedera, e resignado com a sua sorte.
Então saiu da porta da ermida um homem ricamente vestido, o qual começou com aspecto severo a fazer perguntas aos dois barqueiros. Patrício disse a verdade; Davi a confirmou: dos discursos de ambos concluiu o cavaleiro que eles nada importante tinham descoberto. Mandou, portanto, embora Davi, ordenando-lhe voltasse imediatamente para casa, e não revelasse uma só palavra das que tinha ouvido, uma só coisa das que vira.
— Silêncio! — disse-lhe o cavaleiro — se queres conservar a língua e os olhos; aliás uma e outros te serão arrancados!
Prometeu o pobre rapaz cumprir à risca tudo o que se lhe ordenava; e leve como um gamo, deitou a correr por aquelas fragas sem lhe importar o que sucederia ao amo, que ainda ficava em poder dos estrangeiros.
O cavaleiro voltou-se depois para Patrício, que estava meio morto de medo.
— Tu és barqueiro. — disse-lhe. — Não é assim?
— Há muitos anos que essa é a minha vida.
— Atreves-te a levar um homem, sem mala, sem criado, sozinho, até as costas de França, perto de Calais, e deitá-lo em terra junto de uma torre edificada em remotíssimos tempos, e enegrecida pelas tempestades e pelos séculos? Atreves-te a torná-lo a trazer aqui logo que ele quiser voltar?
— E por que não? — respondeu Patrício cobrando ânimo, depois de hesitar um pouco. — Forte é o meu barco, e eu teria vergonha de tornar a guiar um leme, se me não atrevesse a cruzar com ele o canal. Estou pronto a soltar a vela, uma vez que nisto não haja senão os perigos do mar, e que me pagueis o meu trabalho.
— Serás satisfeito — respondeu o venerando cavaleiro. — Vai preparar o barco. Daqui partirás para o teu destino.
— Já? — perguntou Patrício enleado. — Depressa estará prestes a barca: mas preciso levar para lá mantimento. Irei a casa buscar o meu pão de centeio e algum peixe escalado.
— Não, não é preciso! — interrompeu o cavaleiro, irado, e soltando uma praga em francês. — O teu companheiro cuidará do sustento. Confia nele!
Dizendo isto o velho voltou para a ermida; e o guarda, envolto no seu manto branco, acompanhou o barqueiro até a enseada. Patrício desamarrou o batel, onde colocou um banco para se sentar o passageiro. Bem pouco tardou este. Era um jovem vestido de preto. Entrou na barca, e sentou-se sem dar palavra. Pensativo, e encostando a cabeça sobre o punho da sua larga espada, deixou-se conduzir através das ondas escumosas, sem se despedir do outro, e nem sequer fazer caso das vagas que às vezes o rociavam batendo umas contra as outras na encontrada ressaca.
Ei-los ao largo! O tempo estava sereno; e a barça abria ao luar uma longa esteira no meio do mar sossegado.
Mudo parecia o estrangeiro, porque em todo o seguinte dia não proferiu uma sílaba. Sem dar palavra, entregou dinheiro a Patrício para ir comprar algum mantimento, quando passaram junto das costas da Escócia. Aproando em terra, ele ficou sentado na barca, enquanto, o barqueiro ia buscar provisões. Brevemente desfraldou Patrício outra vez a vela ao vento, e empunhou os remos, levando o rumo na direção de Calais.
Descia a noite; e o desconhecido ainda não tinha soltado uma só palavra: silencioso envolveu a cabeça no seu manto, e deitou-se a dormir. Patrício cansado sentou-se ao leme, amaldiçoando lá consigo o passageiro, que nenhum repouso lhe concedera.
Enfim o desconhecido dormia; e as larvas dos sonhos vieram desatar-lhe a língua. Palavras distintas lhe fugiam dos lábios; e a sua alma parecia grandemente agitada.
“Concluir-se-á, pois, o majestoso edifício! Eu triturarei a argamassa, que deve reunir as colunas. Oh mestre, mestre! não podias tu livrar deste encargo o pobre companheiro?”
Foi isto o que o atento barqueiro pôde perceber-lhe: daí avante sons inarticulados, e gemidos dolorosos, que o desconhecido arrancava a custo do peito, foram o único ruído que se escutou na barca. Patrício não entendeu mais nada.
“Ora, eis aí — disse ele lá consigo — como a gente se engana. Eu tinha para mim que o passageiro era pessoa notável; e agora está claro, que não passa de algum pobre canteiro ou pedreiro, que os fidalgos franceses incumbiram, talvez, de reedificar a ermida de Mull. Nem admira que, por isso, eles façam tanto caso de um mestre de-obras.”
Então o barqueiro deu com os olhos na espada, que o cavaleiro tinha à cinta.
“Mas, quem não diria — prosseguiu ele — que este homem é um cavaleiro? E que me importa a mim isso? Paga bem; e tanto me basta. Seja lá o que quiser!”
Fazendo esta reflexão, Patrício foi guiando a barca, sem se afligir com o silêncio do seu camarada, silêncio que durou todo o resto da viagem.
Era de noite quando atravessaram a parte mais estreita do canal, que divide a Inglaterra do território francês: pelo escuro avultava a hórrida torre, chamada dos Pagãos; o mar a banhava por três lados, e aquele vulto enorme negrejava por entre o débil fulgor das estrelas, como um fantasma noturno. Chegaram perto dela: então o jovem se pôs em pé, com os olhos fitos na sombra da terra, e disse:
— São estas as costas de França?
— Sim, senhor! — respondeu Patrício; e apontou-lhe com a mão para o lugar do desembarque, que era junto da torre.
O jovem parecia aflito; e em verdade o seu coração batia acelerado. Tinha-se turbado o céu, e um grosso chuveiro derramava torrentes de água sobre a barca; apesar disso ele tirou a sobreveste e a touca; o ar como que faltava aos seus pulmões comprimidos.
Patrício endireitou para a abra; e foi entestar com a praia. Saltaram em terra. Uma cabana de pescadores era a única habitação que naqueles sítios havia: bateram; e os moradores da cabana abriram imediatamente.
Mas o desconhecido não cruzou o limiar da porta.
— Daqui a três dias, ao mais tardar, terei voltado; espera-me neste lugar, e guarda silêncio acerca do passado.
Foram estas as únicas palavras que dirigiu ao barqueiro.
— Qual é — perguntou depois aos pescadores — o caminho mais curto para a aldeia da nossa Senhora dos Temporais?
Os habitantes da cabana lho ensinaram, rogando-lhe porém que esperasse ali até pela manhã: áspero e longo era o caminho.
Mas ele estava firme no seu propósito: embrulhado no manto, e encostando-se à espada, como a bordão de peregrino, seguiu avante, pelo úmido e escabroso atalho, para o lugar do seu destino.
Lá no meio da senda, como um sinal de esperança, estava levantada uma cruz de pedra, que a idade tinha coberto de musgo. Junto dela ajoelhou-se o cavaleiro, e abraçando-a, as lágrimas lhe rebentaram dos olhos.
— Oh terra da minha pátria! Solo onde tive o meu berço! — exclamou, soluçando. — Tornei a ver-te ainda! E como se fosse um assassino proíbem-me o viver no país da minha infância? Para respirar este ar, para abraçar esta cruz, preciso fazê-lo pelas trevas da noite, preciso esconder no seu manto as ações do proscrito? Oh, desgraçado de mim!
E levantando-se caminhou à pressa, para a meio arruinada aldeia, onde ainda bruxuleavam algumas luzes, que refletiam ao longe pelas veigas encharcadas. A chuva era cada vez mais pesada, e o caminho mais incerto. Cansado de corpo e de espírito o jovem sentia-se desfalecer, quando chegou ao pé de uma ermidinha.
Parou debaixo de uma frondosa árvore, que sombreava o edifício, e procurou certificar-se de que não errara o caminho.
“Eis aqui a ermida de que o mestre me falou: acolá alveja o grande cruzeiro; ali soa o murmúrio da fonte e o ruído do ribeiro. Ânimo, pois! Lá diviso o edifício, que é o termo da minha viagem.”
Não se enganava: apenas dera mais alguns passos, achou-se diante do edifício, a que se dirigia. Uma cancela baixa, feita de vimes enlaçados, tapava a entrada de um pequeno terreiro, cercado de um murinho de pedra solta. O jovem peregrino saltou por cima da cancela, e por entre utensílios de lavoura subiu ao portal da casa por alguns degraus meio arruinados. Pegando na aldraba deu apressadamente duas rijas pancadas, e depois de breve demora deu ainda outra; e repetiu-a três vezes.
Latiu dentro um cão: daí a pouco, ouviu-se uma voz de homem, que perguntava ao desconhecido o que pretendia.
— Um pobre peregrino extraviado, e morto de fome, pede hospitalidade! — respondeu o cavaleiro.
Passado um momento, pelas janelas se viu passar uma luz: soaram passos; correu-se o ferrolho, e a porta se abriu.
O desconhecido arrancara de um punhal: mas ao ver o rosto tranquilo do seu hóspede, que lhe estendia a mão, desfaleceu-lhe o ânimo: o punhal caiu na bainha; e aos lábios do cavaleiro fugiram estas palavras:
— És tu Gilberto, rico e livre proprietário?  
— Sim! — respondeu o hóspede.
— Deus, pois, te salve; e na tua ajuda seja o bem-aventurado São João, cuja cabeça veneramos!
Esta saudação encheu Gilberto de espanto e terror; mas o modo porque o estranho lhe apertou a mão o perturbou ainda mais.
— Por que não correspondes à minha saudação? Porque não repetes o toque? — disse em voz baixa o cavaleiro. — Irmão Perrail, isto não parece bem!
Gilberto recuou.
— Tu o sabes? — perguntou com voz trémula. Mas, uma desconfiança lhe passou pelo espírito:
— Vejamos — prosseguiu com firmeza, — vejamos se um malvado vem escarnecer de mim. Qual é a tua senha?
— Noturna — replicou o mancebo.
— Dá-me a palavra! — continuou Gilberto aterrado.
— Diz-me a primeira letra; dir-te-ei a segunda — respondeu com aspecto carregado o cavaleiro.
A palavra misteriosa foi dita letra por letra. Então Gilberto, erguendo as mãos, exclamou:
— Homem, a que vens a minha casa, para me salteares, como um ladrão que sai de improviso na estrada? Que pretendes de mim?
— Pão, sal, fogo e segurança — disse o desconhecido.
— E posso fiar-me de ti?
— Não nos liga o mesmo juramento?
— Ah, o meu juramento! — disse Gilberto. E a cabeça lhe pendeu para o peito.
— Sossega-te: também eu sou um perjuro; por isso te venho buscar.
Gilberto ficou por algum tempo calado: lá no fundo da sua alma passou uma ideia terrível. Tinha os olhos fitos no cavaleiro, e abanara a cabeça. Enfim fechou a porta; levou o desconhecido para um quarto; mostrou-lhe um leito que nele havia; pôs sobre a mesa pão e vinho; e atiçou o lume do fogão, que estava amortecido, para perto dele pendurar o manto alagado do viajante.
— Gilberto, onde estás? Com quem é que falas?
Era uma voz de mulher que dizia estas palavras.
— Já vou! — respondeu Gilberto. E estendeu a mão para o cavaleiro.
— É tua mulher, irmão Perrail? — perguntou o desconhecido.
— É minha mulher — replicou Gilberto, com firmeza. E depois de breve silêncio, deu as boas-noites, e saiu.
O cavaleiro ficou pensativo e encostado ao fogão: tinha os olhos fitos, e apertava a mão ao peito como se quisesse tranquilizar o tumulto das paixões encontradas que dentro dele ferviam.
“Entornarei, pois, a morte — disse por fim, suspirando — nesta quieta morada! Riscarei do livro da vida o nome de um homem cujo rosto é tranquilo, apesar do perjúrio. Tio, cruel tio! porque preço me vendes o grau de mestre!”
Passeou então por alguns instantes de um para outro lado, e prosseguiu:
“Envergonha-te, Guido! Hesitas no momento da prova? Oh, por que tremeu o teu braço ao entrares nesta casa? Porque não derrubaste logo ali o perjuro proscrito, fazendo trovejar nos seus ouvidos as terríveis palavras que anunciam a vingança da Ordem: “Esta é a última saudação dos mestres e companheiros, refalsado mestre do Templo!” Tudo estaria acabado! Destino incompreensível, tu retiveste o meu braço! Tu me constranges a pagar a hospitalidade com a ingratidão e com a morte. Se, ao menos, um gênio benfazejo despertasse na mente do infeliz a ideia da fuga! Se ele se aproveitasse das sombras da noite! Teria eu assim cumprido o meu juramento, sem tingir as mãos em sangue. Oxalá, Deus, a Virgem e o Batista lhe inspirassem esta resolução!”
Confiando aos Céus o futuro e os seus caminhos, o jovem cavaleiro adormeceu.
Os sonhos da madrugada eram terríveis para Guido! Imaginava o cavaleiro que via o seu hóspede, desvairado, e furioso diante de si, e que lhe ouvia pronunciar estas palavras terríveis: “Morre tu, primeiramente, assassino!”
Dando um retumbante grito, Guido saltou do leito, e lançou mão da espada. Acordara. Diante dele alguém estava; mas era uma linda mulher, que ria da fúria do cavaleiro. Ficou este confuso e largou a espada. Ela então com um modo angélico lhe disse:
— Sossegai, senhor! Um sonho terrível vos ofuscava o espírito! É o almoço que vos trazem; e quem o traz é uma fraca mulher.
Corando de vergonha pelas loucuras da sua imaginação, Guido ficou por algum tempo calado; depois erguendo os olhos perguntou:
— Onde está Perrail?
— Não sei, senhor! É nome que não conheço.
O cavaleiro correu a mão pela cara, e prosseguiu:
— Desculpai-me o engano. Onde está vosso marido?
— Gilberto saiu; foi ao lago de Santes pescar algum peixe. Hoje a nossa pobre mesa deve ser mais abundante.
Guido suspirou. “Deus louvado! — disse lá consigo.
— O desgraçado suspeitou ao que eu vinha, e fugiu. Minhas mãos não se tingirão de sangue.”
Sem dar palavra, almoçou. Depois, pondo a escudela vazia sobre a lareira da chaminé, disse à boa mulher, que estava em pé diante dele:
— Deus vos dará a recompensa da hospitalidade que haveis exercitado com um homem inteiramente estranho; porque vosso marido, não me conhecendo ontem, não vos podia dizer quem eu era.
— Eu não sei — respondeu Branca — se ele vos conhece, ou que negócio vos trouxe aqui. Não me importa indagar segredos alheios, para tratar bem um hóspede.
— Mas dizei-me, minha boa patroa: Perrail... não digo bem... Gilberto nunca vos contou as suas aventuras de juventude?
— Sem dúvida! — replicou Branca. — Nem há nelas coisa que se deva ocultar. Que aventuras pode haver na vida de um mestre pedreiro, a não serem algumas peregrinações e viagens? É a isto que se reduz a história do meu marido. Nascido na cidade de Aries, partiu muito novo para a Escócia, e lá trabalhou largos anos por oficial, até que chegou a mestre. Saudoso da pátria regressou à França: chegando a Calais, travou amizade com o meu pai, que já morava nesta morada, propriedade, outrora, dos templários, as ruínas de cujo castelo podeis ver desta janela. Gilberto estabeleceu-se na sua pátria, largou o avental de pedreiro, deu-se à lavoura, e casou comigo. O meu pai não gozou muito tempo do espetáculo da nossa felicidade: morreu; mas a sua morte foi tranquila, porque me deixava debaixo da proteção de Gilberto. Bom marido, e bom cidadão, Gilberto é respeitado por todos estes arredores... Mas vós certamente o conheceis: escusado é que eu vos diga mais nada, e que por mais tempo vos seja importuna.
— À minha fé, que não o sois! — replicou Guido.
— Porém, por que tarda tanto vosso marido? Tão longe é o lago de que me falastes?
— Nem por isso. Também já a mim me admira tanta demora!
“Deus louvado! — repetiu Guido lá consigo. — Deus louvado! Ele fugiu e me desobrigou de praticar uma ação, cuja lembrança me seria dolorosa até a hora extrema. A minha missão está concluída: e para que algum novo acidente não me torne à lançar no abismo de que saí, voltarei para Mull imediatamente.”
Feita esta reflexão, cingiu a espada, lançou o manto nos ombros, e dirigiu-se para a chaminé, onde Branca já estava tratando dos preparativos do jantar.
— Adeus, boa mulher! — disse com voz trémula.
— Cumpre que eu parta já. Sinceramente agradeço a vossa hospitalidade.
Branca, cheia de espanto, cravou nele os olhos. Não podia compreender os motivos de tão súbita resolução.
— Já! — exclamou enfim. — Já quereis partir? Acaso vos ofendi?
— Não, desgraçada! — respondeu Guido. — Por piedade para contigo é que eu quero partir.
— Ide, senhor, com Deus: ninguém vos impedirá! Mas o meu homem... o pobre Gilberto!... Partir sem lhe dizer adeus! sem que vos possa encontrar!
— É o espetáculo desse encontro, que eu quero poupar aos teus olhos! — replicou Guido, com um modo de quem delirava. — Desventurada mulher! Esse instante cortaria para sempre o fio da tua felicidade!
Dizendo isto, apertou-lhe a mão, e foi para sair. Pálido e aterrado voltou atrás...
Gilberto estava em pé no limiar da porta.
— Assim vos ides embora? — perguntou Gilberto depois de um breve silêncio, e com o parecer demudado. — Aonde quereis ir, meu honrado hóspede? Não é isso de amizade. Frio o vento sopra do lado do mar; e parece que o Verão se vai já mudando em Inverno tempestuoso.
— O cavaleiro parte — atalhou Branca aflita, — ou porque eu o ofendi, ou porque lhe é incômoda a nossa habitação.
Gilberto cravou os olhos em Guido por alguns instantes, com aspecto carregado, mas tranquilo.
— Estimado senhor — disse por fim, ao mancebo, que estava diante dele como um criminoso colhido às mãos, — não me fareis esta afronta na presença dos meus vizinhos; nem saireis desta casa sem me descobrirdes a que viestes a ela. Excelente peixe temos para o jantar; e cozinhado pela minha Branca será delicioso. Ao menos jantareis conosco.
Ditas estas palavras, despejou o peixe num alguidar de água, e tratou de ajudar Branca a prepará-lo. Mas neste momento ocorreu a Guido uma nobre resolução. Apertando rapidamente a mão a Gilberto:
— Dai-me uma palavra — lhe disse agitado, — dai-ma imediatamente; cumpre que ninguém nos ouça!
— Estou pronto — respondeu sossegadamente Gilberto; e fazendo um sinal a Branca para que se deixasse ficar, guiou o seu hóspede para uma alpendrada, que dava sobre o jardim contíguo, e donde se via, a pouca distância, um edifício arruinado.
Aqui ninguém nos ouve — disse Gilberto ao seu companheiro, cujo aspecto se tinha tornado triste e carregado. — Podeis falar sem receio.
— Fá-lo-ei — atalhou Guido com voz trémula, — porque não ouso sentar-me à tua mesa, partir o teu pão, beber o teu vinho, e executar depois o que me foi ordenado. Tira a máscara, irmão Perrail, perjuro mestre do Templo; que o mesmo farei eu! O toque, senha e palavra te deram a conhecer: sabe, pois, também o meu nome: eu me chamo Guido de Monforte: sou sobrinho de Aumont, grão-mestre da Ordem dos Templários, cujo diminuto número, salvo do ferro de assassinos, jurou elevar outra vez o Templo de Salomão, apesar de todos os monstros do inferno. Adepto, e companheiro dos obreiros do Templo, mandou-me a sociedade que viesse procurar-te, mestre atraiçoado de tão nobre e livre ofício. Adivinhas já qual seja a minha missão?
— Matar-me — respondeu Perrail tranquilamente.
— Não ignoro qual é entre nós o castigo do perjúrio.
— Não o ignoras, e atreveste-te a cometer o crime?
— Mancebo — atalhou Perrail com aspereza, — proíbe primeiro ao coração os sentimentos que Deus nele há plantado.
— E o teu juramento?
— Escuta-me, antes de me cravares o punhal no peito. A tua alma é generosa; e eu quisera que, cumprindo o teu horrível mandado, em vez de amaldiçoares a tua vítima, te compadecesses dela. Expulso da pátria pelo despotismo dos tiranos, arrastando uma vida miserável, dei à vela com Aumont, sucessor de Molay, do grão-mestre assassinado, para as Hébridas. Lá, no vigor da juventude, e sedento de vingança, jurei o misterioso pacto do dia de São João. Bem como o sangue do Batista, às mãos de Herodes, serviu de indestrutível fundamento ao cristianismo, assim o nosso devia servir para amassar o cimento do novo templo levantado sobre as ruínas do de Salomão, onde a Ordem dos Templários tivera seu berço. Mas passaram os anos, e todas as nossas tentativas saíram baldadas. O rei e o papa, seguindo o trilho dos nossos destruidores, e ricos com os nossos despojos, nunca mais quiseram revogar o bando contra nós lançado; o povo não se doeu das desventuras da Ordem que se tinha tornado odiosa pelas rapinas e violências, que em tempos de prosperidade cometiam seus cavaleiros, e desprezível pela fraqueza que eles amostravam na desgraça. Das Hébridas fui eu mandado pelo grão-mestre a sondar a opinião pública ao nosso respeito. O resultado da minha missão foi a perda de toda a esperança e consolação: foi também nessa ocasião que o amor de Branca, e da terra natal, mudou o destino da minha vida. Via aniquilada a Ordem, e o meu débil braço não a podia salvar. Insofrível me era a ideia de ir fenecer sobre um penhasco do mar do Norte, longe da pátria, onde ainda podia ser cidadão útil, pai e esposo feliz. Resolvi-me a isso e casei com Branca. Por um velho sacerdote templário, que deixava o asilo de um claustro, onde se acolhera, e ia partir para a ilha de Mull, mandei pedir ao grão-mestre me absolvesse do meu juramento, e restituindo-lhe o distintivo do meu grau, e dando-lhe uma notícia circunstanciada da minha viagem. Tudo isto recebeu Aumont; porém não me respondeu coisa alguma. Eis, em suma, qual foi o meu crime; nem me envergonho de o confessar. Leve, por certo, é ele aos olhos de Deus, posto que humanas leis o façam digno de morte. Em coisa nenhuma importante delinqui contra a Ordem; porque nenhum vivente soube da minha boca a sua situação, estatutos, toques, ou sinais: até minha mulher tudo ignora. Já vês, sobrinho de Aumont, qual é meu delito: não fujo à punição. Minha mulher ficará viúva, meu filho órfão de pai; mas eu não compro caro com o meu sangue cinco anos de felicidade — os únicos que posso dizer tais, em toda a minha desgraçada vida.
— Abalaste-me o ânimo — disse enfim Guido, depois de largo meditar. — Sei o que podem o amor, e o aferro à pátria: porém no teu discurso nada disseste acerca de um objeto, por cujo motivo há contra ti violentas suspeitas. O sacerdote referiu ao meu tio todas as circunstâncias, que mencionaste agora: mas acusou-te de teres roubado a Ordem. Ele era capelão daquela preceptoria de templários, cujas ruínas acolá estão clamando vingança contra os nossos destruidores. Na época da perseguição, ajudado pelo bailio, enterrara, num subterrâneo do castelo, um valioso tesouro de pedras preciosas que um cavaleiro da Ordem trouxera do Oriente para as oferecer à Virgem. O destruidor da preceptoria não encontrou essas riquezas; porque nelas nunca se falou. Passados anos o fugitivo sacerdote voltou a este lugar, e achou-te possuindo-o. Por horas mortas foi examinar o esconderijo; mas o tesouro desaparecera. Quem, senão tu, o poderia ter tirado?
— Certo, que só eu: e ele para no meu poder — respondeu Perrail sossegadamente.
— Tu o afirmas? — atalhou Guido. — Agora o remorso é quem to faz confessar: deves morrer a ferro, já que não morreste de pejo! E podes tu levantar os olhos para aquelas paredes derrocadas, tendo cometido tão negro crime contra seus verdadeiros donos? Mestre traidor! tu rasgaste, qual víbora, o seio que te abrigou; insultaste o santuário; profanaste-o com o sacrilégio, e foste daqueles que assassinaram o mestre, e hipócritas lhe esconderam o cadáver! Ergue as tuas preces à Trindade divina, cuja imagem sagrada fulge na casa capitular do Templo: exora o teu perdão, porque sem remissão morrerás.
Nos olhos de Perrail borbulharam algumas lágrimas, mas respondeu seguro:
— Pronto estou para a morte: todavia antes de me punires, segue-me. Restituir-te-ei esse tesouro que dizem roubei. Não vaciles, aliás ele ficará perdido para sempre. Nada receies! Que mal te posso eu fazer? Oxalá tu pudesses ler no fundo do meu coração.
Guido, abalado pelo sossego de Gilberto, o seguia em silêncio. Atravessando as ruínas, desceram por uma escada meia caída: no fundo dos subterrâneos estava uma pequena porção de ruínas amontoadas. Perrail começou a afastá-las, e Guido taciturno o observava. Apareceu debaixo uma laje negra: Perrail com uma alavanca a levantou; e dentro da cavidade se viu uma caixinha dourada.
— O sacerdote mentiu — disse Gilberto sorrindo-se — quando afirmou que atinara com o lugar em que ele e o bailio tinham enterrado o tesouro. Este é o mesmo sítio, e a caixinha não saiu do seu esconderijo. O bailio morreu nos meus braços, nas praias da Escócia, e me descobriu o segredo; porque eu estava então a ponto de partir para França. O infeliz, que há muito tempo gemia nas garras da doença e da miséria, feneceu no momento em que tratava de embarcar para Mull. Comprei o derrubado castelo para salvar as riquezas da Ordem, e deitei aí esses derrocados restos para as encobrir inteiramente. Entreguei ao senhor de Craon, valente guerreiro, descendente de uma família que tem dado célebres membros à sociedade, e que pretendia ir reunir-se a Aumont, uma carta para este, em que lhe participava a existência do tesouro, rogando-lhe mandasse uma pessoa de confiança para o levar para Mull. Passados tempos, veio o sacerdote ter comigo; mas tive por escusado dizer a este respeito uma só palavra a um homem em quem me não fiava inteiramente. Desde então nunca mais me vieram notícias de Aumont, e as pedras preciosas têm jazido intactas até este momento.
— Tu me enches de pejo — interrompeu Guido.
— Provas o que dizes, bem que o meu tio não recebesse mensagem alguma tua; porque o navio, que devia conduzir a nossas praias o senhor de Craon, foi soçobrado por uma furiosa tormenta, e apenas um marinheiro, que nos levou a notícia do infeliz sucesso, pôde salvar a vida.
— Bem está! — disse Perrail, saindo do subterrâneo.
— Perante ti estou justificado, e os meus irmãos virão a conhecer minha inocência. No mais cumpre tua missão: toma esta caixinha ao teu cuidado; arranca da espada, e desafronta a Ordem da ofensa feita por um dos seus membros, que não pôde resistir aos sentimentos da natureza; e depois de a desafrontar, foge!
— Homem! — gritou Guido admirado. — Crês acaso que tenho o instinto sanguinário de um tigre? Devo assassinar-te quando o meu coração te justifica do crime de apostasia, e a minha razão do de simonia? Que ente seria eu? Se te achasse criminoso cumpriria a minha comissão; porém não matarei o inocente, e desprezo o grau de mestre, se ele é a recompensa de uma ação sanguinária!
— Mancebo, digno de um melhor destino, vem aos meus braços — disse Perrail, e estreitou ao peito o valoroso templário. — Estas lágrimas, este coração, que bate com rapidez, te agradece a tua humanidade; mas onde clama a letra da severa lei, não deve afrouxar o seu executor, se não quer sujeitar-se ao mesmo castigo. Não queiras por mim ser vítima dos irmãos que bradam sangue! Cumpre, cumpre o teu dever!
— Estás louco? — replicou o mancebo, afastando-se dele. — Na flor da idade, esposo, pai, cidadão, chamas desvairado sobre a tua cabeça o anjo da morte?
— Amigo, irmão! — interrompeu Perrail. — A minha carreira sobre a Terra está findada: certo pressentimento mo diz, e uma voz celeste mo tem dito três noites a fio. Em sonhos eu tenho visto descer sobre a minha cabeça a coroa do martírio. Espero a morte com o sorriso da inocência: com a constância de um homem a sofrerei agora: portanto, irmão terrível, irmão vingador, não vaciles! Aqui, na antiga sala capitular da minha Ordem, deixa-me perecer com a íntima consciência da minha felicidade, às mãos de um amigo, de um templário!
— Retira-te! — gritou Guido, fora de si. — Queres tu constranger-me a assassinar um justo? Não te importes com o meu destino, seja qual for: dissipa a negros pensamentos. Vive para a tua mulher e para o teu filho: ergue por nós teus votos a Deus, e sê feliz!
Neste instante corre a eles Branca tresfolgando.
A palidez cobria suas faces, e a custo sustentava seu filho nos trémulos braços.
— Oh Deus! — exclamou aflita. — Gilberto, Gilberto! a aldeia está em alvoroto. Gente armada se dirige à nossa cabana. Algum templário se escondeu aqui. O alcaide de el-rei manda procurá-lo pelos camponeses, e apenas pôde o vizinho Remy vir avisar-te à pressa.
— Traição! — clamou Guido com voz de trovão. Uma horrível suspeita lhe passou pela mente. — Hipócrita! Com doces palavras, com o tom da sinceridade tu me colheste no laço. Agora percebo tudo! Eis o motivo da tua demora quando pela manhã saíste! Foi então que indicaste aos esbirros do rei a minha guarida? Treme miserável! Esta espada produz efeitos mais prontos do que a tua dobrez!
Guido arrancou da reluzente espada. Dando altos gritos, Branca se meteu de permeio. Quem resistiria às lágrimas da formosura, e aos vagidos da infância?! O ferro assassino se baixou para o chão; e aqueles olhos chamejantes perderam parte do seu furor.
— Entrai em vós, meu irmão! — disse Perrail.
— Estou inocente: o inferno, não eu, descobriu vosso segredo. Eu trair-vos? Nunca! Salvar-vos-ei! Segui minha mulher. Aquela portinha dá para o carneiro deste castelo: um caminho subterrâneo que encontrareis no topo dele vos levará aos meus campos. O braço de Deus é poderoso: ele vos livrará dos vossos perseguidores; e dentro de meia hora vos achareis junto da torre dos Pagãos. Eu saberei demorar aqui os que vos buscam. Fugi sem demora, e chegareis a salvamento à vossa barca. Tomai sentido no cofrezinho; e saudai da minha parte os nossos irmãos!
Envergonhado Guido do seu arrebatado procedimento, ficou mudo; e depois de apertar Perrail entre os seus braços, fugiu pelo caminho da salvação.
Os camponeses, armados e furiosos, entravam de tropel em casa de Gilberto; ele olhou para eles sossegado, e perguntou-lhes:
— Que pretendeis vós outros? Por que entrais em tumulto dentro da minha casa?
— Entrega-nos o ímpio herege: o templário, que tens escondido — gritou a multidão.
— Que sei eu de templários? — respondeu Gilberto.
— Por certo vos enganaram.
— Mentes! — clamou Reinaldo, perverso camponês seu vizinho. — Eu mesmo te vi ir para aquelas ruínas com o cavaleiro, de cuja vinda soubemos pelo parvo dó barqueiro que o trouxe. Detrás do valado da minha horta, eu vos ouvi falar de um tesouro que ele devia levar.
— Um tesouro? — gritou de novo o tropel, e a ânsia de roubar fulgurava naqueles olhos esgazeados. — Onde está esse tesouro?
— Estais loucos? — atalhou Gilberto. — Lembrai-vos de que sois homens e cristãos.
— Bem nos lembramos disso — interromperam os cabeças do motim. — Somos homens; mas a raça dos templários é de demônios. Nós somos cristãos, mas os templários são infiéis, que amaldiçoam Jesu-Cristo, que trazem ao pescoço imagens diabólicas, e que devem morrer queimados, segundo os decretos de el-rei e do santo padre.
— O mais importante não é o templário — dizia em voz baixa Reinaldo, que bem conhecia os seus sócios. — O tesouro é que é tudo! O tesouro é que devemos procurar.
— Sim, sim! — repetiram cem bocas. — Vamos, Gilberto, guia-nos, se não queres ainda morrer.
O seu mau grado, foi Gilberto arrastado, no meio de alguns amigos, que o pretendiam salvar, para o arruinado castelo. Na antiga casa capitular da Ordem, no sítio em que dele se despedira Guido, pararam os furiosos. Inabalável, Gilberto nada mais respondeu às suas perguntas, apesar de mil ameaças. Então eles se derramaram por aqueles subterrâneos, mas Reinaldo nunca deixou a sua vítima.
— Foge! — disseram a Gilberto em segredo alguns dos seus amigos. — Nós te protegeremos na fuga.
— Nunca! — disse o desgraçado. — Deus e a minha inocência são os meus protetores.
Neste momento um dos camponeses saiu dos subterrâneos: o lugar onde o tesouro estivera oculto se havia reconhecido, por estar revolto de fresco; mas coisa nenhuma se encontrara.
— Ainda o negarás? — disse Reinaldo com um sorriso infernal. — Confessa, malvado, onde param as riquezas que ali estavam; onde está o teu infame sócio?
Gilberto não respondeu.
— Essa averiguação pertence às justiças de el-rei! — interrompeu vim dos amigos de Gilberto.
— O que ousar erguer a voz a favor deste homem — prosseguiu Reinaldo — é um criminoso. Quem é ele? Donde veio? Eis o que ninguém sabe. Porventura é também um banido, um sócio dos malditos templários; desses monstros, que nos roubavam nossas mulheres, que nos constrangiam a servi-los gratuitamente, e que gozavam do nosso trabalho entregues ao luxo e à devassidão. Qual de nós não cobrirá de maldições esta Ordem execranda? A ti, Nicolau, tirou o bailio, por dez anos, o teu quintalzinho; os teus filhos, mestre Pedro, eram obrigados a bater com pás as águas da lagoa para que as rãs não quebrassem com ç seu grasnido o sono dos cavaleiros. A tua Angelina, bom Gualter, foi cruelmente açoitada, porque deixou queimar uma ave que estava assando. Estas barbaridades, e mil outras, sofremos e vimos com os nossos olhos — e agora este monstro salva um membro dessa Ordem, amaldiçoada de Deus e do mundo, e escândalo das justiças de el-rei, para ser quinhoeiro das roubadas riquezas dessa sociedade de hereges. Vede-o, como sorri, com um sorriso diabólico! E sofreis vós esta afronta? Talvez ele mesmo seja um templário, e traga a insígnia da Ordem escondida no peito.
Acabando este violento discurso, Reinaldo ia a lançar as mãos a Gilberto; mas este o fez ir cair longe de si. Todavia as palavras do seu agressor tinham feito profunda impressão nas pessoas presentes. Dando gritos desentoados, os incendidos camponeses se arrojaram contra a sua vítima. Um ferreiro, cego de furor, lhe descarregou com o malho que trazia nas mãos um golpe mortal sobre a cabeça. Gilberto caiu por terra lavado em sangue, e recebeu a coroa do martírio no seu último sono.
— Hirão! — clamou ele ao cerrar os olhos. Os seus lábios pareciam querer pronunciar ainda o nome, tão querido, de Branca. Debalde! A noite da morte os tinha gelado; e o alvazil de el-rei, que entrou poucos momentos depois, achou o tropel pálido e aterrado à roda do cadáver, que, com rios de lágrimas, regava a desditosa viúva, que nesse instante chegara.
***
— Eis aqui a relação da minha viagem: eis o que fiz! — assim concluía Guido o seu discurso na assembleia dos templários, capela de São João da ilha de Mull. — Atire-me a primeira pedra o que me julgar criminoso. Se para merecer o grau de mestre cumpre tingir as mãos em sangue, eu não o quero, e declaro que detestarei uma Ordem onde debaixo do manto da virtude se esconde o ferro do assassino.
Calou-se. Todos os irmãos ficaram também em silêncio. O grão-mestre levantou os olhos para o triângulo misterioso, que estava sobre a sua cabeça. O velho parecia pedir a Deus uma inspiração celeste.
— Perrail — disse ele por fim — errou, mas não cometeu um crime: os bens da Ordem foram salvos; salvo foi por ele o nosso irmão Guido, e a sua boca nunca revelou os mistérios da Ordem. Exemplo nos seja ele para abolirmos o celibato dos nossos estatutos: vedes já que a língua do homem pode calar um segredo; porém não subjugar um amor violento. Perrail ficará sendo nosso irmão; vós jovens podereis amar; e as luvas brancas, que recebeis no momento da adoção, e que até agora vos deviam recordar perpetuamente os vossos votos de pureza, servirão para vos lembrardes que a vós cumpre ser bons esposos e bons pais. Vossas esposas serão filhas desta Ordem, vossos filhos esperança e futuro amparo dela. Eis o que eu, grão-mestre do Templo, ordeno, se a vós, meus irmãos, assim apraz.
— Amém! — disseram todos os cavaleiros.
Guido pediu a palavra, que lhe foi concedida.
— Não, mestre e senhor! — disse ele. — Perrail já não será nosso irmão: ele caiu aos golpes dos seus inimigos, defendendo-me a mim e a Ordem. Retido na costa de França por ventos ponteiros, eu soube dessa horrorosa tragédia. Voltei pelas horas mortas à sua habitação e persuadi a sua mulher que me acompanhasse, prometendo-lhe amparo e abrigo. Guiei-a, e mandei trazer para bordo da barca o cadáver do nosso assassinado irmão. Poderei acaso conduzir à vossa presença essa pobre vítima do ódio popular contra nós?
— Remiu tão honrada morte os erros de Perrail — disse o venerando Aumont. — Cubra-se o símbolo da Trindade: dispamos as insígnias misteriosas, e entre a desventurada.
Branca, quase desmaiada, entrou acompanhada por Guido, e aproximou-se ao grão-mestre. Comovido, este a apertou nos seus braços, quando ela ia a arrojar-se-lhe aos pés; pôs-lhe as mãos sobre a cabeça, abençoou-a, e disse:
— Como tu, desventurada, clamamos nós ao Senhor, do abismo da nossa amargura, e esperamos uma nova Jerusalém, e o melhor porvir. Embora meus olhos o não vejam, ao menos até o sepulcro serás tu minha filha, e depois de eu morrer, Guido te servirá de pai.
Ditas estas palavras, Aumont levou Branca para fora do templo, e o corpo de Perrail foi para ali trazido, e colocado no meio dos seus irmãos, quase como ele silenciosos. Todas as espadas erguidas se inclinaram para o cadáver do morto, e junto dele foi Guido elevado ao grau de mestre pelos veneráveis, com o toque, palavra e senha, e com o beijo fraterno.
***
Perto da capela de São João, se abriu a sepultura de Perrail, num terreno coberto de basto arvoredo. Um montão de pedras se erguia sobre a campa; um verde ramo de acácia, renovado cuidadosamente todos os dias, distinguiu, por muito tempo, este sepulcro de outros que ali se iam abrindo; e ainda em épocas muito posteriores celebravam os membros da Ordem o dia do seu orago junto ao lugar do último repouso do Mestre assassinado.



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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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