O Emprazado
(Ano de 1312)
(Ano de 1312)
O exército
castelhano capitaneado pelo infante D. Pedro estava cercando os mouros de
Alcaudete. Em Martos, povoação pouco distante, alojara-se com os seus
cavaleiros el-rei D. Fernando IV.
Este
príncipe contava apenas vinte e cinco anos de idade, e alguns meses de reinado.
Os seus costumes eram devassos: as noites passava-as em banquetes; os dias em
escutar os enredos dos cortesãos; colérico em demasia, a sua sanha e vingança
eram sempre terríveis. Pouco tinha que esperar a Espanha do seu reinado, que
prometia ser longo.
Junto a
Martos havia um rochedo altíssimo pendurado sobre um vale profundo: a vista se
turbava a quem quer que do alto olhava para o abismo que jazia aos seus pés.
Dois homens
vestidos de pelotes caminhavam entre saiões e alvazis para o píncaro do
rochedo: desordenadas lhes pendiam as capas curtas dos ombros, e, sem toucas na
cabeça, o vento lhes agitava os cabelos desgrenhados. Levavam as mãos soltas, e
ninguém diria que papel faziam neste drama, se não fosse a desordem dos seus
vestidos, as punhadas que davam no rosto, e os movimentos da aflição que os
agitava.
Eram dois
condenados: aquela a sua hora extrema.
Quando a
Corte estava em Palença saía certo dia do palácio real um cavaleiro da família
dos Benavides dois vultos aproximaram-se dele e o apunhalaram-no: caiu o
cavaleiro moribundo, e expirou sem conhecer os seus assassinos; também ninguém
mais os conheceu.
O furor de
el-rei, que amava este cavaleiro, subiu ao maior auge: as masmorras
atulharam-se de acusados; mas nenhuns deles pareciam serem os assassinos.
Contudo a
vingança real precisava de ser satisfeita: juízes corruptos fizeram recair a
culpa sobre dois cavaleiros, os irmãos Carvajales: e condenaram-nos à morte.
— Morram por
elo — disse el-rei transportado de alegria, quando lhe levaram a confirmar a
sentença: “do alto do rochedo de Martos sejam precipitados no fundo do vale:
que os corvos pastem um dia carniça de cavaleiros.”
Era pois
aquele dia o do suplício.
Cobertos de
armas luzentes, encostados às lanças, e montados em cavalos acobertados, um
basto esquadrão de cavaleiros, ao lado do caminho que dava para o rochedo
fatal, aguardavam a passagem dos dois condenados. No meio daqueles elmos
lampejantes um havia adornado com uma coroa: o cavaleiro cuja cabeça ele
resguardava trazia vestida uma cota toda bordada com as armas de Castela. Era o
jovem D. Fernando, que, com a viseira levantada, ria e falava com os nobres que
lhe estavam aos lados.
Já se vinha
aproximando o cortejo dos justiçados. Adiante um pregoeiro dizia em voz alta:
— Justiça
que manda fazer el-rei dos dois irmãos, Pedro e João Carvajal, por terem
atraiçoadamente assassinado o muito nobre cavaleiro Benavides!
— Mentira,
mentira! — clamavam os dois desgraçados. — Aleive infernal, as nossas mãos
estão inocentes.
E aquele
préstito de morte chegava ao sítio em que el-rei o estava aguardando.
Aí, os dois
irmãos Carvajales, rompendo por entre os esbirros, foram cair em joelhos aos
pés do ginete de D. Fernando de Castela.
— Salva-nos,
oh rei, salva-nos; porque não somos culpados. Prontos estamos a passar pelas
provas do fogo e da água: prontos a levantar na estacada a luva daqueles que
nos chamam traidores; porém morrer como o mais vil servo; morrer coberto de
infâmia, nós que sonhávamos a glória dos combates, nós que contávamos cercear
tantas cabeças de mouros! Rei, salva-nos! porque esta morte é horrível.
El-rei os
escutou calado: e olhando para os saiões e alvazis, lhes disse com ar torvo:
— Que
esperais vós outros? Levai os assassinos!
Então os
dois irmãos, como movidos por uma só vontade, se ergueram em pé: os seus
rostos, até aí aflitos e cobertos de lágrimas, pareceram asserenar-se; mas esta
serenidade era a da desesperação. Fitaram os olhos no céu, e este olhar era
tremendo; porque nele havia a expressão da confiança em Deus, e da maldição que
a inocência sabe arrancar do Céu contra os tiranos da Terra. A postura dos dois
cavaleiros era naquele momento sublime.
— Tu não
queres perdoar-nos? — disse por fim Pedro de Carvajal, dirigindo-se a el-rei.
— Não,
traidor assassino!
— Assassino
és tu, malvado, que nos condenas sem justiça; que cobres de luto e de infâmia a
nossa nobre família. Porém não folgues na tua maldade, mesquinho rei da terra;
porque há um rei nos céus. Lá nós e tu seremos julgados. Comparece aí de hoje a
trinta dias. Eu to ordeno em nome do Supremo Juiz. Rei emprazado, que não te
esqueça este dia!
Dito isto,
os dois irmãos caminharam com passos seguros para a extremidade do alto
rochedo; e dentro em breve os seus membros jaziam dispersos no fundo do vale; e
os corvos pairavam e esvoaçavam ao redor deles.
El-rei tinha
ficado silencioso e carregado: ninguém ousava falar-lhe.
Ao longe
vinha correndo um cavaleiro, pela estrada de Alcaudete. Trazia brancas de pó as
armas. Chegando perto de el-rei, sem se apear, lhe gritou:
— Boas
novas, senhor! Alcaudete já não pode resistir: os mouros mal se defendem; vinde
com os vossos cavaleiros acabar este feito: seja vossa a glória do seu
vencimento.
E na manhã
seguinte marchava D. Fernando para Alcaudete, no meio dos seus cavaleiros; mas
sempre triste e carregado.
Daí a alguns
dias ele se achava em Jaén. Chegando ao campo do infante seu irmão, adoecera
gravemente; e por isso, deixando aí todos os seus, viera aforrado a Jaén, onde
uma febre invencível o retinha no leito das dores.
Alcaudete
brevemente caiu nas mãos dos castelhanos: os mouros foram exterminados;
saldou-se mais uma dívida do oitavo século. Esta nova chegou a Jaén. Levada a
el-rei, as únicas palavras que se lhe ouviram foram:
— Que me
importa Alcaudete? Que me importa Castela?
Eram 7 de
Setembro do ano do Senhor de 1312.
Pela sesta
el-rei parecia dormitar. Havia trinta dias que à mesma hora um bando de corvos
pairava e esvoaçava ao redor dos membros despedaçados de dois homens, que
tinham sido precipitados do alto de um rochedo, o qual se levanta à entrada da
pequena povoação de Martos.
A esta mesma
hora, em Jaén, soava na câmara em que D. Fernando jazia um som rouco de
estertor; e este som surdia dentre as cortinas do leito real.
O som foi
diminuindo, até acabar num silêncio profundo.
No outro dia
umas andas, seguidas de homens a cavalo, cobertos de burel branco, conduziam
para Córdova o cadáver de el-rei. O seu jazigo devia ser em Toledo ou em
Sevilha; mas foi impossível levá-lo tão longe: a podridão e os vermes começavam
a despedaçar-lhe os membros, com a mesma rapidez com que se tinham despedaçado
os dos dois irmãos Carvajales no fundo do vale contíguo à povoação de Martos.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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