O macaco figurão
Não se sabe porque boas ou más
artes, aprendeu a falar e a fingir de homem. O certo é que veio viver para
terra de gente, e logo deu em macaquear o que é mais fácil e arranchou entre os
janotas.
Julgava-se uma beleza. Todos os
dias ia ao barbeiro fazer a barba. Vestia-se a rigor; calçava luvas de pelica;
punha chapéu alto, e andava por todas as lojas elegantes, a parolar com os
donos e os frequentadores.
Os garotos, quando o viam passar
nas ruas, todo importante, faziam-lhe grande troça, atiravam-lhe pedras e
diziam:
— Se não fosse o rabo, era bem
lindo este macaco! Assim, que feio é!
Tantas vezes o macaco figurão
ouviu aquelas palavras que se convenceu de que era na verdade uma formosura, e
se tornaria sem par se conseguisse ver-se livre do seu comprido rabo.
Já se vê que não tinha grande
juízo, mas... nem só os macacos se deixam levar por mentidos elogios e julgam
louvor o que
é troça. Este vaidoso, que não
era dos mais atilados, foi um dia ter com o barbeiro e disse-lhe:
— Ó mestre, você não será capaz
de me cortar o rabo? Olhe que talvez eu ficasse mais elegante...
— Claro que sim, senhor macaco. E
é obra para já, se convém ao meu freguês.
— Pois vamos a isso, que já não é
sem tempo.
O barbeiro afiou muito bem a navalha
e zás! de um só golpe, cortou o rabo do macaco. Cicatrizou-lhe a ferida, à
força de pomadas e unguentos, e disse, todo cumprimentador:
— Está o freguês servido, e mais
elegante do que nunca.
O macaco saiu da loja todo
importante e julgando-se o mais lindo homem que passeava nas ruas daquela
cidade. Mas (oh, desgraça e tristeza!) mal o viram passar, os garotos começaram
a persegui-lo, gritando:
— Olha o tolo do macaco figurão,
que foi cortar o rabo para ser mais bonito e cada vez se faz mais feio!
O bugio ficou tão desesperado que
voltou logo à loja do barbeiro, para que este lhe entregasse o rabo cortado e
lho pegasse como estava antes da operação. O homem, todo aflito, respondeu-lhe:
— Ó ilustríssimo senhor macaco e
meu respeitável freguês! Como hei de eu dar-lhe o seu rabo, se um gato já o
comeu?!
— Ó malvado barbeiro, foi de
propósito que tal fizeste!
E, para se vingar, sem mais
demora, roubou a melhor navalha que viu na loja e deitou a fugir.
Muito desconsolado, foi correndo,
até que encontrou uma pobre mulher que, segundo lhe pareceu, estava a escamar
sardinhas com as unhas. Fez-lhe espécie o caso ainda não visto, e logo esqueceu
as suas aflições. E, porque muito gostava da conversa e de meter o nariz onde
não era chamado, abeirou-se do rio onde estava a peixeira e perguntou-lhe:
— Olhe lá, ó tiazinha, não tem
faca para escamar o peixe?
— Eu não senhor!
— Pois aqui tem esta, que não
serve para outra coisa.
Entregou à mulher a navalha que
roubara e, voltando-lhe as costas sem esperar agradecimentos, continuou o seu
caminho. Foi andando, até que chegou a uma grande mata. Lembrou-se logo de
cortar um pau e, não tendo com quê, disse consigo mesmo: — Que grande bruto eu
fui em dar aquilo de que mais precisava! Foi tolice, ou a mulher me quis
enganar. Torno atrás a buscar o que é meu!
Desandou o caminho andado e mal
avistou a peixeira bradou-lhe:
— Dê-me a navalha que não foi
feita para escamar peixe, mas para cortar os ramos das árvores!
A mulherzinha, medrosa e
apoquentada, respondeu-lhe:
— Como posso eu dar-lhe a
navalha, senhor macaco, se foi levada rio abaixo?!
— Ai sim, pois ele é isso?! Deixa
estar que te roubo uma sardinha.
E se bem o disse, melhor o fez.
Armou um pulo, roubou uma sardinha e fugiu.
Era quase noite quando chegou
junto de um moinho. O moleiro estava sentado à porta a descansar e, como viu o
macaco importante e bem-posto, deixou-o entrar para dormir, pois de cear não
precisava que bastante fruta comera.
Quando o macaco figurão viu que a
ceia do homenzinho era só pão seco, entendeu fazer de generoso e deu-lhe a
sardinha. O moleiro ficou muito agradecido e fez uma boa cama de sacos, onde o
bugio dormiu à maravilha.
De manhã levantou-se, despediu-se
do moleiro e partiu. Mas, no meio do caminho, apeteceu-lhe comer e lembrando-se
da sardinha que dera ao moleiro, disse consigo: — Que grande tolo eu fui em dar
a minha rica sardinha! Espera, que vou pedi-la outra vez.
E, aos pulos de verdadeiro
macaco, voltou a casa do moleiro e exigiu, em altos brados, a sardinha que lhe
confiara. O moleiro, todo aflito, respondeu-lhe:
— Ó senhor macaco, não me peça o
impossível! Que sardinha posso dar-lhe, se a comi ontem à ceia?!
Furioso, o macaco figurão roubou
uma saca de farinha e fugiu.
Foi andando, já aborrecido com o
peso da saca de farinha, até que chegou a uma casa onde estavam muitas
raparigas aprendendo a bordar. Cumprimentou a senhora mestra, com muitas vênias
e, para se mostrar importante, ofereceu a farinha para com ela se fazerem bolos
para as meninas.
A mestra agradeceu-lhe muito a
lembrança, dizendo-a própria de um coração generoso. Cheio de vaidade, o macaco
figurão continuou a viagem empreendida, não sabia bem para aonde.
Foi andando, a fingir de homem
outra vez, até que chegou a um forno. Cansado já de tantas andanças, sentou-se
a matutar no que mais lhe convinha fazer. Entretanto cheirou-lhe a pão quente e
lembrou-se logo da sua farinha.
Lembrar-se, lamentar-se e
resolver que era muito sua a saca de farinha, foi tudo um momento. Voltou atrás
e, já com atrevimento de macaco e sem respeito de homem, exigiu que lhe dessem
de novo a saca de farinha.
A senhora mestra, para o chamar à
razão, respondeu com toda a compostura:
— Ó senhor macaco, esse pedido
nem parece do nosso generoso benfeitor! E que tenho eu para dar-lhe, se a
farinha foi toda gasta a fazer bolos que as meninas já comeram?!
— Ah, sim! Pois então, esperem
lá!
E, de repente, deu um pulo e
agarrou a menina mais bonita de quantas estavam na escola.
Gritaram todas por socorro, mas o
macaco num instante desapareceu, levando nos braços a menina roubada, sem se
importar com os seus lamentos.
Lá lhe pareceu que era este o
motivo da sua viagem, e voltou à cidade em que fora figurão e de onde partira
desesperado.
Fechou a menina em casa e, por
mais que ela pedisse que a deixasse voltar para os pais, não quis soltá-la. Ao
princípio, a menina, com grande zanga do bugio, não fazia senão chorar e
lamentar-se. Mas depois, para evitar maus tratos, começou a fazer-lhe a comida
e a cuidar-lhe das roupas e fatiotas. E assim foi vivendo, na esperança de
poder fugir da casa onde estava presa.
O macaco figurão, que já era um
janota, passou a andar um primor de elegância, depois de ter a menina em casa.
Certo dia foi a uma loja de
violas, e o dono, admirado e suspeitoso, disse-lhe:
— Você anda agora muito mais
elegante, senhor macaco!
— Ando assim (respondeu ele, todo
satisfeito) porque tenho em casa uma pequena que trata muito bem da minha
roupa.
O violeiro calou-se e resolveu
tirar o caso a limpo logo que pudesse.
Quando soube o macaco entretido
numa festança qualquer, foi a casa dele e viu a porta fechada à chave. Bateu,
voltou a bater, encostou o ouvido à porta, e pareceu-lhe ouvir lamentos. Não
lhe sofreu o ânimo ficar por mais tempo em tais cuidados, e arrombou a
fechadura. Entrou numa sala e ouviu melhor os lamentos e choro para além de
outra porta fechada a cadeado. E também conseguiu abri-la. Qual não foi o seu
espanto quando viu uma bonita menina, debulhada em lágrimas, que correu para
ele a pedir-lhe que a salvasse, pois estava ali presa por aquele macaco
figurão.
O violeiro disse-lhe que viera
ali por palpite, e que estava pronto a levá-la para onde ela quisesse. A menina
ficou satisfeitíssima e, contando o que sucedera, pediu ao seu libertador que a
levasse para casa da família. O homem assim fez. E os pais da menina ficaram
tão felizes quando a viram aparecer, que logo ali, com o seu assentimento e
aplauso de todos, a prometeram em casamento a quem tivera a esperteza de lhe
descobrir o paradeiro e a coragem de a libertar.
E não menos contente voltou o
violeiro para a loja, pois, com a sua decisão, conseguira uma formosa noiva.
Quando o macaco figurão voltou a
casa e viu que a menina fugira, ficou furioso. Lembrou-se da conversa que
tivera com o violeiro e foi logo ter com ele. E disse-lhe que imediatamente lha
entregasse, pois de contrário lhe roubaria uma viola.
— Pois leve a viola, por
alvíssaras, e deixe-me em paz (respondeu o homem, satisfeito com o desfecho do
caso).
O macaco deu um pulo, roubou a
melhor viola da loja, desatou a fugir, saltou para cima de um telhado e pôs-se
a tocar e a cantar:
— De meu rabo fiz navalha,
De navalha fiz
sardinha,
De sardinha fiz farinha,
De farinha fiz menina,
De menina fiz viola.
Ferun-fun-fun,
Que vou para Angola!
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Fonte:
Ana De Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)
Fonte:
Ana De Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)
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