O jantar
de despedida
Há na história do nosso país uma
particularidade, que dá logo na vista a quem segue com olhar atento as
diferentes fases da nossa existência política. É a perfeita indiferença com que
sempre olhamos para os grandes acontecimentos da Europa, o cuidado com que
desviamos constantemente os olhos desse grande foco do movimento humanitário, e
a surpresa que também sempre nos acometeu quando sentimos o efeito terrível das
tempestades de que nos não soubemos resguardar.
Temos protestado tacitamente contra o
acaso geográfico que nos fez povo da Europa, sem nós termos por fim de contas
tendências europeias.
Senão veja-se.
Nos tempos da nossa grandeza, quando o
leão do Ocidente, estendendo as garras por cima do Atlântico, segurava numa
delas, fremente e subjugado, o opulento Indostão, e com a outra doma' as
convulsões desesperadas da hiena marroquina, tínhamos por acaso na Europa a
influência que nos deviam dar os imensos recursos que as nossas conquistas nos
subministravam? O ouro da África e da Ásia prestou a D. Manuel os serviços que
o ouro americano prestou a Carlos V? O imenso comércio das Índias deu-nos por
acaso na Europa a influência marítima, que tinha dado outrora à república
veneziana?
Não, a opulência portuguesa só se
revelou por essa inútil fanfarronada da embaixada de Tristão da Cunha!
Enquanto nós olhávamos distraídos para
Goa e para Ormuz, Carlos V e Filipe II, mais europeus, consideravam como meio o
que para nós era fim, e aproveitavam os feitos de armas de Cortez e de Pizarro
para estenderem a sua influência e o seu poderio.
E ficámos espantados quando esse
colosso, que tínhamos deixado pacientemente crescer ao nosso lado, nos absorveu
de um trago!
Quando em 1789 o vulcão revolucionário
abalou o solo da França e devorou de repente todo o regímen feudal, a Europa
monárquica agitou-se e viu com terror as lavaredas incipientes que iluminavam o
povo devorando o trono, enquanto não devoravam milhares e milhares de vítimas
inocentes.
Em Portugal, enquanto Luís XVI e Maria
Antonieta eram presos em Verennes, e voltavam à capital escoltados pelos gritos
de morte dos seus vassalos rebeldes, a senhora D. Maria I confessava-se e
comungava, ia dar a sua volta às Caldas da Rainha, e o príncipe seu filho
aprendia cantochão com os devotos frades do real convento de Mafra!
É verdade que os seus fiéis súbditos
professavam também a mesma estoica indiferença!
Em Paris o marquês de Lafayette
sacrificava à ideia liberal da monarquia representativa o seu nome e o seu
valimento de cortesão, o conde de Mirabeau, gigante da tribuna, fazia baquear o
trono ao som da sua voz, como outrora as muralhas de Jericó baquearam ao som
das trombetas sagradas, o marquês de Favras abria na forca a imensa lista que
se devia continuar na guilhotina, o marquês de Bouillé, tentava, com uma
audácia e dedicação cavalheirescas, salvar o neto de Luís XV e a filha de Maria
Teresa; todos enfim sacrificavam, uns a sua posição à ideia santa da liberdade
que alvorecera, outros a sua vida à ideia veneranda da realeza que se sumia no
ocaso.
E em Portugal?
Em Portugal o conde de Vila Nova
acompanhava o Santíssimo, tocando a campainha; o marquês de Marialva passava
três horas à espera de sua majestade; o duque de Cadaval dançava com as
costureiras francesas; o conde de Vila Verde, rodeado de padres, contemplava da
janela as procissões; e os outros figuravam na procissão do Corpus Christi; ouviam,
no locutório do convento das Salésias, as hipócritas parlendas do douto padre
Teodoro de Almeida, e iam à Rua dos Condes admirar as visagens descompostas das
pastoras masculinas que figuravam no tablado do teatro nacional.
D. Jaime de Noronha, conde de Esposende,
não participava da indiferença que os fidalgos portugueses de então professavam
pelas ideias liberais que despertavam em França. Alguns volumes truncados de
Rousseau, atravessando sub-repticiamente as fronteiras, tinham ido parar às
mãos do moço fidalgo; e, lidos às escondidas do seu aio e confessor, haviam
exaltado a imaginação de D. Jaime, fazendo com que ele acariciasse, a ocultas
de todos, esplêndidos sonhos de regeneração social. Ninguém suspeitava das
leituras furtivas do herdeiro da casa de Esposende, e o velho marquês, seu pai,
homem rígido e inflexível, não imaginava que a educação esmerada, que mandará
dar a seu filho, tivesse, como tinha, um complemento democrático.
Não porque o marquês de Esposende
passasse também a sua vida em beatérios e genuflexões de cortesão. Espírito
elevado e inteligência cultivada, contemplava com tristeza a torrente da
filosofia, a qual, inundando e vivificando as classes populares, ervas
mesquinhas que até aí tinham vegetado miseravelmente à sombra dos robles
feudais, arrancava ao mesmo tempo os troncos caducos da realeza e da
aristocracia. Percebendo perfeitamente que não havia resistir-lhe, o velho
marquês lembrava-se com amargura do tempo em que a espada de um rico-homem era
dique suficiente para as ondas da plebe, revoltas pelo vento de míseros motins.
A reunião dos estados gerais franceses,
a altivez do terceiro estado, a adesão de uma grande parte da nobreza e do
clero aos princípios democráticos proclamados pelo panfleto de Sieyés, o
juramento do Jogo da Péla, a tomada da Bastilha, o regresso triunfal de Necker,
a sessão noturna de 4 de Agosto, a ida de Luís XVI para Paris, produziram um
efeito completamente diferente no velho marquês e no moço conde.
Aquele espantava-se da cegueira dos
monarcas europeus, que não esmagavam logo no princípio a hidra nascente das
revoluções; este regozijava-se com a vitória dos princípios filosóficos, e
lastimava não pertencer à nobreza de França para poder, como M. de Montmorency,
fazer alegremente às ideias revolucionárias o sacrifício da sua riqueza e da
sua hierarquia.
Percebendo que, por mais obstinadamente
que Portugal se conservasse desviado do centro do progresso, haviam de chegar
também cá raios fulgurantes do sol da liberdade, o marquês de Esposende tinha
querido que seu filho juntasse aos privilégios do nascimento as prerrogativas
da instrução. Por isso nenhum fidalgo da corte portuguesa podia rivalizar neste
último ponto com D. Jaime de Noronha, cuja educação ia ser completada, no
momento em que principiamos esta história, com uma viagem pela Europa.
Para solenizar a despedida do herdeiro
da casa, tinha o marquês de Esposende reunido, no seu palácio de S. José de
Ribamar, os parentes e amigos da sua nobre família. Nada se tinha poupado para
dar honra à hospitalidade da casa dos Noronhas. Músicos da capela real,
atraídos pelo ouro do marquês, faziam ouvir suaves concertos, enquanto os
nobres senhores da corte de D. Maria I se entregavam às delícias da
gastronomia. O serviço da mesa era feito com o mais esplêndido luxo e com o
mais apurado bom gosto.
No momento em que entramos sem ser
convidados, coisa que nos não é proibida pelo rifão popular, porque o banquete
não era nem de boda nem de batizado, no momento em que entramos chegava o
festim à cena final.
Sobre as toalhas de finíssimo linho,
entre os guardanapos ricamente bordados com brasões e flores, ostentavam-se
salvas de prata de relevo admirável, carregadas de pratos de frutas, que
espalhavam no ambiente da sala uma suave fragrância. As corbelhas de morangos
gelados campeavam ao lado dos cestinhos de doces metidos em papel recortado,
presente da abadessa da Esperança, próxima parenta da casa de Esposende. As
finas compotas, resultado da indústria dos copeiros do marquês, misturavam-se
com a marmelada feita pelas brancas mãos das freiras de Odivelas, desse
convento de galanteadora memória.
O jantar, começado às quatro horas da
tarde, tinha-se prolongado, e, apesar de se estar em junho de 1791, as sombras
do crepúsculo tinham surpreendido os convivas, e tinham obrigado a acender as
inúmeras velas de cera que serviam para a iluminação da sala. As luzes,
cintilando nos cristais, fazendo brilhar em topázios e rubis líquidos os vinhos
da Madeira e do Porto, iluminando com reflexos fantásticos os bordados caprichosos
das casacas de seda dos cortesãos, davam à sala um aspecto maravilhoso.
No rosto dos convivas brilhava a
animação resultante das frequentes libações. O bispo do Algarve, que honrara a
mesa com a sua seráfica presença, tinha as bochechas nédias e morenas,
revestidas senão do verniz de santidade, pelo menos do verniz da divindade...
báquica. O olhar umedecido brilhava resguardado das vistas dos profanos pelos
verdes óculos sacerdotais. O conde de Pombeiro, sentado junto do moço bispo,
falava pelos cotovelos, tomava um ar de Mecenas olhando para o brasileiro
Caldas, Virgílio mulato do ilustre conde, que, sentado humildemente na
extremidade da mesa, procurava no fundo dos copos do generoso Madeira um
epigrama que o vingasse das sátiras do ímpio Manuel Maria, como ele chamava ao
harmonioso Bocage.
No meio da alegria geral os rostos do
marquês e do conde de Esposende mostravam uma certa tristeza natural neste
momento, mas que espantaria todos os que conhecessem o carácter enérgico do
marquês e o ardente desejo de viajar que o moço D. Jaime alimentava.
No rosto do marquês revelava-se a
tristeza sombria e opressora, que um vago pressentimento às vezes nos desperta.
O rosto de D. Jaime mostrava uma inquietação febril e a tristeza impaciente de
um coração cheio de mocidade, que não pode ou não sabe ainda suportar a mínima
desgraça.
As janelas da casa de jantar deitavam
para o rio. Ou fosse o desejo de se saborear com a vista do formoso Tejo, vista
de que, durante muito tempo, ia ser privado, ou fosse outro motivo qualquer, D.
Jaime de Noronha não despregava os olhos das águas do pátrio rio, onde se
balouçavam indolentemente e de longe a longe alguns barcos.
Felizmente fez-se sentir quase debaixo
da janela uma bulha de remos, e logo uma viva alegria iluminou o rosto de D.
Jaime pouco antes tão tristemente inquieto. O marquês olhou para ele,
sorriu-se, e depois, levantando-se, deu sinal de finalizar o banquete.
– Se lhes apraz, meus senhores – disse
dirigindo-se aos convivas -, vamos até às varandas ver o desembarque de meu
irmão, que, se me não engano, acaba de chegar.
Todos acederam ao convite, e, precedidos
pelo dono da casa, foram encostar-se aos parapeitos para presenciar o
desembarque do irmão do marquês de Esposende.
Quando chegaram, estavam saltando em
terra dois frades robustos, cujos hábitos contrastavam com os rostos
asselvajados dos venerandos monges. Atrás deles desembarcou um figurão alto e
gordo, corado, de voz possante, conservando com todo o rigor o trajar do tempo
de D. José, e dando o braço a uma formosa menina, a qual, permitam-me a
comparação, parecia uma pomba esvoaçando familiarmente ao lado dum javali.
– Boas tardes, mano marquês – bradou o
robusto fidalgo, assim que viu aparecer na janela os convidados –, venho a
arrebentar com fome. Passo por debaixo da mesa, hein? Não pude resistir à
tentação de assistir a uma touradazita, que os meus campinos do Ribatejo me
quiseram apresentar, e não me lembrou a festa cá de casa. Adeus, Jaime, adeus,
meu rapazola, então vai-se girar lá por essas terras! Vais ver esses hereges
malditos, que nem sequer sabem apanhar um boi à unha! Sempre queria que
estivesses hoje na tourada! Aquilo é que eram bois claros, de fogo na venta!
Davam tão boas sortes, que teu tio não pôde resistir à tentação de saltar para cima
dum cavalo e de ir picar um touro. Senhor bispo do Algarve, beijo os pés de
vossa excelência, e peço-lhe a sua sagrada bênção – continuou o palrador
curvando-se respeitosamente. – Seja louvado e adorado o Santíssimo Sacramento.
Amém.
Persignou-se devotamente, e depois
continuou:
– Oh! conde de Pombeiro, por cá! Trazes
contigo o homem das modinhas, o Caldas da viola? Ah! lá o vejo! lá o vejo! bons
dias, meu amigo, aqui lhe trago um confrade.
E depois, voltando-se para um homúnculo
roliço, vestido de cetim preto, que saíra do bote com um rolo de papéis debaixo
do braço:
– Olá! salta um chorrito de sonetos e é
dar honra à casa de D. Tomás de Noronha, senão mando-o a você e mais a musa com
um pontapé travar conversa com as ninfas do Tejo, como vocês dizem, sôs orates.
Não havia que replicar a tão peremptória
intimação e Deus sabe o que teriam que aturar os pobres ouvidos dos convidados
do marquês, se este não bradasse:
– Deixemo-nos disso, tagarela. Sobe,
anda que tenho pressa de te apertar a mão, e de dar um beijo na minha gentil
sobrinha, na minha formosa Inês.
Daí a pouco fazia o Sr. D. Tomás de
Noronha a sua entrada triunfal na sala do banquete, arrombava amigavelmente com
um robustíssimo abraço as costelas do seu mano, sumia nas mãos agigantadas a
mãozinha quase feminina de D. Jaime e saudava com um vozeirão, que lhe seria
invejado pelo famoso pregador frei João Jacinto, o resto da companhia.
Inês, que viera quase pendurada do braço
paternal, beijou ternamente seu tio, cumprimentou, fazendo-se muito corada, o
primo viajante e depois, encostando-se ao parapeito da janela, enquanto as
outras pessoas se sentavam à mesa ou em torno dela se agrupavam, para fazerem
companhia a D. Tomás, entregou-se à suave contemplação das águas do Tejo, sobre
as quais a lua, que se erguia majestosa no azul horizonte, desdobrava um rico
manto prateado.
– Doa tourada! guapa tourada, com mil
demônios! – bradava entusiasmado D. Tomás de Noronha, acompanhando o discurso
com frequentes libações e dando provas ao mesmo tempo de um apetite devorador –
ainda não vi bois tão valentes desde a célebre tourada de Salvaterra, em que
levou o diabo o conde dos Arcos... Tu não te lembras disso, Jaime? pudera, como
te havia tu de lembrar, se foi no tempo desse negregado marquês de Pombal, que
Deus tenha por muitos anos nas profundas do inferno a conversar com o diabo! Ó
senhor bispo do Algarve, não se zangue por eu ter sempre na boca o nome do
inimigo. Prometo dar este ano um vestido novo à Senhora do Cabo e um resplendor
ao menino Jesus, coisa de se ver e que não envergonhe o nome de D. Tomás de
Noronha. Hei de fazer penitência e já lhe assevero que não torno a pronunciar o
nome do anjo rebelde. Mas, como eu te ia dizendo, Jaime... espera, espera...
onde diabo se meteu aquele maldito?
– E essa ideia entristece-a? –
perguntava D. Jaime em voz baixa à formosa prima, encostando-se também ao
parapeito da janela.
– Não sei, primo. Diga-me: será pecado
ter sempre no pensamento o nome de um homem? balbuciá-lo, até de envolta com as
orações? Eu receio ofender a Deus...
– Ó demônio – trovejou o vozeirão de D.
Tomás – pois tu pões-te a conversar com tua prima e deixas-me ficar no meio da
história? E tu, Inês, não vens jantar?
– Obrigado, meu pai, não tenho vontade –
respondeu balbuciando a tímida donzela.
– Eu não sei como vocês fazem isso,
vivem sem comer. Pois, como eu te ia dizendo, Jaime... anda para aqui, homem,
senta-te ao pé de mim... foi tourada boa deveras! que pena tenho de ti, meu
sobrinho – acrescentou D. Tomás melancolicamente -; ires tu por essas terras
fora, sem poderes pregar uma farpa num boi, sem ao menos veres uma tourada!
Pobre rapaz!
– E tem razão, meu tio, hei de sentir
vivas saudades da minha pátria. As novidades que encontrar em terras
estrangeiras, não me hão de fazer esquecer o que me vejo obrigado a deixar.
E levantou os olhos para o sítio onde
conversara com sua prima, porém, com grande espanto seu, não divisou junto da
janela o perfil gracioso da encantadora Inês. Desde então foram perdidas para
ele as palavras sentenciosas do tio D. Tomás; só vagamente percebeu que o bom
do fidalgo chegara, por uma transição um tanto escabrosa, a dar-lhe ótimos
conselhos sobre picaria. Felizmente o pai de Inês lembrou-se de impugnar o
método do marquês de Marialva; a este desacato de equitação pularam indignados
o conde de Pombeiro e um velho fidalgo primo dos Esposendes. A discussão correu
tempestuosa, mas sumamente instrutiva e confesso que não percebo como D. Jaime,
em vez de escutar e de admirar os mestres, se aproveitou da ocasião para fugir
da sala e ir, guiado por esse instinto dos namorados que nunca os engana, parar
ao jardim do palácio.
A lua iluminava com os seus pálidos
raios as estátuas pagãs, os tanques de mármore e as ruas de buxo do vasto
jardim. Ao longe no Tejo a casta Diana parecia ter sacudido o seu manto sobre
as águas, deixando cair milhões de pérolas, que brincavam à superfície. Não
corria uma aragem e o silêncio do jardim, a serenidade dessa noite luminosa,
contrastava de um modo notável com o ruído da sala do banquete.
O conde D. Jaime cedeu involuntariamente
ao doce encanto da tranquilidade. Era esse o porto donde ia sair pela primeira
vez, para seguir viagem no proceloso mar da existência. Esse anjo de asas
brancas, anjo impalpável que se chama felicidade, não ficaria ali escondido por
trás dessas estátuas sossegadas, enquanto ele ia procurá-la no turbilhão do
mundo?
Pensando assim, o moço conde tinha
afrouxado o passo; encostou-se a uma estátua de Vénus e ficou-se a mirar silencioso
a sombra que o luar projetava no chão da rua. Lembrou-se da cena instantânea
que se tinha passado junto da janela do salão e suspirou.
Respondeu-lhe um outro suspiro, suspiro
tão ligeiro que se diria ter sido soltado pelos lábios de mármore da estátua
pagã.
Mas ao mesmo tempo uma outra sombra
cruzou-se entre as da estátua de D. Jaime e um vestido branco roçou ao de leve
pelo corpo do mancebo.
– Inês! – murmurou ele.
– Primo!
– Foi Vênus que desceu do pedestal? –
perguntou o conde sorrindo.
– Galanteios, primo?
– Verdades, formosa Inês!
– Aqui está porque as damas não
acreditam nos homens. Julgam-se obrigados a dizer madrigais destes a todas as
senhoras, de maneira que nós nem podemos distinguir o amor verdadeiro do
cumprimento banal. Ora diga-me – continuou ela um pouco enfadada – porque foi
agora incomodar Vênus? Quando o encontrei estava meditando acerca da mitologia?
– Diz bem, prima; foi o espírito que
atraiçoou o coração. Esta linguagem insípida dos poetas contemporâneos não
serve para exprimir os verdadeiros afetos da alma. Não foi nesse estilo que
Saint-Preux escreveu a Júlia as suas cartas imortais.
– Ai, primo! – tornou Inês
melancolicamente – quem se poderá fiar nos seus juramentos, se a luz do amor
que brilha nos seus olhos é bem ténue ao pé das labaredas da sua imaginação,
labaredas que alimenta constantemente com essas perigosas leituras? Diga-me'
para que lê o primo essas obras estrangeiras, que põem em perigo a sua alma e
perturbam o seu repouso?
– Engana-se, prima – tornou Jaime com um
ligeiro movimento de impaciência – os livros de Rousseau, do eremita de
Ermenonville, são as mais sublimes manifestações da ideia de Deus. A sua
leitura deleita a alma e tranquiliza o espírito.
– Que heresia! O primo nem receia a
Santa Inquisição, nem teme lançar a sua alma no fogo do inferno, lendo os
livros desses amaldiçoados que insultam o seu rei e ofendem o seu Deus?
– Não sei realmente – respondeu Jaime
com um tom um pouco desabrido, por causa dessas pieguices devotas, que ofendiam
as suas ideias filosóficas – não sei realmente como a prima fala em coisas que
não entende.
– Tem razão – tornou Inês ofendida – sou
uma pobre rapariga que não sabe senão o que sua mãe lhe ensinou: ser boa,
amorável, temente a Deus e respeitadora das santas crenças de seus pais. É
pouco, não é verdade? A quem lê esses livros, onde as heroínas falam a elevada
linguagem das paixões romanescas, deve parecer bem sem-sabor uma donzela, que
só sabe dizer o que o seu coração lhe dita e amar deveras, oh! bem deveras! um
ingrato que lho não merece. Também que me importa – continuou a pobre menina
sem poder conter as lágrimas e desatando a chorar perdidamente – vá viajar,
esqueça-se de mim, apaixone-se por algumas dessas estrangeiras que leem essas
cartas de Júlia, enquanto eu só leio as minhas orações, e, depois de ter gasto
o seu coração e a sua mocidade nesses amores fictícios, volte a Portugal e
procure a sua prima, que a há de encontrar ou na lousa de um túmulo ou nas
grades de um convento.
– Oh, perdoa-me, Inês – balbuciou Jaime
caindo-lhe aos pés e procurando desviar-lhe as mãos dos olhos chorosos – fui um
louco, um infame, mas não chores. Pede-to quem tanto te ama.
– Deixe-me, o senhor é um... mau; já lhe
não dou um presente que lhe queria dar.
– Louquinha! Prometendo eu arrepender-me
sinceramente e não tornar mais a dizer coisas que te ofendam!...
– Promete? – acudiu Inês, desviando as
mãos dos olhos e mostrando o seu rosto infantil inundado de lágrimas, onde
principiava a despontar um sorriso, meigo íris do amor depois dessas
tempestades deliciosas.
– Juro-o.
– Veja lá!
– Pelos teus olhos!
– Mau, também não sabe senão dizer
finezas. Olha, Jaime continuou ela tirando do peito uma cruz de ouro esmaltada
e lançando-lha ao pescoço – esta cruz foi herança de minha mãe; guarda-a por
amor de mim...
– Nem um só instante me hei de separar
dela.
– E faz bem! herege como é, se não fosse
esta cruz, como havia de resistir às tentações do demônio?
– Bastava-me para isso a recordação de
um anjo.
– Aqui está a sua capa, senhor conde –
bradou . uma voz grossa a pouca distância – pode-lhe fazer mal o sereno.
Inês soltou um grito e fugiu espavorida.
D. Jaime, furioso, deu um pulo, e, ao levantar-se, viu diante de si com a cara
mais ingênua deste mundo e estendendo-lhe a capa com um sorriso obsequioso, o
seu desastrado interruptor.
Era um criado alto e magro, trajando a
libré da casa de Esposende, de cara encovada, e nariz comprido e sorriso ingênuo
aos cantos da boca. Se Lavater lhe observasse a fisionomia, conheceria logo o
criado teimosamente serviçal.
– Quem te mandou cá vir, Vasco Antônio?
– bradou D. Jaime enfurecido. – Pediu-te alguém alguma coisa?
– Vossa excelência bem sabe que o dever
de um criado é prevenir e adivinhar as ordens que há de receber. Se o senhor
conde fizesse essa observação a um criado novo, mas a mim, que sirvo a casa de
Esposende desde que vossa excelência nasceu!
– Mas quem diabo te inspirou essa
maldita ideia de vires ter comigo?
– Quando eu vi passar vossa excelência,
formei logo tenção de lhe vir trazer a capa. Vossa excelência podia
constipar-se e não há doença tão perigosa como uma constipação. O senhor conde
é moço, não se importa com estas coisas, mas a mim, que tenho experiência,
cumpre-me velar pela saúde de meus amos. Ponha vossa excelência a capa.
Conversando e discutindo, tinham-se
posto ambos a caminho para o palácio; D. Jaime andando rapidamente para se ver
livre das importunações de Vasco; este dando largas passadas sem alterar a
gravidade do seu andar, o que lhe era permitido pelo comprimento das suas
pernas, e estendendo a capa, a fim de aproveitar a ocasião propícia de a pôr
nos ombros de seu amo. D. Tomás, se os visse, imaginaria que o bom do Vasco,
possuído de súbito entusiasmo pela tauromaquia, queria passar à capa o conde de
Esposende, que se esquivava ao divertimento.
– Mas quem te pede conselhos, com mil
demônios? – continuava o conde.
– Ponha vossa excelência a capa, olhe que
não se há de arrepender. É Vasco Antônio quem lho assevera.
– Vai-te com os diabos – bradou o conde
exasperado.
– Jaime – disse uma voz sonora e firme
ao lado deles.
O conde e o escudeiro seguiam um longo
parreiral, que do jardim ia ter ao palácio. De trás de um dos pilares, que
sustentavam a latada, saiu um vulto c a figura bem conhecida do marquês
apareceu de repente ao pé dos dois discutidores.
– Jaime, tenho que falar contigo.
O conde inclinou-se e parou. Vasco,
obedecendo a um gesto do marquês, continuou o seu caminho para o palácio, mas,
ao passar por ao pé de D. Jaime, aproveitou a ocasião, lançou-lhe rapidamente a
capa aos ombros, e, alargando as pernadas, pôs-se a distância o mais depressa
possível, não sem resmungar por entre os dentes:
– Cabeças levianas! cabeças levianas! Se
não fôssemos nós, os criados velhos, não sei que seria feito destes fidalgos!
O marquês, com uma das mãos metida na
algibeira do colete e com a outra apoiada na bengala, esperou que Vasco Antônio
desaparecesse, e, depois, dirigindo-se a Jaime:
– Ouvi a sua conversação com sua prima,
senhor conde!
– Meu pai! – balbuciou Jaime estupefato.
– E dela concluí, além de muita
pieguice, que o herdeiro da minha casa se tem deixado seduzir pelas ideias
fatais do século em que vivemos.
– Eu, senhor marquês!
– Não o negue! bem sabe que o seu mestre
Rousseau detesta principalmente a mentira.
– Não o negarei decerto – tornou D.
Jaime, erguendo altivamente a cabeça – os apóstolos das grandes verdades não
temem apregoá-las à face do mundo inteiro.
– E é um filho da casa de Esposende quem
assim se exprime! disse o marquês amargamente. – Bem culpados fomos para que o
Senhor nos fulminasse com os raios da sua cólera, permitindo que os legionários
da legião aristocrática proclamem como virtudes a deserção das fileiras
sagradas! Onde estão as tradições cavalheirescas da nossa raça? Onde o espírito
que nos animava e que nos fazia formar em valorosa falange para rodear o sólio
dos nossos reis? Dispersados pelo egoísmo os tripulantes da alterosa nau da
monarquia, despedaçados os mastros pelo sopro do tufão da morte, que sobre nós
arrojou o marquês de Pombal, esse baixel gigante, que desprendia as brancas
velas, iluminadas esplendidamente pelo fulgurante sol da glória nacional, vai
prestes a soçobrar nas ondas populares.
– Mas... – balbuciou Jaime, atônito da
extraordinária veemência de linguagem do marquês.
– Tu vais viajar, meu filho – continuou
o marquês adoçando um pouco a voz – e vais ver na França o fruto das utopias
que proclamas. Fidalgo e cristão, verás o diadema de São Luís pisado aos pés da
plebe desprezível! Cavalheiro e português, presenciarás os infortúnios de uma
rainha, da filha dos Césares, da bela e virtuosa Maria Antonieta. Vendo as tuas
doutrinas proclamadas por esses tigres, hás de envergonhar-te delas. E, se não
tens pejo de ser colega de um marquês de Lafayette, e de um duque de Lauzun,
hás de corar de ser colega de Bailly e de Barnave, esses rebeldes plebeus.
Jaime calou-se. Aproveitando-se do seu
silêncio e fingindo tomá-lo como adesão às suas doutrinas, o marquês beijou-o,
e, dando-lhe o braço, dirigiu-se para casa.
Quando ali chegou, apertou-lhe a mão e
disse-lhe:
– Vai-te despedir dos nossos convidados
e vai-te deitar, que tens amanhã que te levantar cedo. Adeus! Lembra-te sempre
de que és fidalgo e lembra-te de que és cristão.
Jaime ficou silencioso. Quando o marquês
se retirou, dirigiu-se para a sala murmurando:
– Que estranho pressentimento me invade!
Parece-me que se apaga de todo a lembrança do meu viver anterior e um novo
mundo de ideias me entra na imaginação. Será o que Deus quiser.
E entrou na sala do banquete.
No dia seguinte partiu D. Jaime de
Noronha com o seu aio para Itália, país por onde devia começar a sua
peregrinação.
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