Cinco e meia
da tarde.
A corneta do
guarda-agulhas soou ao longe, anunciando o comboio que vinha de Lisboa.
Na gare, o
chefe da estação já estava a postos, com os maços de guia na mão, o boné do
uniforme na cabeça; e para a direita e para a esquerda, barafustando conforme o
seu costume, dava uma ordem ao fator que ia passando, interrogava o faroleiro
acerca da iluminação das salas de espera, ou conferia à pressa a grande nota da
expedição de mercadorias a embarcar. E o surdo ruído do trem, gradual,
poderosíssimo, cada vez mais crescente, e que parecia vir ululando da goela dum
subterrâneo profundo, o surdo ruído avolumou-se, decompôs-se, foi-se definindo
em outros ruídos mais dispersos... jogos de válvulas da máquina, bruscos vômitos de fumarada na chaminé, e tracs-tracs
da ferragem, que faziam estribilho à grande estrupida das rodas no coleamento
escorregadio dos rails. Toda aquela
tarde, uma velha estivera acocorada no chão da sala comum, vestida de negro,
com os cabelos brancos sobre os olhos, o xale esfiado pela cabeça, uma
taleiguita de estopa no regaço... Tinha chegado essa manhã da Vacariça; era uma
velha pequena, chata de cara, amarelenta, lesta e descalça de pé e perna, como
em geral andam as mulheres pobres da Bairrada. Ninguém reparava nela, por
certo, e quase era certo que também ela não houvesse reparado em ninguém.
Da Vacariça
ao entroncamento da Beira, em Pampilhosa, vai uma travessia talvez de légua e
meia. Logo de manhãzinha ela viera, a pobre velha, por esses córregos verdes
dos pinhais, que a urze borda, e o feto grosso do mato, e a gilbarbeira
espinhosa, naquele tempo, em dezembro toda bordada de baçasescarlates. Ao
aproximar-se da estação, gritou-lhe o guarda brutalmente que se desviasse da
linha; ela estacara medrosa, a taleiga de estopa no quadril, caído o xale, e
sob o chapéu de feltro chato, o seu lenço negro de viúva, enrolado até a boca,
como um toucado tunesino. E titubeante, às recuadelas nos rails, a pobre mulher acenava para o guarda, a lhe explicar que era
de fora, não sabia; e que trazia no saco o farnelzinho prô-filho — porque o
tiozinho não sabe? o filho dela devia chegar no comboio de Lisboa...
Aí se
desenruga essa pobre cara de mártir, essa boa cara ressequida e cor de cera,
que desde viúva perdeu o riso, emurchecendo e mirrando na solidão dum casebre,
com a esperança porém no dia em que o rapaz, tornado do Brasil, lhe fizesse
passar sem fome os derradeiros poentes da velhice. Mísera e descalça em setenta
anos de labuta, ai pobre velha! conhecera a fome, o abandono, a viuvez e o
egoísmo; e vai em trinta anos sem marido, sem proteções, nem parentes... — Ah!
mas o tiozinho não sabe? O filho dela devia chegar no comboio de Lisboa!
Na estação
correu os olhos banda a banda, pelas salas de espera, pelas gares, nos
armazéns, nos fourgons, pela cantina,
perguntando se estaria por lá um rapazote a modos encorpado, barba nenhuma, uma
cicatriz no queixo, dum carbúnculo... o filho dela; porque o tiozinho não sabe?
o filho dela devia chegar no comboio de Lisboa.
Alguns nem a
escutavam. Outros passageiros sorriam-se da sua papalva ingenuidade. E o mais
bondoso era um soldado em transferência do 23 para o Buçaco, parvo e sozinho,
que havia chegado de Coimbra, e na Pampilhosa aguardava o trem da noite, para a
Beira, que o desembarcasse no Luso. Esse era um pobre tarimbeiro, um cavador
roubado às bouças pátrias, e que ao ver a velha, coitado, se recordava talvez
de sua mãe. Ouviu-lhe tudo, o pobre diabo, a história dum porco que morrera à
velha antes da Páscoa, o filho no Brasil vai em dez anos, cartas saudosas,
infelicidades, doenças... e agora, não tendo feito fortuna, o filho torna para
convalescer um pouco em Vacariça.
O soldado
porém, não sabe dizer se o filho da velha chegou, ou não chegou. Dá-lhe o pão
duro da sua sacola de linho — ela recusa, Deus lho pague! — e vão ambos indagar
se o colono doente chegaria... um rapazola a modos encorpado, barba nenhuma,
com uma cicatriz no queixo, dum carbúnculo... Lentamente os dois passeiam pela
gare, metendo as cabeças ávidas pelas portas entreabertas; a velha trêmula e
lacrimosa, sentindo o seu coração reverdecer nessa amargurada ausência de dez
anos, durante os quais a sua oração todos os dias intercede ao Santo Cristo do
Buçaco, pelos que mourejam lá longe em terra estranha e acaso possam voltar um
dia, reconduzidos à paz do lugarejo em que nasceram. Mas todas as fisionomias
lhe são estranhas!
Na sala de
espera da terceira classe, entre bagagens e cobertores de lã, dormem aos
montes, rabuzanos que vão trabalhar para o Alentejo, os varapaus de castanho
atravessados, os tamancos ao lado, os pés descalços, e um cheiro a lobo que se
evola das sisas saragoças montanhesas. Nostalgicamente, alguns tasquinham um
pão de milho horrível, com sardinhas assadas entre as pedras.
E os mais
novos, quinze anos, dezesseis, dezoito anos, todos alegres daquela primeira
migração às sementeiras de lá baixo, esses não param, examinando tudo pelos
cantos, espantados, deslumbrados, fulvos e bonitos como bezerrinhos de mama; e
ei-los estacam diante dos relógios, dos aparelhos do telégrafo, a sala do
restaurante cheia de flores, os "chalets" de hospedagem e os pequenos
jardins dos empregados da estação... Dois ou três arranham nas bandurras fados
chorosos, melodias locais duma tristeza penetrante, em cujos balanços, gemidos,
estribilhos, se acorda o murmúrio dolente das azenhas, vozes da serra, risotas
da romagem, balidos do pulvilhal que entra no ovil, todas as indefinidas
virgindades dessa sagrada terra da Beira, núcleo de força, e ainda agora a mais
impoluta ara da família portuguesa.
Nenhum
vestígio do moço eles descobrem, e a velha resolve-se a aguardar o trem da
tarde.
— A que
horas virá? — pergunta ela para um fator que vai passando.
— Mas virá
quem?
— O meu
filho. Porque o tiozinho não sabe...
— Eu, não;
senhor. De onde vem ele?
— Vem do
Brasil, saiba o senhor.
— Trem de
Lisboa, às cinco e meia.
— É amanhã,
Jesus Maria!
— Às cinco e
meia desta tarde... desta tarde! mulher de Deus!
— Há de
perdoar. A gente é uma pobre de Cristo... Muito obrigada!
— Às cinco e
meia — diz o soldado. — Tem vossemecê d'esperar inda quatro horas.
E a pobre
velha suspira! Emaranhados, os cabelos caem-lhe ainda mais por sobre os olhos,
e dir-se-ia vai estando mais pequena, tanto a fadiga da marcha a acocora, e o
sobressalto lhe emacia aquelas suas carnes dessoradas. De roda, a paisagem de
dezembro enche-os de bruma. É um daqueles dias pardacentos, enormes, tristes,
sem horizonte, o céu muito baixo, que até os pássaros detestam, e nevoeiros,
dentro de cuja fumarada todas as formas se alargam e atenuam. Dos eucaliptos da
via escorre uma aguazinha turba e languinhenta, lama de argila e pó de carvão,
lúgubre e infame, como um símbolo do tédio dessa tarde.
Ao longe, em
cinza-escuro, num fundo de cerraceiro mais lavado, perfilam-se as colunatas do
pinhal, em gradações difusas, delicadas como um desenho a carvão sobre que
alguém tivesse sacudido um lenço de assoar. Os verdes do centeio mal aveludam a
terra com a hesitante pelugem das suas folhas transidas de geada, a vinha seca,
dormente, na hibernagem das plantas outoniças, emaranha pela terra as suas
varas lassas da vindima, meses antes; e em turbilhões funéreos, gralhas se
abatem por cima das lavouras, rolando na névoa fusca, como papéis queimados à
procura de jantar nos húmus do salão gradado de fresco, ou debandando em
espirais pró-arvoredo, quando algum homem passa, que elas apupam, diabólicas
comadres, com as suas ladainhas roucas de presságios.
Deu uma
hora. O soldado tira do bornal o pão de milho, queijo de cabra e bacalhau
cozido, numa marmita velha de folha.
— Vá de
jantar! — diz ele alegremente.
À palavra
jantar, os dorminhocos levantam a cabeça, os rapazolas vêm aos seus farnéis,
todos se apressam a sacar dos alforjes alguma bucha com que enxugar a fome que
os cocega. Longe da gare, meia dúzia tratou já de acender lume para as sopas,
um outro corre à cantina a comprar vinho... e os tamancos soam, as palavras
crepitam, cascalham os xx, e a pronúncia beira veste de graças uma língua
cortada de termos antiquados, fina e poética, que se nos afiguraria cinge a
ideia com os pitorescos estofos da montanha.
— Vá,
tiazinha! — diz o soldado.
A velha
recusa-se: não tem vontade. Ela trazia ali farnel para o seu filho... Quando
ele chegar, cearão juntos... Um rapazinho a modos encorpado, barba.nenhuma e
uma cicatriz... foi-se há dez anos!
— Em dez
anos o moço há de estar muito mudado.
Ela,
surpresa: mudado! O filho dela, mudado!
Afizera-se a
ideá-lo tal qual ele partira, de manta às costas, olhos azuis, gorro nos olhos,
os sapatos na ponta dum bordão... Vinte e três anos, solteiro: um mocetão da
altura da Cruz Alta.
Era o seu
filho! Logo ao chegar ao Brasil teve fortuna, uma tanoaria dera-lhe trabalho...
depois, o desejo do ganho levara-o para o interior, e desde então foram as
cartas rareando; era lá longe, o clima mau, muito trabalho... E em vez de
palavras de esperança, reveladores dos progressos da fortuna, eram lamentações
à mãe por todos os paquetes, pedidos de rezas para que Nosso Senhor lhe
conservasse a saúde, grandes saudades da Vacariça, tristezas...
Nenhum
daqueles homens a escutava, cada qual tasquinhando a broa de olhos baixos, o
rabo de sardinha assada à altura do faro, o navalhoz aberto nos joelhos.
O próprio
soldado mudara de feição: o seu enternecimento agora era o bacalhau no fundo da
marmita, com seu fio de azeite aperitivo, um dente de alho...
— Vai uma
golada, tiazinha?
Ela falava
sempre, por uma necessidade impulsiva de se ouvir e ter presente o filho na
memória, o seu rico filho que ia chegar dali a pouco, para ajudá-la na vida.
— Ah! Deus o traga melhor, pobre rapaz!
— E com um
taleigo de soberanos bem pesado.
— Pouco ou
muito ele trouxesse, tudo é riqueza — disse a velha — para quem não tem senão a
noite e o dia. Uma campainha elétrica retine; ela levanta-se.
— É o
comboio!
Riem os
moços todos: comboio? Isso há de ser cedo, tiazinha.
Duas horas,
três, quatro, cinco horas. Lá desce a noite, as gralhas debandaram, cada vez o
tom dos céus é mais lutuoso, e lenta, diáfana, a luz do ar já mal contorna as
formas hesitantes.
O Buçaco
sumiu-se, foram tragados na bruma os pinheirais, e a chula que os rabuzanos, depois de comer, sapateavam, também a chula
se extingue, ao som das bandurras fatigadas, último adeus do montanhês aos
casarelhos beirões que vai deixar.
Enfim as
luzes acendem-se na estação, as lanternas dos guardas avançam sobre a linha, bruxuleiam na bruma os faróis das quatro vias, e uma após outra, as cornetas
dos guarda-agulhas dão sinal dos comboios estarem à vista. Primeiro é o da
Beira, que ao longe silva entre os pinhais do Valdoeiro; seguidamente silva o
da Figueira; depois Lisboa, e por último o expresso do Porto fuzila na névoa os
seus olhos de boi, vermelho e branco.
Num instante
as duas gares atulham-se de gente, malas, bonés de viagem, sujeitos de óculos —
as portas batem, rolam carros de mão com mercadorias, e sob as luzes dos
vagões, vultos agitam-se, trocando os últimos adeuses, vozes gargalham, as
mesas dos restaurantes debruam-se de famintos — e no trasbordo das malas e das
gentes, os passageiros acotovelam-se, o plaid
ao ombro, sacos na mão, bilhetes nos chapéus...
A velha vira
chegar os carros de Lisboa, ir afrouxando o impulso da máquina, abrirem-se as
portas de repente...
Ela,
entretanto, cada vez mais pequena, azougadita, e sentindo renascer-lhe a alma
na alegria desse filho restituído aos seus braços, ela corria ao encontro duns
e de outros, confundia o seu vulto entre a gentana, sofria os tropeções dos
indiferentes, pedindo informações, chamando o filho e revisando as caras uma a
uma.
Nas
terceiras classes era uma confusão medonha de vozeios, risos, guitarras, os que
saíam, os que entravam, o homem da água, o homem dos pastéis, os revisores; e
desse filho, nem uma só feição reconhecida, nem um grado sequer, uma notícia!
Mas a sua
alegria é intraduzível, inexplicável — ele por força deve ter chegado, ele
adorava-a, deve lembrar-se então da sua pobre velha, deve ali estar, tomando à
pressa os sacos de viagem, dizendo adeus à pressa aos companheiros... e assim
doente sob a frialdade da noite, permita Deus não vá cair de cama!
— Eh, tia
Rosa!
Afirma-se no
homem que lhe pousou a mão no xale roto.
— Sou o
Clemente, vim do Brasil ontem à tarde... Eh, pobre velha, aqui me tem outra vez
nas vossas terras!
Clemente
ria, com o chapéu de coco à Zamparina, um grilhão de ricaço no colete.
— Ninguém me
espera, vou daqui dar um alegrão à minha gente.
— Mas o meu
filho? — diz ela. — Onde está o rapaz que me não vem falar?
Clemente
cala-se.
— Venha daí
comer alguma coisa.
— Onde está
ele? — pergunta a velha alvoroçada. — Que escusa de mercar comida na cantina, e
você venha também... trago-lhes aqui a ceia neste saco. E ela procura — onde se
meteu agora o diacho do rapaz?...
Clemente
hesita, e pálido, sinistro, ele atirou o chapéu mais sobre os olhos. Aquele
silêncio, a princípio a velha não o entende. Encara-o um momento, os olhos fixos,
pendente o lábio...
— Mas o meu
filho? O meu filho?
Então o
homem correu-lhe os dois braços à roda do pescoço, olha-a um instante, apenas
um instante.
— O seu
José, tia Rosa, o seu José... morreu na viagem.
Nem um grito
de espanto, um queixume, uma lágrima, nem sequer um único suspiro. Aconchega
mais o xale sobre os ombros, baixa a cabeça trêmula e gelada, e pequenina,
acocorando-se mais por entre o tumulto daquela gente alegre, ei-la a caminhar,
a cambalear como um bêbeda.
Deixa a
estação, as luzes, as árvores, entra na névoa úmida da noite, e os seus passos
deslizam sem ruído — caiu-lhe o saco do farnel da ponte abaixo, ela não sente,
ela não ouve, avança! avança!
No
Valdoeiro, já longe, ouve-se silvar a máquina da Beira. Descalça, ela caminha
naquele chão passado da umidade — é possível que o xale tenha escorregado, e a
cabeça lhe esteja descoberta — ela não sente, ela não ouve, avança! avança! Já
o trem abalou da estação, por sobre o aterro, e a terra treme, como domada sob
a correria horrisona do monstro.
Ele
aproxima-se. Veem-se os olhos da máquina luzindo laterais, como os dos peixes e
os dos grandes sáurios; e o faulhar da máquina sobre a via, e o penacho do
fumo, que a labareda doura, como uma crina de cavalo danado e formidando. Ele
aproxima-se, e a sua carreira dir-se-ia tocada duma instantânea fúria de
vingança, quando de súbito, na curva do caminho, desenrola o corpo de anelado,
feito de vagões de ferro que se chocam, fosforejam, zumbem, fumando, bramindo
num hausto de relâmpago que atravessa a noite lôbrega das matas. É neste
instante que a velha vai passando: ela não sente, ela não ouve, avança! avança!
E a máquina chama-a a si subitamente, dá-lhe um encontrão para dentro do caminho,
enovelou-a bem nas saias de viúva, e sem trepidar fá-la num bolo, passa-lhe por
cima, e continua a correr à desfilada.
Viu-se um
dos pés da mulher escrever na terra o quer que fosse, protesto, súplica,
epitáfio... E ao outro dia, quando os trabalhadores foram levar o corpo ao
cemitério, o cura da Pampilhosa recusou-se a enterrá-la em sagrado, sob o
pretexto da velha ter morrido sem confissão!
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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Este conto é da autoria de Fialho de Almeida, incluso no livro O País das Uvas.
ResponderExcluirCaro António,
ExcluirDe fato. Obrigado pela gentileza. Revemos o equívoco...
Abraços!
Este conto é da autoria de Fialho de Almeida, incluso no livro O País das Uvas.
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