6/23/2019

O crime do tapuio (Conto), de José Veríssimo



O crime do tapuio

CAPÍTULO 1

Mal completara Benedita os sete anos, quando os pais, uns pobres caboclos do Trombetas, deram-na ao Filipe Arauac
u, seu padrinho de batismo, que a pedira e fizera dela presente à sogra.
— Aqui está — disse-lhe — que eu lhe trouxe pr'a dar fogo pr'a seu cachimbo.
Desde esse dia começou para aquela criança uma triste existência.
A velha Bertrana, a sogra de Filipe, era mulher de mais de quarenta anos, baixa e magra como uma espinha de peixe. Tinha a cara comprida, muito branca, de uma alvura lavada, sem cor, emoldurada nuns cabelos duros,, ainda todos negros, que habitualmente trazia soltos nas costas. Os dentes, apontados à faca, consoante o gosto das mulheres do sertão, perfeitos e claros, saltavam-lhe fora da boca desgraciosa, imprimindo no lábio inferior, arrouxado e excessivamente fino, a sua forma de serra. Uma larga orla escuro-azulada, qual se vê nos ascetas ou nas colarejas cansadas, circulava-lhe os olhos miudinhos, negros, de má expressão. O nariz pequeno e afilado de­senhava-se com muita pureza, fazendo singular contraste no seu semblante, onde todos o notavam logo com uma perfeição deslocada. Prezava-se de branca.
Bertrana passava a vida na rede, uma rede fiada e tecida na terra, azul e branca, de largas varandas de chita encarnada, permanentemente atada, salvo o tempo apenas; indispensável de mudá-la por outra, perfeitamente igual, a um canto da sala em que vivia. Era um aposento su­ficientemente espaçoso, de paredes apenas embarreadas, o chão de terra batida, dura que nem cimento, e, embora sempre muito limpo, muito varrido e arrumado, com a cheiro particular às habitações de doentes.
Meses decorriam sem dele sair; comia e dormia ali mesmo. Debaixo da rede ficava-lhe um lindo tupé bordado as talas pretas e brancas, muito polidas, e sobre ele o seu cachimbo, uma antiga latinha de conserva portuguesa com tabaco migado, uma palmatória de couro de peixe-boi e uma rija vergasta, tanto ou quanto esgarçada na ponta pelo uso, de umbigo do mesmo peixe. E' um açoite terrível peculiar à Amazônia, como o "bacalhau" ao Sul.
De quando em quando gemia com um tom lastimoso. Arrancava do magro peito, cujos ossos pareciam querer furar-lhe o paletó de chita roxa, que assiduamente usava, um escarro pegajoso; deixava-o cair lentamente, fazendo um fio branco de gosma, para uma cuia pitanga que lhe ficava no tupé, à esquerda; limpava de leve, cautelosamente, os beiços a um lenço vermelho e gritava com uma voz esganiçada de tons falhados, muito cantada:
— Benedita!...
A rapariguinha acudia pressurosa, trêmula, a correr. Era para dar-lhe fogo para o cachimbo. Benedita vinha com o fogo e, encostando a brasa espetada em um velho garfo de ferro ou tição ao tabaco, acendia-o. Ela ficava fumando devagar, compassadamente, o cotovelo agudo espetado nos joelhos, a mão aguentando o tubo do cachimbo com os olhos fitos num trecho do terreiro que aparecia pela porta aberta em frente da rede, batendo os beiços um no outro a chupar as fumaças, em uma posição indolente de vadiação satisfeita. Concluída aquela cachimbada, depunha de manso o cachimbo na esteira, junto da lata de fumo, arrancava do peito descarnado um grande suspiro doído e, com a sua voz comprida:
— Benedita!...
Agora era para dar-lhe um remédio dos muitíssimos que constantemente tomava, contidos nos vasos de barro que formavam, arrumados no chão por detrás da rede, uma espécie de bateria de botelhas elétricas. Em cada uma daquelas pequenas "chocolateiras" de bojo esférico e pescoço cilíndrico, havia um cozimento, uma infusão, um chá, uma droga qualquer, composta de vegetais. Suspensos das ripas das paredes por finos cordéis e embiras, pendiam vidros maiores e menores, contendo diferentes óleos e banhas de origem animal ou sucos láteos de certas plantas. De uns bebia, com outros se fomentava ou emplastrava por causa dos seus infinitos e variadíssimos achaques.
Para as dores nas costas tinha leite de amapá e para as do peito tinha o de ucuuba. E mais, jaruassica e folhas de café para regularizar as funções; a milagrosa caamembeca por causa das diarreias, a que era atreita; moururé e manacá contra as dores de origem suspeita; sucuuba com mel de pau para a tosse; caferana e quina, de prevenção, por causa das sezões endêmicas no "rombetas", caldo de jaramacuru, para o baço; par içá, urtiga branca e jutaí excelentes nas tosses, e na secura de peito gordura de anta, boas fricções; salsa contra o reumatismo e maus humores; tajá membeca a fim de recolhei-os pulmões dos pés; banha de mucura aplicada nas erisipelas; guaraná para os intestinos, flatos, não sei o que; manteiga de tartaruga contra o cansaço, e ainda outros, cuja simples enumeração fora fastidiosa, os quais não só usava numa cisma ridícula de ter não sei quantas moléstias, como aconselhava e dava oficiosamente com recomendações convencidas, persuasivas.
Não casara nunca. Foi sempre feia e implicante. Em Faro, donde era natural, os rapazes puseram-lhe a alcunha de "cara de peixe". Ao escárnio respondeu com o ódio, um ódio brutal que alcançava todo o mundo. De todos dizia mal: contava histórias malévolas das mulheres e desacreditava os homens. Por fim, quando entrava os, trinta e estava em toda a plenitude da sua fealdade, um agregado do pai caiu doente, foi tratado em casa por ela e, por gratidão, amou-a um pouco. Daí por nove meses teve ela uma filha: essa foi a sua única e não mais repetida aventura de mulher, jamais houve ensejo de prestai-os seus bons serviços de enfermeira e ninguém tornou a querê-la. Os desejos imprudentemente acordados e logo sopitados bulhavam-lhe no peito em saltos de cabritos bravos; força era, porém, engoli-los com surda cólera e grande raiva dos homens, porque a não queriam, e das mulheres, porque eram preferidas; e lá dentro da sua estreita carcaça de magricela os anelos de deleites transmutavam-se em fezes biliosas que a punham cada vez mais feia e mais seca. Repulsava a própria filha, porque saíra linda, como o pai, um mameluco esbelto.
A filha — ao invés do que lhe sucedera a ela — casou cedo, e em companhia do marido, Felipe Arauacu, foi para o lago Iripixi, no Trombetas, onde ele tinha um sítio. A infeliz moça não durou muito; pouco mais de um ano tinha de casada, quando a mataram as sezões ali reinantes endemicamente, com menos de vinte anos de idade. A mãe que por fugir à recíproca malquerença de Faro acompanhara-a de lá, ficou com o genro, um sujeito nulo a quem ela era indiferente como ele lhe era também. Já por esse tempo queixava-se de meia dúzia de achaques diversos, pouco saía da rede e nada fazia. A morte da filha e a subsequente concubinagem do genro com uma rapariga de um sítio próximo pondo-a em quase absoluto isolamento, completaram a obra do seu péssimo caráter. Viveu desde aí em inteira mandrice, a fumar ca­chimbo, a tomar remédios, a dizer mal de tudo e de todos, com muito fel extravazado. Aumentaram-lhe as molés­tias cada dia e raro se passava que não mandasse ao mato — a inesgotável drogaria do sertanejo — em busca de novas folhas, raízes ou cascas para outros medicamen­tos, as suas "pussangas", como ela dizia.
Queixava-se do peito, de dores nas costas, suores noturnos, muita tosse, afora o cansaço que também a não deixava sossegar. Coitadinha dela, toda a santa noite o seu peito lhe levava a piar que nem pinto — e imitava — pio... pio... pio... Doíam-lhe igualmente as pernas, a espinha dorsal, o ventre: tinha espasmos dolorosos no lombo, que lhe respondiam no fígado aqui, — indicava. Os pés, tinha-os gretados como pulmões — e erguendo a beira da saia com recato afetado e pudico, mostrava-os muito vermelhos, cobertos de emplastros. E se alguém, por mera polidez, perguntava-lhe pela saúde, ai do impru­dente! tinha de ouvir a longa e nunca assaz repetida his­tória dos seus padecimentos em geral e de cada achaque em particular, com muita minúcia, com todas as parti­cularidades que ocorriam, e, ainda mais, a dos respectivos remédios, quem lhos ensinara, onde os havia, como se pre­paravam, de que modo se deviam tomar, a dieta que exi­giam, o resguardo que requeriam, e mil outras miudezas com impertinência enfadonha, insaciável. E constantemente, invariavelmente, terminava o seu fastidioso aranzel, pela mesma fórmula lastimosa, para a qual arranjava a sua voz mais dolente, dando-lhe o tom débil, expirante, daquela com que o moribundo conta ao médico as angús­tias da passada noite, que lhe será a derradeira.
— "Ai! nem me fale... Não possozinho ir longe... Esta lua a modo que tenho passado pior, parece que não chego à outra... Ai Jesus! Mãe Santíssima! Quase morri a noite passada, doía-me tudo — e apontava suces­sivamente a cabeça, o peito, as pernas, o ventre — fal­tava-me o ar... Ai Meu Pai do Céu, valei-me a... a... ai!"
E, logo em cima do último e prolongado ai, gritava com a voz fina de coruja constipada:
— Benedita!...
A rapariguinha acudia correndo. Queria um remé­dio; dizia-lhe um nome indígena e recomendava-lhe, já de antemão irada, que olhasse, que não viesse frio nem quente, mornozinho. Agachando-se por debaixo da rede, Benedita ia buscar uma das "chocolateiras" com a droga indicada. Se acontecia tocar-lhe na rede ao passar, a velha soltava uni grito agudo, como se a houvessem va­rado com um espeto, e levantando rápida o chicote de sobre a esteira, atirava-lhe uma forte rimpada. A pe­quena saía chorando, com grossas lágrimas a pingarem-lhe no líquido da vasilha. E Bertrana, como se o esforço feito lhe houvesse tirado o último alento, deixava cair o chicote, impotente para sustê-lo, e ficava ofegante, a boca aberta, exausta, pedindo baixinho desculpa, se estava alguém. Mas logo, sem demora, muito impaciente, bufava:
— Benedita!
E assim levava todo o dia. Batia-lhe por dá cá aque­la palha, com um encarniçamento feroz contra a criança. Depois de jantar, ao meio-dia, dormia uma longa sesta até às três horas e a pequena ali ficava, em pé, com as magras mãozinhas no punho da rede — embalando-lhe o sono indolente — um sono profundo, a desmentir-lhe as contínuas queixas. Corno era natural, ele lhe faltava à noite. Não podia dormir com dores, dizia ela. Carecia d'ar, acordava Benedita, que dormia na esteira, sob a rede. A pequena levantava-se tonta, estremunhada, e vinha embalá-la. E a desoras saía do seu quarto, com ringir sinistro, a guinchar fino e compassado do esse da sua rede, rangendo sobre a escápula de ferro.
Vinha-lhe à cabeça tomar, àquela hora mesmo, qual­quer chá e mandava-a fazer fogo para aquecer um. A cozinha ficava no terreiro, sob ura rancho aberto; ela ia tremendo, transida de medo, no escuro. Se acontecia de­morar-se mais do que a impaciência irritadiça da velha previra, ouvia-se no silêncio absoluto da noite, como um grito lúgubre de ave noturna:
— Benedita!...
E não raro, daí por pouco, ruído de pancadas e solu­ços de criança. Com o isolamento em que a pusera a sua desavença com o genro, por causa da rapariga que ele tomara para casa após a morte da mulher, refinou-se-lhe o mau gênio. A demais gente do sítio vivia afastada dela. Por aquelas paragens quase ninguém transitava, e esses poucos, mesmo se a conheciam, fugiam-lhe como à peste. Mais lhe azedava isto o fel, que se derramava sob a forma de maus tratos à tapuinha a quem votava um ódio felino, estúpido, como a onça odeia o jacaré que, inerte e quedo, a deixa descansadamente roer-lhe a cauda.
Era devota e sentimental; rezava a miúdo, tinha um rosário de contas safadas no punho da rede, metia sem­pre os santos nas suas palestras, não bocejava sem fazer cruzes — para que não entrasse o demo — na boca aberta e chorava ouvindo referir alheios infortúnios. Quando d'alguém dizia mal, batia nas faces encovadas palmadilhas beatas com as pontas dos dedos, que beijava em se­guida, murmurando compungida: — Deus me perdoe... Tinha particular devoção com São Gonçalo e com São Luís Gonzaga: possuía-os ali no seu oratório de pau, pin­tado de azul e frisos encarnados.
De manhã cedinho, tomando do punho da rede o seu rosário para rezar, começava a lida da inditosa Benedita, e às cinco horas da madrugada, quando os passarinhos espenejando-se à luz fresca do repontar do dia, acordavam nos arbustos rociados do orvalho noturno os ecos dos bos­ques próximos com seus gorjeios divinos, a voz dela, que nem pancada dissonante de pratos num concerto de vio­linos e flautas, cortava brutalmente a harmonia do corojocundo a berrar: — Benedita!...

CAPÍTULO 2
Uma criança triste, magra, mirrada como as plantas-tenras, expostas a todo o ardor do sol, tal era Benedita. No seu corpinho escuro, coriáceo, em geral apenas cober­to da cintura para baixo por uma safada saia de pano grosso, percebiam-se sobre as costelas à mostra, os sulcos negros do umbigo de peixe-boi. Na sua falazinha, rouquenha por contínuos resfriamentos, havia como que uma nota trêmula de choro. Não conhecera jamais as alegrias da infância livre e solta.
Com pouco mais de sete anos, deram-na seus pais ao padrinho, que a pedira prometendo seria tratada como filha. Não possuíra nunca um desses brincos que fazem a felicidade das crianças, nem correra jamais atrás das borboletas loucas com a grande alegria da infância de fazer mal a um inseto. Era uma coisa, menos que uma coisa, daquela mulher má. Ao redor de si apenas via, ou ódio ou desamor, a traduzir-se em maus tratos de uns ou na indiferença quase hostil de outros. Até então, nes­se pequeno mundo em que há dois anos já vivia, e onde os mesmos cães famintos lhe rosnavam à passagem, uma única criatura tivera para ela um olhar piedoso e uma, palavra compassiva.
Era um índio; chamavam-lhe em casa José Tapuio. Era um caboclo escuro, membrudo, forte, mas de fisionomia, cousa rara neles, por vezes risonha. Vendido aos quinze anos por um machado e uma libra de pólvora a um regatão do Solimões, entrara na civilização pela porta baixa, mas amplíssima, da injustiça. Havia quinze anos também que fora prisioneiro da tribo inimiga que o vendeu, quando Filipe o trouxe daquelas paragens, onde então se achava, como seu agregado.
Ali em casa do Arauacu afeiçoou-se por Benedita, com afetos de pai. De volta da pesca ou do mato, raro era não trazer-lhe um mimo qualquer, uma fruta, um mari-mari de beira-rio, ou um jutaí da mata virgem. Apanhando-a só entregava-lhe às escondidas o seu presente, com um sorriso mal esboçado e estas palavras:
— Toma p'ra ti...
Estando em casa ajudava-a na cozinha, partia-lhe a lenha, lavava-lhe as vasilhas. Vendo-a chorar, seu sem­blante ordinariamente impassível e carregado parecia confranger-se, e, incapaz talvez de exprimir melhor o que porventura lhe ia n'alma, dizia-lhe em voz ríspida, mas interessada e a modo de suplicante:
— Não chora...
Sentia-se que ele odiava a velha Bertrana. De uma feita, que, ao passar-lhe pela porta da sala, a viu castigar "barbaramente a rapariguinha, parou e seus olhos faisca­ram coléricas ameaças à velha. Passou-lhe pela mente matá-la naquele momento, mas logo abandonou essa ideia assustado, porque a primeira ação do contacto da nossa sociedade com essas naturezas selvagens é torná-la pusi­lânime. A velha, porém, que lhe leu a ameaça no gesto irritado com que parara ele a fitá-la, não se livrou do medo. Interrompeu o castigo e vendo-o ir, praguejou-lhe atrás:
— Cruz! O diabo do tinhoso do inferno U... Vai-te. Ele, entretanto, dava tratos à sua limitada imagi­nação, a fim de descobrir um meio de furtá-la àquela miserenda existência que ali vivia. Essa sua afeição pela pe­quena não escapou aos da casa, e Bertrana, descobrindo-a, disse alguma coisa de obscenidade cruel.
Benedita, como todas as pessoas desacostumadas da felicidade, desconfiava daquele interesse, que só passado algum tempo mostrou mais francamente aceitar. Sentin­do então à roda de si esse afeto, que aliás não compreen­dia, queria-o também, ao José, porém com uma sorte de receio, quase com medo, porque o medo era, por fim, o seu sentimento dominante. Chamava-lhe "tio José" e tomava-lhe a bênção, consoante o hábito de todas as crian­ças amazônicas, com a magra mãozinha estendida, aberta, na ponta dos braços espichados, e um ar medroso e tris­tonho:
— S'a bença.
Na sua vida lôbrega que nem a negrura de um caixão de ferro, a simpatia daquele tapuio era como o pequeno e olvidado furozinho por onde penetrava a fina réstia de luz clara de polens dourados, como as asas das borboletas.
Ele fizera do mais recôndito de seu pensamento o propósito firme de livrá-la da velha. A dificuldade esta­va apenas em que queria uma coisa que não deixasse ras­tro, fazê-la desaparecer de um momento para outro sem se saber como. Taciturno era, mais taciturno ainda o viram de tempos àquela parte.
Uma manhã saiu, como de costume no verão, que en­tão era, à pesca. Sentando ao jacumã, dava grandes, remadas espaçadas, olhando distraído para a frente. Se­guia rente à margem, sem dar fé de alguns peixes que saltavam por ali, ao alcance do seu harpão ou da sua frecha. De repente, em lugar no qual outros olhos que não os do matuto dificilmente descobririam solução de continuidade na espessa orla de mataria que corria pela margem, virou rapidamente a canoa, servindo-se do remo grande e chato à guisa de leme, e embicou-a para a terra escondida pelo mato, como se quisesse navegar por ela a dentro. Ao impulso do seu braço robusto, a leve embar­cação passou pelo meio da folhagem debruçada sobre a água, de modo a parecer emergir dela. Agachando-se no fundo da mataria deixara-a o índio correr com a força da remada.
Varada a primeira e mais densa cortina de folhagem, achou-se num igapó — um grande estirão de mato alaga­do pelo lago na enchente e ainda não de todo abandonado por ele. Árvores alterosas, como são das terras firmes do Trombetas, direitas, de cascas pardacentas e rugosas, emergiam de dentro da água, escura e calma, como uma lagoa morta. Dos altos galhos pendiam, formando bambinelas pitorescas, fios de todas as grossuras e feitios de cipós elianas, a se refletirem naquelas águas paradas e negras, com sinuosidades intermináveis de serpentes. Outros atravessavam de galho a galho, de tronco a tronco, emaranhando-se no alto como a cordoalha de um navio. Pelas árvores apegavam-se vegetações parasíticas; mus­gos espessos punham grandes manchas verdes nas cascas pardacentes de muitas. De cima, da cerrada abóbada de verdura, descia uma grande sombra triste, que reunindo--se ao silêncio absoluto da sombria paisagem, dava-lhe não sei que tétrico aspecto de ruínas.
Com a habilidade de tapuio, José seguia avante, fa­zendo singrar a piroga em verdadeiros zigue-zagues por entre aqueles troncos, sem tocar em nenhum. Deixara o remo no fundo da canoa, e pegando ora num cipó, ora numa rama que descia mais baixo, ora num tronco, puxa­va daqui empurrava d'acolá, quase deitando-se às vezes. para livrar a cabeça. De súbito, uma coisa que dir-se-ia um daqueles cipós mais grossos por ali pendidos, e no qual a beira da mataria acabava de tocar, desenroscou-se de sobre o tronco apodrecido de uma velha árvore derrubada pela ação das águas, e silvou no ar na direção do índio. Era uma sucuruju enorme, José, que só a vira no ato do bote, apenas teve tempo de fincar a mão no tronco mais perto e empurrar a canoa para trás. Este impulso fê-lo perder o equilíbrio e caiu sentado no banco da popa. Fora bem dado o bote da cobra: ele sentiu passar-lhe o corpo quase rente à face. Mal, porém, lançara os olhos na direção em que ela seguira como que voando, viu-a assanhada, o pescoço engorgitado, a língua bífida fora das fauces, fitá-lo ameaçadora, já de cauda firmada sobre o dorso de outro pau caído, pronta para novo ataque. José pegou no remo, a fim de safar-se mais depressa. A cobra, vendo-o tomar aquele pau, sentiu talvez uma ameaça, e mais irada ainda atirou a toda a força o bote, sibilando no ar. Quando o atirou, porém, já a canoa ia impelida pelo remo, de sorte que apenas lhe apanhou a borda com a boca, donde logo firmada lançara a cauda na direção do tapuio, colhendo-lhe o braço esquerdo e o remo, cora os quais fora ele ao seu encontro. Então levantou a cabeça e arpoou furiosa, a boca rasgada, o próprio pescoço de José que, metendo a mão direita em defesa da cara, con­seguir segurar-lhe logo abaixo da cabeça o corpo escorregadio que se debatia furiosamente por desprender-se dos seus dedos possantes, aos quais o perigo multiplicava as forças, dando-lhes um vigor de rijas tenazes. Ele sentia, porém, que a cobra mudava de tática e que largando-lhe o braço esquerdo, a cauda ia enroscar-lhe ao pescoço os seus anéis de ferro e estrangulá-lo sem custo. Rápido como o pensamento, mal pressentira afrouxar-se o laço com que lhe prendia aquele braço, fez um heroísmo e supremo es­forço, e conseguindo trazer-lhe a cabeça hedionda até em. baixo ao fundo da canoa, calcou-lhe em cima o pé, rija­mente. Era tempo, que a cauda da cobra caíra-lhe no pescoço mergulhando a extremidade sob o sovaco esquerdo donde logo ela o retirou para melhor apertar o nó. Antes que o fizesse, porém, a compressão da cabeça fazia-a per­der a força e José ainda pudera tirar de sob o banco a sua faca curta de pescador, com a qual lha decepou de um gol­pe. Aquele primeiro anel feito desprendeu-se, o tronco rolou inerte para á água e a cabeça ficou palpitando com a língua fora, no fundo da canoa.
Terminado este incidente, José seguiu tranquila­mente a sua derrota através dos embaraços do agapó, que todos salvou com admirável perícia. Chegando ao cabo, saltou em terra, puxou a canoa por sobre a areia escura da margem e tomando de dentro a cabeça da sucuruju, jo­gou-a por sobre a mata, o mais longe que pôde. Era uma precaução, para que o tronco da cobra se não viesse juntar à cabeça e se refizesse, como ele o acreditava ingenua­mente; isto feito, tomou a faca e embrenhou-se na densa floresta, calcando fortemente o espesso tapete de folhas e gravetos secos, que estalavam com um som cru sob os seus pés de índio.
Essa noite, mal acabara de cair o dia, já todos do sítio do Arauacu, como aliás é costume do sertão, estavam recolhidos. Entretanto, não dormiam ainda, pois que pelas frestas das portas e dos japas, saíam réstias de luz vermelha de candeia.
Bertrana tinha um mau anoitecer, carregado de tris­tes presságios de uma noite horrível. As suas dores to­das entravam em afinação. Dava gemidos baixinhos, do­ridos, de cortarem o coração. Também ela, com a sua teimosa gulodice habitual, cometera uma gravíssima im­prudência; sobre o seu jantar do meio-dia, de mexerica de peixe-boi — uma comida carregada, conforme era ela a primeira a reconhecer, — bebera uma cuia de vinho de tucumã — um outro veneno. Metia dó vê-la.
Exasperada pelas dores, irada pela insônia, não pôde levar à paciência que Benedita cabeceasse, dormitando, ao punho da rede onde estava a embalá-la desde o fim do jantar. E erguendo do chão, com os seus movimentos rápidos de fera, o vergalho, surziu-o sobre a rapariguinha berrando:
— Ah! s'a vadia! Eu aqui quase a morrer e esta preguiçosa a dormir. Já, pegue na chocolateira e vá-me fazer um chá de vassourinha — E gemeu: Ai, meu São Luís Gonzaga, valei-me.
Benedita saiu a chorar, com o vaso na mão, toda trê­mula. Lá fora escondido por detrás do forno de farinha, topou com o José, que lhe surgiu ao encontro, assustan­do-a muito. Antes, porém, que lhe escapasse da gar­ganta o grito que ela ia soltar amedrontada, ele disse, esforçando-se por ameigar a voz:
— Não chora...
E pegando-lhe a mão falou-lhe baixinho ao ouvido. Ao cabo deste colóquio, que foi rápido, levantou-a nos braços vigorosos, e deu o andar acelerado para a floresta escura que elevava, por detrás do sítio, no céu claro estre­lado, o seu enorme perfil negro, na qual se embrenhou.
Daí por pouco as outras pessoas do sítio ouviram a voz áspera da velha a bradar repetidas vezes, colérica:
— Benedita!... Benedita!...
Acostumados àquilo, não fizeram caso. O tapuio corria no entanto pela mata a dentro com a pequena ao colo. — Ela agarrava-se a ele, espavorida, os olhos fecha­dos com medo de abri-los à lúgubre escuridão do bosque. Ao cabo de uma hora chegaram à beira do igapó, onde ele deixara a canoa pela manhã. Sentou a rapariguinha no fundo e partiu remando de manso, ajudando-se com as mãos, dirigindo-se, apenas por instinto por sua ciência inata e hereditária de selvagem, que outra luz não tinha, às apalpadelas, por entre os grossos troncos e finos cipós. Quando se pilhou fora do igapó, a sua grosseira fisiono­mia quadrada, naturalmente impassível, iluminou-se com um leve sorriso de satisfação, que lhe arreganhou ironica­mente a comissura dos grossos lábios, mostrando-lhe os dentes alvos e fortes, e, metendo decidido o remo n'água, silenciosa e calma, lançou a canoa para frente, fazendo-a voar como a frecha de seu arco.
No sítio, depois de esbofar-se em gritos, a velha Bertrana arquejava, com os beiços brancos de espuma, ardendo em descomedida raiva, pedindo às pessoas que afinal acudiram aos gritos que lhe fossem buscar Bene­dita. E quando, após uma curta revista, lhe voltaram sem ela, pegou de berrar, possessa, que se a apanhasse outra vez, matava-a.

CAPÍTULO 3
O juiz de direito — um homem gordo, baixo, calvo, solenemente encasacado — entrou na sala, foi sentar-se entre o promotor público e o escrivão, no meio da mesa atravessada na largura da sala junto à parede, mesa com­prida e estreita, coberta inteiramente por um pano verde desbotado, debruado de galão amarelo. Tomando de sobre ela a campainha de cobre azinhavrado bimbalhou-a com força, enchendo a sala de tilintações finas, agudas, tanto ou quanto falhadas.
Tinha a testa vincada, num grande ar aborrecido. Havia cinco dias que o faziam vestir o seu fato preto tão fatal aos seus achaques hemorroidários, a sua velha e co­çada casaca do dia de grau, para vir ali, àquela maçada do Júri, inutilmente. Até então não fora possível reunir o número de jurados exigidos por lei; apareciam apenas os da cidade, que os roceiros estavam às voltas com a safra do cacau e não vinham.
Colocou a campainha em seu lugar no tinteiro de me­tal amarelo, e relanceou um olhar em tono da sala, uma sala fria em cujas paredes caiadas, a umidade punha grandes manchas bolorentas, cor de cinza. Pareceu-lhe haver mais gente nas pesadas cadeiras de fábrica portu­guesa, enfileiradas rente às paredes. De um lado fica­vam os da cidade, com um ar desembaraçado de quem está em sua casa, rindo e conversando entre si, fazendo sinais familiares ao promotor, a pedir-lhe os recusasse, cumprimentando o juiz com leves acenos de cabeça. Seus fraques e paletós têm formas mais corretas e vestem-nos sem enleio, useiros em trazê-los. As calças da maioria são brancas, muito engomadas, com grande vinco no meio, de cima a baixo, a vir morrer no peito das botas, muito engraxadas. Do outro lado tinham-se sentado os rocei­ros, facilmente reconhecíveis pelo seu ar contrafeito e o estapafúrdio do seu trajar. Perfilados nas cadeiras, du­ros, as pernas pendidas direitas, mostravam-se visivel­mente quanto não lhes custava o terem de vestir as roupas com as quais apenas em dia de festa, de júri ou de eleições apareciam na cidade. Os paletós de pano preto luzidio ou de lustrosa alpaca, amarrotados dos baús, os coletes vistosamente ramalhudos, sobre alguns dos quais estadeavam-se grossas correntes de prata ou de ouro falso com­prado por verdadeiro, cheias de berloques, as camisas de morim e as calças de dril branco ou pardo, engomadas e fortemente aniladas, os sapatos grossos, acalcanhados, limpos de fresco, espalhado na sala o cheiro ativo da graxa, davam-lhe o aspecto alvar dos matutos endomingueirados. Para assentarem os indomáveis cabelos rijos que nem piaçaba, tinham-nos empastado de sebo de Ho­landa, cujo perfume desagradável misturava-se no am­biente como o da Água Flórida, o extrato dos roceiros. Não podendo suportar por mais tempo os grossos sapatos e botas, alguns os tinham tirado e escondiam debaixo das cadeiras os pés calçados em grosseiras meias. Suavam copiosamente sob o fato dos grandes dias, enforcados nas gravatas multicores, atadas em laços extravagantes sobre os quais caíam moles, ensopados de suor, os grandes colarinhos. De instante a instante enxugavam-se nos len­ços de chita que em seguida, dobrados cuidadosamente sobre os joelhos, eram guardados dentro dos chapéus, vi­rados de copa para cima em baixo das cadeiras.
De uma e doutra banda, olhava-se para um homem, o réu sentado num pequeno banco entre dois soldados, mal amanhados em fardinhas curtas de brim pardo e vivos encarnados, à beira de uma pequena mesa, coberta com um safado retalho de lã verde, à guisa de colcha. E, cochichando entre si, os jurados apontavam-no uns aos outros.
Aquele sujeito era o José Tapuio, que ali estava tran­quilo, indiferente no meio do aparato do tribunal. Ape­nas quando não sabia mais o que fazer das mãos, coçava a cabeça ou os pés, visivelmente contrariado, como quem estando habituado à vida de selvagem sente-se de repente limitado aos dois palmos de um banco.
O juiz, bem acomodado na sua velha cadeira de bra­ços, voltou-se para o sujeito magro, vestido com um rapa­do paletó de alpaca à sua esquerda, e disse-lhe:
— Senhor escrivão, faça a chamada.
O escrivão levantou-se, abriu um caderno de papel já sórdido, e depois de passar a mão descarnada, a direi­ta em cujos dedos cresciam, unhas amarelas, nos pelos duros e esparsos que a modo de barba lhe cresciam no mento, pôs-se a ler em voz alta, rouquenta, uma série de nomes banais, com apelidos devotos, Espírito Santo, Encarnação, Amor Divino, apanhados aqui e ali, na cartilha ou na folhinha, para o uso jornaleiro e pelas exigências da vida social. De entre os jurados partiam gritos "presente" e "pronto", em tons discordantes. Enquanto isto, o juiz contava maquinalmente uns papelinhos dobrados em quatro, que extraía de uma caixa de folhas de Flandres, de forma lúgubre de urna, pintada de verde, com frisos amarelos, e ia pachorrentamente arrumando em fi­leiras sobre o pano da mesa, enodoado de tinta preta.
Concluída a chamada e verificado o número legal, disse, metendo de novo os papelinhos na urna, um a um.
— Estão quarenta e oito cédulas: vai-se proceder ao sorteio.
Mal o havia dito, surgiu de uma pequena porta um oficial de justiça, um mulato esguio de alta gaforinha erguida em trunfa, com um pé doente calçado em uma chinela de tapete, trazendo pela mão um menino de seis anos, todo vestido de brim pardo, engomadinho, o cabelo encharcado em óleo de camaru empastado na cabecinha pequena, franzina, anêmica. O juiz apresentou-lhe a boca da urna, e depois de remexê-la bem, disse-lhe:
— Tire, iôiô.
O menino já afeito àquela cerimônia, pois não era a primeira vez que ali vinha, meteu a mãozinha magra até o fundo da caixa e entrou a tirar as cédulas e entre­gá-las ao juiz, que as ia lendo em voz alta, à proporção que as recebia. A certos nomes, o promotor, um bacha­rel novo, recentemente formado, de "pince-nez" de ouro no nariz fino, ou o advogado da defesa, um magricela, de olhos pequenos e vivos, gestos acanhados, diziam bre­vemente :
— Recuso.
Os roceiros observavam entre si, invejosos e ciumen­tos, que os recusados eram só "gente graúda" da cidade. Coitados deles; que aguentavam com toda a carga do júri. Efetivamente, o conselho de jurados se formara de doze sujeitos de modesta aparência, e ares esquerdos de "gente de sítio". Os da cidade retiravam-se alegres, com sorri­sos irônicos aos que ficavam e gestos agradecidos ao pro­motor ou ao advogado, àquele enfim que os havia re­cusado.
Os escolhidos pela sorte e aceitos pelas partes iam tomando assento numa mesa comprida do meio da casa, sobre a qual alguns estendiam os braços, sem respeito. Outros faziam-se sérios e graves e, compenetrados da sua missão de juízes, olhavam atenta e fixamente o réu, como a querer arrancar-lhe a prova do crime à cara inexpressiva e bronzeada.
O juiz chamou-os para prestarem o juramento de estilo. Estava erguido entre o promotor e o escrivão, ambos também de pé, solene e sisudo, estendendo uma pequena Bíblia falsa, com a encardenação de couro negro da Sociedade Bíblica de Nova Iorque, roída de baratas,, pronunciando as palavras sacramentais: "Juro de pro­nunciar bem e sinceramente nesta causa; haver-me com. franqueza e verdade, só tendo diante dos meus olhos Deus e a lei e proferir o meu voto segundo a minha consciên­cia..."
Cada um por sua vez, acercavam-se os jurados da mesa e, pondo as mãos grossas e escuras sobre o livro, proferiam, obedecendo a uma intimação murmurada do juiz:
— Assim juro.
E voltavam a sentar-se cheios de gravidade, esbar­rando uns nos outros, arrastando os pés.
Concluída esta cerimônia e reassentados todos, fez o juiz um aceno ao réu, dizendo-lhe:
—— Venha cá.
José levantou-se, acanhado e contrafeito, e veio até junto da mesa do juiz.
— Você, disse o magistrado, vai responder às per­guntas que eu lhe vou fazer. Não se atrapalhe, não se aperte, nem minta. Veja lá...
E começou o interrogatório:
Como você se chama?
O tapuio ficou interdito, como quem não compreen­dia a questão.
— Como é o seu nome? tornou o juiz.
— José.
E o juiz fez-lhe sucessivamente as perguntas de praxe.
— Sabe de que o acusam e por que está você aqui?
— "Eê".
— Sabe?
— "Eê, sei".
—. Sabe que é acusado de ter — disse a data e os lugares — "feito mal" e depois matado a menor Benedita, afilhada do seu patrão Filipe Arauacu?
— "Eê..."
— É verdade?
— Eê...
— Diga ao Tribunal como o fato se deu.
O tapuio esteve alguns instantes calado, os olhos pre­gados no chão, um leve riso envergonhado nos lábios grossos, voltando o chapéu nas mãos em todos os senti­dos. Por fim, sem mudar de postura, disse com ar de uma criança obrigada a confessar alguma falta venial:
—"Eu já contei p'r'o outro branco".
O "outro branco" era o juiz formador da culpa.
— "Sim, mas é preciso contar outra vez.
Ele calou-se de novo, sempre com o mesmo sorriso vexado no rosto abaixado. À nova intimação do juiz para que falasse, disse, após, mais alguns momentos de silên­cio:
— Eu queria ela p'ra mim... furtei ela de noite... no mato ela gritou... antão eu matei ela e fui leva o corpo na minha canoa p'ra enterra no Uruá-tapera.
— E enterrou?
— Eê, eu enterrei, pus cruz na cova p'ra sina.
— Que o levou a praticar este crime?

José, não compreendendo a pergunta, fitou interro-gador o j uiz, que a traduziu:
— Por que você matou a rapariguinha?
Ele calou-se e apesar das repetidas intimações do juiz não foi possível arrancar-lhe uma resposta. Descoroçoado, cessou este o interrogatório, que fez ler pelo escrivão e assinar o rogo do réu, que voltou ao seu banco.
O escrivão, de pé, passando as unhas amarelas pelos raros fios da barba, principiou a leitura do processo, às carreiras, sem pontos nem vírgulas, cuspinhando de per­digotos os autos.
No dia tantos de tal mês do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e tantos no distrito de tal, o índio José, conhecido por José Tapuio, agregado de Felipe Arauacu, raptara da casa deste uma menor de nove ou dez anos de idade, afilhada do dito Fe­lipe Arauacu, estuprara-a e matara-a em seguida no lugar Uruátapera, vizinho daquele no qual se dera o crime, tudo segundo confessou o sobredito réu José Tapuio.
Os jurados, voltados para o escrivão, procuravam perceber as palavras que lhe saíam em borbotões por en­tre um chuvisco de perdigotos. Tinham fincado os co­tovelos às mesas e com as cabeças um pouco apoiadas na palmas das mãos dobradas num meio tubo acústico, es­cutavam atentos, com as bocas semiabertas. Cada vez mais apressado, precipitando as palavras, o escrivão lia os depoimentos das testemunhas, sem, vírgulas nem pontos, engolindo estes inofensivos sinais de envolto com as partículas, os mais, os como, os porém, etc. As teste­munhas eram Felipe Arauacu, que não dizia mais do que os leitores sabem, nem mesmo tanto; a moça com quem ele vivia, que também não dava novidades conquanto se deferisse de leve às impertinências de D. Bertrana; uma tapuia de meia idade, do serviço da casa, que não adian­tava ideia; um tapuio pescador, domiciliado nas cerca­nias do sítio do Felipe Arauacu, o qual fora a causa da prisão do réu, declarando em casa do mesmo Arauacu que na tarde do dia em que Benedita desapareceu, tendo ela testemunha ido pescar tambaquis no igapó, perto do dito sítio, conheceu a montaria de José Tapuio, no fundo do dito igapó puxada em terra, sem o menor sinal de ter andado à pesca, sendo para estranhar que tendo o refe­rido José Tapuio partido de madrugada estivesse à tarde ainda tão perto de casa. Isto tudo dissera ela testemu­nha no depoimento que o escrivão lia agora.
As testemunhas eram unânimes em asseverar que a rapariga era bem tratada pelo padrinho, a cujos costu­mes diziam todos "nada", e também declaravam que não lhes escapara nunca que o réu "gostava de Benedita". A velha Bertrana hão pudera ser ouvida, porque as suas muitas doenças não lhe permitiam vir a Óbidos, onde fora instaurado o processo, para cujo andamento, julgou-se a justiça, com a confissão do réu, dispensada de ir proce­der a inquéritos e exames no lugar do crime.
O escrivão, no entanto, prosseguia a sua leitura, en­chendo a sala do ruído monótono de sua voz rouquenha. O juiz conversava com o promotor, uma palestra alegre, a julgar pelas boas risadinhas patuscas que de vez em quando soltavam ambos, com um recíproco piscar d'olhos brejeiro. Afora os jurados não havia mais na sala se­não uns dois ou três indivíduos, dos quais um com a ca­beça pendida, o queixo fincado no peito, a boca aberta, babando o peitinho da camisa, dormia numa das cadeiras enfileiradas em derredor da sala. Cabeças metiam-se pe­las portas, espiavam curiosas e recolhiam-se prontas. Cansados pelo esforço na sua ímproba atenção, os juízes de fato viravam as costas ao escrivão e, a exemplo do magistrado presidente do júri, puseram-se também a fa­lar baixinho uns com os outros, da safra do cacau, do preço do piracuru, de política. Moscas zumbiam doidejantes no ar. De fora, vinha um calor pesado, e dois lar­gos retalhos de sol, entrando pelas janelas, chispavam nos tijolos vermelhos da sala, fazendo-lhe uma tempera­tura de forno. O moço pálido que servia de advogado do réu, sentado junto à sua mesinha modesta, olhava fi­xamente o escrivão e, ou fossem vencidos pela fixidez do olhar ou oprimidos pelo calor do ar, o certo é que os seus olhinhos fecharam-se mau grado seu, e o lápis que tinha na mão, para tomar notas, caiu-lhe uma vez sem ele sen­tir. Os soldados de sentinela ao tribunal, cochilavam en­costados às ombreiras das portas, abraçados às espingar­das descansadas no chão. O réu, muito alerta, ouvia com uma expressão indecifrável no rosto, as palavras que ia lendo o escrivão.
Este por fim terminou. Cessando o rumor monóto­no, com que sua voz enchera até aí a sala, houve um sú­bito e fundo silêncio cortado por uns restos de frases dos jurados e dos magistrados. Mas logo todos se apruma­ram arrastando os pés e as cadeiras, para mudar de po­sição, e o juiz, passando na calva lustrosa o seu lenço rescendente de água da Colônia, perguntou às partes e aos jurados se queriam ouvir as testemunhas.
— Que não, que bastavam os depoimentos da for­mação da culpa que acabavam de ouvir, respondeu o pro­motor. Os outros assentiram nisso, e a palavra foi dada ao "órgão da justiça pública".
Ele levantou-se, puxou o lenço do bolso e pôs-se a limpar a luneta, olhando para a frente, os jurados à roda da mesa, com os olhos apertados numa contração de mío­pe. Depois de haver verificado a clareza dos vidros, che­gando-os à altura dos olhos, pôs a luneta com gesto lento no nariz, com as mãos ambas, e, arregaçando o bigode com o lenço para cima dos lábios e enxuta as costas das mãos, principiou:
— Senhor doutor juiz de direito! Senhores juízes de fato! ilustrado auditório !
O sujeito que dormia com o queixo escorado no peito, sentindo-se interpelado, acordou. Uma meia-dúzia de pessoas que estavam nas salas e corredores da Câmara Municipal, onde se efetuava o júri, entraram pisando nas pontas dos pés com cautela e um pequeno ringir de botas e foram sentar-se nos lugares do público, com o propósito de ouvir o promotor, novo na terra e que, segundo se dizia, era um moço ilustrado. Outros limitaram-se a chegar até às portas, donde se puseram a escutá-lo. Ele sentiu que por sua causa vinham, tratou de justificar a expectativa pública e de firmar a sua reputação no lugar. Após meia-dúzia de palavras tabelioas de um exórdio conciso, leu o libelo no qual afirmou provaria que o réu José, por alcunha Tapuio — citou datas e lugares — assassinou a menor Benedita; provaria que o fez por motivo reprova­do, depois de cometer nela estupro; provaria mais que houve abuso de confiança e de força; provaria ainda que perpetrou o crime com todas as circunstâncias agravan­tes mencionadas no artigo dezesseis, números um, qua­tro, seis, oito, nove, dez, doze, quinze do Código Criminal; provaria também que o crime fora ainda agravado pelas circunstâncias do artigo dezessete do mesmo e provaria finalmente, que o réu incorrera nas penas do artigo 192 do Código Criminal.
Depôs na mesa o libelo e, passando o lenço pela testa, tirou do peito, com um som trágico, estas palavras:
— Meus senhores!
Fez ainda uma breve pausa e começou deveras. Foi eloquente, dessa eloquência retórica e fofa dos adjetivos pavorosos horríficos e sofrivelmente afrontosos que o zelo irresponsável dos "órgãos da justiça pública" atira com mal usada coragem à cara de um infeliz que lhe dá aos — ingratos! — de assombrar um público simples com a rançosa e cansada facúndia das promotorias públicas. A dar-lhe crédito, não havia ente mais perigoso do que José Tapuio. Aquele homem, que um cidadão generoso e prestante arrancara às mãos ávidas dos exploradores sem consciência e da selvageria, e recebera no seio da sua família, no santuário augusto do lar doméstico, aquele homem, com uma perversidade horrível, aquela perversi­dade referida pelos cronistas, tirou de casa, alta noite, uma menina, um anjo de candura, uma criança de poucos, anos, que era os enlevos do seu protetor e padrinho dela e — fez aqui um longo e fecundo silêncio — custava-lhe dizê-lo — declarou — levou-a para o recesso escuro da floresta, donde esta fera — apontou o réu — nunca devera ter saído, e lá, com uma concupiscência horripi­lante, subjugou, forçou a pobre menina e cevou nela os seus instintos ferozes de tigre carniceiro! Sim, senhores, não tinha duvidado fazer aquilo, o malvado perigoso que ali estava — e cheio de ira, a santa ira da justiça paga, apontava o José Tapuio, que o olhava com uma seriedade cômica. Não duvidara — continuou — arrancar com suas garras aduncas dos braços carinhosos de uma matrona respeitável, como a sogra do Sr. Alferes Arauacu, uma criança que era para aquela carinhosa senhora a alegria da sua honrada velhice, a consolação do seu isolamento, o sol que aquecia o gelo das suas cãs, para violá-la, ma­tá-la, e, coragem inaudita, enterrá-la!!!
E neste tom continuou, irado, zeloso da moral e da segurança da sociedade, colérico pelo amor da justiça e agitando no ar em gestos descompassados os seus braços finos como o legendário arcanjo agitaria às portas do Éden a sua espada flamejante, terminando por pedir a condenação do réu, "daquele celerado de que se devia expungir a sociedade" no máximo das penas do artigo 192 do Código Criminal, à morte!
E sentou-se com mostras afetadas de fatigado, triun­fante, sorrindo aos espectadores, que lhe davam sinais mudos, mas evidentes, de aprovação. A palavra foi dada ao advogado do réu. O moço levantou-se e princi­piou, com a sua vozinha doce. O promotor saiu enro­lando um cigarro nos dedos, para ir fumar lá fora, nos corredores. O da defesa era um ex-aluno do Seminário do Pará. Da sua educação ali ficara-lhe um acanha­mento postiço e um vezo hipócrita de olhar para o chão. O semblante, porém, quando o levantava para a gente, revelava inteligência, ou pelo menos vivacidade. Não negou o fato, nem teve entusiasmo de defensor; cumpria apenas um dever imposto pelo magistrado que o nomeara procurador do réu — por cuja defesa a municipalidade lhe daria trinta mil réis. Falou friamente, num pobre filho das selvas que mal recebera as águas lustrais do batismo sem as grandes lições de moral cristã, da divina moral do sublime mártir do Gólgota, a única — afirmou — verdadeira, a única capaz de livrar o homem do domínio do crime.
Da sua estada no Seminário, entre padres, restava--lhe uma fraseologia teológica, não pouco admirada em, Óbidos, onde exercia a profissão de advogado, depois que negócios de família o obrigaram a interromper seus estu­dos quando ia tomar as primeiras ordens.
Observou que nos autos não havia provas para a condenação do réu e que sem a franca confissão deste os depoimentos das testemunhas não seriam suficientes para provar o crime. Chamava, portanto, a atenção do tribu­nal para o art. 94 do Código do processo criminal, o qual leu devagar, acentuando a última parte: "A confissão do réu em juízo competente, sendo livre e coincidindo com as circunstâncias do fato, prova o delito; mas no caso de morte, só pode sujeitá-lo à pena imediata, quando não haja outra prova". E sobre isto repisou dois ou três minutos. Pedia aos senhores jurados que, segundo a pa­lavra evangélica, tivessem misericórdia, e que se não es­quecessem quem perdoasse seria também perdoado. E terminou: — Em nome do Deus de Misericórdia e de Amor, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, eu peço a absolvição do acusado! E deixou-se cair na cadeira visivelmente fatigado, mas de fato satisfeito por ter dado conta daquela tarefa maçadora.
O juiz, que ouvira o pró e o contra debruçado sobre a mesa, ocupado em rabiscar, com o seu nome escrito por extenso em todos os sentidos, uma folha de papel, apru­mou-se e após um curto resumo dos debates, apresentou aos jurados os quesitos que pouco antes ditara ao escri­vão, explicando-lhes minuciosamente como deviam res­pondê-los.
Daí por meia hora os juízes de fato voltaram à sala; tendo respondido afirmativamente aos quesitos princi­pais: José Tapuio tinha primeiro violentado, deflorado e depois matado a pequena Benedita, com todas as cir­cunstâncias agravantes do código. À vista da resposta do júri o juiz, condenou-o ao médio da pena do art. 192, a galés perpétuas, visto não haver, como reconheceram os jurados, outra prova além da sua confissão.
E às cinco horas da tarde saíram todos do tribunal fatigados, aborrecidos, com fome, um grande apetite para jantar, dizendo acordemente:
— Safa! Que maçada!
Daí a dois ou três dias, uma manhã, correu na cida­de, um boato extravagante. Em uma canoa do Trombe­tas cabava de chegar uma rapariguinha que, segundo di­ziam, era a mesma Benedita,, por cuja morte fora naquela semana condenado o José Tapuio. Alguns curiosos desce­ram ao porto para vê-la. Já lá não estava, que o juiz ao chegar-lhe aos ouvidos o boato, mandara-a ir à sua presença, com as pessoas que a acompanhavam. Entre estas vinha o próprio pai, que declarou que no dia em que se julgava ter sido cometido o crime, já ao amanhecer, José chegara ao seu sítio situado a um bom estirão do de Felipe, e lhe entregou sua filha dizendo-lhe que a levava porque a "branca" com a qual ela estava, maltratava-a muito. Por suas palavras e pelo ser corpo, zebrado pe­las marcas azuis do chicote, a rapariguinha confirmou o dito do índio. Agradecidos, os pais ofereceram-lhe café e cachaça. Ele bebeu e partiu em seguida e nunca mais souberam dele. Tal foi a narração resumida do pai de Benedita. Interrogada, também ela contou a triste vida que levava com Bertrana, a protetora afeição de José, como ele a furtou de noite para levá-la à canoa que os esperava no fundo do agapó sem lhe fazer o menor mal.
O juiz mandou autuar estes depoimentos e fez vir o condenado à sua presença. Vendo Benedita, apenas um bom sorriso iluminou de relance a larga cara fosca do tapuio. O magistrado perguntou-lhe:
— Conhece esta rapariguinha?
— Eê... Benedita...
— Você não disse que a tinha matado e enterrado no
Uruá-tapera?
— Eê...
—E por que disse isso mentindo e expondo-se a ser,
como foi, condenado?
— Porque eu queria "fazê bem p'ra ela".
E' escusado dizer que houve recurso de graça, perdão, e José Tapuio não cumpriu a pena. Ignoro o fim dele; do que firmemente estou convencido, porém, é de que morreu, se já morreu, na mais bem-aventurada igno­rância sobre os móveis ou a sanção do ato moral que praticou, como talvez aconteceu àquele lobo histórico, que no meio do destroço dos seus caiu varado pela bala humana, quando arrastava para fora do perigo outro velho lobo cego, ao qual servia de guia, pondo-lhe a cauda na boca, à guisa de bastão.

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Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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