O Cruzeiro da Via-Sacra
CAPÍTULO 1
Quem hoje
percorrer Portugal, e muito especialmente a nossa província do Minho, poderá
presenciar milhares de cenas idênticas à que vamos descrever, se bem que esta
há bons vinte anos que se passava numa das aldeias vizinhas de Braga.
Então, como
hoje, rara seria a família que não chorasse a ausência de um filho levado ao
Brasil pela ambição, ou antes, pela vista dessas casas forradas de azulejos,
que hoje se contam por centenas, já orlando as estradas do Minho, já olhando
para elas — do alto de uma rua ensaibrada, coberta pela folha verde da viçosa
parreira, através das grades de vistoso portão de ferro.
Então, como
hoje, no Brasil, nesse país a um tempo Capitólio e Tarpeia, deserto e terra da
promissão, mãe e madrasta de tantos felizes, e ainda de maior número de infelizes,
filhos desta velha terra portuguesa, então, como hoje, repito, grassava com
cruelíssimo furor a febre-amarela, terrível nivelador, que não conhece
jerarquias e vai ferindo às cegas.
Quem então,
como hoje, nos serões de Inverno, colasse o ouvido à porta de qualquer das
modestas casas em que se visse brilhar a mortiça luz da candeia, ouviria,
depois da coroa, botada pela voz sonora do lavrador e rezada em coro pelo resto
da família, uma enfiada de orações por vivos e falecidos, e por "tôdolos
que andam por soblas águas do mar", e o que, com toda a certeza, havia de
ouvir era a salve-rainha, que a voz do lavrador gradualmente tornada mais trêmula
oferecia "à Virgem Mãe Santíssima, para que pedisse ao seu divino e amado
Filho que desse vida e saúde"ao Manuel, Pedro, Paulo, Sancho ou Martinho,
por quem sangravam os corações ali reunidos. Deixemos, porém, estas divagações
e descrevamos o quadro, tal qual nos lembramos de o ter visto.
Estamos em
casa de um modesto lavrador. A dona da casa, mulher dos seus quarenta anos, que
os cuidados e trabalhos fazem parecer mais velha, tenta, agachada sobre o lar,
acender um punhado de carqueja, e sopra inutilmente sobre algumas brasas quase
extintas. A carqueja vai ardendo; mas, em vez de chama, apenas produz fumo, que
obriga a pobre mulher a enxugar os olhos a miúdo.
Sentado no
chão e quase nu, um pequenito de onze meses, que, se não tivesse a carita tão
suja, faria lembrar os anjos louros e carnudos de Rubens, ri e baba-se de
gosto, puxando os cabelos emaranhados de outro diabrete de nove anos, que,
deitado de bruços no chão, em frente dele, lhe está fazendo cócegas nas pernas.
A um canto,
numa cadeira, a que serraram os pés, metida entre uma arca enorme e a parede,
vê-se uma pobre velha cega e surda. Se não fora um sorriso travesso, filho
destes sonhos que iluminam de repente, como tênue raio de sol, o cérebro dos
velhos e o das crianças, e veem, de espaço a espaço, refletir-se-lhes no rosto,
julgá-la-ia morta.
Via-se que a
dona da casa, em que já falamos, além da impaciência que lhe causava a má
vontade — do lume, tinha alguma ideia que a afligia.
— Vai ver se
teu pai vem, Joaquim — disse ela, erguendo a cabeça, ao ver por fim brotar a
chama, e introduzir-se, brincando, por entre a carqueja.
— Já com
esta faz quatro vezes! — rosnou o pequeno, levantando-se, pouco satisfeito, de
ao pé do irmãozito.
Mal tinha,
porém, transposto a porta, voltou-se para dentro, dizendo:
— Ele lá
vem, minha mãe!
Viu-se que o
primeiro impulso desta foi correr; de repente, porém, parou; em seguida
caminhou a passos lentos para a porta e encostou-se à umbreira.
Não é
possível descrever as mil sensações que vinham espeolhar-se-lhe no rosto!...
Esperança e medo, ansiedade e desânimo, tudo isso traíam à porfia os olhos, que
brilhavam para logo se empanarem de lágrimas, as rugas que o medo traçara na
fronte e que a esperança desfazia, os lábios, que ora tremiam, ora se cerravam,
como que obedecendo a uma resolução tomada mentalmente. Apenas o marido chegou
a alcance da voz, bradou-lhe ela:
— Não há
nada?
Mas como ela
disse aquilo! Não sabia a gente se era pergunta, se dúvida, se afirmativa.
Havia de tudo isso na inflexão.
— Há, há,
mulher! Descansa; não traz obreia preta! — respondeu-lhe o marido, dissipando
desta forma o receio principal que havia tanto tempo os trazia com a morte na
alma.
A pobre mãe
levou primeiro as mãos ao peito, como que receosa de que o coração lhe
estalasse; depois, erguendo-as e cravando no céu olhos de inexcedível gratidão,
exclamou:
— Louvado
seja o Senhor.
E as
lágrimas, esse sangue destilado que mana de uma chaga sempre viva no coração
das mães, rolavam-lhe quatro a quatro pelas faces, zombando da ponta do avental
com — que ela tentava estancá-las.
A nossa
gente do campo é, em geral, para poucas expansões. Sentem bem, mas exprimem
mal. Ainda assim, quando o marido chegou à porta, a mulher não teve mão em si
que lhe não lançasse os braços em volta do pescoço, dando então livre curso ao
pranto.
— Então que
é isso... que é lá isso, mulher?... Tens-me andado sempre a animar, e hoje, que
a obreia vermelha nos diz que o rapaz está fero e de saúde, pões-te para aí a
chorar como uma criança!... Cara alegre, mulher!... Bota-me esse coração ao
largo!... Jesus, Senhor!... — continuou ele, tirando-se dos braços da mulher. —
Lembrar-me eu que meu pai— Deus te tenha lá! — me não mandou aprender a ler, e
que, por isso, trago eu aqui uma carta de meu filho e tanto faz isso como nada,
pois, se não fosse o bocadinho da hóstia vermelha, ainda agora estaria para
saber se o meu Antônio,é vivo ou morto!... Anda cá, ó Joaquim, anda cá ler esta
carta, meu homem!...
Lembrando-se,
porém, de repente da ceguinha, chegou-se a ela, tirou o chapéu, e, beijando-lhe
a mão, gritou-lhe ao ouvido:
— A sua
bênção, minha mãe... Temos aqui uma carta do seu neto, do nosso Antônio!...
— Está bem,
está bem... — respondeu a velha, de cujo coração a esponja do tempo tinha
apagado todas as imagens.
— Vamos a
isto, Joaquim, vamos a isto!exclamou por fim o lavrador, febril de ansiedade.
CAPÍTULO 2
Acabava o
feliz pai de dizer isto, quando, do lado da porta, se ouviu uma voz que dizia:
— Ora
louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo... Dá licença, vizinho?
O lavrador
voltou-se, meio contrariado; reconhecendo, porém, o recém-chegado, reprimiu o
gesto de impaciência e respondeu:
— É
vossemecê, Sr. José? Pode entrar... Trouxe da cidade carta do nosso Antônio, e
íamos ver o que ele diz... E o seu Francisco?... Não escreveu?...
— Não — redarguiu
o outro com voz sombria.
— Pois então...
escute — disse o dono da casa, que compreendeu imediatamente os tormentos que
ralavam, naquele instante, o coração do vizinho. — Escute... Os rapazes foram
no mesmo navio e recomendados à mesma pessoa, e então... pode ser que o meu Antônio
fale no seu Francisco.
A cena que
eu vou desenhar, faria a felicidade de um pintor!
No seu
cantinho e indiferente a tudo, a cega; sentada numa rasa de medir o milho,
curvada para diante, com as mãos apertadas entre os joelhos, toda ouvidos, toda
lágrimas e risos, a mãe do ausente; sentada na arca, com as mãos fincadas nas
costas de uma cadeira de pinho, pálida de comoção, com os olhos cerrados para
esconder o pranto, o lavrador; encostado à umbreira da porta, triste e sombrio,
indiferente aos sentimentos dos outros, e quase que acusando o filho do
lavrador por não falar do dele, que nem sequer pedira a alguém para lhe
escrever, o vizinho; e, formando centro, alvo de todos os olhos, encanto de
todos os ouvidos, senhor de distribuir o sol ou a chuva a todos aqueles
corações, o pequeno, que, ora só sobre um pé, ora coçando a cabeça, lá vai
silabando a preciosa mensageira de boas novas.
Dizia a
carta... o que dizem todas as primeiras cartas de uma criança que se vê longe
dos seus. Contava que tinha chegado a salvamento; que o Senhor Capitão o
tratara muito bem; que tinha sido perfeitamente recebido ~e que o senhor da
casa, onde estava, lhe tinha dito que ficava com ele. Acrescentava que
estranhara muito as comidas; que não se podia acostumar a ver tantos pretos; e
aqui começavam as letras apagadas a denunciar as lágrimas de quem as traçara,
porque, logo em seguida, principiava o rosário das saudades e das recordações,
os beijos para a mãe e para a avó, o pedido da bênção do pai, as recomendações
ao Joaquim para não bater no Pastor, cão de guarda da casa, todas estas
pequeninas coisas, em que o coração se deleita, quando a saudade o estorce.
Afinal em "post-scriptum" lá vinha que o patrão não sabia como havia
de arrumar o Francisco, por ele não saber ler, e acrescentava que este lhe
pedira para escrever por ele, mas que não tivera tempo para isso, e, portanto,
que dissesse o pai ao Sr. José que o filho estava com saúde e lhe mandava
muitas lembranças.
Quando se
chegou a este período, o vizinho franziu o sobrolho e disse:
— Teve que
fazer!... teve preguiça... é o que foi.
— Pode
ser-retorquiu o lavrador, ferido no seu orgulho de pai. — Pode ser, mas... a
culpa é sua, Sr. José. Se vossemecê tivesse feito como eu e mandasse o
Francisco à lição, já ele não precisava do meu filho.
— Melhor
sorte lhe dará Deus!... nem nós lá vamos tão depressa!... — respondeu o outro. —
Lá porque o seu Antônio sabe ler, não se segue que o meu Francisco venha a
precisar das sopas dele! — insistiu o pai, despeitado, envenenando de propósito
o sentido das palavras do vizinho. — E, demais — prosseguiu ele — as mãos não
servem só para escrever!... Haja saúde e vontade de trabalhar, que aqui estamos
nós, que temos ganho a nossa vida sem ter aprendido a ler!
— Não me
torça o bico ao prego, Sr. José!... Vossemecê não seja ruim!... Ninguém lhe
disse que o seu Francisco viesse a precisar das sopas do meu Antônio!... Isso é
vontade de pegar! — redarguiu o lavrador, reagindo contra a má interpretação do
que dissera.
— Está bom,
está bom! — atalhou a mulher, assustada pelo aspecto que a conversa ia tomando.
— Não é com
essas! — insistiu o vizinho. — Eu bem sei onde vossemecê quer chegar... Tem
graça!... Lá porque o menino sabe ler, já aí há de vir para o ano, feito
brasileiro, e, quando Deus quer, traz o meu Francisco como criado dele!... Tem
graça!
— Bem, bem...
Vossemecê tem desculpa... Não teve carta do rapaz... entende que o meu Antônio
tinha obrigação de escrever... não dá desconto às coisas... Acabou-se!... Pense
lá o que quiser! — replicou o lavrador, encolhendo os ombros, mas visivelmente
impaciente.
— Penso, sim
senhor! — retorquiu o Sr. José, irritado pela afetada bonomia do vizinho. — Penso
que a racha sai a acha!
— Vossemecê
que quer dizer? — perguntou o lavrador, apertando convulsivamente a cadeira a
que estava fincado.
— Quero
dizer, que filho de peixe sabe nadar!
— Mas que
quer dizer isso? — perguntou o
lavrador,
saltando abaixo da arca.
— Quer dizer
que, neste mundo, é preciso saber levar a água ao seu moinho... Ora o meu
Francisco... não sabe... não sabe fazer mesuras; só sabe trabalhar... Aí está o
que lhe faz falta... mais do que não saber ler nem escrever... Já ao pai lhe
tem sucedido o mesmo... O Antônio teve melhor mestre... Lá isso teve! — acrescentou
o Sr. José, dirigindo-se para a porta.
— Alto! — bradou
o lavrador, estorvando-lhe a passagem. — Vossemecê não sai daqui sem explicar o
que quer dizer na sua!
— Quero
dizer — replicou o outro, dando largas à bílis — quero dizer que foi vossemecê
quem, pela feira de Março, ficou com os bois que eu já tinha apalavrados!
— Sr. José,
eu já lhe disse que não sabia que vossemecê queria os bois, e logo então lhos
ofereci pelo custo! — exclamou o lavrador, dorido da injustiça.
— Nem que
eles fossem de ouro!... — replicou — o Sr. José desdenhosamente. — Eu não
preciso das migalhas de ninguém!... Mas é melhor calar-me... — continuou,
dirigindo-se para a porta. — Ainda há mais do que isso...
— Então que
mais há? — exclamou arrebatadamente o acusado.
— Quem traz
hoje de renda o campo da Valeira?... E quem o trazia antes?... Não é vossemecê?...
Não era eu? — perguntou, rubro de cólera, o acusador.
— Sr. José —
redarguiu o lavrador, exasperado — vossemecê bem sabe que foi pelos dares e
tomares que teve com o Antônio da Quinta, que este lhe não tornou a arrendar o
campo... Que mal havia em que eu o arrendasse, uma vez que lho não arrendavam a
si?... Tenha vergonha!... Não seja invejoso!
— Pois não
seja vossemecê intriguista! — replicou o outro violentamente.
— Vossemecê
não me faça perder a cabeça! — vociferou o lavrador, agarrando maquinalmente a
cadeira e mexendo-a com mão nervosa.
— Perder a
cabeça, o quê?... — perguntou o Sr. José, entre irônico e ameaçador. — Esteja
quedo com a cadeira, homem!... Olhe que eu nunca morri de medo, nem vossemecê é
homem que me meta medo, louvado Deus!
— Saia! — exclamou
o dono da casa, brandindo a cadeira.
A mulher
agarrou-se-lhe ao braço, sem se importar com as vozes de "deixa-me,
mulher! deixa— me!", a que ela respondia pedindo ao marido que se não
deitasse a perder.
Neste
meio-tempo o outro saíra, e desafiava o vizinho a que fosse, lá fora, dar-lhe
com a cadeira. A mulher correu então à porta e fechou-a; mas ficou aterrada,
por o vizinho rosnar, ao retirar-se:
— Deixa que
tu pagá-las todas juntas!
E assim se
anuviaram tantas alegrias!
O lavrador
passeava agitado, com a testa franzida e as mãos atrás — das costas; a mulher
lidava nos arranjos do jantar, lançando de vez em quando olhares furtivos para
o marido, enquanto que o pequeno, que lera a carta, calado e quieto, pela
primeira vez na sua vida interrogava alternativamente o rosto do pai e o da
mãe, perguntando a si próprio se teria por acaso alguma culpa em tudo aquilo.
E, alheios ao que se passava, o pequenito, com um dedo na boca, tentava pôr-se
a pé, agarrando-se — com a mão livre à saia da cega, ao passo que esta
continuava a perseguir em sonho uma recordação do passado ou visão do futuro,
pois o presente nada lhe dizia já.
CAPÍTULO 3
Ao leitor,
bondoso e bem-intencionado, deve ter-lhe custado — a compreender que um homem —
um pai! — angustiado pela incerteza, pelo receio do flagelo que semeara o luto
no seio de tantas famílias, só encontrasse ironias, ouvindo ler uma carta que
lhe retirava de sobre o peito o enorme peso da dúvida... Aí vai a explicação:
Se, quando
ouvimos uma frase que nos ofende, pudéssemos ler no coração de quem a profere,
veríamos muitas vezes lá dentro tanta amargura e tão intenso sofrer, lutas tão
tremendas, chagas tão vivas e fundas, tão dolorosas contusões de amor-próprio e
mal fechadas cicatrizes de reais ou supostos agravos, que, longe de repelirmos
a frase com aspereza, talvez só encontrássemos em nós profunda e sincera
compaixão pelo ofensor! E, demais, quem pode prever o alcance da primeira
palavra que nos sai dos lábios?!... Haverá quem não conheça o efeito dessa
embriaguez da palavra, embriaguez mais poderosa, exaltada e terrível em seus
efeitos do que a causada por outro qualquer agente?!... O som da própria voz é
uma espécie de aguilhão, que nos excita, que nos arrasta, que nos aplaude, que
nos grita aos ouvidos:
"Bem,
muito bem! Continua!..."
O mau é
soltar a primeira palavra; solta ela, vem a necessidade da justificação, a
recordação de todos os pecados velhos, a ânsia da desforra, o choque violento
das más paixões, o obscurecimento da razão, e — vai-se sempre mais longe do que
se queria ir.
O Sr. José,
mestre carpinteiro, não era o que vulgarmente se chama um homem de maus
fígados. Não era! tinha apenas essas fumaças de valente, desgraçada mania da
nossa gente do Minho, que tanto tem dado que fazer aos cirurgiões e sobretudo
aos endireitas.
O pior
defeito, porém, do mestre carpinteiro era o espírito de contradição, que quase
se poderia dizer que se havia encarnado nele. Em alguém dizendo: "Acolá
vai um gato branco", era contar que ele só via um gato preto! E era contar
que o gato nunca mais se tornava a lavar e ficava preto para todo o sempre,
pois ali estava ele, o Sr. José, pronto para sustentar a murro, a pau e a tiro,
entre as paredes de uma cadeia ou pregado numa cruz, que era preto o gato e não
branco, como toda a gente dizia. Este desgraçado vício tinha-lhe sido causa de
um sem-número de desgostos, o mais severo dos quais vamos contar, por prender diretamente
com esta narração.
Antônio, o
filho do lavrador, era cerca de um ano mais velho do que Francisco, filho do
carpinteiro. Inteligente e estudioso, no fim de um ano de escola, não havia aí
livro impresso, nem, o que mais era, sentença manuscrita, que o pequeno não
lesse, como se costuma dizer, de fio a pavio. Uma noite em que o carpinteiro
estava em casa do lavrador, este, com a santa e respeitável vaidade dos pais,
chamou o filho e fê-lo ler meia dúzia de páginas do Catecismo, para o vizinho
ouvir. Durante a leitura entrou o Francisco e foi sentar-se ao pé do pai.
Quando o rapazito acabou de ler, virou-se o dono da casa para o vizinho e
perguntou-lhe:
— Que lhe
parece?... Olhe que, a não ser o Senhor Abade e o mestre-escola, não há aí quem
leia melhor do que ele!
O Sr. José,
por deferência para com a mania querida, esteve quase a dizer que o rapaz não
sabia ler; conteve-se, porém, e rosnou um "lê bem"pouco animador. O
lavrador, agarrando então uma das orelhas do filho do carpinteiro,
perguntou-lhe, gracejando:
— E tu, meu
rapagão, não queres saber ler como o Antônio?... Diz ao teu pai que te mande à
lição, meu rapaz... Olha que candeia que vai adiante, alumia duas vezes, e,
quanto mais depressa souberes, melhor será para ti.
Aqui
entendeu o Sr. José que era chegada a ocasião de satisfazer o seu gostinho, e
declarou, portanto, que não havia doutorices,
como ele chamava ao saber, que valessem um bom par de braços.
Como é fácil
de prever, travou-se a discussão, e tanto se deixou ir o Sr. José atrás da
paixão de contradizer que, depois de negar as vantagens da instrução, acabou
por declarar que filho seu não aprendia a ler.
E se bem o
disse, melhor o executou!...
Executou;
mas, como não há argumentos de amor-próprio que destruam a rigorosa lógica da
razão, que severa punição lhe era, agora que o filho estava longe, pensar que
entre eles não poderia haver segredo em que não tivesse parte um terceiro,
carícia que não fosse feita por mão de outrem, abraço que recebesse, a não ser
por procuração!
Duro
castigo!
Quando regressara
da cidade sem carta do filho, todas estas ideias lhe haviam lanceado por tal
forma o espírito, que, quando chegara a casa do vizinho, já ele mentalmente o
tornava culpado do seu infortúnio, e, ao ouvir ler a carta, cujo post-scriptum
afirmava que, por causa do signatário dela, ficava ele sem notícias mais
íntimas do filho, operou-se-lhe no cérebro uma revolução singularíssima!
O egoísmo
teve traças para o convencer de que em virtude da suposta culpa do pai, o filho
do vizinho tinha obrigação de ler e escrever pelo dele. Pertencia-lhe metade
daquela aptidão; tinha direito a ela; não compreendia que Antônio se recusasse
a satisfazer o desejo de Francisco, sem o lesar na sua metade de saber!
Juntem a
isto o caso dos bois, e o do campo, e aí está dada a explicação, que consumiu
mais tempo e papel do que merecia.
CAPÍTULO 4
Tinham
passado quinze dias depois da ruptura que se dera entre os dois vizinhos. O Sr.
José, contra o seu costume, não tinha dado mostras de querer confiar ao
marmeleiro, seu advogado usual, a vitória da sua causa, e a mulher do lavrador,
a quem as últimas palavras do carpinteiro "deixa que tu pagá-las" tinham
feito perder o sono, começava a respirar mais livremente, confiando em Deus,
que tudo faria pelo melhor.
Amanheceu
afinal um dia formoso, e ela, que até ali, já com um pretexto, já com outro,
pudera obrigar o homem a não se afastar da aldeia, não pôde achar razões
convincentes para o impedir de ir à cidade. E lá foi ele, mas não sem prometer
um bom centro de vezes que não voltaria de noite.
Só quem as
tem sentido pode avaliar as angústias de quem espera, com a mente povoada de
sinistros pressentimentos, a chegada de um ser estremecido, quando paira sobre
ele uma ameaça de perigo!
O assobio,
que se ouve ao longe, é dele; os passos, que fazem estalar lá fora as folhas
secas, são dele; o mocho que pia no campanário da aldeia, o cão da casa uivando
dão-no em perigo!
E ninguém
com quem desabafar! De um lado a cega imóvel e indiferente, do outro os filhos
sorrindo sem preverem nem o perigo nem o alcance dele! E então vêm as razões
com que procuramos conjurar o fantasma do terror, restituindo a tranquilidade à
nossa alma:
"Teve
que fazer na cidade... O carpinteiro é assomado, mas não é mau... Já lhe passou...
A estas horas está ele a cear ou... talvez a dormir..."
E aí se vai
à porta pela milésima vez; e a vista perturba-se, tentando penetrar as trevas,
e começa a ver assassinos escondidos atrás de cada tronco de árvore; e os
ouvidos, cansados da aturada atenção, entram — de obedecer à voz interior e
distinguem o som de passos precipitados, vozes irritadas, chegando às vezes a
inventar gritos de socorro!
Como sofre
quem espera sob a influência do terror!
CAPÍTULO 5
Serão oito
horas da noite. O céu está recamado de estrelas, mas os corpos não projetam
sombras, porque o luar só aparece às nove horas.
O sítio
incute respeito: é o monte da via-sacra. Se fosse de dia ou o luar brilhasse,
poder-se-iam contar as cruzes que a partir da capela, ereta no cimo do outeiro,
se erguem pelo monte abaixo, numa distância de vinte passos de umas às outras.
Numa pequena
elevação, sobranceira ao caminho, a cerca de trinta passos do primeiro cruzeiro
da via-sacra, guiada a vista pelo brilho do lume de um cigarro, acabava-se por
distinguir o vulto de um homem, sentado, como pau traçado sobre os joelhos. Era
o mestre carpinteiro que esperava ali o vizinho, para lhe provar a justiça da
sua causa.
Quem lhe
pudesse ler no cérebro acharia isto:
"Muito
mal... não... Quinze dias de cama é nada mais... Há de levar a sua dose para
não tornar a ter o atrevimento de levantar uma cadeira para mim!"
E tão certo
estava de si, que continuava filosoficamente a fumar o cigarro, esperando o
lavrador com a pachorra com que um pescador de profissão espera horas até que
uma truta se lembre de vir brincar com o anzol.
Por fim, lá
lhe pareceu que ouvia ruído de passos, e ergueu-se. Não se enganara: era o
lavrador. Subia este a ladeira apressadamente, estimulado pela lembrança do
susto com que a mulher o estava esperando, quando o carpinteiro, de um salto,
se achou defronte dele. O lavrador reconheceu-o imediatamente, mas não se deu por
achado, e perguntou com voz cuja afetada segurança traía o sobressalto
interior: — Quem temos por aqui?
O outro,
rindo sarcasticamente, respondeu: — Alguém que vem ver-se você é homem para
outro!
— É
vossemecê, Sr. José? — redarguiu o lavrador, buscando ganhar tempo para achar
saída àquele aperto.
— Um seu
criado, para o servir com umas asas de pau!... Pode mandar dizer isto ao seu doutor, a ver o que ele de lá responde! —
prosseguiu o carpinteiro.
— Ele que há
de dizer? — retorquiu o lavrador, tentando levá-lo pelo brio. — Há de dizer que
nunca pensou que o Sr. José viesse esperar um homem que nunca lhe fez mal, e
que nem sequer traz um pau, como esse, para se defender.
— Pois dirá...
dirá, sim senhor, mas... enganou-se!... Não traz pau?... Faz mal, se bem que
nessas mãos, de pouco valia!... Mas leva rumor e acabemos com isto, que eu não
vim cá para conversar!
E, fincando
um pé um pouco mais atrás, ergueu o pau. O lavrador compreendeu que não havia
compaixão a esperar, e, confiando com razão no vigor dos próprios músculos, deu
um salto para diante, ao tempo que o adversário erguia o terrível marmeleiro, e
estreitou-lhe o corpo com os braços. O carpinteiro, vendo-se abraçado, deixou
cair o pau, já agora inútil, e arcou com o vizinho, murmurando apenas por entre
— os dentes cerrados:
— Ah! cão,
que me embaçaste!
Começou
então uma luta horrível entre aqueles dois homens, ambos ainda jovens, ambos
vigorosos. Depois de alguns minutos de esforços inauditos, para ver qual deles
subjugaria o outro, o pé do carpinteiro encontrou uma velha raiz de árvore, que
o fez cair de costas, arrastando na queda o seu contrário. Este, aproveitando a
vantagem, desprendeu um dos braços e apertou vigorosamente o pescoço do
inimigo, que espumava de furor, sem exalar um queixume. Não tardou, porém, que
uma ideia horrível viesse paralisar o esforço do lavrador. Pareceu-lhe que o
vencido tentava meter a mão no bolso, viu-se esfaqueado, passou-lhe diante dos
olhos a imagem da mulher e a orfandade dos filhos, ergueu-se e fugiu.
Não se
enganara. O carpinteiro lembrara-se, de repente, que trazia uma navalha no
bolso, e, cego de furor, parecia-lhe ainda pequena vingança a morte daquele
homem, que o estava ali estrangulando. Mal o lavrador largou a fugir,
levantou-se também e correu atrás dele com a navalha aberta na mão.
Era horrível
aquela corrida, a que um era estimulado pelo medo e o outro pelo ódio. O
lavrador, porém, além de se ter ferido num joelho, quando rolara por terra
abraçado com o carpinteiro, era também mais pesado do que este.
Ouvindo
atrás de si os passos do inimigo e sentindo-se quase impossibilitado — de tomar
fôlego, abandonou-o de todo a energia, e, correndo para o primeiro cruzeiro da
via-sacra, abraçou-se com ele, e, voltando o rosto para trás, bradou:
— Pela cruz
em que morreu Nosso Senhor, não me mate!
— Também
nela morreu o mau ladrão, maroto!... — bramiu o carpinteiro, com os lábios
quase colados ao ouvido do desgraçado, e comprimindo-o com a mão esquerda
contra a cruz, ao passo que, com a direita, buscava cravar a navalha.
***
A mão, que
se dispunha a embeber o ferro, caiu inerte, e o lavrador, sentindo afrouxar a
presa do contrário, deu um salto para o lado, viu-o dar um passo para trás,
cambalear e cair de bruços no chão, como atordoado. Depois — de o contemplar um
instante, como quem não compreende, lembrou-se da mulher e, como se tivesse
criado novas forças, correu em direção a casa, que ainda ficava a bons vinte
minutos dali.
CAPÍTULO 6
Como o
honrado lavrador o conta ainda hoje, nunca o caminho até casa lhe pareceu tão
longo nem ele o andou em menos tempo! Quando chegou, ia por tal forma
impressionado pelas diferentes peripécias, mas sobretudo pelo desfecho da luta,
que, mal entrou, fechou instintivamente a porta da rua à chave e deixou-se cair
ofegante numa cadeira.
A mulher,
pensando naturalmente que alguém o perseguia, esteve quase a gritar por
socorro; deteve-a, porém, a reflexão, e ficou extática e trêmula, toda
curiosidade e medo, com os olhos cravados no marido, à espera que este se
explicasse.
Dominada,
por fim, a emoção, correu o lavrador para os filhos, beijando-os
freneticamente, e, apertando em seguida a mulher contra o peito, num destes
abraços mudos, que tanto dizem, que traem o receio de uma separação eterna,
desfeito pelo prazer de tornarmos a ver quem já considerávamos perdido para
nós, contou-lhe, afinal, o perigo de que se vira livre por modo tão
sobrenatural.
— Olha que
foi castigo do Senhor, por ele não respeitar a cruz, quando lhe pediste por ela!...
Olha que foi, João!... — exclamou a mulher, ouvindo como o carpinteiro caíra
fulminado.
— Foi,
mulher... decerto foi... — concordou ele. — E louvado seja Ele, que se lembrou
que eu tinha filhos para criar e uma santa, como tu, para me ajudar nesta
tarefa!
A mulher,
obrigando então o filho mais velho a ajoelhar diante do modesto crucifixo, aos
pés do qual ardia a luz — de uma lamparina, elevou a Deus uma destas preces, em
ação de graças, mais imponentes na santa singeleza e mudez com que sobem do
coração aos lábios, do que o pomposo "Te-Deum" com que a ostentação
vaidosa dos grandes costuma julga retribuir qualquer benefício recebido.
Nessa noite,
a não ser o pequeno, ninguém tocou na ceia; havia, contudo, o que quer que
fosse que embargava a fala dos dois cônjuges e os não deixava erguer da mesa.
Conhecia-se que tinham medo de se ir deitar. De tempos a tempos, os olhares de
ambos encontravam-se, para logo se esquivarem, como receosos de traírem o que
os corações sentiam. Aquele silêncio, porém, aquele constrangimento desusado
entre eles, pesava-lhes!
Afinal, a
mulher, dando a conhecer o pensamento secreto, balbuciou com voz trêmula:
— Mas por que
cairia ele?!... Ó João, e se ele está morto ou... para morrer?!...
o marido,
fazendo um violento esforço para sair daquela espécie de adormecimento moral,
ergueu-se e entrou de passear silencioso.
Após alguns
instantes, a mulher, vencendo a natural timidez, perguntou, hesitando:
— Ó João, e...
e se tu fosses pedir conselho ao Senhor Abade?... Ele é tão bom homem!...
— Tiveste a
minha ideia, mulher!... Vou lá de caminho! — respondeu o lavrador.
E, pegando
na espingarda que estava pendurada a um canto, fora do alcance dos filhos, abriu
cautelosamente a porta, sondou com a vista as vizinhanças da casa, e partiu,
com pé ligeiro e coração pesado, em direção ao passal.
Seriam dez
horas, quando João bateu à porta da casa do abade. Já tudo dormia, de forma que
teve de repetir a pancada.
Depois de
alguns instantes de espera — os precisos para acender a vela e lançar um capote
aos ombros — ergueu-se a meia vidraça da janela e apareceu a cabeça do padre,
que perguntava em tom comovido:
— Quem é?
Está alguém doente?
— Sou eu,
Senhor Abade... e preciso muito falar-lhe... agora mesmo — respondeu o
lavrador.
— Pois és
tu, João!? — redarguiu o outro com manifesto espanto, reconhecendo a voz do
freguês. — Que me queres, homem de Deus?!
— Abra, pelas
almas, Senhor Abade! — insistiu João.
— Está bem,
filho, está bem... Espera um instantinho que eu vou já abrir-disse o velho, que
logo viu — que o assunto era grave.
A porta
abriu-se e João entrou. Instantes depois sabia o abade tudo.
Bastava ver
o padre uma vez, para se ficar com a certeza de que era um destes justos, que
servem para afirmar a existência da virtude na terra, um destes sacerdotes que
são uma espécie de bênção para o rebanho confiado ao seu cuidado; não admira,
pois, que mulher e marido tivessem tido a mesma ideia. Aquele... era o padre
como eu o concebo, e como Deus decerto os ama — pai e juiz, cireneu e
confidente.
— Foi a
cruz, filho!... Não foi outra coisa! — exclamou ele.— Mas é preciso lá ir, João...
Vamos lá ambos... — prosseguiu o velho, a quem assaltara a ideia de que o
carpinteiro fora vítima de uma apoplexia causada pela excitação, senão filha da
rude carícia da mão do lavrador, quando lhe cingira o pescoço. — Vamos lá,
homem... — continuou ele. — Mas, primeiro, põe-me já ali a espingarda naquele
canto... Não é precisa...
O abade
acabou de vestir-se, e, apoiado a um cajado, pôs-se a caminho, precedido pelo
lavrador, a quem entregara um lampião.
Cantavam os
galos quando os dois chegaram ao pé do cruzeiro onde caíra — o infeliz
adversário do lavrador. Aterrado, e vendando os olhos com a mão esquerda, João
estendeu a destra, que sustentava o lampião, para alumiar o sítio fatal, onde
devia jazer o carpinteiro.
Oh! que
alívio sentiu, quando o abade, depois de olhar, exclamou:
— Cá não
está ninguém!... Tu sonhaste, João! Só então se atreveu este a retirar a mão
dos olhos e a fitá-los no chão.
Não tardou
que o abade, pegando no lampião para observar o solo, se convencesse de que o
seu paroquiano não fora vítima de um sonho.
A primeira
coisa que lhe feriu a vista, foi uma poça de sangue coagulado, rente ao tosco degrau
que servia de base ao mal lavrado pedestal do cruzeiro. No meio do sangue jazia
uma pedra.
O padre
olhou atentamente para ela, e, erguendo em seguida o lampião, viu que o
cruzeiro não era, então, mais do que um enorme T de pedra.
Baixando
lentamente o braço, o sacerdote murmurou com voz contrita:
— O dedo de
Deus!
E ficou por
alguns instantes com a fronte pendida sobre o peito.
Saindo,
afinal, daquele íntimo cogitar, voltou-se para o lavrador, dizendo:
— Vamos
embora, João... Tu vais para casa, e eu, — de lá, vou ver se o infeliz precisa
de mim.
CAPÍTULO 7
Vejamos
agora o que foi feito do carpinteiro.
Quando
recuperou os sentidos, não poderia dizer quanto tempo lhe durara o delíquo. O
seu primeiro movimento foi acudir com a
mão à cabeça e viu que estava ferido. Sentou-se por terra, diante da cruz, e começou a coordenar as
ideias. Passaram-lhe então, diante dos
olhos, todos os episódios da briga até
ao momento em que intervenção estranha o prostrara por terra. Ecoaram-lhe nos
ouvidos as preces de piedade, soltas com voz de indizível agonia pelo seu
contendor, e acudiu-lhe à mente o cruel sarcasmo com que lhas abafara. Ao
chegar a este ponto, ergueu-se, aterrado, e bradou:
— Foi a cruz!...
Estou perdido!
Ninguém
imagina os tormentos que abalaram então aquela robusta natureza, enérgica no
bem como no mal, fiel na crença de Deus e de um mundo futuro, dividido em dois
campos — Céu e Inferno!... E o desgraçado viu-se abismado no último pelo
insulto feito ao símbolo que dá entrada no primeiro!... Quis rezar e não pôde!
Perseguido por uma ideia fixa, com o cérebro enfraquecido pelo sangue que
perdera, pôs-se a caminho para casa, mas uma singular coincidência veio
redobrar-lhe o martírio!
Ia alta a
Lua a essa hora, de forma que ao longo do caminho que tinha a percorrer até
vencer o outeiro da via-sacra, os seus olhos só encontravam cruzes!... Se os
erguia... via-as a prumo de vinte em vinte passos; se os baixava... lá estavam
traçadas na terra pela projeção da sombra!
O que faz
essa outra mais pesada de todas as cruzes — a cruz do remorso!... Que via-sacra!...
que horrível subida do Calvário!
Deixara ele,
finalmente, atrás de si o outeiro, quando avistou ao longe o lampião dos dois
que vinham procurá-lo. Escondeu-se atrás de uma árvore e esperou que passassem.
Que
recrudescer de remorso!
O seu
adversário, o homem que ele duas horas antes quisera matar, em vez de se fazer
acompanhar pelo homem da lei, fora bater à porta do homem de Deus; em vez da
vingança — o perdão; em vez do — castigo-a absolvição!
Quando
chegou a casa e olhou para dentro de si, teve horror de si próprio e caiu de
novo sem acordo. O padre, na volta, foi encontrá-lo a debater-se contra os
fantasmas que a febre lhe criava e fazia surgir ante os olhos da alma.
CAPÍTULO 8
Dois meses
teriam decorrido, depois destes acontecimentos. O carpinteiro já se erguia da
cama, mas ;ainda não saía à rua, e em casa do lavrador reinava a paz. Um
domingo, depois da missa, quando João já ia a retirar-se — com a mulher e o
filho, assomou o abade à porta da sacristia e disse com risonho semblante:
— Ó João!...
Deixa ir a mulher, mas espera tu, pois preciso de te falar.
A mulher foi
indo adiante e ele ficou. Saiu, por fim, o padre e, travando-lhe amigavelmente
do braço, disse-lhe:
— Mal tu
sabes onde eu te vou levar!
— Eu com o
Senhor Abade vou até ao... fim do mundo! — respondeu o lavrador, que se conteve
a tempo de não acompanhar o padre ao Inferno.
O ancião
sorriu com bondosa malícia, por perceber a emenda, e continuou:
— Vá lá!
Vou-to dizer!... Nós vamos em romaria à cruz da via-sacra!... Que dizes?
Ao lavrador
arrasaram-se-lhe os olhos de água, e por única resposta, apesar da resistência
do santo velho, beijou-lhe a mão.
E lá foram
os dois.
Imagine,
porém, o leitor qual seria a admiração do honrado homem, quando, ao chegar
perto do cruzeiro, viu o seu inimigo, o Sr. José em pessoa, de chapéu na mão,
contemplando melancolicamente o degrau da cruz onde batera com a cabeça?!...
O rosto
pálido e emagrecido mostrava bem os sofrimentos que lhe haviam minado a alma,
ainda mais do que o corpo, e o lenço vermelho, que lhe cingia a fronte,
indicava que a cicatriz ainda não estava completamente fechada.
João, ao ver
o carpinteiro, hesitou, mas a um olhar do padre continuou a andar. Chegados ao
teatro da briga, os dois contendores miraram-se em silêncio: da parte do
lavrador havia enleio, no carpinteiro percebia-se sincera comoção.
— Então,
José!... — disse o padre, dirigindo-se ao último.— Foi para isto que me pediste
que trouxesse cá o João?
— Esteja
descansado, Senhor Abade... — respondeu o carpinteiro.
E,
voltando-se em seguida para o lavrador, disse-lhe:
— Vizinho,
vossemecê é melhor do que eu... Conheço-o, tenho certeza disso... Quem vai
buscar este santo homem, em lugar de trazer o regedor, para levantar do chão
quem o quis matar, não é capaz de negar a sua mão a quem lhe pede, por esta
cruz que o salvou, que lhe perdoe!...
O lavrador
precisou de respirar para poder responder, tanto a emoção lhe tolhia a voz.
Apenas, porém, pôde falar, estendeu francamente a mão ao arrependido,
dizendo-lhe:
— Não
falemos mais nisso, vizinho... O que lá vai, lá vai... Está perdoado!... Se o
merecia, bem castigado foi!... Não falemos mais nisso, se é meu amigo!
— Fui
castigado e ainda o estou a ser!... — redarguiu o outro, que, entregando uma
carta ao padre, continuou: — Senhor Abade, faça favor de ler essa carta do meu
Francisco outra vez, mas alto...
Dizia a
carta que ele, Francisco, tinha tido a febre-amarela, e que, se escapara, o
devia aos cuidados do seu amigo Antônio. Acrescentava ainda que este se
recusara desta vez a escrever, dando como desculpa não querer fazer elogios a
si próprio, sendo por isso escrita por outro companheiro, e terminava por
anunciar ao pai que, como se fora pouco o que por ele fizera, o filho do
lavrador o andava ensinando a ler.
Terminada a
leitura, o carpinteiro, que se tinha sentado no degrau da cruz com o rosto
metido entre as mãos, ergueu-se e disse, com as faces úmidas de pranto:
— Já vê, Sr.
João, que o castigo continua!... Cada benefício, que me vem de si ou dos seus,
torna mais feia a minha má ação!
— Ainda
podia ser pior! — interrompeu o padre.
E, apontando
para a cruz derrocada, prosseguiu:
— Dá graças
àquela, que não quis que tu fosses a esta hora um assassino!
CAPÍTULO 9
O leitor
está sentindo lá por dentro um malicioso prazer, imaginando que eu tenho andado
a fugir à explicação do mistério — pois é, por enquanto, um mistério a
intervenção da cruz na pendência; nem essa intervenção lhe parece ter
explicação possível...
Ora
enganou-se o leitor!... O verdadeiro, o real explica-se sempre, e este é um
conto... que não é um conto: é um fato verdadeiro e acontecido, que o santo
abade me explicou com toda a clareza, como vai ver.
A cruz,
assente sobre o tosco pedestal, de que já falamos, era formada de três peças: a
haste, os braços e o topo.
Em noite de
medonho temporal, o fogo do céu baixara —
quem sabe se já intencionalmente!... — e,
lanhando o resto, cortara o topo da cruz em duas metades desiguais, ficando uma
destas inclinada para diante, segura apenas pelas garras de vigorosa hera.
Quando o carpinteiro comprimia o inimigo contra a cruz e apontava o ferro para
lho cravar, o lavrador, por um movimento convulsivo, puxou com as mãos os ramos
da hera, e estes, crestados pelo raio e mortos, cederam, estalando e fazendo
cair, uma para cada lado, ias duas metades da pedra que formava o topo da cruz.
A metade que pendia amparada pelos ramos, como já anteriormente dissemos, veio
então bater na cabeça do carpinteiro, quando este proferia ao ouvido do
adversário a sua feroz ironia:
— Também
nela morreu o mau ladrão!
***
Eu estou — daqui
a ver o leitor enleado por não saber dar um nome a esta intervenção da modesta
cruz da via-sacra... Faça como o padre... e como eu... chame-lhe:
O
DEDO DE DEUS!
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