6/03/2019

O macaco figurão (Fábula), de Ana de Castro Osório


O macaco figurão

Era uma vez um macaco, um bugio figurão como jamais houve igual.

Não se sabe porque boas ou más artes, aprendeu a falar e a fingir de homem. O certo é que veio viver para terra de gente, e logo deu em macaquear o que é mais fácil e arranchou entre os janotas.

Julgava-se uma beleza. Todos os dias ia ao barbeiro fazer a barba. Vestia-se a rigor; calçava luvas de pelica; punha chapéu alto, e andava por todas as lojas elegantes, a parolar com os donos e os frequentadores.

Os garotos, quando o viam passar nas ruas, todo importante, faziam-lhe grande troça, atiravam-lhe pedras e diziam:

— Se não fosse o rabo, era bem lindo este macaco! Assim, que feio é!

Tantas vezes o macaco figurão ouviu aquelas palavras que se convenceu de que era na verdade uma formosura, e se tornaria sem par se conseguisse ver-se livre do seu comprido rabo.

Já se vê que não tinha grande juízo, mas... nem só os macacos se deixam levar por mentidos elogios e julgam louvor o que

é troça. Este vaidoso, que não era dos mais atilados, foi um dia ter com o barbeiro e disse-lhe:

— Ó mestre, você não será capaz de me cortar o rabo? Olhe que talvez eu ficasse mais elegante...

— Claro que sim, senhor macaco. E é obra para já, se convém ao meu freguês.

— Pois vamos a isso, que já não é sem tempo.

O barbeiro afiou muito bem a navalha e zás! de um só golpe, cortou o rabo do macaco. Cicatrizou-lhe a ferida, à força de pomadas e unguentos, e disse, todo cumprimentador:

— Está o freguês servido, e mais elegante do que nunca.

O macaco saiu da loja todo importante e julgando-se o mais lindo homem que passeava nas ruas daquela cidade. Mas (oh, desgraça e tristeza!) mal o viram passar, os garotos começaram a persegui-lo, gritando:

— Olha o tolo do macaco figurão, que foi cortar o rabo para ser mais bonito e cada vez se faz mais feio!

O bugio ficou tão desesperado que voltou logo à loja do barbeiro, para que este lhe entregasse o rabo cortado e lho pegasse como estava antes da operação. O homem, todo aflito, respondeu-lhe:

— Ó ilustríssimo senhor macaco e meu respeitável freguês! Como hei de eu dar-lhe o seu rabo, se um gato já o comeu?!

— Ó malvado barbeiro, foi de propósito que tal fizeste!

E, para se vingar, sem mais demora, roubou a melhor navalha que viu na loja e deitou a fugir.

Muito desconsolado, foi correndo, até que encontrou uma pobre mulher que, segundo lhe pareceu, estava a escamar sardinhas com as unhas. Fez-lhe espécie o caso ainda não visto, e logo esqueceu as suas aflições. E, porque muito gostava da conversa e de meter o nariz onde não era chamado, abeirou-se do rio onde estava a peixeira e perguntou-lhe:

— Olhe lá, ó tiazinha, não tem faca para escamar o peixe?

— Eu não senhor!

— Pois aqui tem esta, que não serve para outra coisa.

Entregou à mulher a navalha que roubara e, voltando-lhe as costas sem esperar agradecimentos, continuou o seu caminho. Foi andando, até que chegou a uma grande mata. Lembrou-se logo de cortar um pau e, não tendo com quê, disse consigo mesmo: — Que grande bruto eu fui em dar aquilo de que mais precisava! Foi tolice, ou a mulher me quis enganar. Torno atrás a buscar o que é meu!

Desandou o caminho andado e mal avistou a peixeira bradou-lhe:

— Dê-me a navalha que não foi feita para escamar peixe, mas para cortar os ramos das árvores!

A mulherzinha, medrosa e apoquentada, respondeu-lhe:

— Como posso eu dar-lhe a navalha, senhor macaco, se foi levada rio abaixo?!

— Ai sim, pois ele é isso?! Deixa estar que te roubo uma sardinha.

E se bem o disse, melhor o fez. Armou um pulo, roubou uma sardinha e fugiu.

Era quase noite quando chegou junto de um moinho. O moleiro estava sentado à porta a descansar e, como viu o macaco importante e bem-posto, deixou-o entrar para dormir, pois de cear não precisava que bastante fruta comera.

Quando o macaco figurão viu que a ceia do homenzinho era só pão seco, entendeu fazer de generoso e deu-lhe a sardinha. O moleiro ficou muito agradecido e fez uma boa cama de sacos, onde o bugio dormiu à maravilha.

De manhã levantou-se, despediu-se do moleiro e partiu. Mas, no meio do caminho, apeteceu-lhe comer e lembrando-se da sardinha que dera ao moleiro, disse consigo: — Que grande tolo eu fui em dar a minha rica sardinha! Espera, que vou pedi-la outra vez.

E, aos pulos de verdadeiro macaco, voltou a casa do moleiro e exigiu, em altos brados, a sardinha que lhe confiara. O moleiro, todo aflito, respondeu-lhe:

— Ó senhor macaco, não me peça o impossível! Que sardinha posso dar-lhe, se a comi ontem à ceia?!

Furioso, o macaco figurão roubou uma saca de farinha e fugiu.

Foi andando, já aborrecido com o peso da saca de farinha, até que chegou a uma casa onde estavam muitas raparigas aprendendo a bordar. Cumprimentou a senhora mestra, com muitas vênias e, para se mostrar importante, ofereceu a farinha para com ela se fazerem bolos para as meninas.

A mestra agradeceu-lhe muito a lembrança, dizendo-a própria de um coração generoso. Cheio de vaidade, o macaco figurão continuou a viagem empreendida, não sabia bem para aonde.

Foi andando, a fingir de homem outra vez, até que chegou a um forno. Cansado já de tantas andanças, sentou-se a matutar no que mais lhe convinha fazer. Entretanto cheirou-lhe a pão quente e lembrou-se logo da sua farinha.

Lembrar-se, lamentar-se e resolver que era muito sua a saca de farinha, foi tudo um momento. Voltou atrás e, já com atrevimento de macaco e sem respeito de homem, exigiu que lhe dessem de novo a saca de farinha.

A senhora mestra, para o chamar à razão, respondeu com toda a compostura:

— Ó senhor macaco, esse pedido nem parece do nosso generoso benfeitor! E que tenho eu para dar-lhe, se a farinha foi toda gasta a fazer bolos que as meninas já comeram?!

— Ah, sim! Pois então, esperem lá!

E, de repente, deu um pulo e agarrou a menina mais bonita de quantas estavam na escola.

Gritaram todas por socorro, mas o macaco num instante desapareceu, levando nos braços a menina roubada, sem se importar com os seus lamentos.

Lá lhe pareceu que era este o motivo da sua viagem, e voltou à cidade em que fora figurão e de onde partira desesperado.

Fechou a menina em casa e, por mais que ela pedisse que a deixasse voltar para os pais, não quis soltá-la. Ao princípio, a menina, com grande zanga do bugio, não fazia senão chorar e lamentar-se. Mas depois, para evitar maus tratos, começou a fazer-lhe a comida e a cuidar-lhe das roupas e fatiotas. E assim foi vivendo, na esperança de poder fugir da casa onde estava presa.

O macaco figurão, que já era um janota, passou a andar um primor de elegância, depois de ter a menina em casa.

Certo dia foi a uma loja de violas, e o dono, admirado e suspeitoso, disse-lhe:

— Você anda agora muito mais elegante, senhor macaco!

— Ando assim (respondeu ele, todo satisfeito) porque tenho em casa uma pequena que trata muito bem da minha roupa.

O violeiro calou-se e resolveu tirar o caso a limpo logo que pudesse.

Quando soube o macaco entretido numa festança qualquer, foi a casa dele e viu a porta fechada à chave. Bateu, voltou a bater, encostou o ouvido à porta, e pareceu-lhe ouvir lamentos. Não lhe sofreu o ânimo ficar por mais tempo em tais cuidados, e arrombou a fechadura. Entrou numa sala e ouviu melhor os lamentos e choro para além de outra porta fechada a cadeado. E também conseguiu abri-la. Qual não foi o seu espanto quando viu uma bonita menina, debulhada em lágrimas, que correu para ele a pedir-lhe que a salvasse, pois estava ali presa por aquele macaco figurão.

O violeiro disse-lhe que viera ali por palpite, e que estava pronto a levá-la para onde ela quisesse. A menina ficou satisfeitíssima e, contando o que sucedera, pediu ao seu libertador que a levasse para casa da família. O homem assim fez. E os pais da menina ficaram tão felizes quando a viram aparecer, que logo ali, com o seu assentimento e aplauso de todos, a prometeram em casamento a quem tivera a esperteza de lhe descobrir o paradeiro e a coragem de a libertar.

E não menos contente voltou o violeiro para a loja, pois, com a sua decisão, conseguira uma formosa noiva.

Quando o macaco figurão voltou a casa e viu que a menina fugira, ficou furioso. Lembrou-se da conversa que tivera com o violeiro e foi logo ter com ele. E disse-lhe que imediatamente lha entregasse, pois de contrário lhe roubaria uma viola.

— Pois leve a viola, por alvíssaras, e deixe-me em paz (respondeu o homem, satisfeito com o desfecho do caso).

O macaco deu um pulo, roubou a melhor viola da loja, desatou a fugir, saltou para cima de um telhado e pôs-se a tocar e a cantar:


 — De meu rabo fiz navalha, 
De navalha fiz sardinha, 
De sardinha fiz farinha, 
De farinha fiz menina, 
De menina fiz viola. 
Ferun-fun-fun,
Que vou para Angola!


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Fonte:
Ana De Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)

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