O crime do tapuio
CAPÍTULO 1
Mal completara Benedita os sete anos, quando os pais, uns pobres caboclos do Trombetas, deram-na ao Filipe Arauacu, seu padrinho de batismo, que a pedira e fizera dela presente à sogra.
— Aqui está —
disse-lhe — que eu lhe trouxe pr'a dar fogo pr'a seu cachimbo.
Desde esse dia começou para aquela
criança uma triste existência.
A velha Bertrana, a sogra de Filipe, era mulher de mais de quarenta
anos, baixa e magra como uma espinha de peixe. Tinha a cara comprida, muito
branca, de uma alvura lavada, sem cor, emoldurada nuns cabelos duros,, ainda
todos negros, que habitualmente trazia soltos nas costas. Os dentes, apontados à faca, consoante o gosto das mulheres do sertão,
perfeitos e claros, saltavam-lhe fora da boca desgraciosa, imprimindo no lábio
inferior, arrouxado e excessivamente fino, a sua forma de serra. Uma larga orla
escuro-azulada, qual se vê nos ascetas ou nas colarejas cansadas, circulava-lhe
os olhos miudinhos, negros, de má expressão. O nariz pequeno e afilado desenhava-se
com muita pureza, fazendo singular contraste no seu semblante, onde todos o
notavam logo com uma perfeição deslocada. Prezava-se de branca.
Bertrana
passava a vida na rede, uma rede fiada e tecida na terra, azul e branca, de
largas varandas de chita encarnada, permanentemente atada, salvo o tempo
apenas; indispensável de mudá-la por
outra, perfeitamente igual, a um canto da sala em que vivia. Era um aposento suficientemente
espaçoso, de paredes apenas embarreadas, o chão de terra batida, dura que nem
cimento, e, embora sempre muito limpo, muito varrido e arrumado, com a cheiro
particular às habitações de doentes.
Meses decorriam sem dele sair; comia e dormia ali
mesmo. Debaixo da rede ficava-lhe um lindo tupé bordado as talas pretas e
brancas, muito polidas, e sobre ele o seu cachimbo, uma antiga latinha de
conserva portuguesa com tabaco migado, uma palmatória de couro de peixe-boi e
uma rija vergasta, tanto ou quanto esgarçada na ponta pelo uso, de umbigo do
mesmo peixe. E' um açoite terrível peculiar à Amazônia, como o
"bacalhau" ao Sul.
De quando em quando gemia com um tom lastimoso.
Arrancava do magro peito, cujos ossos pareciam querer furar-lhe o paletó de
chita roxa, que assiduamente usava, um escarro pegajoso; deixava-o cair lentamente,
fazendo um fio branco de gosma, para uma cuia pitanga que lhe ficava no tupé, à
esquerda; limpava de leve, cautelosamente, os beiços a um lenço vermelho e
gritava com uma voz esganiçada de tons falhados, muito cantada:
— Benedita!...
A rapariguinha acudia pressurosa, trêmula, a correr.
Era para dar-lhe fogo para o cachimbo. Benedita vinha com o fogo e, encostando
a brasa espetada em um velho garfo de ferro ou tição ao tabaco, acendia-o. Ela
ficava fumando devagar, compassadamente, o cotovelo agudo espetado nos joelhos,
a mão aguentando o tubo do cachimbo com os olhos fitos num trecho do terreiro
que aparecia pela porta aberta em frente da rede, batendo os beiços um no outro
a chupar as fumaças, em uma posição indolente de vadiação satisfeita. Concluída
aquela cachimbada, depunha de manso o cachimbo na esteira, junto da lata de
fumo, arrancava do peito descarnado um grande suspiro doído e, com a sua voz
comprida:
— Benedita!...
Agora era para dar-lhe um remédio dos muitíssimos que
constantemente tomava, contidos nos vasos de barro que formavam, arrumados no
chão por detrás da rede, uma espécie de bateria de botelhas elétricas. Em cada
uma daquelas pequenas "chocolateiras" de bojo esférico e pescoço
cilíndrico, havia um cozimento, uma infusão, um chá, uma droga qualquer,
composta de vegetais. Suspensos das ripas das paredes por finos cordéis e
embiras, pendiam vidros maiores e menores, contendo diferentes óleos e banhas
de origem animal ou sucos láteos de certas plantas. De uns bebia, com outros se
fomentava ou emplastrava por causa dos seus infinitos e variadíssimos achaques.
Para as dores nas costas tinha leite de amapá e para
as do peito tinha o de ucuuba. E mais, jaruassica e folhas de café para
regularizar as funções; a milagrosa caamembeca por causa das diarreias, a que
era atreita; moururé e manacá contra as dores de origem suspeita; sucuuba com
mel de pau para a tosse; caferana e quina, de prevenção, por causa das sezões
endêmicas no "rombetas", caldo de jaramacuru, para o baço; par içá,
urtiga branca e jutaí excelentes nas tosses, e na secura de peito gordura de
anta, boas fricções; salsa contra o reumatismo e maus humores; tajá membeca a
fim de recolhei-os pulmões dos pés; banha de mucura aplicada nas erisipelas;
guaraná para os intestinos, flatos, não sei o que; manteiga de tartaruga contra
o cansaço, e ainda outros, cuja simples enumeração fora fastidiosa, os quais
não só usava numa cisma ridícula de ter não sei quantas moléstias, como
aconselhava e dava oficiosamente com recomendações convencidas, persuasivas.
Não casara nunca. Foi sempre feia e implicante. Em
Faro, donde era natural, os rapazes puseram-lhe a alcunha de "cara de
peixe". Ao escárnio respondeu com o ódio, um ódio brutal que alcançava
todo o mundo. De todos dizia mal: contava histórias malévolas das mulheres e
desacreditava os homens. Por fim, quando entrava os, trinta e estava em toda a
plenitude da sua fealdade, um agregado do pai caiu doente, foi tratado em casa
por ela e, por gratidão, amou-a um pouco. Daí por nove meses teve ela uma
filha: essa foi a sua única e não mais repetida aventura de mulher, jamais
houve ensejo de prestai-os seus bons serviços de enfermeira e ninguém tornou a
querê-la. Os desejos imprudentemente acordados e logo sopitados bulhavam-lhe no
peito em saltos de cabritos bravos; força era, porém, engoli-los com surda
cólera e grande raiva dos homens, porque a não queriam, e das mulheres, porque
eram preferidas; e lá dentro da sua estreita carcaça de magricela os anelos de
deleites transmutavam-se em fezes biliosas que a punham cada vez mais feia e mais seca. Repulsava
a própria filha, porque saíra linda, como o
pai, um mameluco esbelto.
A filha — ao invés do que lhe
sucedera a ela — casou cedo, e em companhia do marido, Felipe Arauacu, foi para
o lago Iripixi, no Trombetas, onde ele tinha um sítio. A infeliz moça não durou
muito; pouco mais de um ano tinha de casada, quando a mataram as sezões ali
reinantes endemicamente, com menos de vinte anos de idade. A mãe que por fugir
à recíproca malquerença de Faro acompanhara-a de lá, ficou com o genro, um
sujeito nulo a quem ela era indiferente como ele lhe era também. Já por esse
tempo queixava-se de meia dúzia de achaques diversos, pouco saía da rede e nada
fazia. A morte da filha e a subsequente concubinagem do genro com uma rapariga
de um sítio próximo pondo-a em quase absoluto isolamento, completaram a obra do
seu péssimo caráter. Viveu desde aí em inteira mandrice, a fumar cachimbo, a
tomar remédios, a dizer mal de tudo e de todos, com muito fel extravazado. Aumentaram-lhe
as moléstias cada dia e raro se passava que não mandasse ao mato — a
inesgotável drogaria do sertanejo — em busca de novas folhas, raízes ou cascas
para outros medicamentos, as suas "pussangas", como ela dizia.
Queixava-se do peito, de dores nas costas, suores noturnos, muita
tosse, afora o cansaço que também a não
deixava sossegar. Coitadinha dela, toda a santa noite o seu peito lhe levava a
piar que nem pinto — e imitava — pio... pio... pio... Doíam-lhe igualmente as
pernas, a espinha dorsal, o ventre: tinha espasmos dolorosos no lombo, que lhe
respondiam no fígado aqui, — indicava. Os pés, tinha-os gretados como pulmões —
e erguendo a beira da saia com recato afetado e pudico, mostrava-os muito
vermelhos, cobertos de emplastros. E se alguém, por mera polidez,
perguntava-lhe pela saúde, ai do imprudente! tinha de ouvir a longa e nunca
assaz repetida história dos seus padecimentos em geral e de cada achaque em
particular, com muita minúcia, com todas as particularidades que ocorriam, e,
ainda mais, a dos respectivos remédios, quem lhos ensinara, onde os havia, como
se preparavam, de que modo se deviam tomar, a dieta que exigiam, o resguardo
que requeriam, e mil outras miudezas com impertinência enfadonha, insaciável. E constantemente,
invariavelmente, terminava o seu fastidioso aranzel, pela mesma fórmula lastimosa, para a qual arranjava a sua voz
mais dolente, dando-lhe o tom débil, expirante, daquela com que o moribundo
conta ao médico as angústias da passada noite, que lhe será a derradeira.
— "Ai! nem me
fale... Não possozinho ir longe... Esta lua a modo que tenho passado pior,
parece que não chego à outra... Ai Jesus! Mãe Santíssima! Quase morri a noite
passada, doía-me tudo — e apontava sucessivamente a cabeça, o peito, as
pernas, o ventre — faltava-me o ar... Ai Meu Pai do Céu, valei-me a... a...
ai!"
E, logo em cima do último e prolongado
ai, gritava com a voz fina de coruja constipada:
— Benedita!...
A rapariguinha acudia correndo. Queria um remédio; dizia-lhe um nome indígena e
recomendava-lhe, já de antemão irada, que olhasse, que não viesse frio nem
quente, mornozinho. Agachando-se por debaixo da rede, Benedita ia buscar uma
das "chocolateiras" com a droga indicada. Se acontecia tocar-lhe na
rede ao passar, a velha soltava uni grito agudo, como se a houvessem varado
com um espeto, e levantando rápida o chicote de sobre a esteira, atirava-lhe
uma forte rimpada. A pequena saía chorando, com grossas lágrimas a
pingarem-lhe no líquido da vasilha. E Bertrana, como se o esforço feito lhe
houvesse tirado o último alento, deixava cair o chicote, impotente para
sustê-lo, e ficava ofegante, a boca aberta, exausta, pedindo baixinho desculpa,
se estava alguém. Mas logo, sem demora, muito impaciente, bufava:
— Benedita!
E assim levava
todo o dia. Batia-lhe por dá cá aquela palha,
com um encarniçamento feroz contra a criança. Depois de jantar, ao meio-dia,
dormia uma longa sesta até às três horas e a pequena ali ficava, em pé, com as
magras mãozinhas no punho da rede — embalando-lhe o sono indolente — um sono
profundo, a desmentir-lhe as contínuas queixas. Corno era natural, ele lhe
faltava à noite. Não podia dormir com dores, dizia ela. Carecia d'ar, acordava
Benedita, que dormia na esteira, sob a rede. A pequena levantava-se tonta,
estremunhada, e vinha embalá-la. E a desoras
saía do seu quarto, com ringir sinistro, a guinchar fino e compassado do esse
da sua rede, rangendo sobre a escápula de ferro.
Vinha-lhe à cabeça tomar,
àquela hora mesmo, qualquer chá e mandava-a fazer fogo para aquecer um. A
cozinha ficava no terreiro, sob ura rancho aberto; ela ia tremendo, transida de
medo, no escuro. Se acontecia demorar-se mais do que a impaciência irritadiça
da velha previra, ouvia-se no silêncio absoluto da noite, como um grito lúgubre
de ave noturna:
— Benedita!...
E não raro, daí por pouco, ruído de
pancadas e soluços de criança. Com o isolamento em que a pusera a sua
desavença com o genro, por causa da rapariga que ele tomara para casa após a
morte da mulher, refinou-se-lhe o mau gênio. A demais gente do sítio vivia
afastada dela. Por aquelas paragens quase ninguém transitava, e esses poucos,
mesmo se a conheciam, fugiam-lhe como à peste. Mais lhe azedava isto o fel, que
se derramava sob a forma de maus tratos à tapuinha a quem votava um ódio
felino, estúpido, como a onça odeia o jacaré que, inerte e quedo, a deixa
descansadamente roer-lhe a cauda.
Era devota e sentimental; rezava a miúdo, tinha um rosário de contas safadas no punho da rede, metia sempre
os santos nas suas palestras, não bocejava sem fazer cruzes — para que não
entrasse o demo — na boca aberta e chorava ouvindo referir alheios infortúnios.
Quando d'alguém dizia mal, batia nas faces encovadas palmadilhas beatas com as
pontas dos dedos, que beijava em seguida, murmurando compungida: — Deus me
perdoe... Tinha particular devoção com São Gonçalo e com São Luís Gonzaga:
possuía-os ali no seu oratório de pau, pintado de azul e frisos encarnados.
De manhã cedinho, tomando do
punho da rede o seu rosário para rezar, começava a lida da inditosa Benedita, e
às cinco horas da madrugada, quando os passarinhos espenejando-se à luz fresca
do repontar do dia, acordavam nos arbustos rociados do orvalho noturno os ecos
dos bosques próximos com seus gorjeios divinos, a voz dela, que nem pancada
dissonante de pratos num concerto de violinos e flautas, cortava brutalmente a
harmonia do corojocundo a berrar: —
Benedita!...
CAPÍTULO 2
Uma criança triste, magra,
mirrada como as plantas-tenras, expostas a todo o ardor do sol, tal era
Benedita. No seu corpinho escuro, coriáceo, em geral apenas coberto da cintura
para baixo por uma safada saia de pano grosso, percebiam-se sobre as costelas à
mostra, os sulcos negros do umbigo de peixe-boi. Na sua falazinha, rouquenha
por contínuos resfriamentos, havia como que uma nota trêmula de choro. Não
conhecera jamais as alegrias da infância livre e solta.
Com pouco mais de sete anos, deram-na seus pais ao padrinho, que a
pedira prometendo seria tratada como filha. Não possuíra nunca um desses brincos que fazem a felicidade das
crianças, nem correra jamais atrás das borboletas loucas com a grande alegria
da infância de fazer mal a um inseto. Era uma coisa, menos que uma coisa,
daquela mulher má. Ao redor de si apenas via, ou ódio ou desamor, a traduzir-se
em maus tratos de uns ou na indiferença quase hostil de outros. Até então, nesse
pequeno mundo em que há dois anos já vivia, e onde os mesmos cães famintos lhe
rosnavam à passagem, uma única criatura tivera para ela um olhar piedoso e uma,
palavra compassiva.
Era um índio; chamavam-lhe
em casa José Tapuio. Era um caboclo escuro, membrudo, forte, mas de fisionomia,
cousa rara neles, por vezes risonha. Vendido aos quinze anos por um machado e
uma libra de pólvora a um regatão do Solimões, entrara na civilização pela
porta baixa, mas amplíssima, da injustiça. Havia quinze anos também que fora
prisioneiro da tribo inimiga que o vendeu, quando Filipe o trouxe daquelas
paragens, onde então se achava, como seu agregado.
Ali em casa do
Arauacu afeiçoou-se por Benedita, com afetos
de pai. De volta da pesca ou do mato, raro era não trazer-lhe um mimo qualquer,
uma fruta, um mari-mari de beira-rio, ou um jutaí da mata
virgem. Apanhando-a só entregava-lhe às escondidas o seu presente, com um
sorriso mal esboçado e estas palavras:
— Toma p'ra ti...
Estando em casa ajudava-a na cozinha, partia-lhe a lenha, lavava-lhe as
vasilhas. Vendo-a chorar, seu semblante ordinariamente impassível e carregado parecia confranger-se, e, incapaz
talvez de exprimir melhor o que porventura lhe ia n'alma, dizia-lhe em voz
ríspida, mas interessada e a modo de suplicante:
— Não chora...
Sentia-se que ele odiava a velha Bertrana. De uma feita, que, ao
passar-lhe pela porta da sala, a viu castigar "barbaramente a
rapariguinha, parou e seus olhos faiscaram coléricas ameaças à velha. Passou-lhe pela mente matá-la naquele momento,
mas logo abandonou essa ideia assustado, porque a primeira ação do contacto da
nossa sociedade com essas naturezas selvagens é torná-la pusilânime. A velha,
porém, que lhe leu a ameaça no gesto irritado com que parara ele a fitá-la, não
se livrou do medo. Interrompeu o castigo e vendo-o ir, praguejou-lhe atrás:
— Cruz! O diabo do
tinhoso do inferno U... Vai-te. Ele, entretanto, dava tratos à sua limitada
imaginação, a fim de descobrir um meio de furtá-la àquela miserenda existência
que ali vivia. Essa sua afeição pela pequena não escapou aos da casa, e Bertrana,
descobrindo-a, disse alguma coisa de obscenidade cruel.
Benedita, como todas as pessoas desacostumadas da felicidade,
desconfiava daquele interesse, que só
passado algum tempo mostrou mais francamente aceitar. Sentindo então à roda de
si esse afeto, que aliás não compreendia, queria-o também, ao José, porém com
uma sorte de receio, quase com medo, porque o medo era, por fim, o seu
sentimento dominante. Chamava-lhe "tio José" e tomava-lhe a bênção,
consoante o hábito de todas as crianças amazônicas, com a magra mãozinha
estendida, aberta, na ponta dos braços espichados, e um ar medroso e tristonho:
— S'a bença.
Na sua vida lôbrega que nem a
negrura de um caixão de ferro, a simpatia daquele tapuio era como o pequeno e
olvidado furozinho por onde penetrava a fina réstia de luz clara de polens
dourados, como as asas das borboletas.
Ele fizera do mais recôndito de seu
pensamento o propósito firme de livrá-la da velha. A dificuldade estava apenas
em que queria uma coisa que não deixasse rastro, fazê-la desaparecer de um
momento para outro sem se saber como. Taciturno era, mais taciturno ainda o
viram de tempos àquela parte.
Uma manhã saiu, como de
costume no verão, que então era, à pesca. Sentando ao jacumã, dava grandes,
remadas espaçadas, olhando distraído para a frente. Seguia rente à margem, sem
dar fé de alguns peixes que saltavam por ali, ao alcance do seu harpão ou da
sua frecha. De repente, em lugar no qual outros olhos que não os do matuto
dificilmente descobririam solução de continuidade na espessa orla de mataria
que corria pela margem, virou rapidamente a canoa, servindo-se do remo grande e
chato à guisa de leme, e embicou-a para a terra escondida pelo mato, como se
quisesse navegar por ela a dentro. Ao impulso do seu braço robusto, a leve embarcação
passou pelo meio da folhagem debruçada sobre a água, de modo a parecer emergir
dela. Agachando-se no fundo da mataria deixara-a o índio correr com a força da
remada.
Varada a primeira e mais densa cortina de folhagem, achou-se num igapó — um grande estirão de mato alagado pelo lago na
enchente e ainda não de todo abandonado por ele. Árvores alterosas, como são
das terras firmes do Trombetas, direitas, de cascas pardacentas e rugosas,
emergiam de dentro da água, escura e calma, como uma lagoa morta. Dos altos
galhos pendiam, formando bambinelas pitorescas, fios de todas as grossuras e
feitios de cipós elianas, a se refletirem naquelas águas paradas e negras, com
sinuosidades intermináveis de serpentes. Outros atravessavam de galho a galho,
de tronco a tronco, emaranhando-se no alto como a cordoalha de um navio. Pelas
árvores apegavam-se vegetações parasíticas; musgos espessos punham grandes
manchas verdes nas cascas pardacentes de muitas. De cima, da cerrada abóbada de
verdura,
descia uma grande sombra triste, que reunindo--se ao silêncio absoluto da sombria paisagem, dava-lhe não
sei que tétrico aspecto de ruínas.
Com a habilidade de tapuio, José
seguia avante, fazendo singrar a piroga em verdadeiros zigue-zagues por entre
aqueles troncos, sem tocar em nenhum. Deixara o remo no fundo da canoa, e
pegando ora num cipó, ora numa rama que descia mais baixo, ora num tronco, puxava
daqui empurrava d'acolá, quase deitando-se às vezes. para livrar a cabeça. De
súbito, uma coisa que dir-se-ia um daqueles cipós mais grossos por ali
pendidos, e no qual a beira da mataria acabava de tocar, desenroscou-se de
sobre o tronco apodrecido de uma velha árvore derrubada pela ação das águas, e
silvou no ar na direção do índio. Era uma sucuruju enorme, José, que só a vira
no ato do bote, apenas teve tempo de fincar a mão no tronco mais perto e
empurrar a canoa para trás. Este impulso fê-lo perder o equilíbrio e caiu
sentado no banco da popa. Fora bem dado o bote da cobra: ele sentiu passar-lhe
o corpo quase rente à face. Mal, porém, lançara os olhos na direção em que ela
seguira como que voando, viu-a assanhada, o pescoço engorgitado, a língua
bífida fora das fauces, fitá-lo ameaçadora, já de cauda firmada sobre o dorso
de outro pau caído, pronta para novo ataque. José pegou no remo, a fim de
safar-se mais depressa. A cobra, vendo-o tomar aquele pau, sentiu talvez uma
ameaça, e mais irada ainda atirou a toda a
força o bote, sibilando no ar. Quando o atirou, porém, já a canoa ia
impelida pelo remo, de sorte que apenas lhe apanhou a borda com a boca, donde
logo firmada lançara a cauda na direção do tapuio, colhendo-lhe o braço
esquerdo e o remo, cora os quais fora ele ao seu encontro. Então levantou a
cabeça e arpoou furiosa, a boca rasgada, o próprio pescoço de José que, metendo
a mão direita em defesa da cara, conseguir segurar-lhe logo abaixo da cabeça o
corpo escorregadio que se debatia furiosamente por desprender-se dos seus
dedos possantes, aos quais o perigo multiplicava as forças, dando-lhes um vigor
de rijas tenazes. Ele sentia, porém, que a cobra mudava de tática e que
largando-lhe o braço esquerdo, a cauda ia enroscar-lhe ao pescoço os seus anéis
de ferro e estrangulá-lo sem custo. Rápido como o pensamento, mal
pressentira afrouxar-se o laço com que lhe
prendia aquele braço, fez um heroísmo e supremo esforço, e conseguindo
trazer-lhe a cabeça hedionda até em. baixo ao fundo da canoa, calcou-lhe em
cima o pé, rijamente. Era tempo, que a cauda da cobra caíra-lhe no pescoço
mergulhando a extremidade sob o sovaco esquerdo donde logo ela o retirou para
melhor apertar o nó. Antes que o fizesse, porém, a compressão da cabeça fazia-a
perder a força e José ainda pudera tirar de sob o banco a sua faca curta de
pescador, com a qual lha decepou de um golpe. Aquele primeiro anel feito
desprendeu-se, o tronco rolou inerte para á água e a cabeça ficou palpitando
com a língua fora, no fundo da canoa.
Terminado este incidente, José
seguiu tranquilamente a sua derrota através dos embaraços do agapó, que todos
salvou com admirável perícia. Chegando ao cabo, saltou em terra, puxou a canoa
por sobre a areia escura da margem e tomando de dentro a cabeça da sucuruju, jogou-a
por sobre a mata, o mais longe que pôde. Era uma precaução, para que o tronco
da cobra se não viesse juntar à cabeça e se refizesse, como ele o acreditava
ingenuamente; isto feito, tomou a faca e embrenhou-se na densa floresta,
calcando fortemente o espesso tapete de folhas e gravetos secos, que estalavam
com um som cru sob os seus pés de índio.
Essa noite, mal acabara de cair o dia, já todos do sítio do Arauacu, como aliás é costume do sertão, estavam
recolhidos. Entretanto, não dormiam ainda, pois que pelas frestas das portas e
dos japas, saíam réstias de luz vermelha de candeia.
Bertrana tinha um mau anoitecer, carregado de tristes presságios de uma noite horrível. As suas dores todas
entravam em afinação. Dava gemidos baixinhos, doridos, de cortarem o coração.
Também ela, com a sua teimosa gulodice habitual, cometera uma gravíssima imprudência;
sobre o seu jantar do meio-dia, de mexerica de peixe-boi — uma comida
carregada, conforme era ela a primeira a reconhecer, — bebera uma cuia de vinho
de tucumã — um outro veneno. Metia dó vê-la.
Exasperada
pelas dores, irada pela insônia, não pôde levar
à paciência que Benedita cabeceasse, dormitando, ao punho da rede
onde estava a embalá-la desde o fim do
jantar. E erguendo do chão, com os seus movimentos rápidos de fera, o vergalho,
surziu-o sobre a rapariguinha berrando:
— Ah! s'a vadia! Eu
aqui quase a morrer e esta preguiçosa a dormir. Já, pegue na chocolateira e
vá-me fazer um chá de vassourinha — E gemeu: Ai, meu São Luís Gonzaga, valei-me.
Benedita saiu a chorar, com o vaso na mão, toda trêmula. Lá fora escondido por detrás do forno de farinha,
topou com o José, que lhe surgiu ao encontro, assustando-a muito. Antes,
porém, que lhe escapasse da garganta o grito que ela ia soltar amedrontada,
ele disse, esforçando-se por ameigar a voz:
— Não chora...
E pegando-lhe a mão falou-lhe baixinho
ao ouvido. Ao cabo deste colóquio, que foi rápido, levantou-a nos braços
vigorosos, e deu o andar acelerado para a floresta escura que elevava, por detrás
do sítio, no céu claro estrelado, o seu enorme perfil negro, na qual se
embrenhou.
Daí por pouco as outras pessoas do sítio
ouviram a voz áspera da velha a bradar repetidas vezes, colérica:
— Benedita!... Benedita!...
Acostumados àquilo, não fizeram
caso. O tapuio corria no entanto pela mata a dentro com a pequena ao colo. —
Ela agarrava-se a ele, espavorida, os olhos fechados com medo de abri-los à
lúgubre escuridão do bosque. Ao cabo de uma hora chegaram à beira do igapó, onde ele deixara a canoa pela manhã. Sentou a
rapariguinha no fundo e partiu remando de manso, ajudando-se com as mãos,
dirigindo-se, apenas por instinto por sua ciência inata e hereditária de
selvagem, que outra luz não tinha, às apalpadelas, por entre os grossos troncos
e finos cipós. Quando se pilhou fora do igapó, a sua grosseira fisionomia
quadrada, naturalmente impassível, iluminou-se com um leve sorriso de
satisfação, que lhe arreganhou ironicamente a comissura dos grossos lábios,
mostrando-lhe os dentes alvos e fortes, e, metendo decidido o remo n'água,
silenciosa e calma, lançou a canoa para frente, fazendo-a voar como a frecha de
seu arco.
No sítio, depois de esbofar-se em gritos, a
velha Bertrana arquejava, com os beiços brancos de espuma, ardendo em
descomedida raiva, pedindo às pessoas que afinal acudiram aos gritos que lhe
fossem buscar Benedita. E quando, após uma curta revista, lhe voltaram sem
ela, pegou de berrar, possessa, que se a apanhasse outra vez, matava-a.
CAPÍTULO 3
O juiz de direito — um homem gordo,
baixo, calvo, solenemente encasacado — entrou na sala, foi sentar-se entre o
promotor público e o escrivão, no meio da mesa atravessada na largura da sala
junto à parede, mesa comprida e estreita, coberta inteiramente por um pano
verde desbotado, debruado de galão amarelo. Tomando de sobre ela a campainha de
cobre azinhavrado bimbalhou-a com força, enchendo a sala de tilintações finas,
agudas, tanto ou quanto falhadas.
Tinha a testa vincada, num grande ar aborrecido. Havia cinco dias que o
faziam vestir o seu fato preto tão
fatal aos seus achaques hemorroidários, a sua velha e coçada casaca do dia de
grau, para vir ali, àquela maçada do Júri, inutilmente. Até então não fora
possível reunir o número de jurados exigidos por lei; apareciam apenas os da
cidade, que os roceiros estavam às voltas com a safra do cacau e não vinham.
Colocou a
campainha em seu lugar no tinteiro de metal amarelo, e relanceou um olhar em
tono da sala, uma sala fria em cujas paredes caiadas, a umidade punha grandes
manchas bolorentas, cor de cinza. Pareceu-lhe haver mais gente nas pesadas
cadeiras de fábrica portuguesa, enfileiradas rente
às paredes. De um lado ficavam os da cidade, com um ar desembaraçado de quem
está em sua casa, rindo e conversando entre si, fazendo sinais familiares ao promotor,
a pedir-lhe os recusasse, cumprimentando o juiz com leves acenos de cabeça.
Seus fraques e paletós têm formas mais corretas e vestem-nos sem enleio,
useiros em trazê-los. As calças da maioria são brancas, muito engomadas, com
grande vinco no meio, de cima a baixo, a vir morrer no peito das botas,
muito engraxadas. Do outro lado tinham-se sentado os roceiros, facilmente
reconhecíveis pelo seu ar contrafeito e o
estapafúrdio do seu trajar. Perfilados nas cadeiras, duros, as pernas pendidas
direitas, mostravam-se visivelmente quanto não lhes custava o terem de vestir
as roupas com as quais apenas em dia de festa, de júri ou de eleições apareciam
na cidade. Os paletós de pano preto luzidio ou de lustrosa alpaca, amarrotados
dos baús, os coletes vistosamente ramalhudos, sobre alguns dos quais estadeavam-se
grossas correntes de prata ou de ouro falso comprado por verdadeiro, cheias de
berloques, as camisas de morim e as calças de dril branco ou pardo, engomadas e
fortemente aniladas, os sapatos grossos, acalcanhados, limpos de fresco,
espalhado na sala o cheiro ativo da graxa, davam-lhe o aspecto alvar dos
matutos endomingueirados. Para assentarem os indomáveis cabelos rijos que nem piaçaba,
tinham-nos empastado de sebo de Holanda, cujo perfume desagradável
misturava-se no ambiente como o da Água Flórida, o extrato dos roceiros. Não
podendo suportar por mais tempo os grossos sapatos e botas, alguns os tinham
tirado e escondiam debaixo das cadeiras os pés calçados em grosseiras meias.
Suavam copiosamente sob o fato dos grandes dias, enforcados nas gravatas
multicores, atadas em laços extravagantes sobre os quais caíam moles, ensopados
de suor, os grandes colarinhos. De instante a instante enxugavam-se nos lenços
de chita que em seguida, dobrados cuidadosamente sobre os joelhos, eram
guardados dentro dos chapéus, virados de copa para cima em baixo das cadeiras.
De uma e doutra banda, olhava-se para um homem, o réu sentado num pequeno banco entre dois soldados,
mal amanhados em fardinhas curtas de brim pardo e vivos encarnados, à beira de
uma pequena mesa, coberta com um safado retalho de lã verde, à guisa de colcha.
E, cochichando entre si, os jurados apontavam-no uns aos outros.
Aquele sujeito era o José
Tapuio, que ali estava tranquilo, indiferente no meio do aparato do tribunal.
Apenas quando não sabia mais o que fazer das mãos, coçava a cabeça ou os pés,
visivelmente contrariado, como quem estando habituado à vida de selvagem sente-se de repente limitado aos
dois palmos de um banco.
O juiz, bem acomodado na sua velha cadeira de braços, voltou-se para o sujeito magro, vestido com um
rapado paletó de alpaca à sua esquerda, e disse-lhe:
— Senhor escrivão,
faça a chamada.
O escrivão levantou-se, abriu
um caderno de papel já sórdido, e depois de passar a mão descarnada, a direita
em cujos dedos cresciam, unhas amarelas, nos pelos duros e esparsos que a modo
de barba lhe cresciam no mento, pôs-se a ler em voz alta, rouquenta, uma série
de nomes banais, com apelidos devotos, Espírito Santo, Encarnação, Amor
Divino, apanhados aqui e ali, na cartilha ou na folhinha, para o uso jornaleiro
e pelas exigências da vida social. De entre os jurados partiam gritos "presente"
e "pronto", em tons discordantes. Enquanto isto, o juiz contava
maquinalmente uns papelinhos dobrados em quatro, que extraía de uma caixa de
folhas de Flandres, de forma lúgubre de urna, pintada de verde, com frisos
amarelos, e ia pachorrentamente arrumando em fileiras sobre o pano da mesa,
enodoado de tinta preta.
Concluída a chamada e verificado o número legal, disse,
metendo de novo os papelinhos na urna, um a um.
— Estão quarenta e
oito cédulas: vai-se proceder ao sorteio.
Mal o havia dito, surgiu de uma pequena porta um oficial de justiça, um mulato esguio de alta gaforinha erguida em
trunfa, com um pé doente calçado em uma chinela de tapete, trazendo pela mão um
menino de seis anos, todo vestido de brim pardo, engomadinho, o cabelo
encharcado em óleo de camaru empastado na cabecinha pequena, franzina, anêmica.
O juiz apresentou-lhe a boca da urna, e depois de remexê-la bem, disse-lhe:
— Tire, iôiô.
O menino já afeito àquela cerimônia, pois não era a primeira
vez que ali vinha, meteu a mãozinha magra até o fundo da caixa e entrou a tirar
as cédulas e entregá-las ao juiz, que as ia lendo em voz alta, à proporção que
as recebia. A certos nomes, o promotor, um bacharel novo, recentemente
formado, de "pince-nez" de ouro no nariz fino, ou o advogado da
defesa, um magricela, de olhos pequenos e vivos, gestos acanhados, diziam
brevemente :
— Recuso.
Os roceiros observavam entre si, invejosos e ciumentos, que os
recusados eram só "gente
graúda" da cidade. Coitados deles; que aguentavam com toda a carga do
júri. Efetivamente, o conselho de jurados se formara de doze sujeitos de
modesta aparência, e ares esquerdos de "gente de sítio". Os da cidade
retiravam-se alegres, com sorrisos irônicos aos que ficavam e gestos
agradecidos ao promotor ou ao advogado, àquele enfim que os havia recusado.
Os escolhidos pela sorte e aceitos pelas partes iam tomando assento
numa mesa comprida do meio da casa, sobre a qual alguns estendiam os braços, sem respeito. Outros faziam-se sérios e graves
e, compenetrados da sua missão de juízes, olhavam atenta e fixamente o réu,
como a querer arrancar-lhe a prova do crime à cara inexpressiva e bronzeada.
O juiz chamou-os para prestarem o juramento de estilo. Estava erguido
entre o promotor e o escrivão, ambos também de
pé, solene e sisudo, estendendo uma pequena Bíblia falsa, com a encardenação de
couro negro da Sociedade Bíblica de Nova Iorque, roída de baratas,,
pronunciando as palavras sacramentais: "Juro de pronunciar bem e
sinceramente nesta causa; haver-me com. franqueza e verdade, só tendo diante
dos meus olhos Deus e a lei e proferir o meu voto segundo a minha consciência..."
Cada um por sua vez, acercavam-se os jurados da mesa e, pondo as mãos grossas e escuras sobre o livro, proferiam,
obedecendo a uma intimação murmurada do juiz:
— Assim juro.
E voltavam a sentar-se cheios de gravidade, esbarrando uns nos outros,
arrastando os pés.
Concluída esta cerimônia e
reassentados todos, fez o juiz um aceno ao réu, dizendo-lhe:
—— Venha cá.
José levantou-se, acanhado e contrafeito,
e veio até junto da mesa do juiz.
— Você, disse o
magistrado, vai responder às perguntas que eu lhe vou fazer. Não se atrapalhe,
não se aperte, nem minta. Veja lá...
E começou o interrogatório:
— Como você se chama?
O tapuio ficou interdito, como quem não compreendia a questão.
— Como é o seu nome?
tornou o juiz.
— José.
E o juiz fez-lhe sucessivamente as perguntas de praxe.
— Sabe de que o
acusam e por que está você aqui?
— "Eê".
— Sabe?
— "Eê,
sei".
—. Sabe que é acusado
de ter — disse a data e os lugares — "feito mal" e depois matado a
menor Benedita, afilhada do seu patrão Filipe Arauacu?
— "Eê..."
— É verdade?
— Eê...
— Diga ao Tribunal
como o fato se deu.
O tapuio esteve alguns instantes calado, os olhos pregados no chão, um leve riso envergonhado nos lábios grossos,
voltando o chapéu nas mãos em todos os sentidos. Por fim, sem mudar de
postura, disse com ar de uma criança obrigada a confessar alguma falta venial:
—"Eu já contei
p'r'o outro branco".
O "outro branco" era o juiz formador da culpa.
— "Sim, mas é
preciso contar outra vez.
Ele calou-se de novo, sempre com o mesmo sorriso vexado no rosto
abaixado. À nova intimação do juiz para que
falasse, disse, após, mais alguns momentos de silêncio:
— Eu queria ela p'ra mim...
furtei ela de noite... no mato ela gritou... antão eu matei ela e fui leva o corpo na minha canoa p'ra enterra no
Uruá-tapera.
— E enterrou?
— Eê, eu enterrei,
pus cruz na cova p'ra sina.
— Que o levou a praticar este crime?
José, não compreendendo a pergunta, fitou
interro-gador o j uiz, que a traduziu:
— Por que você matou
a rapariguinha?
Ele calou-se e apesar das repetidas intimações do juiz não foi possível arrancar-lhe uma
resposta. Descoroçoado, cessou este o interrogatório, que fez ler pelo escrivão
e assinar o rogo do réu, que voltou ao seu banco.
O escrivão, de pé, passando
as unhas amarelas pelos raros fios da barba, principiou a leitura do processo,
às carreiras, sem pontos nem vírgulas, cuspinhando de perdigotos os autos.
No dia tantos de tal mês do ano do
nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e tantos no distrito
de tal, o índio José, conhecido por José Tapuio, agregado de Felipe Arauacu,
raptara da casa deste uma menor de nove ou dez anos de idade, afilhada do dito
Felipe Arauacu, estuprara-a e matara-a em seguida no lugar Uruátapera,
vizinho daquele no qual se dera o crime, tudo segundo confessou o sobredito réu
José Tapuio.
Os jurados, voltados para o escrivão,
procuravam perceber as palavras que lhe saíam em borbotões por entre um chuvisco
de perdigotos. Tinham fincado os cotovelos às mesas e com as cabeças um pouco
apoiadas na palmas das mãos dobradas num meio tubo acústico, escutavam
atentos, com as bocas semiabertas. Cada vez mais apressado, precipitando as
palavras, o escrivão lia os depoimentos das testemunhas, sem, vírgulas nem
pontos, engolindo estes inofensivos sinais de envolto com as partículas, os
mais, os como, os porém, etc. As testemunhas eram Felipe Arauacu, que não
dizia mais do que os leitores sabem, nem mesmo tanto; a moça com quem ele
vivia, que também não dava novidades conquanto se deferisse de leve às
impertinências de D. Bertrana; uma tapuia de meia idade, do serviço da casa,
que não adiantava ideia; um tapuio pescador, domiciliado nas cercanias do
sítio do Felipe Arauacu, o qual fora a causa da prisão do réu, declarando em
casa do mesmo Arauacu que na tarde do dia em que Benedita desapareceu, tendo
ela testemunha ido pescar tambaquis no igapó, perto do dito sítio, conheceu a
montaria de José Tapuio, no fundo do dito igapó puxada em terra, sem o menor
sinal de ter andado à pesca, sendo para
estranhar que tendo o referido José Tapuio partido de madrugada estivesse à
tarde ainda tão perto de casa. Isto tudo dissera ela testemunha no depoimento
que o escrivão lia agora.
As testemunhas eram unânimes em asseverar
que a rapariga era bem tratada pelo padrinho, a cujos costumes diziam todos
"nada", e também declaravam que não lhes escapara nunca que o réu
"gostava de Benedita". A velha Bertrana hão pudera ser ouvida, porque
as suas muitas doenças não lhe permitiam vir a Óbidos, onde fora instaurado o
processo, para cujo andamento, julgou-se a justiça, com a confissão do réu, dispensada
de ir proceder a inquéritos e exames no lugar do crime.
O escrivão, no entanto, prosseguia a sua leitura, enchendo
a sala do ruído monótono de sua voz rouquenha. O juiz conversava com o
promotor, uma palestra alegre, a julgar pelas boas risadinhas patuscas que de
vez em quando soltavam ambos, com um recíproco piscar d'olhos brejeiro. Afora
os jurados não havia mais na sala senão uns dois ou três indivíduos, dos quais
um com a cabeça pendida, o queixo fincado no peito, a boca aberta, babando o
peitinho da camisa, dormia numa das cadeiras enfileiradas em derredor da sala.
Cabeças metiam-se pelas portas, espiavam curiosas e recolhiam-se prontas.
Cansados pelo esforço na sua ímproba atenção, os juízes de fato viravam as
costas ao escrivão e, a exemplo do magistrado presidente do júri, puseram-se
também a falar baixinho uns com os outros, da safra do cacau, do preço do
piracuru, de política. Moscas zumbiam doidejantes no ar. De fora, vinha um
calor pesado, e dois largos retalhos de sol, entrando pelas janelas, chispavam
nos tijolos vermelhos da sala, fazendo-lhe uma temperatura de forno. O moço
pálido que servia de advogado do réu, sentado junto à sua mesinha modesta,
olhava fixamente o escrivão e, ou fossem vencidos pela fixidez do olhar ou
oprimidos pelo calor do ar, o certo é que os seus olhinhos fecharam-se mau
grado seu, e o lápis que tinha na mão, para tomar notas, caiu-lhe uma vez sem
ele sentir. Os soldados de sentinela ao tribunal, cochilavam encostados às
ombreiras das portas, abraçados às espingardas descansadas no chão. O réu,
muito alerta, ouvia com uma expressão
indecifrável no rosto, as palavras que ia lendo o escrivão.
Este por fim terminou. Cessando o rumor monótono, com que sua voz enchera até aí a sala,
houve um súbito e fundo silêncio cortado por uns restos de frases dos jurados
e dos magistrados. Mas logo todos se aprumaram arrastando os pés e as
cadeiras, para mudar de posição, e o juiz, passando na calva lustrosa o seu
lenço rescendente de água da Colônia, perguntou às partes e aos jurados se
queriam ouvir as testemunhas.
— Que não, que
bastavam os depoimentos da formação da culpa que acabavam de ouvir, respondeu
o promotor. Os outros assentiram nisso, e a palavra foi dada ao "órgão da
justiça pública".
Ele levantou-se, puxou o lenço
do bolso e pôs-se a limpar a luneta, olhando para a frente, os jurados à roda
da mesa, com os olhos apertados numa contração de míope. Depois de haver
verificado a clareza dos vidros, chegando-os à altura dos olhos, pôs a luneta
com gesto lento no nariz, com as mãos ambas, e, arregaçando o bigode com o
lenço para cima dos lábios e enxuta as costas das mãos, principiou:
— Senhor doutor juiz
de direito! Senhores juízes de fato! ilustrado auditório !
O sujeito que dormia com o queixo escorado no peito, sentindo-se
interpelado, acordou. Uma meia-dúzia
de pessoas que estavam nas salas e corredores da Câmara Municipal, onde se
efetuava o júri, entraram pisando nas pontas dos pés com cautela e um pequeno
ringir de botas e foram sentar-se nos lugares do público, com o propósito de
ouvir o promotor, novo na terra e que, segundo se dizia, era um moço ilustrado.
Outros limitaram-se a chegar até às portas, donde se puseram a escutá-lo. Ele
sentiu que por sua causa vinham, tratou de justificar a expectativa pública e
de firmar a sua reputação no lugar. Após meia-dúzia de palavras tabelioas de um
exórdio conciso, leu o libelo no qual afirmou provaria que o réu José, por
alcunha Tapuio — citou datas e lugares — assassinou a menor Benedita; provaria
que o fez por motivo reprovado, depois de cometer nela estupro; provaria mais
que houve abuso de confiança e de força; provaria ainda que perpetrou o
crime com todas as circunstâncias agravantes
mencionadas no artigo dezesseis, números um, quatro, seis, oito, nove, dez,
doze, quinze do Código Criminal; provaria também que o crime fora ainda
agravado pelas circunstâncias do artigo dezessete do mesmo e provaria
finalmente, que o réu incorrera nas penas do artigo 192 do Código Criminal.
Depôs na mesa o libelo e, passando o lenço
pela testa, tirou do peito, com um som trágico, estas palavras:
— Meus senhores!
Fez ainda uma
breve pausa e começou deveras. Foi
eloquente, dessa eloquência retórica e fofa dos adjetivos pavorosos horríficos
e sofrivelmente afrontosos que o zelo irresponsável dos "órgãos da justiça
pública" atira com mal usada coragem à cara de um infeliz que lhe dá aos —
ingratos! — de assombrar um público simples com a rançosa e cansada facúndia
das promotorias públicas. A dar-lhe crédito, não havia ente mais perigoso do
que José Tapuio. Aquele homem, que um cidadão generoso e prestante arrancara às
mãos ávidas dos exploradores sem consciência e da selvageria, e recebera no
seio da sua família, no santuário augusto do lar doméstico, aquele homem, com
uma perversidade horrível, aquela perversidade referida pelos cronistas, tirou
de casa, alta noite, uma menina, um anjo de candura, uma criança de poucos,
anos, que era os enlevos do seu protetor e padrinho dela e — fez aqui um longo
e fecundo silêncio — custava-lhe dizê-lo — declarou — levou-a para o recesso
escuro da floresta, donde esta fera — apontou o réu — nunca devera ter saído, e
lá, com uma concupiscência horripilante, subjugou, forçou a pobre menina e
cevou nela os seus instintos ferozes de tigre carniceiro! Sim, senhores, não
tinha duvidado fazer aquilo, o malvado perigoso que ali estava — e cheio de
ira, a santa ira da justiça paga, apontava o José Tapuio, que o olhava com uma
seriedade cômica. Não duvidara — continuou — arrancar com suas garras aduncas
dos braços carinhosos de uma matrona respeitável, como a sogra do Sr. Alferes
Arauacu, uma criança que era para aquela carinhosa senhora a alegria da sua
honrada velhice, a consolação do seu isolamento, o sol que aquecia o gelo das
suas cãs, para violá-la, matá-la, e, coragem
inaudita, enterrá-la!!!
E neste tom continuou, irado, zeloso da moral e da segurança da sociedade, colérico pelo amor da justiça e
agitando no ar em gestos descompassados os seus braços finos como o legendário
arcanjo agitaria às portas do Éden a sua espada flamejante, terminando por
pedir a condenação do réu, "daquele celerado de que se devia expungir a
sociedade" no máximo das penas do artigo 192 do Código Criminal, à morte!
E sentou-se com mostras afetadas de fatigado, triunfante, sorrindo aos
espectadores, que lhe davam sinais mudos, mas evidentes, de aprovação. A palavra foi dada ao advogado do réu. O moço
levantou-se e principiou, com a sua vozinha doce. O promotor saiu enrolando
um cigarro nos dedos, para ir fumar lá fora, nos corredores. O da defesa era um
ex-aluno do Seminário do Pará. Da sua educação ali ficara-lhe um
acanhamento postiço e um vezo hipócrita de olhar para o chão. O semblante,
porém, quando o levantava para a gente, revelava inteligência, ou pelo menos
vivacidade. Não negou o fato, nem teve entusiasmo de defensor; cumpria apenas
um dever imposto pelo magistrado que o nomeara procurador do réu — por cuja
defesa a municipalidade lhe daria trinta mil réis. Falou friamente, num pobre
filho das selvas que mal recebera as águas lustrais do batismo sem as grandes
lições de moral cristã, da divina moral do sublime mártir do Gólgota, a única —
afirmou — verdadeira, a única capaz de livrar o homem do domínio do crime.
Da sua estada no Seminário, entre padres,
restava--lhe uma fraseologia teológica, não pouco admirada em, Óbidos, onde
exercia a profissão de advogado, depois que negócios de família o obrigaram a
interromper seus estudos quando ia tomar as primeiras ordens.
Observou que nos autos não
havia provas para a condenação do réu e que sem a franca confissão deste os
depoimentos das testemunhas não seriam suficientes para provar o crime.
Chamava, portanto, a atenção do tribunal para o art. 94 do Código do processo
criminal, o qual leu devagar, acentuando a última parte: "A confissão do
réu em juízo competente, sendo livre e
coincidindo com as circunstâncias do fato, prova o delito; mas no caso de
morte, só pode sujeitá-lo à pena imediata, quando não haja outra prova". E
sobre isto repisou dois ou três minutos. Pedia aos senhores jurados que,
segundo a palavra evangélica, tivessem misericórdia, e que se não esquecessem
quem perdoasse seria também perdoado. E terminou: — Em nome do Deus de
Misericórdia e de Amor, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, eu peço a
absolvição do acusado! E deixou-se cair na cadeira visivelmente fatigado, mas
de fato satisfeito por ter dado conta daquela tarefa maçadora.
O juiz, que ouvira o pró e o contra
debruçado sobre a mesa, ocupado em rabiscar, com o seu nome escrito por extenso
em todos os sentidos, uma folha de papel, aprumou-se e após um curto resumo
dos debates, apresentou aos jurados os quesitos que pouco antes ditara ao escrivão,
explicando-lhes minuciosamente como deviam respondê-los.
Daí por meia hora os juízes de fato
voltaram à sala; tendo respondido afirmativamente aos quesitos principais:
José Tapuio tinha primeiro violentado, deflorado e depois matado a pequena
Benedita, com todas as circunstâncias agravantes do código. À vista da
resposta do júri o juiz, condenou-o ao médio da pena do art. 192, a galés
perpétuas, visto não haver, como reconheceram os jurados, outra prova além da
sua confissão.
E às cinco horas da tarde saíram todos do
tribunal fatigados, aborrecidos, com fome, um grande apetite para jantar,
dizendo acordemente:
— Safa! Que maçada!
Daí a dois ou três dias, uma manhã, correu na cidade,
um boato extravagante. Em uma canoa do Trombetas cabava de chegar uma
rapariguinha que, segundo diziam, era a mesma Benedita,, por cuja morte fora
naquela semana condenado o José Tapuio. Alguns curiosos desceram ao porto para
vê-la. Já lá não estava, que o juiz ao chegar-lhe aos ouvidos o boato,
mandara-a ir à sua presença, com as pessoas que a acompanhavam. Entre estas
vinha o próprio pai, que declarou que no dia em que se julgava ter sido
cometido o crime, já ao amanhecer, José
chegara ao seu sítio situado a um bom estirão do de Felipe, e lhe entregou sua
filha dizendo-lhe que a levava porque a "branca" com a qual ela
estava, maltratava-a muito. Por suas palavras e pelo ser corpo, zebrado pelas
marcas azuis do chicote, a rapariguinha confirmou o dito do índio. Agradecidos,
os pais ofereceram-lhe café e cachaça. Ele bebeu e partiu em seguida e nunca
mais souberam dele. Tal foi a narração resumida do pai de Benedita. Interrogada,
também ela contou a triste vida que levava com Bertrana, a protetora afeição de
José, como ele a furtou de noite para levá-la à canoa que os esperava no fundo
do agapó sem lhe fazer o menor mal.
O juiz mandou autuar estes depoimentos e fez vir o
condenado à sua presença. Vendo Benedita, apenas um bom sorriso iluminou de
relance a larga cara fosca do tapuio. O magistrado perguntou-lhe:
— Conhece esta
rapariguinha?
— Eê... Benedita...
— Você não disse que
a tinha matado e enterrado no
Uruá-tapera?
— Eê...
—E por que disse isso
mentindo e expondo-se a ser,
como foi, condenado?
— Porque eu queria
"fazê bem p'ra ela".
E' escusado dizer que houve recurso de graça, perdão, e José Tapuio não cumpriu a pena. Ignoro
o fim dele; do que firmemente estou convencido, porém, é de que morreu, se já
morreu, na mais bem-aventurada ignorância sobre os móveis ou a sanção do ato
moral que praticou, como talvez aconteceu àquele lobo histórico, que no meio do
destroço dos seus caiu varado pela bala humana, quando arrastava para fora do
perigo outro velho lobo cego, ao qual servia de guia, pondo-lhe a cauda na
boca, à guisa de bastão.
---
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...