O embarcadiço
CAPÍTULO 1
Quem tiver
vivido algum tempo à beira-mar, — deve lembrar-se de uns tipos, que, de manhã
cedo e sobretudo ao fim da tarde, são certos na praia, sós ou em grupos.
Antes de ir
mais longe, seja-me permitido dizer duas palavras acerca do termo tipos, que
empreguei.
Hoje quem
diz tipo — diz tudo e... não diz
nada.
De tempos a
tempos, dá-se com certas expressões o mesmo que com certas músicas, que, pelo seu
mimo ou incontestável merecimento, se tornam populares.
Estas...
tocam-nas as bandas dos regimentos; estropiam-nas as meninas no piano; moem-nas
os realejos; levam-nas os cegos consigo pelos caminhos da cidade às aldeias;
assobiam-nas os garotos; trauteia-as, bem ou mal, toda a gente; até que, por
uma espécie de reação, caem no desagrado de todos e fogem espavoridas mal soam
as primeiras notas da moda ou cantiga que vem substituí-las, para cair mais
tarde no mesmo esquecimento.
Da mesma
maneira, de longe a longe, sai dos bancos das escolas ou da mesa de um
botequim, um termo que tinha, no momento em que foi empregado, tal ou qual
propriedade e, por conseguinte, razão de ser; passa de boca em boca; fere-nos o
ouvido dúzias de vezes ao dia, a pretexto de tudo, tolamente, até que
desaparece, depois de estafado, cedendo a vez a outro tão bom como ele.
Hoje o termo
da moda é a palavra — tipo.
Tipo é — tudo!
Tipo é Fulano, é pronome, é o leitor,
sou eu, é... tudo, já disse.
Desculpem-me
este desabafo. Eu precisava de protestar contra o abuso daquela palavra.
O leitor
deve, repito, ter visto aqueles tipos, e tem decerto notado que há neles, como
nos padres e nos militares, um não sei quê que os distingue do comum dos
homens, que os faz classificar por um nome genérico, e, com a sua natural
perspicácia, já adivinhou que lhe estou a falar dos marítimos ou embarcadiços, como geralmente se diz.
Descrever um
— é descrevê-los a todos.
Rosto
queimado pelo sol de todas as latitudes — olhos cerrados por uma espécie de
precaução, que lhes faz poupar toda a sua faculdade visual para as grandes
ocasiões — feições duras mas não repelentes — na testa um labirinto de rugas,
cada uma das quais tem a sua história desconhecida.
A primeira...
traçou-a o último beijo dado na esposa em vésperas de ser mãe, e que o não terá
a seu lado para a animar, porque o dever o obriga a partir; outra representa
uma noite de temporal, que rendeu uma vela ao Senhor de Matosinhos; a terceira
abriu-lha na fronte o terrível grito "fogo a bordo", quando centos de
vidas estavam confiadas ao seu cuidado; a quarta...
Basta! cada
uma dessas rugas, repito, tem a sua história desconhecida.
Olhemos bem
para eles... É o mesmo chapéu, embreado no Inverno, de palha no Verão; o mesmo
casaco de pano piloto forrado de baeta; a mesma calça, que nunca passa abaixo
do tornozelo para se não molhar quando se anda a lavar o convés.
Estudemos-lhes
agora os modos. Por que será que em qualquer ponto da praia que escolham para
passear, traçam maquinalmente duas linhas imaginárias, entre as quais passeiam,
não as ultrapassando jamais?
Quem medir o
espaço limitado por essas — duas linhas, achará o comprimento regular do convés
de qualquer navio.
Pois pensam
que esses homens estão a passear em terra?!...
Como se
enganam!... Em espírito... estão a bordo!
Aproximemo-nos
e escutemo-los...
Não notam a
concisão das perguntas e o monossilábico das respostas?...
É o costume
de dar ordens; se, para mandar ferrar uma vela, algum deles se lembrasse de fazer
um discurso, quando este fosse em meio, há muito que a vela iria pelos ares.
Vejamos
agora o moral, uma vez que lhes analisamos o físico...
Poucas
ideias, mas essas bem claras — indomável energia — crenças firmes — muito senso
prático e nenhuma instrução — uma filosofia especial para o grande problema de
viver ou morrer — e, em geral, simplicidade infantil e infinita bondade,
ocultas debaixo de uma capa de rudeza, que não engana quem os observar
atentamente.
Como julgo
que já disse, quem descreve um, descreve-os a todos; fico, portanto, dispensado
de pintar o Sr. Matos, ex-capitão de longo curso, velho marinheiro, alma
anfíbia fixa à terra pelo amor que tem à sua única filha, à sua Carolina, e
ligada ao mar pelo passado, pela recordação da vida ativa, pelos devaneios do
quarto da madrugada, pelo próprio perigo, quem sabe!
Do que eu,
porém, me não julgo dispensado é de dizer quatro coisas a respeito da vida
dele.
Filho de
marinheiro, quando o pai, no dia em que ele completou treze anos, lhe perguntou
o modo de vida que queria abraçar, arregalou os olhos como se não tivesse
compreendido a pergunta, e, ao ouvi-la repetir, olhou para ele meio receoso de
que o autor dos seus dias não estivesse em seu perfeito juízo.
E o caso é
que tinha razão. Pois havia outra vida que não fosse a do mar, e outro modo de
a levar que não fosse embarcado?!...
E, além
disso, não estava ele ali, ao pé da porta, o mar; essa ama, cuja voz ouvia
quando o embalavam no berço; esse companheiro dos seus brinquedos; essa providência,
que fornecia à família o pão de cada dia; esse tentador, que lhe prometia
aventuras; esse amigo, que se deixava rasgar quando ele se lembrava de ir
arrancar-lhe a concha que luzia, ou a alga que vegetava em seu seio, e que,
longe de punir o roubo, lhe oferecia o dorso para o reconduzir à praia?
É claro que
a pergunta não tinha senso comum.
À vista
disto, seria supérfluo dizer que embarcou como moço aos catorze anos e que, até
vir a ser capitão, sofreu quanto se costuma sofrer antes de chegar a tais
alturas.
No ano
seguinte àquele em que houve quem lhe confiasse o comando de um navio, casou
por amor com uma jovem, filha de um proprietário, que jurara mais de um milhão
de vezes que antes a queria ver morta do que entregá-la a um embarcadiço, e que teve por fim de
sujeitar-se à velha e sempre verdadeira máxima: "Casamento e mortalha no
Céu se talha", máxima em que a gramática é sacrificada à rima.
Quando
começa a nossa história, havia dois anos que Deus lhe levara a esposa, e, desde
então, para não deixar só a única filha que tinha, havia renunciado à vida do
mar.
Ora é
chegada a ocasião de travarmos mais íntimas relações com o nosso honrado
capitão.
Aproveitemos
o tempo, enquanto ele não entra, para lhe analisarmos a sala de visitas.
Graças à
situação da casa, a sala recebe a luz por duas rasgadas janelas — de peitoril,
de onde se avista o oceano.
Em noite
amena de Estio, quando a Lua brilha no céu, recamado de estrelas, e o acre
perfume da maresia satura, por assim dizer, a atmosfera, devem ser horas de
vago e dulcíssimo prazer as passadas a uma dessas janelas, quando o único som
que se ouve é o das vagas, cuja vista nos guia insensivelmente a alma para um
mundo de ideias vastas e elevadas.
Haverá aí
quem não tenha passado uma hora dessas tão formosas noites, embevecido na
contemplação do mar e do céu, essas, a meu ver, mais grandiosas manifestações
da Onipotência Divina, sem sentir que uma espécie de véu de melancolia lhe vem
envolver o espírito, sem contudo lho entenebrecer?
Parece que a
vista do mar faz, nesse instante, surgir desse outro oceano — o passado — todas,
as formosas visões que no-lo fazem tão querido.
As cenas da
vida passam-nos, então, diante dos olhos da alma, arrancando-nos agora uma
lágrima de saudade, logo um suspiro de dor, já desenhando-nos de novo na fronte
uma ruga, que a mão do tempo desfizera, para em seguida nos escaldar as faces
com o fogo do pejo.
E o nobre e
o vil, o prazer e a dor, a ilusão e o desengano, todas as cores, enfim, que
misturamos na palheta da alma e com que pintamos a existência, veem-se ali,
como planos secundários ao fundo da tela, a contrastar no vigor e beleza com a
aridez e completa ausência de cunho, que se nota no plano principal — do último
quadro do homem — o presente!
É porque o
artista, ao contornar o presente, já não tem a ajudá-lo a inesgotável
inspiração da juventude!
Apesar do
encanto que descobrimos nessas janelas, raras vezes se vê a qualquer delas o
vulto do capitão.
O seu lugar
predileto na sala, ei-lo ali indicado por aquela cadeira de bambu, encostada à
mesa que ocupa o centro.
E não
adivinham porquê? É porque dali vê o mar sem ver a praia, e o pobre homem,
graças aos diferentes objetos que o rodeiam, chega às vezes a imaginar-se a
bordo, na câmara do seu navio!
Esses momentos
de ilusão, em que o espírito lhe foge da terra firme para o elemento querido,
são hoje os mais felizes para ele.
Do lado da
sala, fronteiro às janelas, vê-se um modesto sofá de palhinha, tendo aos pés o
tapete de rigor, e a cada lado três cadeiras.
Por cima do
sofá pende uma gravura representando a morte de Nelson, entre dois quadros
bordados a canotilho pela filha do dono da casa. Um deles quer ser S. Joaquim,
patrono do capitão; no outro, depois de aturada atenção, distingue-se um pintassilgo
de todas as cores, pousado sobre um ramo cor de canela e verde, mostrando o
bico aberto a uma borboleta preta com pintas brancas.
Lê-se em
ambos o seguinte dístico:
CAROLINA MATOS
1854
1854
No espaço de
parede, que divide as duas janelas, vê-se: em cima, um caixilho de pau-preto
com os cantos ornados por placas de metal amarelo, emoldurando um quadro em que
se notam, pintados com as cores das diferentes nacionalidades, os pavilhões,
sinais e galhardetes pertencentes a todos os povos do globo; logo por baixo, um
mapa-múndi com o verniz estalado em diferentes pontos, e contra o qual encostam
os bicos um tucano e um araçari empalhados, que pousam sobre uma pequena mesa
de jogo, condenada a não sair do seu lugar por absoluta falta de equilíbrio.
Entre esses
dois pássaros move-se a pêndula de um velho relógio de jaspe com colunatas de
cristal. Das duas paredes laterais pendem — uma vista da cidade do Rio de
Janeiro e outra da cidade da Baía de São Salvador.
Sobre a mesa
do centro estão colocados, com rigorosa simetria, dois magníficos ramos de
coral e cerca de duas dúzias de conchas de todos os feitios e tamanhos.
Juntem-se a
isto as cadeiras necessárias, e está descrita a sala, cujas paredes bem caiadas
e bem lavado soalho dizem claramente que é a limpeza o luxo principal daquela
vivenda.
E não me ia
esquecendo o adorno principal?!...
Suspensa por
quatro cordões de seda vermelha, presos a um gancho, cravado no centro do teto,
veleira barca fende os ares, com galhardia igual àquela com que sulcava os
mares o "Argonauta" em ponto grande, que ela em ponto pequeno
representa.
É tempo,
porém, de fazermos entrar em cena os atores.
Com aspecto
carrancudo se nos apresenta o Sr. Matos.
A violência
com que abriu a porta da sala — o gesto de impaciência, que não soube ou não
quis reprimir, quando, aproximando-se da janela, olhou para a praia — o
arremesso com que se sentou na sua cadeira favorita — a espécie de desabafo que
parecia causar-lhe o estalar das articulações dos dedos, tudo isso denunciava
tal ou qual descontentamento.
Haveria
cinco minutos que ali estava, quando a filha entrou.
Era uma
formosa menina de dezoito anos, de estatura mais que mediana, com a tez
levemente tostada pelas brisas do mar, lábios rosados, dentes alvíssimos, cabelo
negro e um par destes olhos cheios de vida, a que Deus concede longas pestanas,
só com o fim de lhes amortecer um pouco o fulgor.
Na ocasião
em que a estamos analisando, há no olhar dela um misto de temor e de enleio,
que lhe dá à fisionomia um certo ar de ansiedade.
Se não foi
direita à janela quando entrou, lançou, como o pai, intencionalmente as vistas
para a praia.
Em vez do
descontentamento que este sentira, veio refletir-se-lhe no rosto a expressão de
íntimo prazer, logo substituído pelo rubor do pejo, ao ver que ele a estava
observando atentamente.
Parece que o
nosso honrado capitão não achou nas rápidas mudanças, que se iam operando no
rosto da filha, motivo para grandes regozijos.
As rugas da
testa, por efeito de violenta contração, transformaram-se-lhe em profundos
sulcos, as mãos desuniram-se-lhe e foram apoiar-se vigorosamente nos braços da
cadeira.
Em seguida,
erguendo-se, meteu a mão esquerda no bolso da calça, enquanto que a direita torcia
distraidamente a espessa barba grisalha, e começou a passear silencioso.
Na atitude
composta e modesta da filha, que se sentara a abainhar um lenço, no vinco
traçado entre as sobrancelhas, nos lábios colados um ao outro e, sobretudo, no
afã com que trabalhava, lia-se o mal-estar de quem se prepara para resistir a
uma agressão.
A situação,
porém, começava a tornar-se intolerável para ambos.
O pai estava
a tremer que, não podendo conter-se por mais tempo, se lhe expandisse a cólera
numa daquelas rajadas com que dominava o sussurro do mar e fazia tremer a bordo
uma tripulação de homens afeitos a lutar com o perigo; a filha, pelo contrário,
conhecia, pelo arfar do seio e pelo temor de que se ia tomando, que a sua
coragem estava por um fio e que, mau grado seu, as lágrimas, essa força e
fraqueza da mulher, iam rebentar-lhe dos olhos.
O capitão
pareceu ter, por fim, tomado uma resolução, porque, acercando-se da janela e
contemplando a praia, voltou-se para a filha e perguntou com voz afetadamente
serena:
— Quem diabo
é aquele guarda-costas, que há meses não sai aqui destas águas?... Vê lá se o
conheces, ó Carolina...
O nosso
capitão, força é confessá-lo, era o mais inocente dos capitães.
Se ele
queria fazer-se de novas, para que mudava de caminho todas as vezes que
descobria atrás de si, quando saía com a filha, o guarda-costas, que, como ele
de si para si dizia, lhe andava sempre na esteira?...
Para que
terminava de repente o passeio, e voltava para casa?...
Por que
tratava ultimamente, de vez em quando, a filha por senhora, em lugar de a tratar por tu?...
Por que
sorria com irônica amargura, quando ela lhe fazia alguma carícia?
E,
sobretudo, por que tinha ele despedido na véspera a criada, depois de lhe ter
quase arrancado uma carta que ela trazia à filha, não consentindo que lhe
dissesse adeus, antes de ir embora?...
Ó inocente
capitão! se tu fazias todas essas coisas, para que te fazias de novas?
Pois não era
melhor falar francamente com a rapariga?!...
Pois não
pensaste que o primeiro cuidado da criada foi ir contar o acontecido ao tal
guarda-costas?!...
Valha-te
Deus, capitão!
Carolina,
vendo-se assim interpelada, fez-se vermelha como uma romã e balbuciou um destes
"não sei..."que nos vêm aos lábios quando não queremos dizer o que
sabemos.
— Não sabes?!...
— continuou o Sr. Matos. Pois se tu nem sequer te deste ao trabalho de ver quem
é, como hás de saber se o conheces ou não?... Olha bem... É aquele mandrião que
está sentado, acolá, naquela pedra... Vê lá se o conheces...
A pobre
rapariga, como se costuma dizer, já não sabia de que freguesia era.
O sangue
tingia-lhe as faces, a garganta estreitava-se-lhe, até que as lágrimas
irromperam por fim, apesar dos esforços que fazia para as reter.
O capitão,
não recebendo resposta, fingiu que lhe não via o pranto, dirigiu-se para a
porta da sala e, abrindo-a, acrescentou antes de sair:
— Bem... Uma
vez que o não conheces, vou perguntar-lho a ele.
E saiu.
Carolina,
que conhecia o gênio irascível do velho, correu à janela e fez sinal ao tal mandrião para que se ausentasse.
No mesmo
instante em que o Sr. Matos chegava à porta da rua para a abrir, alguém batia
da parte de fora.
A chave
girou na fechadura, e a jovem ouviu com inexplicável prazer a voz do pai, que
dizia: — És tu, doutor!... Entra.
Mal sabia o
velho doutor que um coração de dezoito anos lhe tributava, naquele momento,
sentida gratidão!
CAPÍTULO 2
O leitor
está farto de saber que anda aqui história de amores, mal apreciados pelo nosso
herói.
Efetivamente
— anda.
Como estes
amores começaram, não lho sei eu dizer, porque a própria Carolina já, por mais
de uma vez, se tem consultado a tal respeito e não pode explicá-lo.
Há mais!...
Se havia rapaz com quem ela embirrasse, antes — de conhecer que o amava, era
aquele, o seu Eduardo!
Embirrava,
sim; não o podia ver!...
Ora,
expliquem lá isto!
E não era
porque ele fosse feio...
Valha-nos
Deus, não era; e a prova é que hoje, que ela o ama, bem vê que não há rapaz
mais bonito do que ele.
Não — sabe;
ela não sabe dizer porque era; mas não gostava dele!
Daqui para diante
é que a memória lhe falha; só se lembra, que, uma noite em casa de uma prima
dela, casada, e por ocasião de um batizado, dançara com ele quatro vezes — ainda
hoje a censuram as velhas! — e depois, no dia seguinte, que era um sábado, o
vira na praia, e o tornara a ver todos os dias à mesma hora, até que, no
domingo adiante, passara a tarde a chorar no seu quarto, por ele não ter
aparecido, e foi então que descobriu que já não antipatizava com ele.
Agora, duas
palavras a respeito de Eduardo.
o leitor
queria, talvez, que eu lhe fizesse do rapaz um artista distinto, um médico
hábil, um advogado talentoso, ou, finalmente, um poeta inspirado...
Reconheço
que o meu Eduardo seria mais interessante se fosse qualquer dessas coisas;
tornaria até menos monótona esta narração, se pudesse apresentá-lo como o
leitor deseja, mas... não é possível.
Eduardo era...
o que não podia deixar de ser, tendo nascido à beira-mar; era embarcadiço como
todos os seus patrícios, e no número dos mais felizes se devia ele contar, por
ser capitão de navio aos vinte oito anos.
O leitor, se
se quiser dar ao trabalho de pensar, há de achar naturalíssimo que ele tivesse
abraçado a vida marítima, porque nas pequenas povoações da beira-mar, onde
vegetam — sabe Deus como! — um padre, um facultativo, um boticário-quando há
botica!-um tendeiro, que acumula as funções de diretor do correio, e um
mestre-escola, é impossível a concorrência, e as vistas, por conseguinte,
forçadas a desviar-se da terra, voltam-se para o infinito dos mares e pedem-lhe
o trabalho.
Eduardo
ficara órfão de pai aos dez anos. Graças à previdência paterna, pôde educá-lo
sem sacrifício a santa da mãe, cuja alma tinha ido juntar-se, anos depois, à do
marido, consolada pela certeza de deixar na terra um homem de bem e capaz de
tornar ainda mais respeitável o nome limpo — e estimada, que herdara de seu
pai.
O velho
capitão sabia tudo isto e, mais do que uma vez, fizera a devida justiça ao seu
jovem colega; infelizmente este lembrou-se de se lhe namorar da filha, e o
velho começou a vê-lo com maus olhos, a ponto de fingir que o não conhecia,
como há pouco vimos.
Eduardo
adoecera durante a última viagem, e as prescrições do facultativo haviam-no
obrigado a deixar partir o navio de seu comando confiado a outrem.
Aí tem o
leitor a razão porque ele estava ali, feito mandrião, sentado na pedra da
praia.
CAPÍTULO 3
— És tu,
doutor... Entra.
Isto disse o
Sr. Matos, quando, ao abrir a porta, se achou cara a cara com a pessoa que
vinha visitá-lo.
— Tu ias
sair? — atalhou o visitante.
— Ia... mas
já não saio — respondeu distraidamente o capitão, seguindo com os olhos o nosso
Eduardo, que se ia afastando devagar.
— Que diabo
tens tu?... Tu estás doente? — perguntou com sincero interesse o doutor,
estendendo instintivamente a mão para lhe tomar o pulso.
O capitão,
ouvindo a pergunta, fez um esforço, desenrugou a fronte e retorquiu com
amigável ironia:
— Sossega,
que me não matas tão cedo. — Tu para cá virás... — redarguiu, rindo, o velho
facultativo.
Não havia
amizade mais leal do que a destes dois homens, que, educados juntos quando
crianças, se tinham conservado fiéis um ao outro, apesar das longas ausências,
da diversidade de temperamentos e desigualdade de instrução.
As tardes,
quem fosse a casa de qualquer deles e o não encontrasse, podia ir procurá-lo a
casa do outro, com a certeza de os achar reunidos.
A conversa
era sempre um duelo de remoques, que tanto faziam rir o agressor como o
agredido.
— Entras, ou
não entras? — insistiu o capitão.
— Se te fosse
isso indiferente — respondeu o doutor — íamos dar um passeio, e, de caminho,
conversávamos, pois tenho assunto de importância a comunicar-te.
— Também eu
tenho que te dizer... — replicou o marítimo, enrugando de novo a testa.Trago
aqui — continuou ele, pondo a mão sobre o coração-coisa que me incomoda, e em
que não tenho querido falar-te... Vamos lá... vamos passear!...
O doutor
cravou no rosto do amigo os olhos, que, nesse instante, traíam tanta malícia
como inteligência, e repetiu: "Vamos passear."
Foram os
dois andando algum tempo em silêncio.
A testa do
embarcadiço cada vez se anuviava mais, e nos olhares, que de tempos a tempos
lhe deitava o doutor, redobrava a malícia.
O capitão
por fim, depois de ter feito estalar os dedos duas ou três vezes, disse, sem
olhar para o amigo:
— A Carolina
tem um namoro...
— E então?...
— perguntou o doutor sossegadamente.
— E então — retorquiu
o outro, ferido pela aparente indiferença do amigo. — E então... não quero!
— Não queres
o quê?!... — replicou o médico com afetado espanto.
— Não quero...
não quero que ela namore!... — respondeu o capitão em tom desabrido.
— Ó Matos!
diz-me uma coisa... Tu não terás pena de ser assim? — perguntou o doutor com cômica
seriedade. — Não queres que a rapariga namore — continuou ele, atalhando a
resposta do amigo. — Que diabo queres tu que ela faça aos dezoito anos?!...
Aposto que — a queres para freira?
— Não sei
para que a quero! — vociferou o embarcadiço tão desabridamente, que o doutor
lançou os olhos em volta, receoso de que alguém os pudesse ouvir. — Não quero
que lhe chamem namoradeira... Aí tens!... — prosseguiu ele.
O doutor
compreendeu a necessidade de não atacar de frente aquela enérgica natureza e,
depois de dar alguns passos sem dizer palavra, reatou o diálogo:
— É justo — disse
ele. — Compreendo a tua susceptibilidade, mas... Tu sabes que sou teu amigo?...
— Sei — respondeu
o capitão.
— E sabes
que talvez seja ainda mais amigo da pequena do que de ti — continuou o doutor. —
Não sei, mas... talvez sejas — replicou o outro, comovido.
— Então hás
de confessar que teria tanto desgosto como tu, se um dia a tivessem na mesma
conta em que são tidas muitas outras por aí... Confessas... Bem!... Mas...
nota, meu velho. — continuou o doutor-nota... que uma coisa é namorar por
namorar, e outra coisa é dar atenção a um homem que se ama deveras, e em quem
se reconhecem as condições necessárias para fazer a felicidade de uma mulher...
É verdade... — atalhou o doutor. — Tu ainda me não disseste quem é o rapaz...
— É o
Eduardo, da "Veloz"— respondeu o capitão, juntando ao nome do
namorado o nome do navio.
— E tu que
tens que dizer ao Eduardo?... — perguntou o doutor, com pronunciado assombro.
— Que não
quero... — redarguiu o velho marítimo, — com manifesta teimosia.
— O rapaz é
honrado... é trabalhador... tem amigos... não se pode chamar pobre... foi bom
filho... Que mais queres tu, ó Matos?!... — retorquiu o doutor com modo
impaciente.
— E que te
importa a ti o rapaz?... Para que estás tu a tomar as dores por ele?... — replicou
o capitão encolerizado.
— O que me
importa?!... Importa-me muito!... Sempre pensei que terias mais amizade à
pequena do que eu; mas vejo que me enganei — respondeu o médico, igualmente
irritado. — O que me importa?!... — continuou ele, erguendo gradualmente a voz.
— Tu estás velho, tens uma filha nova e bonita, aparece-te uma ocasião de a
arrumar bem, de a entregar a um rapaz honrado e trabalhador, e pões-te a
cuspir, como se ele não prestasse?!... És um bruto, é o que és!... O que me
importa!... Se me não importasse, não tinha prometido ao rapaz que me metia
nisto!... — terminou o doutor, quase sem fôlego, deixando assim escapar o
assunto importante que tinha a tratar com o capitão, quando o convidara para
passear.
— Ah! ele é
isso!... — exclamou o capitão. — Tu andas feito com ele?...
— Eu não
ando feito com ninguém, Matos!... Não sejas injusto — bradou o doutor, ferido
pela censura.
— Então, tu...
pensas que eu... ando uma vida inteira a
educar uma filha... a única que me ficou... o retrato vivo da mãe... o sol que
me aquece a alma e... agora... agora que ela me não dá canseira, agora que me
está pagando o que eu fiz por ela, aparece um menino bonito que lhe mete quatro
teias de aranha na cabeça, e eu... pego... e entrego-lha, assim, sem mais nem
menos, como se lhe não tivesse amor, como se fosse uma coisa... Tu estás a ler!...
Então, tu... não sabes... Não sabes, não... — prosseguiu o capitão com voz
cheia de lágrimas. — Não sabes que, de cada vez que chegava a casa, e que, com
o resto da soldada, comprava uma leira de terra ou uma inscrição, só pensava
nela, pois cá eu... enquanto o mar tiver água, não me há de faltar de comer e...
quando chegar a minha hora, em eu tendo em regra o diário náutico — continuou o
pobre pai, pondo a mão no peito para indicar a consciência — adeus... boa
viagem!... acabou-se tudo?... Não lha dou; não ma rouba assim à má cara... — terminou
ele, batendo com o pé no chão.
O doutor
ficara mudo e atônito diante daquela explosão de santo e desculpável ciúme
paterno.
A cólera
dissipou-se no coração do velho médico, dando lugar a terna compaixão.
— Amigo... —
disse ele, enfim, sinceramente comovido. — Conheço que é um sacrifício grande,
mas... que queres?... Todos os pais passam por essas amarguras, e bem felizes
são aqueles, que, desapossando-se das filhas, as não veem entregues a um
miserável, que lhas torne desgraçadas... Não falemos, hoje, mais nisto... Dorme
sobre o caso...
— Não tenho
que pensar nem que dormir — redarguiu o capitão. — Não lha dou... nem a ele...
nem a outro... Arrumou!
— Bem... Não
falemos mais nisto, por hoje... Tu és bom pai, e não queres fazer sofrer a
pequena... Olha que se não morre só de bexigas ou de uma febre; também se morre
de amor... Pensa, pensa melhor e... Adeus! Até amanhã...
— Tu não
vens até lá?... — perguntou o capitão.
— Não; hoje
não... Tenho que fazer... — respondeu o doutor, que entendeu que seria melhor
deixar o amigo entregue a si próprio.
— Então,
adeus... — replicou o capitão.
— Adeus... —
repetiu o outro — e... olha lá... não me faças chorar a rapariga...
— Eu, sim! —
protestou o pobre pai, encolhendo os ombros.
Era noite
quando o capitão chegou a casa.
O mau humor,
que a reflexão dissipara, tinha-o de novo assaltado, por lhe parecer que vira
afastar-se um vulto de ao pé da janela.
Entrou na
sala.
Carolina
trabalhava perto da mesa do centro, à luz — de um candeeiro de azeite.
Via-se que a
pobre rapariga tinha levado a tarde a chorar.
CAPÍTULO 4
Não se
enganara o nosso capitão, julgando perceber um vulto, que se ausentou de ao pé
da janela, avistando-o ao longe.
Se, em vez
de ir passear com o doutor se houvesse escondido em sítio de onde pudesse
ouvir, teria escutado o seguinte diálogo:
— Sempre um
susto assim!... Ó Eduardo!... E se não vem o doutor, e meu pai vai ter contigo?...
— Paciência!...
— replicou o mancebo.
— Olha que
era capaz de te fazer alguma desfeita!...
Como Eduardo
nada respondesse a esta desagradável hipótese, Carolina prosseguiu com voz trêmula:
— Ó Eduardo!...
Por tudo quanto há, te peço que tenhas paciência, se ele te não tratar bem...
— Nem pensar
nisso é bom!... — replicou o mancebo.— Pois eu esquecia lá a idade dele... e
demais a mais sendo teu pai!... O que eu não posso levar avante é que ele me
tenha tanta zanga, sem eu ter dado causa a isso!... Dou-te a minha palavra, que
passo às vezes horas a cismar, a perguntar a mim mesmo se lhe fiz coisa que o
desgostasse, ou se alguém lhe terá dito mal de mim...
— Valha-te
Deus!... Não é nada disso... É uma cisma... Aquilo passa-lhe... Verás!...
Acredita que não há coração melhor do que o dele...
— Pois sim,
sim... — balbuciou o mancebo — mas, enquanto a mania lhe não passa, traz-me
aqui consumido e ralado, que nem eu te posso dizer como ando com este coração
cá por dentro...
— Então eu...
ando muito alegre e... não sofro nada?... — perguntou, com expressão de meiga
censura, a nossa Carolina.
— Desculpa!...
— respondeu carinhosamente Eduardo. — Desculpa!... sou um egoísta. Não penso
senão em mim!... Mas tu que queres, se eu quase que perco o juízo, quando me
lembro que este nosso penar ainda pode durar anos, pois nem tu és capaz de...
— Não, isso
não!... — atalhou a jovem, não deixando concluir a frase. — Contra vontade dele
não caso!... Isso não!...
— Não me
deixaste acabar, filha!... Queria dizer que nem tu eras capaz de casar contra a
vontade dele, nem eu consentiria nunca que alguém, vendo-me passar contigo,
pudesse dizer que foste má filha!... Tudo, menos isso!...
— É assim,
Eduardo!... É assim que eu gosto de te ouvir falar... Sabes do que nós
precisávamos?... Bastava que meu pai ouvisse o que tu acabas de dizer.
— Ó Carolina!...
E se o doutor... se o teu padrinho fazia o milagre de o convencer?!...
— Pois tu
pediste ao padrinho?!...
— Pedi e
prometeu-me que ainda hoje falava a teu pai...
— Jesus
Senhor!... Pois tu pediste ao padrinho... e não me dizias nada?!... Devias
ter-me prevenido!... Fizeste mal!...
— Olha,
Carolina... Eu não to disse porque já esperava esses mesmos receios... Tem
paciência! A carta está jogada; para trás é que já se não volta!... O que te
digo é que, se o doutor o não convence, perco a esperança de todo!...
— Ora tu
ires falar ao padrinho, sem me... Vai-te embora! Adeus! Adeus! Lá vem meu pai,
além... Adeus! — disse precipitadamente a jovem, retirando-se da janela.
Foi neste
momento que Eduardo se afastou; mas não tão depressa que, como notamos, não
fosse visto pelo velho.
Os leitores,
que têm passado pelo horrível martírio de esperar alguém, em cujo rosto haja a
ler a palavra "esperança" ou a perda das mais queridas ilusões, devem
compreender a ansiedade com que a nossa Carolina ficou aguardando a chegada do
pai.
"Como
virá ele?!... Como receberia a intervenção do doutor?... Diria que sim?...
Pediria espera?... Responderia terminantemente que não?... Ele respeita tanto o
padrinho!... O padrinho sabe-o tão bem levar quando quer!... mas aquela birra
que ele ganhou ao Eduardo... E então porquê?!... sabe-o ele!... Também é de
mais!... Tão bom rapaz... tão amigo de fazer a vontade!... Pobre Eduardo!...
Mas como virá o pai?!..."
No cérebro
estas e mil outras perguntas; no coração uma ansiedade, um peso indescritível tal
era o estado da desconsolada rapariga, naquele momento.
O capitão
recebeu com frieza o beijo que ela lhe deu na face.
Carolina,
que para isso se erguera de onde estava, voltou para o seu lugar, e o capitão
foi sentar-se no vão da janela.
A Lua
brilhava majestosa e serena no espaço; o mar rolava, gemendo, essas vagas que
se formam ao largo e que, depois de se erguerem ameaçadoras, perdem a força a
meio caminho, e vêm morrer na praia, produzindo, ao retirar, um cicio cheio de
mistérios; num ou noutro ponto mais culminante da vaga luzia, de vez em quando,
o brilho prateado da fosforescência, e, na praia, projetavam as rochas
gigantescas sombras.
O velho
capitão mirou, durante alguns minutos, aquele quadro; depois, voltou a cabeça e
contemplou a furto a filha.
Vendo que
esta não erguia os olhos, e não podia portanto surpreendê-lo, esqueceu o céu, o
mar, o mundo, tudo, e começou a estudar o ser estremecido, que era a sua vida.
Que mundo de
ideias nascidas dessa contemplação!
Ali estava
ela, a sua filha, a sua Carolina, o sol — como ele dissera — que lhe aquecia o
coração; estava ali... e tinha a alma longe dali!
Não era por
ele, que a estava devorando com os olhos, que aquele coração batia!... Não era
nele que aquele cérebro pensava, quando ele só dela cuidava!
Para ele...
era o receio que a fizera chorar; era o vinco traçado entre as sobrancelhas;
era a censura oculta no coração; a ideia de rebelião, que o amor contrariado
lhe estava, talvez, sugerindo naquele instante!
Para cúmulo
de martírio, vieram-lhe à mente as palavras do amigo: "Também se morre de
amor!"
Morrer!... ela!...
O pobre pai
estremeceu.
— Se ela
morre... abre-se-me um rombo na alma e vou a pique!...-pensou ele.— Por mim...
pouco se me dá... mas ela... uma criança!... tão linda!... tão meiga!...
E o velho
ergueu-se, para repelir tão sinistra ideia, e começou a passear.
O sussurro
do mar, a luz melancólica do candeeiro, o silêncio resignado da filha e o som
monótono dos próprios passos, tudo contribuía para enegrecer o espírito do
capitão.
Faltava-lhe
o ar, intumescia-se-lhe o coração, parecia-lhe que sobre o peito lhe pesava a
pedra de um túmulo, sentia uma horrível necessidade de chorar e tremia que as
torturas da alma buscassem de repente a expansão num destes brados de dor,
grito de leoa ferida ou de mãe que perde um filho!...
Beijou a
jovem na fronte e saiu da sala.
A filha
ficou, em posição de quem escuta, a contar-lhe os passos e, mal ouviu o ruído
da chave girando na fechadura do quarto do pai, ergueu-se, fechou as janelas,
pegou no candeeiro, e saiu também.
Nem um nem
outro tinham proferido uma palavra!
Depois da
noite em que morrera a esposa do capitão, era aquela a de mais cruel agonia que
pai e filha tinham passado juntos!
CAPÍTULO 5
Apenas
fechou a porta e se viu ali na solidão do seu quarto, longe dos olhos da filha,
o ancião deu livre curso ao pranto.
Sentimentos
opostos escolheram aquele magoado coração de pai para campo de batalha,
rasgando-lho e esmagando-lho ao mesmo tempo.
O egoísmo
predominou por fim, e o velho exclamou, como se alguém o estivesse
interrogando: "Não consinto... É muito nova... Veremos... mais tarde..."
Tentou
distrair-se, libertar-se daquele pesadelo.
Mexeu nuns
papéis que tinha sobre a banca; colocou no seu lugar duas cadeiras, que estavam
no meio do aposento; deu duas voltas à roda do quarto e, chegando — ao pé da
janela, abriu-a e consultou os astros; deu mais duas voltas e foi fechar a
janela; entreteve-se algum tempo a espevitar o candeeiro; deu corda ao relógio
de parede; desfez um óculo de alcance e limpou-lhe cuidadosamente os vidros um
por um, mas esqueceu-se de atarraxar de novo as diferentes peças; pegando, em
seguida, numas tesouras cortou duas unhas da mão esquerda e parou naquele
trabalho, entregue à ideia fixa; sacudindo, finalmente, a cabeça, arremessou as
tesouras, acabou de arranjar o óculo e foi pô-lo no seu lugar.
Feito isto,
veio sentar-se à banca e entrou a morder as pontas da suíça. Passado tempo,
ergueu-se da cadeira e deitou-se vestido sobre a cama, com os olhos fitos no teto,
e fazendo estalar ruidosamente os dedos das mãos, enlaçadas sobre o peito.
Erguendo-se
por fim, sentou-se na beira da cama, coçou a cabeça, estirou — os braços, e,
encolhendo os ombros, pôs-se de pé, despiu-se, deitou-se e apagou a luz. Horas
depois, sonhando, dava o capitão um murro na parede e exclamava em tom irado:
"Já te disse que é muito nova!... Não consinto!... Arrumou! "
Pobre pai!
Nessa mesma
noite, quem tivesse ido a casa do doutor, teria ouvido o nosso amigo Eduardo,
completamente cego para os bocejos que o médico já não podia reprimir, e não
menos surdo para os repetidos "homem, já te disse que não!..."proferidos
pelo velho, tê-lo-ia ouvido, repito, perguntar pela milésima vez:
— Mas — então,
doutor... Não lhe deu esperança nenhuma... nenhuma?...
— Homem, já
te disse que não...
— Mas então,
doutor...
— Mas então,
já te disse e tornei a dizer, que se não vai a Roma num dia!... Tem paciência,
homem!... O velho é cabeçudo, mas bom como poucos. Aquilo é ouro mal lavrado,
mas de lei... Vai-te com esta, que to digo eu, que o conheço! Como aquele... há
poucos!
— Mas...
— E tu a
dares-lhe!... sabes tu que mais?... Vai-te embora, que eu não estou namorado e
estou a cair com sono.
Não teve
Eduardo remédio senão retirar-se.
Por alta
noite perguntava o pobre rapaz, pela centésima vez à consciência, que lhe não
podia responder: "Mas por que embirra o Matos comigo? "
E Carolina?...
Essa rezou mais nessa noite... do que as leitoras rezam numa semana!
Dos três, a
sofrer pela mesma causa, era ela quem melhor bálsamo escolhia!
CAPÍTULO 6
Foram-se
seguindo os dias sem que incidente algum viesse modificar o horrível
constrangimento em que viviam os atores deste singelo drama de família.
Carolina
passava o melhor do seu tempo a chorar e a rezar, enquanto que o pai se debatia
na luta travada entre a consciência, que o acusava de egoísmo, e esse mesmo
egoísmo, que o não deixava conformar-se com a ideia de ocupar o segundo lugar
no coração da filha, e ter de separar-se dela.
Eram cruéis
os sofrimentos de ambos!
Iam longe as
horas de jovial expansão, e longe o encanto dos serões de Inverno, em que ao
som das vagas que bramiam e vinham quebrar-se nas rochas; ao estalar da chuva
nas vidraças quando impelida pelas lufadas do sul, que, na sua desesperada
correria, encrespava — as águas do mar e rugia de furor, vendo-se detido na
passagem; iam longe, dizia, essas noites, em que às vozes da natureza irritada
respondia a alegre canção da jovem ou o franco riso do velho, celebrando os
agudos ditos da filha.
Ia longe
tudo isso!
Agora tudo
estava mudado; as alegres horas da noite viam-nas eles aproximar-se com secreto
receio.
Eu não
conheço nada mais cruel do que a convivência de dois corações — que se apreciam
e respeitam, que se estremecem e sentem, por assim dizer, um pelo outro — quando,
por acaso, um segredo, uma divergência, um nada os separa de repente; os põem a
bater cada qual para seu lado, finalmente os desacorda, quando estavam
acostumados a ser afinados pelo mesmo som.
Os leitores
devem ter passado por estes transes.
Ao cabo de
aturado silêncio, acontece às vezes que o coração recebe um choque elétrico,
freme, ferve e parece querer escapar-se do peito e voar para aquele de quem
anda divorciado, bradando-lhe: "Crê-me!... sou o mesmo! sempre o mesmo!...
sê injusto, esmaga-me, fere-me... mas crê-me! sou o mesmo!... Estimo-te... dedico-te
o mesmo afeto!... Não queres o que eu quero?... Embora!... Não te feches quando
me abro."
e, quantas
vezes, esse choque elétrico se faz sentir nos dois a um tempo!... Quantas
vezes, vencido um falso pejo, um louco receio, se ambos se aproximassem
seguindo o mesmo impulso... se ambos obedecessem ao som vibrado nas mesmas
cordas... quantas vezes se diluiria o ponto negro nas dulcíssimas lágrimas da
reconciliação!... quantas vezes o gelo da discórdia se fundiria ao calor do
ósculo de paz!... quantas vezes a névoa, que os encobria, se dissiparia à luz
do sorriso, esse arco-íris da alma, festivo núncio de bonança!
A filha,
vendo o pai melancólico e pensativo; não enxergando o terno sorriso, que, por
assim dizer, a cobria como uma bênção; não sentindo na fronte o beijo, que era,
para ela, o eco da própria consciência, que a aprovava; deserdada, enfim, de
tudo o que até ali constituíra o alimento do seu coração-sentia quase remorsos
daquele amor, que era, ainda assim, a compensação do que sofria.
O pai...
coitado!... O pai, vendo-a ali perto dele, com a fronte pendida sobre a
costura, enxugando à pressa alguma lágrima rebelde, insurgia-se, umas vezes
contra o frenético desejo de a enlaçar nos braços, de a devorar com beijos, de
lhe pedir perdão para o seu egoísmo, e sentia, outras vezes, satânicas
tentações de destruir quem lhe roubara o coração, O amor daquela filha, que era
tão dele, que lhe recordava a esposa que tanto amara; aquela filha que se
tornara para ele o único pretexto para viver, o único ser, que, para ele,
povoava o mundo.
O doutor,
além da parte que tomava no sofrer daqueles dois entes, que se acostumara a
considerar como família própria, tinha amarguras especiais.
Tinha a
animar o pobre Eduardo, que ora se expandia em queixumes contra o pai de
Carolina e contra a crueldade do destino, ora caía num desalento, numa atonia,
que inspiravam ainda mais cuidado ao santo velho do que as violências da idade
e do sentimento que lhes dava causa.
A
"Veloz" chegara, e o infeliz namorado via-se, por necessidade e
dever, obrigado a partir, sem levar consigo um raio de esperança para lhe
iluminar as trevas da ausência.
E,
infelizmente, o doutor, que entendia das moléstias de alma mais, talvez, do que
das do corpo, sondara o coração do velho amigo, e conhecera que era cedo para
poder extirpar o cancro que o roía.
Uma noite,
tenebrosa e medonha, achavam-se pai e filha sós na sala que já conhecemos.
Nenhum deles
se atrevia a quebrar o silêncio.
O velho
ergueu-se por fim, aproximou-se da mesa, pegou no castiçal e ia a aproximar a
vela da chama do candeeiro, a cuja luz a filha trabalhava, quando, de repente,
o pousou e pôs-se como que a escutar algum ruído que vinha da praia.
Parece que a
filha também algum ouvira, porque parou de trabalhar e imitou a ação do pai.
Pouco tardou
que ouvissem gritos de socorro.
O capitão
correu à janela e abriu-a.
A praia
formigava de gente, brandindo archotes, e do centro da multidão erguiam-se,
plangentes, os gritos aflitivos das mulheres.
Era uma
noite horrenda! O vento soprava irado; o trovão estalava nos ares, como a
gargalhada irônica e jubilosa do gênio do mal, esperando breve a aniquilação do
mundo; a luz alvacenta do raio, serpeando no espaço, iluminava o mar,
transformado em montanhas de água e abismos sem fundo e, ora despenhando-se do
cimo dessas montanhas no fundo desses abismos, ora arremessado das profundezas
destes para o topo daquelas, distinguia-se um casco de navio, troncados os
mastros e perdido o leme, mísera péla daquele jogo de invisíveis Titãs!
E quando o
vento amainava e o mar se retraía, como que suspendendo a respiração, para
poder de novo resfolegar com mais força, ouvia-se tênue, como o chorar de uma
criança, entre aqueles rumores dos elementos, o brado angustiado de vinte
homens!
Carolina, — que
seguira o pai à janela, retirou deslumbrada pelo raio, e caiu de joelhos,
implorando a Deus a vida daqueles desgraçados.
O pai, ágil
como se tivera vinte anos, pegou no chapéu e correu para a praia.
Era ainda
mais horrível o quadro, quando o embarcadiço chegou junto da multidão, que se
agitava condoída e aflita.
As mulheres
gritavam e carpiam-se; os moços mordiam os lábios, tentando cerrar os ouvidos à
voz íntima que os incitava ao perigo; os velhos abanavam a cabeça, como quem
julgava inútil qualquer temeridade.
De repente,
um relâmpago mais vivo iluminou os ares e o pélago, e ouviu-se uma voz enérgica
bradar:
— Eia,
filhos!... O casco — deu no banco!... Ainda é possível valer-lhes!...
Era o nosso
velho amigo quem assim falava.
Nem uma voz
respondeu ao convite!
À luz trêmula
e fantástica dos archotes, distinguiam-se, é verdade, ardentes olhares, que
animavam rostos ainda jovens e se cruzavam, para logo se evitarem, como que receosos
de se compreenderem.
Ainda assim
ninguém falou, ou se alguém o fez, foi-lhe a voz abafada pelos brados de
horror, vibrados por cem lábios de mulher, como um protesto contra a tentação
oferecida aos maridos e aos filhos.
Não era o
nosso capitão homem que se deixasse turbar por aqueles gritos, sobretudo agora,
que havia uma probabilidade de resgatar a vida àqueles desgraçados.
Reforçando a
voz e adaptando o gesto ao dizer, era realmente belo, naquele momento, o vulto
do velho!
Com os olhos
competindo em fulgores com os relâmpagos que rasgavam o céu; com o rosto, já de
si rubro de indignação, incendiado pelo clarão avermelhado dos archotes,
parecia que aquele ousado coração de marinheiro tentava comunicar o seu ardor
aos corações que o cercavam, e dos quais raros se poderiam, com justiça,
denominar cobardes!
— Já vejo — exclamou
ele por fim com uma inflexão, em que a cólera e o desprezo iam de meias — já
vejo que não há um homem!... Já não há marinheiros!... Os que existem... estão,
como eu, desarvorados e metem água por todos os lados!... Fomos os últimos
marinheiros desta costa!... Não há um que deixe um filho que saia a ele!...
Dando, em
seguida, à voz a entonação do trovão e o acento de irresistível apelo,
prosseguiu:
— Vamos nós
a eles, meus velhos!... Anda daí, Pedro!... Anda tu, Francisco!... Piores as
passaram vocês comigo, rapazes!... Vá, Manuel!... Vamos a — eles, meus velhos!
Vamos mostrar a esses maricas o que eram os marinheiros do nosso tempo!...
Era para ver
como aqueles rostos, sulcados de rugas e curtidos pela água de todos os mares,
se transformavam pouco e pouco, deixando ver, em vez da expressão de resignado
desalento, a luz do mal extinto fogo da juventude!
Todos
aqueles lábios iam a descerrar-se, uníssonos, num brado de unânime
assentimento, quando uma voz vibrante e varonil bradou de entre a turba:
— Alto! que
isso é conosco!... Ainda aqui há gente!
E a multidão
afastou-se cedendo passagem a um homem, que não tardou a achar-se em frente do
capitão.
Era uma
destas simpáticas figuras de marinheiro, como há tantas nas nossas povoações da
costa.
Alto e
robusto, com os crespos cabelos negros, sujeitos por uma carapuça vermelha,
lia-se-lhe nos olhos a suprema audácia que dá a consciência da própria força e
que, no momento do perigo, transforma o homem em herói.
A camisa,
alagada pela chuva, colava-se-lhe ao corpo, desenhando-lhe uns músculos que
dariam que pensar a Hércules.
Ao chegar em
frente — do nosso velho amigo, tirou a carapuça e exclamou em voz que se
esforçava por tornar serena:
— Não é
preciso chamar os velhos, Senhor Capitão!... graças a Deus ainda há rapazes, e
aqui está um!... — prosseguiu ele, batendo com força no peito. — E como eu são
todos!... Não é verdade, rapazes?... Vamos a eles, marinheiros!... Quem sabe?...
Hoje por vós, amanhã por nós!... Vamos lá, rapazes!
— Vamos lá!
— bradaram em coro vinte vozes fortes e entusiásticas.
O capitão
cingiu nos braços o corpo do marinheiro, e exclamou:
— Bravo!
rapazes!
Voltando-se
em seguida para os jovens marítimos, continuou:
— À catraia,
filhos!... à catraia!
E já se
dirigia para o mar, quando o marinheiro que desafrontara os camaradas lhe
travou do braço, dizendo:
— Alto!...
Nós vamos, mas o Senhor Capitão fica.
O velho
recuou e, cravando no mancebo olhos de desafio, perguntou:
— Quem diz
que fico?
— Digo eu...
— respondeu o outro com voz firme. — Conosco vai quem primeiro se ofereceu...
ainda o navio não estava onde está... Conosco vai o capitão da
"Veloz", que é rapaz também.
A semelhante
resposta, o embarcadiço soltou uma imprecação de raiva suprema, e ia, talvez,
arremessar-se num ímpeto de furor sobre o marinheiro, quando se sentiu cingir
pelo pescoço, e ouviu a meiga voz da filha, que lhe dizia:
— Meu pai!
Este
desligou-se dos braços da filha, quase sufocado pela cólera.
Ninguém
imagina a luta que se lhe travara na alma! Sempre aquele homem!... sempre! No
coração da filha, como no ânimo daqueles valentes, via-se suplantado por ele!
Enquanto o
capitão se debatia, gritavam os voluntários daquela perigosa empresa:
— Ó da
"Veloz"!... Ó Sr. Eduardo!
— Pronto! — exclamou
ao longe uma voz.
E, pouco
depois, chegava Eduardo arfando de cansaço e trazendo ao ombro um molho de
cordas e croques de ferro.
Ao vê-lo
assim carregado o velho sentiu-se corar de pejo. Eduardo não se esquecera de
quanto era preciso para assegurar o êxito da empresa. O ancião era mais uma vez
vencido pelo jovem — em prudência!
— Pronto,
rapazes!... — exclamou de novo Eduardo.
De repente,
porém, vendo Carolina trêmula e pálida agarrada ao braço do pai, o mancebo
hesitou e fitou na pobre menina olhos de cruel angústia.
Só então
conhecera a extensão do sacrifício que ia fazer!
Se a não
tornava a ver?... Se a sua morte ia causar a morte dela?!...
O velho
percebeu-lhe a hesitação, e, atravessando-lhe ao mesmo tempo o espírito o
receio de que a filha não resistiria à morte do mancebo, desprendeu-se dela e
dirigindo-se em voz suplicante — aos marinheiros, balbuciou:
— Perdoem,
rapazes!... Eu não os quis desfeitear... Mal por mal, morra quem já para pouco
serve... Vou eu com vocês, filhos!
Ouvindo
estas palavras, Eduardo lançou um derradeiro olhar à jovem, e correu para a
catraia, gritando:
— Vamos,
rapazes!...
Os
marinheiros seguiram-no e ia a imitá-los o velho, soltando uma blasfêmia,
quando ouviu bradar:
— Olha que
matas a filha, desalmado!
O pobre pai
estacou no meio da carreira e, voltando-se, viu a filha sem acordo nos braços
do doutor.
Correndo
para o grupo, o capitão respondeu ao amigo em voz de inexcedível aflição:
— Não sou eu
que a mato, não!... É ele! — e, erguendo a filha nos braços, deitou a correr
para casa.
A cena que o
leitor acaba de ler, passou-se em menos tempo do que o preciso para lha narrar.
CAPÍTULO 7
São passadas
vinte e quatro horas depois da cena aflitiva da praia.
É noite.
Num pequeno
quarto forrado de papel, representando flores, com a janela resguardada por uma
cortina de cassa branca, jaz sobre o leito a pobre Carolina, que parece nesse
instante descansar.
O candeeiro
derrama tênue luz, dando melancólico aspecto ao pequeno recinto, testemunha das
passadas alegrias e recentes aflições da jovem.
Sentado numa
cadeira ao pé do leito, com a face encostada à mão esquerda, ao passo que com a
direita lhe consulta o pulso, vê-se o nosso doutor, vigilante enfermeiro da
afilhada.
De pé, no
vão da janela, e meio encoberto pelas cortinas, o angustiado pai espera que o
doutor erga a cabeça, para lhe ler no rosto o estado da filha.
Levantando-se
por fim, o doutor dirigiu-se nas pontas dos pés para o capitão e balbuciou:
— Está
sossegadita... Isto vai bem... vai bem!...
E, levando o
dedo aos lábios como que a recomendar-lhe o máximo silêncio, o doutor fez sinal
ao amigo para que o seguisse e, caminhando sempre cautelosamente, saíram os
dois do quarto para — a sala próxima.
Deixando a
porta entreaberta para poder ouvir o mínimo rumor que partisse do quarto da
doente, o doutor sentou-se e, fazendo sinal ao amigo para que fizesse o mesmo,
tirou a caixa de rapé e tomou uma extenssíssima pitada.
Ao cabo de
alguns minutos, e vendo que o doutor se não resolvia a falar, perguntou-lhe o
capitão em voz trêmula:
— Então?...
Estará livre de perigo?...
— Está... — respondeu,
sem hesitar, o médico.
— Mas isto
afinal que é?!... Tanto tempo sem sentidos!... — insistiu o pai.
— Foi uma
crise nervosa... forte!...
— E isto
voltará?... — perguntou o capitão a medo.
— Hum!...
Havendo cautela... Não se afligindo... Nestas coisas o — que é preciso é
sossego... muito sossego! Andando o espírito tranquilo... Não havendo coisa que
a mortifique, que a traga sobressaltada... estou que não haverá novidade!...
Que este ataque foi de respeito!... Poucos tenho visto assim!... — continuou o
médico.
E, tirando o
relógio, viu as horas que eram, entrou no quarto da doente, curvou-se para ela,
e, reconhecendo que continuava a dormir sossegada, veio ter com o amigo e
disse-lhe:
— Eu vou-me
deitar na tua cama... Se for preciso alguma coisa, chama-me... Em todo o caso
deixa-a dormir quanto ela quiser!...
O capitão
fez um gesto de assentimento e, metendo a cabeça entre as mãos, ficou-se ali a
cismar.
Passado
tempo, parecendo-lhe que ouvira gemer a filha, foi pé ante pé verificar se ela
dormia, e, vendo-a sossegada, sentou-se aos pés do leito, com os olhos rasos de
água, fitos no rosto da jovem.
Tempo
esquecido a esteve ele assim contemplando, até que ela, abrindo os olhos, os
lançou em roda, e, vendo o pai, perguntou ansiosamente:
— O Eduardo?!...
O capitão
levou as mãos ao peito, ergueu-se e, beijando a filha, fez um esforço e
murmurou:
— Está salvo
e bom... Dorme, filha... sossega, que está salvo!
Duas grossas
lágrimas, saltando dos olhos do pai, caíram sobre o rosto da filha, e esta,
conhecendo só então quem lhe dissipara o terror, balbuciou a palavra — perdão —
e, voltando-se para a parede, escondeu o rosto nas dobras da roupa.
O ancião
ergueu as mãos e os olhos para o céu com expressão de infindo reconhecimento
por aquele indício das melhoras da filha, e tornou a sentar-se aos pés da cama.
Foi nessa
posição que primeiro o dia e depois o doutor o vieram encontrar.
CAPÍTULO 8
Quando o
médico saiu de casa do capitão, a primeira pessoa que encontrou ao dobrar uma
esquina, foi Eduardo.
Minto, não
foi ele; foi, ao parecer, a sombra dele, tão desmaiado estava.
O mancebo
trazia o braço esquerdo ao peito, mas não era isso, nem a fadiga da noite
anterior àquela, que assim lhe havia desfeito o semblante e cavado os olhos.
Não!... O
que lhe dava aquele aspecto era a horrível ansiedade que o minava, era a cruel
incerteza em que vivia, do estado de Carolina.
A todas as
hipóteses que lhe pululavam no cérebro febricitante, o mancebo só encontrava em
si uma solução: "Se morre, mato-me!"
Desde que
voltara da sua perigosa expedição e soubera da doença da jovem, Eduardo vivia
alheio a tudo!
os louvores
unânimes dos companheiros da empresa, as bênçãos dos náufragos, que à perícia
dele deviam a vida, o respeito dos colegas e o conceito dos velhos,
encontravam-no indiferente!
Trinta horas
antes — arriscara a vida e partira um braço para salvar desconhecidos...
Imagine-se, por isto, do que seria capaz para prolongar, por uma hora que
fosse, a vida daquela para quem queria viver!
O doutor
compreendeu imediatamente que Eduardo passara a noite a vigiar a casa do
capitão e sentiu-se comovido.
Assoando-se
ruidosamente, para encobrir com o lenço duas lágrimas de enternecimento, e
engrossando a voz, aparentemente por irado, mas realmente para desfazer o nó
que se lhe formara na garganta, o velho exclamou, dirigindo-se ao mancebo:
— Tu que
andas por aqui a fazer, grandessíssimo pedaço de-asno?!... Eu não te disse que
não mexesses com esse braço, e que não saísses da cama?... Hem?...
— Não
falemos nisso... — atalhou Eduardo, com um gesto de indiferença. — Diga-me...
como está ela?...
— Falemos,
sim... — disse o doutor.
Não
prosseguiu, porém, porque o mancebo o interrompeu com voz de amolecer pedras:
— Fale-me
dela, doutor!... Por quem é!... Deixe-se do mais!... Diga-me como ela está!...
Era preciso
ser mau para ficar surdo àquela voz, e o nosso doutor era a bondade em pessoa.
Dali até
casa — de Eduardo, onde o doutor entrou e ficou até o ver despido e deitado na
cama, teve o velho de repetir dúzias de vezes quanto se passara, os cuidados
que o estado de Carolina lhe havia dado, o como estava livre de perigo, o tempo
que seria preciso para completo restabelecimento e, sobretudo, a certeza de que
o ataque se não repetiria!
Decididamente
o doutor era o bode expiatório daqueles amores!
Arrostava os
maus humores do amigo, sofria dos sofrimentos da afilhada e aturava, a pé
firme, a chuva de perguntas e as confidências do namorado!
Pois
acreditem os leitores... Eu quero ouvir, no Parlamento, um discurso de quatro
horas acerca de finanças, bem recheado de dados estatísticos, e apimentado por
lugares-comuns a respeito da necessidade da reforma das pautas, e não quero
aturar dez minutos um namorado bem namorado, em ele entrando a enumerar as
perfeições, e a exaltar a inteligência DELA!
Pois se ele
tem com a gente a confiança precisa para apoiar as asserções com documentos, e
tira do bolso o maço de cartas, que o não larga nunca?!...
Isso então é
que são elas!... Atura um homem ali, a pé quedo, a leitura daquele volume
inédito, interrompido, apenas, pelas anotações que o leitor julga precisas,
para melhor compreensão de algum ponto menos claro, e que prende, quase sempre,
com algum fato unicamente sabido dos interessados — atura-se tudo isso e... não
é sequer permitido o desafogo de lhe dizer no fim: "Essa mulher é tola!"quando
é isso o que, muitas vezes, se depreende da leitura!
Há, entre
outros, três assuntos, dos quais eu peço sempre a Deus que me livre, e são:
batalhas contadas por veterano que já se não lembra delas — proezas de
caçadores e, sobretudo — confidências de namorados.
Deixemos,
porém, divagações mal cabidas.
Oito dias
depois destes acontecimentos, exigia o doutor que Carolina se levantasse da
cama para ensaiar forças, e obrigava o pai da doente a acompanhá-lo num curto
passeio ao ar livre, que aquela reclusão forçada tornara necessário.
só depois de
mil objeções, e de um sem-número de recomendações à criada para que nem um só
instante abandonasse a doente, consentiu o capitão em fazer a vontade ao amigo.
O acaso, ou
a malícia do doutor, fez com que eles seguissem exatamente o mesmo caminho que
haviam tomado no dia em que o capitão manifestara terminantemente a sua
oposição aos amores da filha.
O capitão,
porém, é que não era o mesmo homem.
Aquela
angustiosa noite em que ele julgara a filha perdida, as meditações profundas em
que gastara as longas horas de vigília durante as noites seguintes, e o receio
da repetição dos ataques, possível, no dizer do médico, se provocada por
qualquer sofrimento moral, tudo isso tinha contribuído para acabrunhar aquela
natureza de ferro.
O cabelo
tinha-se-lhe quase todo embranquecido, o profundo vinco traçado entre os
sobrolhos e que, em geral, exprime a força de vontade, estava quase desfeito,
ao passo que as rugas horizontais, cavadas, quase sempre, pelo trabalho do
cérebro, quando pesa os prós e os contras de uma ideia e lhe procura a solução,
se desenhavam fundas na testa.
Nas faces
pendentes, na boca entreaberta e deprimida aos cantos, nos olhos amortecidos,
no andar lento e incerto, em vão se procuraria o vigor e a vida que faziam do
honrado marítimo
E tipo
enérgico e dominador, que na horrível cena da praia achara em si o calor
preciso para incendiar as almas de jovens e velhos que o ouviam, a ponto de os
forçara desprezarem a morte.
Caminharam
calados os dois amigos.
O capitão
mirava a areia da praia, e o médico estudava-o a ele com aqueles olhinhos finos
e maliciosos que lhe conhecemos.
Eram uns
olhos como não há outros, os daquele doutor.
O marítimo a
esconder o que lhe ia lá dentro, e ele a ler tudo como em livro aberto!
O capitão a
não querer começar o diálogo, e o médico, seguindo velha táctica, à espera que
ele se pronunciasse!
Não era o
primeiro para competir em malícia com o segundo... Cedeu.
— Então...
decididamente... o ataque não se repete!...
— Homem...
Quem sabe?!... — respondeu o doutor.
— Mas então...
a ti parece-te?... — continuou o marítimo.
— A mim não
me parece nada... — acudiu o outro. — Aquilo às vezes é o diabo!... Volta
quando menos se espera.
Estabeleceu-se
de novo o silêncio entre os dois.
Passado
tempo balbuciou o marítimo:
— Dizias tu
o outro dia, doutor, que aquilo o que queria... era... descanso... sossego...
— De
espírito —.acrescentou o médico, acentuando as sílabas, e fazendo com a cabeça
um sinal de assentimento.
Houve novo
intervalo, após o qual disse o capitão:
-É o diabo!...
Sossego!... Uma zanga, uma aflição... qualquer nada as causa!... Vá lá a gente
evitar uma destas!...
— Evita-se o
mais que se pode-redarguiu o doutor, acentuando de novo as palavras.
— Evita-se!...
Evita-se!... Lá vem um dia em que se não pode evitar! — respondeu o outro.
O doutor
teve pena do amigo. Conheceu que se o não auxiliasse, nunca ele teria a coragem
precisa para se abrir com ele; deteve-o pelo braço e, obrigando-o a fitá-lo em
cheio, disse-lhe brandamente:
— Ora anda,
Matos!... Desembucha, homem!... Diz para aí o que te está a ralar lá por
dentro, senão digo eu!... Queres que diga?... Vá lá!... O que tu estás a pensar
é que a pequena não sossega enquanto não casar com o Eduardo... Ora diz, não é
isto?...
Por única
resposta, o velho marinheiro abraçou-se no amigo e assim quedou, chorando, por
largo espaço.
O médico,
igualmente comovido a lágrimas, sentia-se presa de uma tosse seca, que o
acometia sempre em semelhantes lances, e dizia apenas de tempos a tempos:
— Então,
Matos... então!... Está bem, homem!... Basta!... Então! casar não é morrer!
— Morro eu,
Francisco!... — respondeu o marítimo, largando o amigo. — Morro eu, ali — continuou
ele, apontando com a mão para a casa, que se avistava ao longe.— Ali... só...
como um cão!...
— Mas para
que hás de tu ficar só, homem de Deus?!... Vai viver com eles!
— Nada!...
Isso não!... Quem casa, quer casa... — replicou o velho, fiel às antigas
usanças.
— É uma
tolice!... — observou o médico, encolhendo os ombros.
— Será, mas
isso... não!... Lá viver com eles... não! — insistiu o outro.
Calaram-se
os dois e retrocederam para casa do capitão.
Eram bem
diferentes, naquele momento, as ideias que povoavam a mente de cada um deles!
Se o
marítimo proferisse o que ia pensando, ouvir-se-ia:
"Arrumou!...
É preciso!... Os pais para que vêm a este mundo?... Para sofrerem pelos filhos!...
E para mais
nada!... Anda a gente a criá-los... a enfeitá-los... a matar-se por eles e...
lá vem um dia... e... adeus!... Passa por lá muito bem!... Se é rapaz... vai
para o Brasil e por lá fica, ou... assenta praça e quando volta... está o pai
na cova, ou casa e... não faz caso do pai!...
Se é
rapariga... é o mesmo! Cuida um homem que tem quem o trate e lhe feche os olhos
e... aparece um boneco... um diabo... um fraca-roupa, e leva-lha e... aí fica o
pobre velho só!
Vá lá!...
Tem de ser... E enfim... podia escolher pior!... O rapaz é... um marinheiro às
— direitas!... Arrumou!... Tem de ser... seja!... Não digo já... mais tarde...
daqui por um ano... ou dois..."
Pelo seu
lado, o doutor regozijava-se, esperando que estavam vencidas as dificuldades, e
ficou, portanto, de orelha baixa, quando, chegando à porta e perguntando ao
amigo se podia dar esperanças ao rapaz, só recebeu em resposta um breve:
"Por ora... não!"
CAPÍTULO 9
Já vimos em
que disposição de espírito estava o capitão, entrando em casa. A muito rogar da
filha, consentiu ele em ir descansar!... Coitado!
Prevendo que
não poderia adormecer, sentou-se à banca. Era uma destas secretárias antigas,
cheias de gavetas e escaninhos.
Estavam ali
arquivados todos os documentos precisos para escrever a história do laborioso e
honrado marinheiro!
Recibos, títulos
de dívida, velhos livros de carga, cartas de fretamento, carteiras de
lembranças, conhecimentos, maços de cartas devidamente cotadas — tudo ali tinha
o seu lugar reservado, especial.
O capitão
percorreu com a vista todas essas velhas testemunhas do seu passado; puxou para
si alguns papéis, que procurava, para de novo os afastar, e continuou a olhar
indeciso, alheio a tudo, para todos aqueles objetos, sem se resolver a começar
tarefa.
A mão, por
fim, ergueu-se de novo, o dedo indicador carregou numa pequena mola de segredo
e uma tabuinha, embutida entre duas gavetas, cedeu, deixando ver um falso cheio
de papéis.
Era o
segredo do capitão. A mão introduziu-se na cavidade e retirou-se, apertando
entre os dedos um maço de cartas e uma caixinha de veludo encarnado.
O velho
contemplou aqueles objetos com inexprimível melancolia, e duas grossas
lágrimas, desprendendo-se, rolaram-lhe vagarosamente pelas faces e vieram
esconder-se na espessa barba.
Depois de
visível hesitação, abriu a caixa e, colocando-a sobre a secretária, encostou a
cabeça à mão direita e permaneceu absorto a contemplar as feições de uma
miniatura pintada sobre marfim.
Era o
retrato dela, da esposa que Deus lhe levara, da mãe dessa filha adorada que
queria agora deixá-lo.
Ao cabo de
longo espaço de tempo, a mão desatou a fita verde que ligava o maço das cartas,
e, pegando numa destas, desdobrou-a.
O capitão
leu-a, maquinalmente ao princípio, com visível interesse à medida que ia
continuando.
Lida essa,
passou a outra e em seguida ao resto.
Quando
terminou tinha o rosto banhado em pranto.
— É sempre
assim!... — murmurou ele, e, apoiando os cotovelos no bordo da secretária,
enlaçou as mãos e descansou nelas a cabeça, povoada por mil ideias diversas.
Passado um
quarto de hora, quando se arrancou àquele íntimo e doloroso meditar, lia-se-lhe
no rosto uma resolução irrevogável.
Abriu uma
pasta, de onde tirou uma folha de papel, em que escreveu apenas uma linha; em
seguida dobrou-a e fechou-a junto com o maço de cartas, que de novo atara
dentro de outra folha de papel almaço e lacrou o embrulho...
Meia hora
depois, quem colasse o ouvido à porta do quarto, onde já se não via luz,
ouviria, de vez em quando, o som de um suspiro.
Feliz quem
não conhece as torturas de uma noite de insônias, causada por horríveis
tormentos morais.
O sol da
manhã seguinte veio achar fora da cama o matinal embarcadiço.
À hora do
almoço, — a filha, que pela primeira vez voltava à mesa, parou assustada,
quando, ao entrar na sala, examinou — o rosto demudado do pai.
Pareceu-lhe
que havia nos olhos deste tão desusada expressão de resignada dor, havia tanta
ternura e bondade na voz do velho, quando lhe disse: "Deus te abençoe"que
sentiu uma espécie de remorso, lembrando-se que era ela a causa dos sofrimentos
do pai.
Ao
levantar-se da mesa, o velho tirou do bolso o embrulho, que de véspera o vimos
lacrar, e disse, entregando-o à filha:
— Manda isso
ao padrinho.
Duas horas
depois desta cena, batia este à porta.
Mal entrou,
foi direito ao amigo e, abraçando-o, balbuciou com voz profundamente comovida:
— Tu tens
uma nobre alma, filho!...
Depondo, em
seguida, sobre a mesa as cartas que o capitão lhe mandara, tornou a sair,
enxugando os olhos marejados de pranto.
As cartas
que o capitão enviara ao doutor, eram as que recebera da esposa antes do seu
casamento.
Leu-as o
médico, e tudo compreendeu.
As primeiras
eram alegres e descuidadas; a essas seguiam-se outras, que exprimiam o receio
da oposição paterna; vinham por fim as últimas, acusando o pai de desamor e
crueldade...
Quando
chegara à última, o capitão ficara, como dissemos, entregue a profundas
meditações, até que, tomando uma resolução, escrevera apenas ao amigo: "O
rapaz que venha quando quiser..."e enviara o bilhete junto com as cartas
da esposa, deixando à penetração do doutor o descobrir a causa da mudança do
seu modo de pensar.
O pobre pai
sujeitava-se a tudo, menos... às acusações da filha!
compreendera
o império do amor, a justiça da sentença: "pelo escolhido do teu coração,
deixarás pai e mãe", e por isso o ouvimos dizer: "É sempre assim!"
Quando o
capitão desembrulhou as cartas, feriram-lhe a vista estas palavras que o doutor
traçara num bocado de papel e juntara ao maço, em forma de rótulo: "LIÇÕES
DO PASSADO!"
CAPÍTULO 10
Os leitores,
casados, lembram-se da noite em que pela primeira vez lhes foi permitido
apresentarem-se, como pretendentes, em casa da escolhida do seu coração?
Se se
lembram hão de confessar que não têm tido outra!de tão intenso prazer, mas
também de tão profundo enleio.
O coração a
transbordar de amor, a mente a fantasiar futuros, os olhos a enxergarem tudo
cor-de-rosa, os lábios retendo a custo tudo quanto desejariam dizer-lhe a ela,
que está ali, de olhos baixos, com as faces rubras de pejo e o coração a arfar
entre assustado e jubiloso e... a dois passos, o futuro sogro conversando com
algum amigo em tom constrangido, que procura tornar natural, parecendo não ver
nem ouvir coisa alguma, mas vendo e ouvindo tudo... Ora digam... Haverá coisa
que possa tornar a posição de qualquer mais agradável e ao mesmo tempo mais incômoda?!...
***
Há novidade
em casa — do Senhor Capitão Matos!...
As janelas
traem desusado luxo de iluminação.
Se
entrássemos!... Entremos!
Sentada no
sofá a nossa simpática Carolina escuta, mirando o chão, e sem saber o uso que
há de fazer das mãos, as frases entrecortadas de Eduardo.
Este...
vê-se que quer falar e não pode; mas, se os lábios perderam a eloquência, que
verbosidade no olhar!
Animados e
brilhantes os olhos de Eduardo riem, choram, pedem, prometem, juram e
agradecem; os de Carolina permanecem baixos.
É um diálogo
em que Eduardo pergunta com a vista, e em que as faces de Carolina respondem
com sorrisos e rubores.
No vão de
uma das janelas conversam, de costas para a praia, o capitão e o doutor.
O primeiro
escuta distraído, o segundo fala com desusada volubilidade, recheando os
dizeres de perguntas e argumentos, fatalmente terminados por um:
"Percebes?"
Vê-se que o
fim do doutor é chamar para si toda a atenção do amigo, e fazer persuadir os
jovens de que ninguém dá fé do que eles estão dizendo.
Era um santo
aquele doutor!
— Mas que
diabo tens tu ido fazer á cidade? — perguntou o médico, agarrando um botão do
casaco do velho marinheiro.
— Tinha umas
voltas a dar... — respondeu este distraidamente.
E, tirando o
relógio, acrescentou baixinho: — Olha que são onze horas!
— Ora adeus!...
Não pode ser! Isso anda adiantado por força!... Pergunta ali àqueles se já pode
ser tão tarde!
— Pois é por
isso mesmo... — acrescentou o outro no mesmo tom.— Se lhes não lembrarem que
são horas de retirar, ficam-se ali pasmados até amanhã... Dá tu o sinal, anda...
— continuou ele por entre dentes.
O doutor
murmurou: "Vá lá!..."e, voltando-se para os dois, exclamou
jovialmente:
— Olé! ó
senhores namorados!... Não sei se sabem que já são onze horas!... Ora pois!...
Deixem ficar alguma coisa para amanhã!... Lembrem-se que têm toda a vida
adiante de si para conversar!...
Carolina
ainda mais vermelha se tornou, e Eduardo, erguendo-se, respondeu com sincero
espanto:
— Já onze
horas!... Não pensei que fosse tão tarde!
— Nem eu... —
disse Carolina timidamente.
O doutor,
voltando-se então para o amigo, exclamou, soltando estrondosa gargalhada:
— Ouves,
Matos?... Eu não — to disse?!... Vê lá se eles achavam tarde!
Minutos
depois, despedia-se o doutor na companhia de Eduardo.
Desde casa
do capitão até à do médico, teve este que responder mais de vinte vezes à
seguinte pergunta do mancebo:
— Amanhã
vamos mais cedinho, sim, doutor?!
E sabe o
leitor o que Eduardo foi fazer depois que o médico fechou a porta e o deixou na
rua?...
Voltou para
defronte da casa de Carolina!
Parecia-lhe
impossível que ela não tornasse a abrir a janela e, nessa doce esperança,
vagueou inutilmente por aqueles sítios ainda mais de uma hora!
Decorreram
quinze dias, ou antes quinze noites, pois os nossos namorados só consideravam tempo
útil, propriamente dito, as horas que passavam juntos.
Em
particular, já por mais de uma vez quisera o doutor que o amigo pesasse com ele
os prós e os contras de se efetuar o casamento antes ou depois da viagem da
"Veloz", que pouco podia já demorar-se no porto; o capitão, porém,
tinha-se sempre esquivado à resposta.
o pobre
Eduardo é que vivia, por assim dizer, suspenso.
Atormentava-se
com a ideia de adiar o casamento para depois da sua volta, e apertava-se-lhe o
coração, lembrando-se que, logo dias depois de casado, se veria forçado a
despedir-se da esposa.
Carolina não
emitia opinião; ao primeiro alvitre... anuviava-se-lhe o rosto, ao segundo!...
arrasavam-se-lhe os olhos de pranto.
Quanto ao
doutor, era de voto que o casamento se realizasse depois da viagem.
No que todos
concordavam era que Eduardo não podia, sem quebra do cumprimento dos seus
deveres, deixar de ir no navio como capitão.
O nosso
herói, o único capaz de cortar aquele nó górdio, esse não dizia palavra, o que
mais delicada e crítica tornava a decisão.
Esta
abstenção do velho marítimo tornou necessária uma conspiração entre os três.
Resolveu-se
que, na presença dos dois interessados, fosse ele diretamente interpelado pelo
doutor e forçado a responder categoricamente.
Uma noite,
pois, estando todos quatro reunidos, e tendo os três conspiradores trocado
entre si um olhar de inteligência, perguntou o doutor, aparentando indiferença:
— É verdade,
ó Eduardo... Quando sai a "Veloz?"
— Deve sair
daqui por quinze dias... — respondeu o mancebo — Já!... Pensei que se demorasse
mais...
E,
voltando-se para o amigo, continuou:
— Ouves, ó
Matos?... Vê lá, que é preciso decidir por uma vez quando hás de amarrar estas
duas crianças!
O velho
retorceu a suíça, tirou o lenço do bolso, assoou-se e respondeu em voz que
traía mal disfarçada emoção:
Pode-se
tratar disso...
— Então vê
lá!... Vê lá... se há de ser antes ou depois da viagem da "Veloz"...
que a mim parece-me...
O velho não
concluiu, porque pé de Eduardo, adiantando-se um pouco, foi ferir um calo, que
era o martírio do infeliz senhorio de tão incômodo inquilino.
Eduardo
sabia que o doutor opinava pelo adiamento.
Imagine-se,
porém, o espanto de todos, quando o capitão, erguendo-se, respondeu sem
hesitar:
— Há de ser
antes... Os papéis de Carolina estão prontos, e já arranjei dispensa dos
banhos.
Depois de
alguns instantes concedidos ao espanto causado por tão inesperada revelação, o
doutor ergueu-se igualmente e exclamou:
— Sim,
senhor!... Aí está o que eu chamo um homem expedito!... Pão pão, queijo queijo!...
Mas — continuou ele, pondo o calo fora
do alcance do pé de Eduardo — não seria melhor deixar isso para depois... para
a volta?... Não sei que me parece casarem eles, por exemplo, hoje, para se
separarem logo no dia seguinte! Pensem bem!... — acrescentou o doutor,
relanceando os olhos para os três.
— Neste
mundo tudo se remedeia — observou filosoficamente o capitão, entrando a passear
com as mãos atrás das costas.
Novo pasmo
dos ouvintes! O médico, não sabendo que pensar de tão súbita resolução, sentia
tentações de tomar o pulso ao amigo com receio de que este estivesse doente.
— Essa agora!...
— disse o doutor, estendendo o lábio inferior e encolhendo os ombros, como quem
não compreende. — Tu, decerto, não queres que a pequena vá de piloto?...
— Não,
decerto... — respondeu o embarcadiço, que não pôde reprimir um sorriso.
— E não queres
também, decerto, que o Eduardo torne a deixar sair o navio sem ir
nele?-perguntou o doutor num tom de quem não esperava que o velho admitisse
semelhante hipótese.
— Se isso
partisse dele, não aprovava, mas... O caso é outro... A "Veloz" tem
capitão novo.
Eduardo
ergueu-se de um salto, como se fora mordido.
Com os olhos
cintilantes e as faces rubras de indignação, o mancebo perguntou com mal
contida explosão de cólera:
— Tem
capitão novo?... Por que fui eu demitido sem ao menos mo dizerem?!... E... e...
quem vai de capitão?...
— Vou eu — respondeu
singelamente o velho embarcadiço, sem interromper o passeio.
— Vai... vai
o senhor?!... o senhor!... Ó meu pai! — exclamou Eduardo, abraçando o velho.
Não é
possível descrever a cena que se seguiu.
Carolina,
envergonhada do seu primeiro movimento, que foi de prazer egoísta, correu para
o pai, formando com ele e Eduardo um grupo, em que sobressaía a cabeça grisalha
do velho, mostrando no rosto a impaciência e comoção que lhe causava aquele duplo
abraço.
Ouvindo a
frase: "Ó meu pai! "proferida pelo mancebo num rapto de sentida
gratidão, o dedicado marítimo sentira violenta luta dentro do peito.
O coração
era-lhe, a um tempo, presa da má vontade, que ainda de todo não fora senhor de
vencer, e de um sentimento de inexplicável prazer, causado pela certeza de que
o mancebo lhe dedicava, naquele instante, verdadeiro amor de filho.
Quem,
contudo, metia dó, era o doutor!
O bom do
homem em vão se assoava ruidosamente, e tentava livrar-se do maldito pigarro
que o incomodava!... em vão!...
Os olhos
davam-lhe lágrimas, que ele não queria, e os lábios negavam-lhe as palavras que
ele procurava!
O santo
homem bem desejava parecer mau, bem se esforçava para ralhar!
Vendo que
não conseguia o seu intento, deixou correr as lágrimas, e, lançando os braços
em volta do pescoço do companheiro de infância, balbuciou:
— Não pode
ser, meu velho!... Não consinto!... Não pode ser!
— Cala-te,
homem! — murmurou o capitão ao ouvido do doutor. — Cala-te!... É melhor assim!...
Só o mar me pode minorar a falta da filha!... Deixa-me ir que é melhor!
O médico
ainda quis protestar, Eduardo também tentou reagir, Carolina, chorosa e
contristada, beijava as mãos do pai, balbuciando a custo:
— Isso não,
meu pai!... Isso não!...
O capitão,
porém, foi inabalável.
— Está
decidido! — disse ele em tom que não admitia réplica. — O capitão da
"Veloz"sou eu!... Então vocês que querem?... sou um egoísta!... Tinha
saudades do mar... Andava com minhas cócegas de fazer uma viagem antes de dar à
costa... Sozinha... não te deixava — continuou ele, dirigindo-se à filha.— Vais
casar... não te faço falta... chegou a ocasião... mato as saudades!...
Ora aí está!...
O capitão da "Veloz"sou eu!
— Então — perguntou
o doutor — papéis... e dispensas de banhos... e substituição de capitão... era
isso que te fazia ir tantas vezes à cidade?...
— Nem mais,
meu velho! — exclamou quase alegremente o embarcadiço, erguendo o médico nos
robustos braços e tornando a depô-lo no chão.
E o doutor,
voltando o rosto para esconder as teimosas lágrimas, murmurava baixinho,
apertando convulsivamente as mãos:
— Pobre pai!...
pobre velho!...
A que vinham
as lamentações do doutor?!... Não ouviu dizer ao capitão que era um egoísta...
que andava morto por matar as saudades que tinha do mar?!...
Tudo aquilo
era egoísmo!... Bem se conhecia e... bem o disse ele!...
Pobre pai!...
pobre velho!
CAPÍTULO 11
Eu não quero
obrigar os leitores a acompanhar-me, passo a passo, até à realização do
casamento de Carolina e Eduardo.
Era um
verdadeiro casamento de amor; faltavam-lhe portanto as ridículas e
repugnantíssimas cenas, inseparáveis destas escrituras, em que as partes
contratantes se esquecem de que vão unir para todo o sempre a existência e se
entrincheiram, cada qual sobre si, por detrás das argúcias e seguranças das
leis.
Não havia
nada disso!
Por parte de
Carolina — havia o pai, que dava tudo quanto devia ao seu trabalho e quanto a
esposa trouxera para o casal; por parte de Eduardo — entrava tudo quanto herdara
de seus pais e quanto esperava auferir do trabalho.
Nada mais
simples e que menos pudesse dar lugar a negociações.
Ao casamento
assistiram apenas o embarcadiço e o doutor.
Quando,
terminada a cerimônia, a filha lhe veio beijar a mão, o pai conservou-a
estreitada contra o seio, por largo espaço de tempo, balbuciando a custo por
entre lágrimas:
— Deus te
abençoe!... Sê como esposa, o que tens sido como filha!
Apertando,
em seguida, energicamente, a mão do genro, o velho disse-lhe em voz grave e solene:
— Lembre-se
do que acaba de prometer!... Faça-a feliz!... Faça com que ela nunca tenha
saudades da casa do pai!
Carolina
acompanhou o marido; o capitão foi caminho de casa com o doutor; mas, chegando
à porta, abraçou-se no amigo e exclamou, chorando como uma criança:
— Não posso!...
Não entro!... Não fico aqui só!... Não quero!...
— Ó homem! —
observou o médico. — Não seja essa a dúvida!... Anda para minha casa... anda!...
Anda daí, homem!
O capitão
seguiu-o sem dizer palavra.
Até alta noite
se conservaram os dois velhos amigos, juntos, no quarto de trabalho do médico.
Este fingia
ler, fazendo esforços sobre-humanos para afugentar o sono, enquanto que o
marítimo passeava cabisbaixo, torcendo, segundo o costume, a suíça espessa e
grisalha.
Horas
depois, antes de amanhecer, saía o capitão de casa do amigo sem o acordar e
dirigia-se à cidade.
Seriam nove
horas da manhã, diziam na praia os velhos embarcadiços depois de terem passado
o óculo de mão em mão:
— Decididamente...
aquela é a "Veloz"!...
A notícia
correu de boca em boca, e, minutos depois, à janela da casa de Eduardo, via-se
Carolina, ora agitando o lenço, ora enxugando a ele as lágrimas, com a fronte
pousada sobre o ombro do marido, corresponder assim às ondulações de um outro
lenço que lhe acenava do mar.
E, por
detrás dos dois noivos, o nosso amigo doutor fazia prodígios para parecer
zangado e murmurava:
— Enganou-me...
a mim!... Pobre velho!... pobre Matos!
O capitão
conseguira do armador que a "Veloz" saísse três dias antes do
anunciado para a partida.
Duvidara da
sua coragem e conseguira assim furtar-se às cruelíssimas emoções da despedida.
Deixemos,
por pouco, os felizes noivos, que têm, para lhes adoçar as agruras da saudade,
o dulcíssimo mel da esplêndida lua que ilumina os primeiros tempos que se
seguem ao casamento, e acompanhemos o nosso herói no seu voluntário exílio.
Quando a
terra e as casas começaram a tornar-se pequenas, a ponto de mal se
distinguirem; quando os olhos do capitão se negaram a reconhecer a modesta
morada, onde vira raiar tantos dias de felicidade e desventura, o velho
deixou-se cair sobre um banco com a fronte pendida sobre o peito.
Enquanto
pudera ver o lenço branco da filha, voando nos ares como um mensageiro de
saudades, concentrara no alvo e franzino retalho de cambraia todas as suas
atenções.
Aquele
(lenço era a casa paterna, que lhe dizia: "Espero-te!"; era a voz da
filha, que lhe bradava: "Amo-te!"; era a pátria, que lhe gritava:
"Volta!"; era tudo quanto o solitário velho amava, que lhe dizia:
"Choramos-te!"
Afinal, o
abençoado lenço confundira-se com o ar, a terra tornara-se névoa, e o ancião,
investigando com o seu olhar de marinheiro o espaço, acabara por ver apenas o
céu, onde o sol parecia rir das miseráveis dores dos homens, e o mar, que
repelia de si a chuva de diamantes, que o mesmo sol lhe atirava.
Ali ficaria
o embarcadiço entregue às suas cogitações, se não viesse arrancá-lo a elas a
voz submissa do piloto, que vinha reclamar as ordens do chefe.
Vexado por
ter sido chamado ao cumprimento dos seus deveres, o capitão, sacudindo a
fronte, como se pudesse arremessar do cérebro os pensamentos que o perseguiam,
ergueu-se e, desde então, nunca mais pôde alguém ver nele outro que não fosse o
verdadeiro homem do mar, o pai e juiz dos seus marinheiros, o amigo e protetor
dos passageiros entregues à sua prudência.
Se o vissem,
porém, sozinho, fazendo o quarto da meia-noite, bem outro o — teriam visto!
Abraçando o
céu com a vista, o velho perguntava às estrelas em qual delas os seus olhos se
poderiam encontrar com os da filha!
Se o vento
soprava do norte, lembrava-se o velho — de que talvez ele tivesse roçado, na
passagem, os formosos cabelos da jovem, e talvez mesmo que a gota de água que
lhe caíra na face, fosse uma lágrima bebida nos olhos da sua Carolina.
E, se o
trovão bramia, se o raio rasgava o espaço, se o vento em furor fazia ranger os
mastros e sibilava nos cabos, se o mar, galgando de salto a proa, se retirava
de novo, fugindo por todas as saídas que encontrava, enquanto os passageiros
oravam e os marinheiros se calavam, um sorriso, quase alegre, vinha iluminar o
rosto do embarcadiço, ao lembrar-se de que, nessas noites, era ele, e só ele,
quem ocupava o coração e o espírito da filha!
Quem há aí
que, tendo embarcado, não tenha passado uma noite no convés, com o coração todo
saudades, a mente toda perguntas!?...
"Que
estarão eles a fazer a esta hora?...
Estarão a falar de mim?!... Minha mãe... essa está com certeza a pedir a Deus
que me proteja!... A estas horas... que estarão eles a fazer?..."
E as
perguntas sucedem-se no espírito, e a memória começa a construir o viver
íntimo, os hábitos do lar paterno, o emprego das horas passadas em família,
tudo quanto nos é indiferente, quando o gozamos, e por que tanto choramos
quando ausentes.
Aos
leitores, que conhecem o exclusivismo daquele amor de pai, — de que por assim
dizer vivia o capitão, escusado é dizer que eram estes os seus devaneios de
todos os instantes.
Quando
resolvera fazer aquela viagem, imaginara que seria apenas de ida e volta, e
empreendera-a para se acostumar a não ver constantemente a filha; era, por
assim dizer, um remédio heroico contra as saudades.
Infelizmente,
porém, se o homem põe, Deus dispõe; e foi isso o que aconteceu.
Escrupuloso
no cumprimento dos seus deveres, e julgando do seu brio e dignidade não ceder o
comando do navio senão nas mãos do armador e no porto de onde saíra, o capitão
viu, por uma série de fretamentos sucessivos, prolongada por perto de três anos
a ausência que ele sempre calculara de quatro ou, o máximo, de cinco meses.
Junte-se a
isto a irregularidade e demora das notícias, e imagine-se o sofrimento do
honrado marítimo.
Quando ele,
porém, cuidou de endoidecer e esteve a ponto de transigir com a voz que o chamava
de casa, foi quando recebeu em Nova York a notícia de que tinha mais um ser a
amar, de que tinha um neto!
Ter um neto
e não o conhecer, não o poder abraçar, beijar, estragar com mimos!... Haverá
destino mais cruel?!...
Desde então
tomaram novo rumo as ideias do capitão.
O
embarcadiço encurtava as horas de quarto, talhando por mil formas o porvir do
neto.
Um dia — dia
feliz! — recebeu por fim o capitão ordem de carregar com direção à pátria.
Nunca a
viagem lhe pareceu tão longa!... Quando o vento, retesando as velas, ameaçava
arrebatá-las, parecia-lhe a ele que estava em calmaria podre e mandava largar
mais pano!
Surgiu,
finalmente, a seus olhos a terra da promissão, e o pobre velho parecia doido de
contente!
Lá estava
ela... a sua casinha, com as janelas abertas.
— O óculo...
venha o óculo depressa!... Ó coração, que te partes!... são eles!... E eles lá
estão!... são eles!... Lá estão os lenços!... É o Eduardo!... É o doutor!...
Mas ela!... a minha filha!... por que se retirou?... onde foi?... Ah! ela aí
vem!... Foi buscar o filho... o meu neto!... o meu querido neto!
E o velho
chorava, e corria a abraçar os passageiros, e volvia a fitar a casa, de onde
tudo lhe sorria e o chamava!
Horas
depois, gozava o maior prazer que é dado aos homens experimentar — apertava
contra o peito os seres que amava.
Quando o
velho, porém, cuidou morrer de alegria, foi quando, erguendo o neto, este lhe
cingiu o pescoço com os bracinhos e lhe chamou "avô"entre dois
beijos!
CAPÍTULO 12
São passados
dois anos.
O sol tinge
o céu de todas as cores do prisma, e o oceano parece dormir, sussurrando em
sonhos promessas e ameaças.
Nos degraus
da porta de uma modesta casinha, vê-se um grupo de pessoas. São todas
conhecidas; estamos em terra de amigos!
Sentada na
pedra, Carolina provoca o sorriso de uma menina de seis meses, roçando-lhe os
lábios com o dedo.
No degrau
abaixo Eduardo e o doutor, também sentados, conversam sorrindo e analisando o
velho embarcadiço, que tenta reprimir a impaciência do neto; o pequeno não pode
compreender que o avô precise de tanto tempo para acabar o escaler que está
talhando.
— Ó Matos! —
disse de repente o doutor. — Quantos botes tens tu feito já esta semana?!...
— Quatro! — gritou
o pequeno, respondendo pelo avô.
— É isso, é!...
são quatro — confirmou este. — Mas olha que este é o último!... vê lá se o
quebras!
— Já faz
hoje cinco anos que casamos!... — disse Carolina, sorrindo amorosamente para o
marido.
— É verdade!
— exclamaram todos — cinco anos!...
— Olhe lá...
ó pai! — disse jovialmente Eduardo. — Nunca lho quis perguntar; mas... agora
que estamos todos juntos, diga-me... por que embirrava o pai comigo?!...
O capitão
corou e não respondeu.
— Digo-to
eu! — exclamou, rindo, o doutor. — Embirrava contigo e ainda hoje embirraria,
se não fosse aquele traquinas! — acrescentou ele, apontando para o pequeno, que
estava experimentando o bote numa poça. — Teu sogro... tinha ciúmes!... e...
para ciúmes de pai... só cegueiras de avô!
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