6/13/2019

O Cronista (Conto), de Alexandre Herculano



O Cronista
(Ano 1535)

CAPÍTULO 1: O VIVER
A o cair da noite de um dia tenebroso dos fins do Inverno, em que o céu parecia desfazer-se em chuva, um homem a cavalo, coberto com uma ampla coroça, e um chapéu de feltro de largas abas na cabeça, saía à rédea solta dos paços de el-rei
D. João III (que então residia em Évora), e atravessava as ruas da cidade que estavam desertas, não só por causa do mau tempo; mas porque eram horas de cada qual tratar da ceia, e de repousar das fadigas do dia.
O cavaleiro dobrou muitas esquinas, enganou-se umas poucas de vezes, voltou para trás, tomou à direita, depois à esquerda, seguiu avante, voltou a desandar, rogou bem dois centos de pragas, até que por fim, chegando à boca da Rua da Oliveira, susteve o cavalo, e olhando para um e outro lado, como quem se afirmava, fez um gesto de raiva, e disse por entre os dentes:
“Dor de levadigas consuma o diabo! Pensei que não dava com a excomungada da rua!”
E seguiu por ela abaixo.
A Rua da Oliveira era talvez a pior de Évora. Posto que a maior parte da cidade já estivesse calçada, esse progresso de civilização ainda ali não havia chegado, e a rua quase estava intransitável com a chuva, que enchia as barrocas largas e profundas, disseminadas irregularmente pelo caminho. Era, além disso, aquela rua estreita, imunda, e mal-assombrada: em toda ela, por um e outro lado, não havia senão muros de quintais que pertenciam a edifícios de ruas contíguas, ou algumas casas, góticas, negras, e arruinadas, só povoadas de ratos e osgas. Apenas ao meio dela três moradas tinham habitadores: dois cavaleiros honrados, já velhos e pouco abastados, ocupavam duas casas, que ficavam no lado esquerdo: em frente habitava outro vizinho, numa casa térrea, e negra, como as restantes, conhecendo-se por um único sinal que em rua tão erma havia gente, e era que naquele sítio as águas do Inverno não tinham podido desfazer um enorme monturo, que servia de recreio aos cães vadios, que ali vinham retouçar nas imundícies despejadas quotidianamente pelos três vizinhos, naquele sítio, ainda mais intransitável e feio, que o resto da melancólica rua.
O cavaleiro de que acima fizemos menção, chegou à porta da estrebaria de Álvaro Salgado, um dos dois honrados velhos, antigos moradores daquele ermo; um homem embrulhado numa espécie de manta ou cobertor, muito roto, estava sentado num poial da parte de dentro da estrebaria, e um rocim quase héctico, amarrado à manjadoura, roía, cambaleando, algum retraço da palha, amarela, e meia podre. O homem da manta parecia tiritar de frio. 
Sustendo o cavalo, o recém-chegado disse para o que estava sentado no poial:
— Boas tardes, meu amo. Sabeis-me dizer se mora aqui Pero do Porto, mestre cantor do cardeal D. Afonso?
— Aí em frente, senhor cavaleiro, nessa casa térrea, ouço muitas vezes cantar solfa: de mestre cantor é sinal: mas o dono da casa é o licenciado Acenheiro.
— Justamente: Cristóvão Rodrigues Acenheiro. Em casa dele me disse mestre Pero que morava. Louvado Deus, que atinei com o demo da pousada. Bom homem, quisera fôsseis pedir ao vosso senhor me concedesse licença para recolher o meu cavalo nessa estrebaria; já se sabe, pagando eu.
O homem pôs-se em pé: cerrou os dentes para mostrar que não tiritava: deitou a manta para trás, querendo dar a entender que por baixo do muito safado gibão estava bem enroupado; e sem desaferrar os dentes, respondeu com meneios de altivez:
— Não preciso de ir incomodar para isso meu senhor, que ora está em casa do muito honrado cavaleiro Afonso Teles, nosso vizinho do lado. Tenho ordem para dar gasalhado a todos os cavaleiros que dele precisarem; se bem vos entendi, vós só o pedis para o vosso cavalo, e como aqui não está nenhum palafreneiro, eu próprio o recolherei.
— Logo vós sois?...
— Escudeiro de Álvaro Salgado, que é cavaleiro acontiado, e fidalgo desta cidade, para servir vossa mercê.
O cavaleiro, que parecia socarrão e malicioso, mediu de alto a baixo o vestuário pobríssimo do apavonado escudeiro, e prosseguiu:
— Perdoai, honrado escudeiro, se vos tratei com menos respeito do que era devido a vossa categoria: todavia serei ousado de vos oferecer uma ninharia para dardes de beber ao palafreneiro. Ordenai-lhe que espere por mim, que logo hei de sair.
— Aos palafreneiros o darei — retrucou o homem do gibão surrado, estendendo a mão magra e suja para receber alguns tostões brancos, que o cavaleiro tirara de uma bolsa de couro, que trazia pendurada da cinta. O prazer, mal encoberto, refulgia-lhe nos olhos encovados.
Depois disto o cavaleiro apeou-se; desafivelou a coroça, e atirou com ela para cima do cavalo, ficando em gibão e coberto com um ferragoulo, ou capa à moda de Itália, donde lhe veio o nome.
A chuva tinha cessado, e o vento saltara a nordeste. O céu azul começava a aparecer por entre os montões de nuvens que corriam para sudoeste, e as estrelas cintilantes misturavam já a sua luz incerta com a derradeira claridade do dia. O cavaleiro deixando o seu Babieca entregue ao nobre escudeiro do nobilíssimo Álvaro Salgado, rodeou o monturo, e, pé aqui, pé acolá, foi bater à porta da casa do licenciado, cantarolando esta copla do cancioneiro de Resende:
Os ares já resolutos
Dos vapores congelados,
Nevoentos,
Viçaram frios, enxutos,
Espelhentos.
— Quem bate? — perguntou uma voz forte, semelhante à de um novilho de três anos.
— Abri, mestre Pero, que é vosso amigo Fernão Cardoso. Prometi vir cear uma noite convosco; desempenho a promessa.
“Dó, ré, sol, fá! Glori... a... a in excelsis... celsis...”, garganteava Pero do Porto, correndo o ferrolho, e abrindo de par em par a grossa porta de carvalho, que, guinchando nos gonzos, parecia querer fazer o acompanhamento à voz taurina do mestre cantor.
Mestre Pero era homem de quarenta anos, roliço, baixo, espadaúdo e vermelho. Estava vestido de um modo verdadeiramente cômico: tinha na cabeça uma carapucinha branca muito suja e ensebada; trazia vestida uma espécie de jaqueta, a que então chamavam corpinho, de fustão pardo, debruada de ipre verde-escuro: andava em ceroulas, e trazia calçadas umas botas pretas, que lhe davam por meia coxa: de um lado pendia-lhe da cintura uma bolsa, por uns cordões tão compridos, que se lhe metia, quando dava qualquer passada, por entre os tornozelos; da outra parte tinha uma faca de cabo de ferro com uma argola no topo em que enfiava um cordel que lha segurava ao cinto; e para completar a harmonia de tão vistosos arreios, trazia ao pescoço uma grande toalha, à guisa de babadouro. Quando Fernão Cardoso bateu, o mestre cantor passeava pela casa compondo uma missa, que devia estrear-se dentro de quinze dias na capela do cardeal.
— Bofé — disse ele, depois de acabar a música vocal e instrumental, e abraçando Fernão Cardoso, — bofé que bem cri nunca chegasse este dia. Amigo licenciado, aqui tendes o homem mais gracioso e paceiro da Corte de el-rei nosso senhor D. João III, o afamado pajem da toalha Fernão Cardoso.
Isto dizia Pero do Porto, voltando-se para um homem, que, coberto com um bérnio, e sentado a uma banca, com a cabeça metida entre os punhos, parecia ler atentamente um grosso volume de pergaminho amarelado, à luz baça de uma candeia de bronze, que tinha diante de si. Era o licenciado Cristóvão Rodrigues Acenheiro, amigo antigo e íntimo de Pero do Porto, que vivia junto com ele, desde que mestre Pero viera residir em Évora como cantor principal da capela do cardeal D. Afonso. O licenciado mostrava ser de idade de sessenta anos, alto, magro, bastante curvado para diante, hábito que contraíra por muita frequência de ler e escrever; mas robusto e sadio, posto que um pouco pálido. Tinha juntado algum cabedal advogando por muitos anos; e achando-se com meios suficientes para viver parcamente, havia abandonado o foro, entregando-se exclusivamente ao estudo e comparação das velhas crônicas do reino, a cuja leitura tomara tal inclinação, que em nenhuma outra coisa gostava de falar, nem outro passatempo para ele havia mais que revolver manuscritos antigos, em que pudesse saciar a sede da ciência histórica. Mandava, com grande gasto da sua pouca fazenda, tirar traslados das numerosas memórias, que ainda então existiam pelos arquivos e mosteiros do reino, e estes traslados eram para ele outros tantos evangelhos. Naqueles bons tempos ainda não tinha aparecido nem a diplomática, nem a arte crítica; as escrituras, prazos, doações, cartas de testamento, etc., ainda pouco serviam para investigações históricas; as fábulas, que, ou interesses particulares, ou a imaginação de crédulos cenobitas havia enxerido por meio dos fatos do passado, mereciam tanta crença como estes; e a poesia popular tinha consagrado as suas tradições, povoando com elas a aridez da história, como tinha povoado a noite escura de medos e larvas, os bosques de monstros, os cemitérios de fantasmas, e os templos, e mais lugares consagrados, de maravilhas, e milagrosos sucessos. Naqueles bons tempos o espírito humano, semelhante à hera, abraçava-se a todos os troncos da árvore da vida, e vestia-os de viço e folhagem. O homem cria no homem; e o mundo ideal tomava corpo e vulto, e misturava-se com a realidade para a formosear. Hoje a ciência desbaratou todas as ilusões: sentados no areal medonho do presente, estendemos os olhos para o passado, e parece-nos enxergar lá, no meio das sombras que o cercam, alguns oásis deleitosos, onde há frescor e consolo para nossas almas requeimadas. Mas, como se Deus, em quem a mor parte dos que vivem já não crê, nos houvera condenado a nada crer, a voz severa, ou antes cruel, da ciência nos brada mentira! — e a imagem que nos enlevava some-se; e o espírito dá outra vez em terra, e jaz no seu ceticismo. Quando este domina tudo, seja-nos lícito fazer também uma pergunta, e deixá-la sem a resposta: a árvore da ciência será a do bem ou do mal?
Com estas reflexões tristíssimas nos íamos já esquecendo da nossa história. Voltemos a ela, e não pensemos agora no que vai pelo mundo das letras, tão baralhado e revolto, como o mundo da política.
Quando Pero do Porto disse ao seu camarada o nome do hóspede que chegara, o licenciado ergueu-se da sua poltrona de couro atauxiada, que mostrava mais de um século de antiguidade, e pertencia ao gótico puro. A passos lentos aproximou-se de Fernão Cardoso, e com a afabilidade e franqueza própria de um homem singelo, apertando-lhe a mão, lhe disse:
— Melhor hospedagem cumpria a pessoa costumada a mimos do paço; mas se não achais aqui regalo, encontrareis ao menos nesta pobre casa o gasalhado da boa vontade. Muito me tem falado de vós Pero do Porto, e folgo chegasse a oportunidade de nos honrardes nossa humilde morada.
— Por honrado me hei eu de passar um serão com o muito sábio Cristóvão Rodrigues Acenheiro, cujo nome é tão conhecido na Corte.
Estas palavras fizeram abaixar os olhos ao licenciado, mas pelo seu coração passou o estremecimento da glória. Pobre glória humana! As palavras de Fernão Cardoso não eram mais que um cálculo de engano cortesão. Entrando, vira este homem rodeado de pergaminhos, e livros, e julgando-o dado às letras, quis lisonjeá-lo. Pobre glória humana! Ninguém neste mundo conhecia ainda o autor ou compilador do resumo singelo das crônicas dos envencíssimos reis de Portugal.
— Mas sentai-vos, amigo Fernão Cardoso — acudiu Pero do Porto, arrastando uma poltrona, mais pulverulenta e velha, se era possível, que a do licenciado. — Deveis vir cansado: ou cavalgastes até cá? Que tal esteve o dia? Que se diz hoje pela Corte? A saúde pelo que parece não vai má? Hem? Clara! Clara! Apressa essa ceia!
Estas últimas palavras, puxadas com ânsia dos amplos pulmões de mestre Pero, retumbaram pelo velho edifício, como os berros ou estouros de trovoada eminente. O licenciado, que estava em pé junto dos dois amigos, disse então, fazendo uma cortesia, e encaminhando-se para o bufete:
— Creio que me dareis licença para levar a cabo, antes da ceia, a leitura de uma crônica latina, cujo traslado devo infalivelmente restituir amanhã.
— Estai à vossa vontade — respondeu Fernão Cardoso, que se ergueu um pouco, fazendo-lhe uma leve inclinação de cabeça; e, voltando-se para o mestre cantor, disse, rindo:
— Diabo! Como quereis que vos responda de roldão a tantas e tão desvairadas perguntas!
— Seguidamente — retrucou mestre Pero. — Também as notas de um Te Deum estão juntas num só papel, e cantam-se a compasso, umas após as outras.
— Tendes razão. Mas antes de tudo dai-me uma vez de água.
— Ai! — interrompeu o cantor — é coisa que não vos darei de leve. Afirmo-vos que me doeria a consciência se um tal dia como este vos visse beber esse veneno lento, a que chamam água. O meu cântaro é um odre: e o mais é, que nunca nele achei vinagre; porque o despejo a miúdo. Que me dizeis!
— Já que assim o quereis, trocarei a vez de água numa vez de vinho.
Laudate dominum! — exclamou mestre Pero, encaminhando-se para uma porta que dava para os quartos interiores. — Irei eu buscá-lo; que a minha Clara está aviando a ceia.
Enquanto o cantor ia tratar de impedir que o seu hóspede se envenenasse, bebendo água, este teve tempo de examinar a habitação onde se achava. Era uma casa térrea e baixa, em cujo teto afumado se viam algumas fendas, pelas quais penetrava a chuva: a um canto estava o telônio do licenciado; e este era o sítio mais decente e bem reparado da quadra, porque aí o teto parecia bom, a parede era branqueada, e o chão coberto com uma esteira grossa, que embargava a umidade. Cristóvão Rodrigues Acenheiro estava na sua postura costumada, curvado sobre o bufete, com a cabeça entre os punhos; e Fernão Gardoso sentado na poltrona, maldizia, lá consigo, a hora em que se tinha lembrado de cumprir a promessa que fizera ao mestre da capela do cardeal, de vir cear com ele algumas vezes, enquanto a Corte residisse em Évora, e protestava no íntimo da sua alma, de nunca mais nem sequer passar pela Rua da Oliveira.
Feito este bom propósito, o famoso pajem da toalha esperou resignado a volta do seu hóspede, cuja figura repolhuda e vermelha não tardou em assomar no vão da porta interior: trazia numa das mãos uma escudela de barro, e na outra uma grande borracha:
— Ei-lo aqui do ano passado, que parece ter dez anos; é de real a canada. Nunca o bebi melhor em Valença, quando...
— Quando éreis mestre da sé daquela cidade — atalhou Fernão Cardoso.
— Onde ensinei muito tempo; onde conheci e tratei com principais.
“Ladrão! — rosnou com os seus botões o pajem da toalha de D. João III. — Ladrão! que me vais empurrar pela vigésima vez a história das bebedeiras que pilhaste em Castela!”
— E era havido em muita reputação — prosseguia mestre Pero — e muito estimado; e muitas vezes nos íamos, eu e os regedores da cidade, a festejar, e metíamo-nos numa taberna, onde comíamos, e bebíamos perto de um almude de vinho; e sobre isto folgávamos, e jogávamos as bofetadas; e muitas vezes nos embebedávamos, e não deixava de ser cada um quem era; que já me aconteceu descalçarem-me as calças, e os sapatos, sem eu sentir nada; senão quando me desembebedava, e me ia à pousada descalço. Aquilo é que era terra para viver e festejar, que não aqui em Portugal!
— A ceia está pronta.
Estas palavras, que soaram do interior da casa, eram pronunciadas por uma voz mulheril, cujo acento parecia estrangeiro. “É Clara — pensou Fernão Cardoso, que bocejava em hiatos tremendíssimos ouvindo a surrada e nojenta história do mestre cantor, — alguma valenciana de olhos formosos, que Pero do Porto consigo trouxe, e que bem mal-empregada é em tal borracho. Terei ao menos mais agradável companhia.” Esta ideia o consolou; porque já imaginava uma distração ao tédio infinito que dele se apoderara. E com efeito, que há aí que alegre melancolias como uma voz de mulher? Na mais aborrida hora do existir, se vem cortá-la um sorriso feminino, o homem cessa de maldizer da vida. No último degrau da vileza, da corrupção, ou da perversidade, o homem perde o derradeiro vestígio da nobreza do seu ser; mas a mulher lá mesmo conserva lembranças de que foi anjo. Não há coração mulheril que se feche inteiramente, como o do homem, em invólucro de maldade, e de torpeza, ou se o há, tão raro é ele, que poucos o terão encontrado. É por isso que onde soa a voz da mulher há sempre um brado de esperança, como, por mais que o céu ande cerrado de nuvens, não desesperamos da luz; porque sabemos que além desses castelos nebulosos, gira o astro do dia, que mais cedo ou mais tarde afugentará as trevas que nos rodeiam. Mulher, mulher! astro de luz também tu és; somos nós as nuvens de tempestade, que muitas vezes te escurecemos a face, e depois nos queixamos de ti, e te acusamos e amaldiçoamos, tendo-te apagado o brilho de pureza com o lodo das nossas paixões vilíssimas!... Mas outra vez íamos quebrando o fio da história, cuja gravidade não consente estas reflexões que atiram algum tanto ao romântico, coisa, como todos sabem, a mais abominável das mil e uma abominações literárias deste abominado e desenfreado século.
Tanto que a palavra ceia feriu os ouvidos de Pero do Porto, deixando a escudela de vinho nas mãos de Fernão Cardoso, e largando no chão a borracha, correu à porta, donde soara a voz, e disse para dentro:
— Se está pronta, põe aqui a mesa, para honrarmos o hóspede.
Imediatamente, um vulto de mulher, que mal se enxergava à luz baça da candeia remota do licenciado, apareceu no limiar da porta interior e deu alguns passos — e Fernão Cardoso lhe viu o rosto... era Clara... era uma preta negríssima! Os sonhos do pajem da toalha caíram em terra desfeitos em pó, como um cadáver romano desenterrado em Pompeia se dissolve apenas lhe bate o ar.
A preta trazia na mão dois pés de banca, feitos em forma de X: colocou-os no meio da casa e deitou-lhe em cima uma espécie de tabuleiro, sobre o qual estendeu uns panos que tiravam à cor daquela Hebe do mestre cantor. Depois pegou numa grande alâmpada, que estava numa prateleira ao canto da casa, acendeu-a à candeia do licenciado, e pendurou-a por cima da mesa num arame, que ia prender no teto da vasta quadra. 
— Vamos, amigo Fernão Cardoso — disse o jovial Pero do Porto sentando-se à mesa, — pareceis hoje desacostumadamente triste! Chegai-vos para cá. Senhor licenciado, são horas de deixar esses excomungados livros.
O licenciado ergueu-se vagarosamente; apagou a sua candeia de bronze; e dirigindo-se para a mesa falava consigo só.
“Não há que duvidar! Todas as crônicas rezam pelo mesmo teor... Não foi fábula tua, Duarte Galvão... certo que não foi fábula...”
E sentou-se ao pé de Fernão Cardoso; do outro lado estava Pêro do Porto, junto do qual havia uma poltrona vazia. A preta, que tinha saído, voltou naquele momento: trazia na mão duas escudelas de barro vermelho, que pôs sobre a mesa; foi à prateleira buscar um alguidar e colocou-a igualmente sobre os mascarrados manténs: depois voltou para dentro, e veio com um filhinho ao colo.
Trazia também uma borracha enorme, que pôs ao pé das escudelas.
Digna serva de tal senhor”, pensou Fernão Cardoso, olhando para a negra Clara, que se aproximava para sentar-se na cadeira que estava vaga, ao lado de Pero do Porto. Com efeito a preta tanto na figura como no trajo era hedionda. Vestia um cós ou cinta de chamalote aleonado, já muito velho, e uma averdugada que fora amarela, rota e imunda: ao pescoço trazia pendurada, não uma porção de âmbar em forma de pera, como então se usava, mas uma bola de cera pez, qual sua dona, tisnada e fétida; a carapinha tinha-a em crenchas  em revoltas e enredadas, que lhe ficavam tão bem como ficaria a uma fúria o seu toucado de serpes. Aquela tenebrosa formosura andava, além disso, descalça de pé e perna.
Tendo examinado a figura brutesca de Clara num lanço de olhos, o pajem da toalha os volveu para os pratos que estavam na mesa, e sentiu arrepiarem-se-lhe as carnes, vendo que ficava sem ceia. Num dos pratos havia uma alentada porção de verde guisado, e no outro salada, comida em verdade deliciosa para uma noite de Fevereiro, em que o vento soprava do nordeste, e fazia tiritar de frio, entrando pelas fisgas da mal reparada casa. 
O verde era enxuto, e poder-se-ia comparar a uma grande almôndega da nossa moderna cozinha. Puxando pelo navalhão que trazia à cinta, mestre Pero dividiu em talhadas aquela espécie de bolo; cortou quatro grossas fatias de pão; pôs sobre cada uma delas uma das talhadas do verde, e repartiu-as entre todos, sem esquecer a preta, que se havia sentado na poltrona que lhe ficava ao lado.
O licenciado, sem dar palavra, comia apressadamente, e parecia que uma ideia viva lhe preocupava o ânimo.
Pero do Porto com o verde, sobreposto no pão, na direita, lhe cravava a espaços os dentes, entremeando-o com mãos-cheias de salada, que com a esquerda tirava da escudela.
Fernão Cardoso estava em ânsias: o estômago se lhe revolvia com o cheiro do guisado: por outra parte não queria ofender o seu hóspede: enfim resolveu aproveitar-se da luz baça que dava a lâmpada, para deixar cair no chão o verde, que ia progressivamente espalhando e desfazendo com os pés, ao mesmo tempo que roía o pão seco, dando a todos os demônios a visita, o hóspede e a ceia.
— Não comeis salada? — dizia-lhe Pero do Porto, falando com a boca cheia.
— Obrigado! Andei há pouco com febres: receio as doenças; senão comeria por vinte!
— A beber! A beber! — gritou o mestre cantor como se estivesse dando ordens a duzentos arcabuzeiros de cavalo.
A preta levantou-se; pegou na borracha; encheu a altamia, e pô-la diante de Fernão Cardoso.
Este, tendo-lhe apenas chegado os beiços, ofereceu-a ao licenciado, que sem lhe tocar a passou ao seu companheiro. Pero do Porto despejou-a de um golpe. Depois limpando a boca à borda dos manténs, disse para o pajem da toalha, que bem ou mal tinha tragado o pão que lhe coubera em sorte:
— E as notícias da Corte, que vos pedi? Há ou não há por lá coisa que valha a pena de saber-se?
— Certo que sim; e bem tristes coisas. Não vo-las quisera eu dizer — respondeu Fernão Cardoso, com ar compungido, e desejoso de se vingar da má ceia com algum epigrama.
— E que tristes novidades são essas? — replicou o mestre cantor.
— Que el-rei espera brevemente bulas do papa para haver em Portugal a Santa Inquisição, e que vão juntar-se cortes em Évora, o que fará encarecer o vinho pelas muitas gentes que a elas vêm.
A notícia acerca da Inquisição aludia a certo zunzum, que vogava, de que mestre Pero não era dos mais correntes na fé; a outra fácil é de perceber aonde atirava, para quem se lembrar das proezas praticadas em Valença, e que ele referira pela vigésima vez ao pajem da toalha.
— Má é a segunda nova: quanto à primeira sê-lo-á só para judeus — retrucou Pero do Porto, rindo com um riso amarelo.
— Má é a primeira — disse o licenciado que até aí estivera em absoluto silêncio. — Má é a primeira, porque vai com isso el-rei dar mais força ao poder de Roma, que pelo nosso mal não é pequeno. Não sou eu dos que temem por si; que, mercê de Deus, sou da raça lídima, e nunca fui suspeito de judaísmo nem de heresia; mas temo pela minha terra e pela minha nação. Doem ainda a Castela as feridas que lhe abriu a fúria da Inquisição. Santo e bom é seu instituto; mas esta geração vai corrupta e má, e creio eu que mais cobiça, e falta de caridade, e luxúria há aí por claustros e clerezias que por paços de senhores, praça de traficantes e mercadores. É por isso que eu não quisera que a gente eclesiástica tivesse mais um caminho para satisfazer suas paixões desordenadas.
A veemência com que o licenciado pronunciou estas palavras moveram rijamente o ânimo de Fernão Cardoso, que apesar de brincalhão era homem de claro entendimento.
— Talvez tenhais razão — disse ele para Cristóvão Rodrigues Acenheiro, — mas os intentos da sua Alteza são conservar a religião, e guerrear seus inimigos: apesar de quanto fez el-rei D. Manuel para acabar com eles, parece que cada vez crescem mais: tempo há em que é preciso ser cruel; ferro e fogo são às vezes remédio: e se algum inocente padecer, Deus lá está para lhe fazer justiça.
— Ferro e fogo — disse o licenciado — quisera eu se gastasse com os inimigos da Cruz que moram pela fronteira de África. Era contra mouros armados que Portugal sabia usar de um e de outro em tempo dos nossos antigos reis: hoje mal se pensa nisso. Naus e soldados, só há para a índia; porque na Índia trocamos sangue por ouro; na África feridas por feridas. Bate o Alcorão às portas das nossas fortalezas, e nós curamos de acender fogueiras nas praças de Lisboa, para queimar homens, cujos erros mal ressumbram das trevas em que andam envoltos. Os cavaleiros portugueses em vez de correrem para o teatro das nossas passadas façanhas, irão assistir às execuções de um tribunal que servirá as ambições da gente eclesiástica de Roma, cuja dissolução deu azo a levantar-se esse Anticristo da Alemanha, Frei Martim, que tantos danos tem feito. Como cabeça da Igreja muito se hão de venerar os papas; mas os papas são homens, e velho intento de todos eles é o acurvar as cervizes dos reis até lhes estes beijarem os rostos das suas alparcas: nunca dos nossos o alcançaram, salvo, com mágoa o digo, da sua Alteza que Deus guarde. Sabeis vós o que sucedeu a el-rei D. Afonso Henriques com o papa que era no seu tempo?
— Sei eu — acudiu Pero do Porto, que escutara com religiosa atenção o discurso do seu companheiro, aprovando-o de vez em quando, com um sinal de cabeça afirmativo, — sei eu o que quereis dizer: é a história do legado. Ouvi uma vez o cardeal meu senhor e o cronista Fernão de Pina falarem sobre esse ponto: mas Fernão de Pina teimava que era fábula, e João de Barros, que todos têm em conta de muito discreto, e que também aí era presente, encostava-se à mesma opinião.
— Não acertam — disse o licenciado. — Em todas as crônicas mais antigas o acho narrado, e não vejo razão para deixarmos de o acreditar. Em elegante frase o acabo eu de ler nessa memória latina, que devo restituir amanhã, e que tem seus bons duzentos anos.
— E que história é essa, de que me parece ter já lido alguma coisa, ou ouvido confusamente falar? — perguntou Fernão Cardoso, cuja curiosidade tinha sido excitada pelo discurso do licenciado, e a quem a ceia não pesava demasiadamente no estômago, para lhe produzir sono.
— Vê-la-eis dentro em pouco na abreviação que estou fazendo das crônicas dos envencíssimos reis de Portugal... Mas esperai... isto é cedo, e se quereis, ler-vos-ei nesta elegante escritura, que de mim por tão pouco tempo fiaram.
— Sou muito fraco latino — interrompeu o pajem da toalha — para poder entender seguidamente essa leitura: aliás de boa vontade vos escutara.
— Usa serás mestre — respondeu Cristóvão Rodrigues Acenheiro. — Lê-lo-ei em português corrente; nem me será grão trabalho tal leitura.
— Far-me-eis então nisso assinalada mercê — disse Fernão Cardoso.
O licenciado ergueu-se: foi buscar o manuscrito: abriu-o, e leu o que se verá no seguinte capítulo, enquanto o mestre cabeceava, a preta roncava, e a criança, que esta tinha nos braços, dormia placidamente o seu sono de inocência.
 

CAPÍTULO 2: O VIVER 
E o licenciado, correndo pelos olhos a antiga escritura, dizia desta maneira: 
Houve um tempo em que a Sé de Coimbra era formosa; houve um tempo em que essas pedras, ora tisnadas pelos anos, eram ainda pálidas, como as margens areentas do Mondego. Então o luar batendo nos lanços dos seus muros, dava um reflexo de luz suavíssima, mais rica de saudade que os próprios raios daquele planeta guardador dos segredos de tantas almas, que só nele creem que exista uma inteligência que as perceba.
Então aquelas ameias e torres não haviam sido tocadas das mãos de homens, desde que os seus edificadores as tinham colocado sobre as alturas; e todavia já então ninguém sabia se esses edificadores eram da nobre raça goda, se da dos conquistadores árabes.
Mas, quer filha dos valentes do Norte, quer dos pugnacíssimos Sarracenos, ela era formosa, na sua singela grandeza entre as outras sés das terras de Hispânia. Aí sucedeu o que ora ouvireis contar.
Corria no meio o duodécimo século. Na batalha de Ourique D. Afonso Henriques fora aclamado rei de Portugal. Pouco havia que falecera seu bom e leal aio e amo, o velho Egas Moniz; D. Tareja sua mãe ainda jazia presa, desde que ele a vencera e ao seu terceiro marido, o conde de Trastâmara; o jovem rei morava então nos nobres paços de Coimbra, esperando favorável oportunidade de acometer Lisboa, cidade principal do reino, ainda então ocupada de mouros.

Em uma das torres do velho alcáçar de Coimbra, encostado entre duas ameias, a horas que o Sol fugia do horizonte, el-rei conversava com Lourenço Viegas, o Espadeiro, e com ele dispunha meios, e apurava traças para guerrear a mourisma.

E lançou casualmente os olhos para o caminho que guiava ao alcáçar, e viu o bispo D. Bernardo, que, montado na sua possante mula, cavalgava apressado pela encosta acima.

— Vedes vós — disse ele ao Espadeiro — o nosso leal D. Bernardo, que para cá se encaminha? Negócio grave por certo o faz sair a tais desoras da crasta da sua sé. Desçamos à sala de armas e vejamos o que ele quer.
E desceram.

Grandes lampadários ardiam já na sala de armas do alcáçar de Coimbra, pendurados de cadeias de ferro chumbadas nos fechos dos arcos de volta de ferradura, que Sustentavam os tetos de grossa cantaria. Pelos feixes de colunas delgadas, divididas entre si, mas ligadas na base por um soco geral e maciço, pendiam corpos de armas brunidas, que reverberavam a luz das lâmpadas, e pareciam cavaleiros armados, que em silêncio guardavam aquele amplo aposento. Alguns escudeiros faziam retumbar as abóbadas, passeando de um para outro lado.

Uma portinha, que ficava num ângulo da quadra, se abriu, e dela saíram el-rei e Lourenço Viegas que desciam da torre: quase ao mesmo tempo assomou no grande portal de entrada a figura venerável e solene do bispo D. Bernardo.
— Guarde-vos Deus, bispo de Coimbra: que muito urgente negócio vos traz aqui esta noite? — disse el-rei a D. Bernardo.
— Más novas, senhor. Trazem-me aqui letras do papa, que ora recebi.
— E que quer de vós o papa?
— Que da sua parte vos ordene solteis vossa mãe...
— Nem pelo papa, nem por ninguém o farei.
— E manda-me que vos declare excomungado, se não quiserdes cumprir seu mandado.
— E vós que intentais fazer?
— Obedecer ao sucessor de São Pedro.
— Quê? D. Bernardo amaldiçoaria aquele a quem deve o bago pontifical; aquele que o levantou do nada? Vós, bispo de Coimbra, excomungaríeis o vosso príncipe, por que ele não quer por a risco a coroa, que em Ourique lhe puseram na cabeça os cavaleiros portugueses?
— Tudo vos devo, senhor rei — atalhou o bispo, — salvo minha alma que pertence a Deus, minha fé que devo a Cristo, e a minha obediência que guardarei ao papa.
— D. Bernardo! D. Bernardo! — disse el-rei sufocado de cólera — lembrai-vos de que afronta, que se me fizesse, nunca ficou sem paga!
— Quereis, senhor rei, soltar vossa mãe?
— Não! Mil vezes não!
— Guardai-vos!
E o bispo saiu, sem dizer mais palavra. El-rei ficou pensativo por algum tempo; depois falou em voz baixa com Lourenço Viegas, e encaminhou-se para a sua câmara. Daí a pouco o alcáçar de Coimbra jazia, com o resto da cidade, no mais profundo silêncio.
***
Pela alvorada, muito antes de romper o Sol, no dia seguinte, Lourenço Viegas passeava com el-rei na sala de armas do paço mourisco.
— Se eu próprio o vi, montado na sua boa mula, ir lá muito ao longe, caminho da Terra de Santa Maria!
Na porta da Sé estava pregado um pergaminho com larga escritura, que, segundo me afirmou um clérigo velho que aí chegara quando eu olhava para aquela carta, era o que eles chamam o interdito... — isto dizia o Espadeiro, olhando para todos os lados, como quem receava que alguém o ouvisse.
— Que receias, Lourenço Viegas? Dei a Coimbra um bispo que me excomunga, porque assim o quis o papa: dar-lhe-ei outro que me absolva, porque eu assim o quero. Vem comigo à Sé. Bispo D. Bernardo, tarde será o arrepender-te da tua ousadia!
Dali a pouco as portas da Sé estavam abertas porque o Sol era nado, e el-rei acompanhado de Lourenço Viegas e de dois pajens atravessava a igreja e se dirigia à crasta, onde ao som de campa tangida tinha mandado juntar o cabido, com pena de morte para o que aí faltasse.
***
Solene era o espetáculo que apresentava a crasta da Sé de Coimbra. O Sol dava com todo o brilho de manhã puríssima por entre os pilares que sustinham as abóbadas dos cobertos, que cercavam o pátio interior. Ao longo desses cobertos caminhavam os cônegos com passos lentos, e as largas roupas lhes ondeavam ao bafo suave do vento matutino. No topo da crasta estava el-rei, em pé, encostado ao punho da espada, e um pouco atrás dele Lourenço Viegas e os dois pajens. Os cônegos iam chegando, e formavam um semicírculo a pouca distância de el-rei, em cujo capelo de ferro brunido ferviam buliçosos os raios do Sol.
Toda a clerezia da Sé estava ali apinhada, e el-rei, sem dar palavra e com os olhos fitos no chão, parecia envolto em fundo pensar. O silêncio era completo.
Por fim D. Afonso Henriques ergue o rosto, carrancudo e ameaçador:
— Cônegos da Sé de Coimbra, sabeis a que vem aqui o rei de Portugal?
Ninguém respondeu palavra.
— Se o não sabeis, dir-vos-ei eu — prosseguiu el-rei —: vem assistir à eleição do bispo de Coimbra.
— Senhor, bispo temos: não há aí nova eleição — disse o mais velho e autorizado dos cônegos que estavam presentes, e que era o adaião.
— Amém — responderam os outros.
— Esse que vós dizeis — bradou el-rei, cheio de cólera — esse jamais o será; tirar-me quis ele o nome de filho de Deus; eu lhe tirarei o nome do seu vigário. Juro que nunca nos meus dias porá D. Bernardo pés em Coimbra: nunca mais da cadeira episcopal ensinará um rebelde a fé das santas escrituras! Elegei outro: eu aprovarei vossa escolha.
— Senhor, bispo temos: não há aí nova eleição — repetiu o adaião.
— Amém — responderam os mais.
O furor de D. Afonso subiu de ponto com esta resistência.
— Pois bem! — disse ele, com a voz presa na garganta, depois de um olhar terrível que lançou pela assembleia, e de alguns momentos de silêncio. — Pois bem! Saí daqui, gente orgulhosa e má! Saí, vos digo eu! Alguém por vós elegerá um bispo...
Os cônegos fazendo profunda reverência encaminharam-se para as suas celas, ao longo das arcarias da crasta.
Entre os que ali se achavam, um negro, vestido de hábitos clericais, tinha estado encostado a um dos pilares, observando aquela cena: os seus cabelos revoltos contrastavam pela alvura com a pretidão da tez. Quando el-rei falava, ele sorria-se e abanava a cabeça como quem aprovava o dito. Os cônegos começavam a retirar-se, e o negro ia após eles. D. Afonso fez-lhe um sinal com a mão. O negro voltou para trás.
— Como hás nome? — perguntou-lhe el-rei.
— Senhor, hei nome Soleima.
— És bom clérigo?
— Na companhia não há dois que sejam melhores.
— Bispo serás, D. Soleima. Vai tomar teus guisamentos; que hoje me cantarás missa.
O clérigo recuou: naquela face tisnada viu-se uma contração de susto.
— Missa não vos cantarei eu, senhor — respondeu o negro com voz trémula, — que para tal auto não tenho as ordens requeridas.
— D. Soleima, repara bem no que te digo! Sou eu que te mando vás vestir as vestiduras de missa. Escolhe: ou hoje tu subirás os degraus do altar-mor da Sé de Coimbra, ou a cabeça te descerá de cima dos ombros, e rolará pelas lajes deste pavimento.
O clérigo curvou a cara.
— Kirie-eleyson... Kirie-eleyson... Christe-eleyson! — garganteava daí a pouco D. Soleima, revestido dos hábitos episcopais, junto ao altar da capela-mor. El-rei D. Afonso Henriques, o Espadeiro e os dois pajens, de joelhos, ouviam missa com profunda devoção.
***
Era noite. Numa das salas mouriscas dos nobres paços de Coimbra havia grande sarau. Donas e donzelas sentadas ao redor do aposento ouviam os trovadores, repetindo ao som da viola e em tom monótono suas magoadas endechas, ou festejavam e riam com os arremedilhos satíricos dos truões e farsistas. Os cavaleiros em pé, ou falavam de aventuras amorosas, de justas e de torneios ou de fossados e lides por terras de mouros fronteiros. Para um dos lados, porém, entre um labirinto de colunas, que davam saída para uma galeria exterior, quatro personagens pareciam entretidas em negócio mais grave do que os prazeres de noite de festa o permitiam. Eram estas personagens el-rei D. Afonso Henriques, Gonçalo Mendes da Maia, Lourenço Viegas e Gonçalo de Sousa o Bom: os gestos dos quatro cavaleiros davam mostras de que eles estavam vivamente agitados.
— É o que afirma, senhor, o mensageiro — dizia Gonçalo de Sousa — que me enviou o abade do Mosteiro de Tibães onde o cardeal dormiu uma noite para não entrar em Braga. Dizem que o papa o envia a vós, porque vos supõe herege. Em todas as partes por onde o legado passou, em França e Espanha, vinham a lhe beijar a mão reis, príncipes e senhores: a eleição de D. Soleima não pode por certo ir avante...
— Irá, irá! — respondeu el-rei em voz tão alta que as suas palavras reboaram pelas abóbadas do vasto aposento. — Que o legado tenha tento em si! Não sei eu se haveria aí cardeal, ou apostólico, que me estendesse a mão para eu lha beijar, que pelo cotovelo lha não cortasse fora a minha boa espada. Que me importam a mim vilezas dos outros reis e senhores? Vilezas, não as farei eu!
Isto foi o que se percebeu daquela conversa: os três cavaleiros falaram com el-rei ainda por muito tempo; mas em voz tão baixa, que ninguém percebeu mais nada.
***
Dois dias depois o legado do papa chegou a Coimbra: mas o bom do cardeal tremia em cima da sua possante mula, como se maleitas o tiveram tomado. As palavras de el-rei tinham sido ouvidas por muitos, e alguém as tinha dito ao legado.
Todavia apenas passou a porta da cidade, revestindo-se de ânimo, encaminhou-se direito ao alcáçar real.
El-rei o saiu a receber acompanhado de senhores e cavaleiros: com modos corteses o guiou à sala do seu conselho, e aí se passou entre eles o que ora ouvireis contar.
El-rei estava sentado no seu trono: diante dele o legado num sento raso, posto em cima de um estrado mais elevado: os senhores e cavaleiros cercavam o trono real.
— Dom cardeal — começou el-rei, — que viestes vós fazer a minha terra? Posto que de Roma só mal me tenha vindo, creio me trazeis agora algum ouro, que dos seus grandes tesouros me manda o senhor papa para estas hostes que faço, e com que guerreio noite e dia os infiéis da frontaria. Se isto trazeis, aceitar-vos-ei: depois, desembaraçadamente podeis seguir vossa viagem.
No ânimo do legado a cólera sobrepujou o temor, quando ouviu as palavras de el-rei, que eram de amargo escárnio.
— Não a trazer-vos riquezas — atalhou ele — mas a ensinar-vos a fé vim eu, que dela parece vos esquecestes, tratando violentamente o bispo D. Bernardo, e pondo no seu lugar um bispo sagrado com as vossas manoplas, vitoriado só por vós com palavras blasfemas e malditas...
— Calai-vos, dom cardeal — gritou el-rei, — que mentis pela gorja! Ensinar-me a fé?! Tão bem em Portugal, como em Roma, sabemos que Cristo nasceu da Virgem; tão certo como vós outros romãos cremos na Santa Trindade. Se a outra coisa vindes, amanhã vos ouvirei: hoje podeis-vos ir.
E ergueu-se: os olhos lhe chamejavam de furor. Toda a coragem do legado desapareceu como fumo, e sem atinar com resposta, saiu do aposento real.
***
O galo tinha cantado três vezes: pelo arrebol da manhã o cardeal partia aforradamente de Coimbra, cujos habitantes dormiam ainda repousadamente.
El-rei foi um dos que despertaram mais tarde. Os sinos harmoniosos da Sé costumavam acordá-lo tocando as ave-marias: naquele dia ficaram mudos; e quando ele se ergueu havia mais de uma hora que o Sol subia para o alto dos céus, do lado do oriente.
— Misericórdia! misericórdia! — gritavam devotamente homens e mulheres à porta do alcáçar, com alarido infernal. El-rei ouviu aquele ruído.
— Que vozes são estas que soam? — perguntou ele a um pajem.
O pajem lhe respondeu chorando:
— Senhor, o cardeal excomungou esta noite a cidade, e partiu: as igrejas estão fechadas; os sinos já não há quem os toque; os clérigos fecham-se nas suas pousadas. A maldição do santo padre de Roma caiu sobre nossas cabeças.
Outra vez soou à porta do alcáçar: — Misericórdia! misericórdia!
— Que enfreiem e selem o meu cavalo de batalha fouveiro. Pajem! que enfreiem e selem o meu melhor corredor!
Isto dizia el-rei, encaminhando-se para a sala de armas. Aí envergou à pressa um saio de malha, e pegou num montante, que apenas dois portugueses dos de hoje valeriam a alevantar do chão. O pajem tinha saído, e dali a pouco o melhor cavalo de batalha que el-rei tinha, tropeava e rinchava à porta do alcáçar.
***
Um clérigo velho montado numa alentada mula branca, vindo de Coimbra, seguia o caminho da Vimieira, e de instante a instante espicaçava os ilhais da carruagem com os seus acicates de prata: em duas outras mulas iam ao lado dele dois jovens com caras e meneios de beatos, vestidos de opas e tonsurados, mostrando nos seus meneios e idade que aprendiam ainda as pueris, ou ouviam as gramaticais. Era o cardeal que se ia a Roma com dois sobrinhos seus que o tinham acompanhado.
Entretanto el-rei partira de Coimbra sozinho. Quando pela manhã Gonçalo de Sousa e Lourenço Viegas o procuraram nos seus paços, souberam que era partido após o legado. Temendo o carácter violento de D. Afonso, os dois cavaleiros lhe seguiram a pista à rédea solta, e iam já muito longe quando viram o pó que ele fazia, correndo ao longo da estrada, e o reflexo do sol, batendo de chapa no seu capelo de ferro brunido.
Os dois fidalgos esporearam com mais força os ginetes e breve alcançaram el-rei:
— Senhor, senhor, aonde ides sem vossos leais cavaleiros, tão cedo e açodadamente?
— Vou pedir ao legado do papa que se amerceie de mim...
A estas palavras os cavaleiros transpunham uma assomada, que encobria o caminho: pela encosta abaixo ia o cardeal com os dois jovens das opas, e cabelos tonsurados.
— Oh!... — disse el-rei. Esta única interjeição lhe fugiu da boca; mas que discurso houvera aí que a igualasse? Era o rugido de prazer do tigre, no momento em que salta do fojo sobre a preia descuidada.
Memento mei, Domine, secundum magnam misericordiam tuam! — rezou o cardeal em voz baixa e trémula, quando, ouvindo o tropear dos cavalos, voltou os olhos e conheceu el-rei.
Em um instante este o tinha alcançado. Ao perpassar por ele, travou-lhe do cabeção do vestido, e num relance ergueu o montante: felizmente os dois cavaleiros arrancaram as espadas, e cruzaram-nas debaixo do golpe que já descia sobre a cabeça do legado: os três ferros feriram fogo; mas a pancada deu em vão, aliás o crânio do pobre clérigo teria ido fazer mais de quatro redemoinhos nos ares.
— Senhor, que vos perdeis, e nos perdeis, ferindo o ungido de Deus! — gritaram os dois fidalgos, com vozes aflitas.
— Rei — disse o velho chorando, — não me faças mal; que estou à tua mercê! — Os dois jovens também choravam.
D. Afonso deixou descair o montante, e ficou em silêncio alguns momentos.
— Estás à minha mercê — disse ele por fim. — Pois bem! Viverás, se desfizeres o mal que causaste. Que seja levantada a excomunhão lançada sobre Coimbra, e jura-me em nome do padre santo, que nunca mais nos meus dias será posto interdito nesta terra portuguesa, que às lançadas conquistei aos mouros. Em reféns deste pacto ficarão teus sobrinhos: se no fim de quatro meses, de Roma não vierem letras de bênção, tem tu por certo que as cabeças lhes voarão de cima dos ombros. Apraz-te este contrato?
— Senhor, sim! — respondeu o legado com voz sumida.
— Juras?
— Juro.
— Mancebos, acompanhai-me.
Dizendo isto, el-rei fez um aceno aos sobrinhos do legado, que com muitas lágrimas se despediu deles e sozinho seguiu o caminho da Terra de Santa Maria.
Daí a quatro meses, D. Soleima dizia missa pontifical na capela-mor da Sé de Coimbra, e os sinos da cidade repicavam alegremente. Tinham chegado letras de bênção de Roma; e os sobrinhos do cardeal montados em boas mulas iam cantando devotamente pelo caminho da Vimieira o salmo que começa: in exitu Israel de Egypto.
Conta-se, todavia, que o papa levara a mal, no princípio, o pacto feito pelo legado; mas que, por fim, tivera dó do pobre velho, que muitas vezes lhe dizia:
— Se tu, santo padre, viras sobre ti um cavaleiro tão bravo ter-te pelo cabeção, e a espada nua para te cortar a cabeça; e o seu cavalo tão feroz arranhar a terra, que já te fazia a cova para te enterrar, não somente deras as letras, mas o papado, e a cadeira de São Pedro.
***
Aqui o licenciado calou-se, e fechou o livro, e disse a Fernão Cardoso, que parecia desejoso de ainda o escutar por mais tempo:
— Já tínheis ouvido esta história?
— À fé, que não, com tanta miudeza. Gostava de ouvir-vos ler coisas destas, que muito curiosas são.
— Muitas há nas velhas crônicas de não menos alegria; mas andam esquecidas, como o andam as virtudes dos nossos maiores. Se, porém, isso vos apraz, voltai quando quiserdes, e eu vos lerei quanto vos aprouver.
— Grande mercê me fareis — respondeu o pajem da toalha; — mas será de dia; que estas noites invernosas não são para sair do paço.
Neste momento o mestre cantor bocejou, acordou e espreguiçou-se. Fernão Cardoso pôs-se em pé, e despedindo-se dos dois, saiu, e daí a pouco corria a todo o galope para os paços reais, levando já mudado o propósito de não tornar a passar pela Rua da Oliveira, mas firme no de não se fiar mais em convites do muito afamado Pero do Porto, ex-cantor-mor da Sé de Valença e mestre da capela do cardeal D. Afonso.



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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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