O homem que andou vinte e sete anos por fora
Era uma vez um homem casado.
Vivia muito pobre, e tanto que, por fim, resolveu sair da terra e ir ganhar
meios para continuar a viver com a mulher, sem passarem necessidades. A mulher
chorou muito, mas, como tinham já um filho, não havia remédio senão
resignarem-se.
Partiram em duas a aliança de
casamento e cada um ficou com sua metade.
O homem foi correr mundo. Andou
lá por fora muito tempo, serviu inúmeros patrões, viajou por toda a parte e, ao
fim de vinte e sete anos, vendo que já tinha o bastante para viver descansado
com a mulher e o filho, resolveu regressar a casa.
As saudades apertavam e então,
embora estivesse muito bem na casa que servia, despediu-se, dizendo porquê. O
patrão, que o estimava muito, deu-lhe quanto dinheiro ele quis, e aconselhou-o:
— Vai sempre por caminhos
direitos; livra-te das encruzilhadas e dos atalhos.
O homem pôs-se a caminho, e
seguiu sempre esta recomendação. Mas um dia perdeu-se numa grande mata, e logo
encontrou um homem que lhe perguntou para onde ia e se levava dinheiro.
— Levo algum, mas é só para fazer
compras ao meu patrão. E logo volto por aqui.
E, para provar que não mentia,
entregou-lhe o cajado. O homem deixou-o passar. Mais adiante encontrou outro,
que lhe fez a mesma pergunta. Ele respondeu a mesma coisa e acrescentou:
— Olhe, aqui lhe deixo a minha
capa, só para provar que hei de voltar.
Foi andando pela mata fora, e lá
muito longe deu com um magote de homens, em volta de uma fogueira, junto duma
grande casa. Logo que o viram, agarraram-no e levaram-no ao capitão da
quadrilha de ladrões, porque esse era o seu modo cruel de vida.
O capitão olhou-o dos pés à
cabeça, e, como o viu sem mostrar medo, disse-lhe:
— Tens boa cara; parece-me que te
hás de dar bem conosco. Vou mandar-te mostrar a casa. Se não te admirares com
coisa nenhuma, serás dos nossos; se te assustares, serás logo morto.
O homem que era muito corajoso,
respondeu logo:
— Decerto, não me admirarei,
porque tenho visto muito, desde que saí da minha aldeia!
Levaram-no então a uma sala toda
cheia de cofres abarrotados de joias. Braceletes, anéis, colares, tudo ali
havia, a esmo. Eram tantas e de tal riqueza, que outro ficaria logo de boca
aberta. Ele apenas disse, com ar de pouca importância:
— O que vocês me vêm mostrar!
Mais do que isso tenho eu visto!...
Dali foram com ele à sala onde
tinham as armas. Era um verdadeiro arsenal. Havia-as de todos os feitios e
tamanhos, desde o punhal à espingarda.
— Oh (disse o homem), muito mais
armas tenho eu visto!
Foram com ele a outra sala cheia
de roupas, tantas, tantas, que vestiriam um povo inteiro. Também não se mostrou
admirado. Levaram-no então a uma grande casa rodeada de pias cheias de sangue,
da gente que os bandidos tinham morto. Sem se desconcertar, disse:
— Pouca coisa! Mais sangue tenho
eu visto. Nem me admiro por sangrarem tanta gente, porque era capaz de fazer o
mesmo...
Foram dali com ele a outra casa,
toda cheia de cadáveres e ele impassível:
— Ora que tem isto de admirável,
não me dirão? Para que somos nós homens? Mais mortos já eu vi.
Por fim mostraram-lhe uma casa
cheia de ossos de gente. E ele tudo via com a mesma coragem e sangue frio.
Os ladrões ficaram contentíssimos
com o novo companheiro, e foram outra vez apresentá-lo ao capitão. Deram-lhe de
comer, e ficou na companhia. Nos primeiros dias só lhe davam a obrigação de
enterrar as pessoas que assassinavam. E porque a floresta em que dominavam
fazia caminho para muita parte, não era pequeno serviço. Depois, como o viram
mostrar tanto zelo e boa vontade, foram-lhe dando lugares de confiança.
Punham-no de sentinela para
espreitar os viandantes, e ele, logo que os via, prevenia-os que fugissem por
outro caminho. Mas os ladrões nem sonhavam que ele fazia isto, pois o homem se
mostrava, ao contrário do que era, ladrão e cruel como eles.
A mentira é uma grande covardia.
Nem se deve nunca usar deste meio, senão em casos extremos. Mas às vezes é
também prova de coragem sustentá-la longo tempo, se necessário, para bem dos
outros.
Assim foi o homem ganhando a
confiança dos companheiros até o mandarem para os postos mais avançados. Quando
isto fizeram, ele meteu o seu dinheiro no bolso, e fugiu.
Quando se apanhou na terra, nem
queria acreditar.
Foi procurar a mulher e já não a
encontrou. Disseram-lhe que tinha ido para a cidade com o filho.
Dirigiu-se à cidade. Perguntava,
perguntava e ninguém lhe sabia dizer o que ele queria!
Até que um dia calhou estar na
loja dum sapateiro, quando viu passar uma mulher com um Padre. Pareceu-lhe que,
embora velha, dava ares da rapariga que deixara havia vinte e sete anos, e
perguntou ao sapateiro. Este respondeu logo:
— Não sei quem é aquela mulher.
Veio para aí muito pobrezinha e tanto trabalhou, tanto labutou, que conseguiu
fazer o filho Padre. Não se sabe mais nada, porque não conta a sua vida a
ninguém.
Foi então o homem, vestiu-se de
pobre e bateu à porta do Padre, pedindo um copo de água. A mulherzinha mesmo
lho veio dar, sem o reconhecer. Mas ele, vendo metade do anel que ela trazia,
teve a certeza que era a própria, e deitou a sua metade no copo. Ela, quando
isto viu e reconheceu o marido, ia morrendo de alegria e, sem se importar de
saber se vinha pobre ou rico, levou-o para dentro, chamou o filho, e ambos o
trataram como se fosse um deus. O homenzinho contou então a sua vida e lá
ficaram juntos e felizes, por muito ano, recordando os trabalhos passados para melhor
agradecerem a felicidade conquistada.
Isto só prova que, sabendo
esperar e querer, tudo se consegue no mundo, ou mais tarde ou mais cedo.
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Fonte:
Ana de Castro Osório: Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa (Editado a partir da edição da Bibliôtronica Portuguesa)
Fonte:
Ana de Castro Osório: Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa (Editado a partir da edição da Bibliôtronica Portuguesa)
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