6/16/2019

O Encontro do "Divino" (Conto), de Juvenal Tavares



O Encontro do "Divino"

Uma das festas mais pitorescas do interior do Pará, e aquela que é mais frequente nas regiões banhadas pelas azuladas ondas do formoso Tocantins, é o encontro de duas coroas, que se acham às esmolas, como lá dizem.

Cumpre-me, porém, antes de dar a descrição deste divertimento, explicar ao leitor rapidamente, o que são essas coroas e as espécies dessas e suas categorias.

Hei de escrever também, em crônicas sucessivas, as várias festas que o povo do interior costuma fazer durante o ano, tendo por motivo uma coroa. Essas festas, ordinariamente, denominam-se: A recepção, O levantamento do mastro, O domingo de páscoa, A quinta-feira da Ascensão, O domingo dos foliões, O dia da festa, O encontro, etc., etc.

Cada lugarejo, quase sempre, tem uma coroa. Estas pequenas coroas chamam-se geralmente Trindades.

E assim diz-se: a Trindade das Trincheiras, a Trindade dos Inocentes, a Trindade do Tapaucu, etc., etc.

O Divino, porém, o grande e onipotente Império Real, o façanhudo milagreiro que tem feito desaparecer ilhas em menos de cinco minutos, só porque se lhe recusou pernoitarem uma casa qualquer; o temido e estrondosamente festejado Império Real, é representado por uma enorme coroa de prata lavrada, cravejada de pedras preciosas e cujos cinco arcos elegantemente recurvados, são rodeados de lindas pombas e bochechudos anjinhos, tudo de ouro maciço.

No cimo da coroa, no ponto em que se enfeixam estes arcos pelas suas extremidades, acha-se um globo de bom ouro, a que o povo chama o mundo do Divino, e sobre este mundo, com as asas abertas, uma outra pomba, também de ouro, maior do que todas as suas companheiras. Não quero falar aqui dos estupendos e maravilhosos milagres operados pelo Divino; isso fica para outra ocasião e quem sabe se eu poderei, só numa crônica. narrar todas as façanhas do famigerado santo?

Nossa Senhora de Nazaré... ora, qual!... Nossa Senhora de Nazaré fica-lhe a perder de vista... uma légua de distância!...

O mais glorioso, porém, e também o mais temido de todos os Divinos, é o Império Real que se festeja; com pompas e esplendores indescritíveis, na heroica e invicta cidade viçosa de Santa Cruz de Cametá!

A sua aproximação é anunciada com o estalar de altaneiros foguetes, o reboar de rouqueiras e tiros de espingardas...

Galinhas e capões são agarrados no terreiro; o garrote e a vitelinha são laçados no campo; o capado é amarrado no chiqueiro...

Ovos para os foliões, frangos para o mestre-sala, flores para o Divino...

O Divino mexe todos os cantos, desde a fronteira de Goiás até ao centro da ilha de Marajó.

Onde chega, leva a alegria e o consolo; por onde passa, deixa a limpa... limpa nos ninhos, nos currais e nos jardins!...

O Divino é rico, muito rico, imensamente rico!

Todos os anos, após a missa cantada a grande instrumental e o segundo sermão do eloquente pregador no dia da festa, tira-se o pelouro por meio do qual a sorte designa o ente feliz que tem de ser Imperador durante o ano seguinte.

Ser imperador do Divino é uma fortuna; mas uma incomparável fortuna!

Mas cheguemos ao nosso fim, isto é ao assunto desta crônica: Um encontro do Divino.

Ora, pelas oito horas de uma bela manhã, aproximava-se das águas onde navegava a festiva canoa do Divino, uma pequena e modesta coroa de folha de Flandres: a Santíssima Trindade dos Turemas.

Como dois navios de guerra inimigos, que se avistam à distancia de um tiro de canhão, os foliões das duas canoas, qual oficiais adestrados e impávidos, prepararam-se para o combate que ia ter logar.

Nas mãos do folião porta-bandeira, na canoa do Divino, tremulava galhardamente uma formosa e grande bandeira de seda encarnada, tendo no centro uma pomba branca.

Na popa da canoa, bafejada pelas brisas matutinas flutuava uma bandeira branca mostrando uma coroa sustentada por dois anjos entre flocos de nuvens azuis.

Alegres, as caixas, de parte a parte, anunciavam que o torneio estava travado.

As bandeiras, recortando o ar em forma de cruz, cortejavam-se mutuamente.

As duas canoas, impelidas por possantes remeiros, singravam as águas.

Fendiam o espaço os foguetes.

Os foliões concertavam a garganta.

Havia grande reboliço em terra, na casa que ia gozar a dita suprema de ser o ponto do encontro.

Começou a meia-lua. A meia-lua é, sem mais nem menos, uma espécie de regata.

A canoa da Trindadezinha, pequena e maneira, não tardou em vencer a do Divino, que era um grande escaler de toldo verde, tripulado por mais de vinte promesseiros.

Desembarcaram todos; e, uma vez em terra, depois de muitas goladas, começou o desafio entre os foliões.

Este certame é que é decisivo.

Depende a vitória do mestre-caixa.

O mestre-caixa mais poeta é sempre o vencedor.

Ora aquele que dirigia as folias da Trindadezinha era um famoso improvisador.

Nessa mesma manhã, antes do encontro, ele já havia feito proezas; parecia que estava com a bossa afinada.

Numa casa, onde receberam a coroa num oratório que só tinha uma imagem da Virgem Mãe, ele atacou esta despedida :

 Despedida, despedida,
Despedida em boa hora;
Já se vai Santa Trindade,
Fiquem com a Nossa Senhora.

Em outra casa, onde colocaram a coroa por falta de oratório, numa tábua pregada à parede, e as moças, conforme é seu costume no interior, esconderam-se, espiando pelas gretas da parede, ele arrumou este brejeiro improviso :

Não canto para ti, parede,
Nem tu tens merecimento;
Canto para aquela menina
Que está-me olhando de dentro.

Pois bem: no desafio, que durou mais de duas horas, os foliões do Divino deram-se por vencidos e submeteram-se, com armas e bagagens ao famigerado cantador.

Este, radiante de glória, cantou o seu triunfo em um último improviso, que foi como o hino de vitória :

Encontraram-se as pombinhas
Com todos seus apetrechos;
A nossa "Trindadezinha"
Botou o Império no queixo.


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Juvenal Tavares (A Vida na Roça, 1893)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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