O Compadre Rabino
Apareceu um dia no monte, magro,
escanzelado, consumido pelas febres, havia três meses a contas com umas quartãs
que não o largavam nem à mão de Deus-Padre.
— Queres-te consertar?
Ele não queria outra coisa; mas
sentia-se incapaz de mudar uma palha de um lado para o outro, de dois em dois
dias abarracado com a quartã, para ali ficando num molho de manhã à noite, sem
dar acordo de si.
— Não faz mal, é para guardar
porcos. Tenho ai um remédio que te há de fazer bem. O remédio era o sulfato de
quinino, o bom sulfato inglês, que minha mãe comprava em frascos, dando-o a
quem dele necessitava, à gente pobre que o pedia.
Foi assim que o compadre Rabino
entrou para minha casa, roído pelas febres, umas quartãs amaldiçoadas que o não
deixavam ganhar a vida.
Sucedeu o remédio fazer-lhe bem,
de modo que ao fim de poucos dias estava são e rijo como um pero verde, e comia
com tal apetite que até parecia, diziam os outros criados, ter fome canina.
Por qualquer motivo, o maioral
dos porcos deu o ano por acabado antes de Santa Maria, e o compadre Rabino, que
entrara como ajuda, passou logo a ser o maioral, subindo de categoria e
melhorando de vencimentos.
Minha mãe foi a madrinha da sua
primeira filha, e assim o compadre Rabino passou a ser uma pessoa da nossa
família, compadre de águas bentas, o que representava naquele tempo uma
estreita relação de parentesco, tão estreita que os compadres como tal se
tratavam, mesmo que fossem irmãos.
E que adorável, que santa
rapariga era essa Maria Jacinta, que eu estou a ver, estudante de Medicina em
fins do curso, pálida como se fosse modelada em cera branca com tonalidades
amarelas, os olhos encovados, o peito deprimido, triste porque sentia a morte
próxima, e ao mesmo tempo satisfeita porque me tinha ao pé de si.
— Diga-me que não morro, que eu
acredito...
Pobre Maria Jacinta!
No campo, pela Primavera, em plena
Natureza encontram-se florinhas, cetinosas ou aveludadas, admiráveis pelo
desenho, cativantes pela cor, de uma beleza tão rara que a gente pasma de as
ver ali entre plantas grosseiras, ao lado de outras flores ordinárias, que mais
fazem realçar pelo contraste o seu porte aristocrático. Dir-se-ia, não as vendo
ao pé da esteva resinosa, da papoila branca, junto dos cardos espinhosos,
armados para a resistência a toda a espécie de agressão, dir-se-ia,
naturalmente, serem tais florinhas o produto de uma seleção inteligente,
continuada ao longo de tempos infinitos, mimosas e delicadas flores que mãos
finas de princesa fossem tratando e educando segundo os melhores preceitos
dessa arte essencialmente fidalga, como lhe chamou o Fialho, que é a
floricultura.
Pois aparecem também
semelhantemente, na família plebeia dos camponeses, criaturinhas de graça
perturbante, como se dentro da frágil beleza de uma tanagra habitasse o
espírito sonhador de uma castelã, tão nobres de sentimentos, tão fidalgas de
maneiras, que a gente fica a pensar, olhando-as com enternecida curiosidade, se
não coincide a repetição de certas formas com a transmigração de certas almas.
***
A vida do maioral de porcos é
relativamente descansada, pelo menos durante uma boa parte do ano, de modo que
ao compadre Rabino sobejava-lhe o tempo para me aturar, dias inteiros por lá
com ele, sobretudo na época das túberas, que os porcos são uns artistas para as
encontrarem e dão o cavaquinho por elas, como excelentes gourmets. Não me
recordo de ter ouvido ao compadre Rabino uma palavra obscena, e ia jurar sobre
umas Horas que jamais ele contou uma história picaresca. Era um homem austero
nos seus costumes e de uma grande compostura na sua linguagem. É regra
invariável dos homens que guardam animais, sejam eles quais forem — ovelhas,
cabras, bois ou porcos, — envolverem nas suas pragas, que são exclamações de
cólera passageira, os patrões, donos do gado, e não se dispensam inteiramente
de o fazer, mesmo na presença deles. Às vezes, íamos de carro para qualquer
parte, eu e meu pai, e o almocreve, farto de brigar com uma das mulas, que não
queria puxar certo, desatava a bater-lhe furiosamente com o chicote, e cada
chicotada tinha o reforço de uma injúria grave — Ah! mula de um filho da… como
se a minha avó fosse a mãe dele.
Tinha a religiosidade dos homens
da sua condição, o compadre Rabino, mas não era fanático nem supersticioso;
acreditava nos santos, e não tinha medo das bruxas.
Do que ele tinha medo, um medo
apavorante, era das trovoadas, a tal ponto que em ouvindo um trovão já não
sabia onde havia de meter-se... Andava com o gado longe do monte, e o céu
entrava a toldar-se, grandes nuvens correndo ao encontro umas das outras,
formando esponjas do tamanho de montanhas. Daí a pouco chovia torrencialmente,
e o compadre Rabino, enrolado na sua manta de riscas pretas e brancas,
procurava um abrigo, se o havia ali perto, uma árvore ou uma barreira, e
aguentava, ao pé da sua obrigação, o dilúvio que sobre ele caía. Mas ouvia-se
um trovão, ainda surdo, muito distante, o compadre Rabino tratava de enrolar o
gado — ó rapaz, acareia para cá aqueles porcos — e punha-se a caminho do monte.
Se a trovoada o surpreendia, e no mês de Maio as trovoadas no Alentejo armam-se
de um momento para o outro, o compadre Rabino largava o gado, carregava-se de
trovisco, se por ali o havia, e pernas para que vos quero, até se apanhar
debaixo de telha — como se o perigo, abrangendo muitos, fosse menor para cada
um. Chegava, esbaforido, a manta pela cabeça, o chapéu debaixo do braço, e o seu
primeiro cuidado era entregar o trovisco a uma criada, que tratava de o
espalhar por todas as casas, ramo aqui, ramo além, não esquecendo nunca um
raminho a tapar o buraco da fechadura na porta da rua. Já minha mãe, também
medrosa dos trovões, tinha feito reunir a família num quarto onde não houvesse
cobre ou estanho, porque estes metais atraem o raio, de modo que a sua
presença, quando troveja, é perigosa para as pessoas. É como se estivesse a
ouvi-lo, o pequeno coro de vozes súplices, erguendo-se numa toada plangente, e
os trovões ribombando numa orquestração diabólica, terrificante — como se o
Deus bíblico desencadeasse as suas cóleras por sobre as nossas cabeças.
Por que é que o trovisco livra a
gente de perigos, ó compadre João?
Não lhe sei dizer, Sr. Compadre,
mas sempre ouvi contar que Nossa Senhora, indo para o deserto na companhia de
seu esposo e do seu bendito filho, uma trovoada apanhou-a num descampado, e ela
então acolheu-se ao pé de uma trovisqueira, rezando as suas orações. Vai então
Nosso Senhor abençoou o trovisco em honra da Virgem Santa.
Também eu rezava a magnificat e
cantava o bendito-louvado; mas não tinha medo dos trovões e gostava de ver os
relâmpagos, como faíscas, riscando a atmosfera espessa, e seguia com a maior
curiosidade, como se quisesse penetrar um mistério, toda a evolução do estrondo
atmosférico, desde o estampido inicial, como um estalo de madeira seca, até ao
sussurro longínquo, quase apagado, como o de um vagalhão que morre na areia.
***
Nos primeiros dias de Outubro, às
vezes nos últimos dias de Setembro, o compadre Rabino ia encabeçar os montados,
e sempre os seus encabeçamentos eram mais exatos que o cômputo das receitas e
despesas no Orçamento Geral do Estado.
— O Sabugueiro está carregado de
comida; deve fazer umas quarenta cabeças. O Poço Seco não pode fazer mais de
trinta. O sobro está bom, mas o Sr. Compadre bem sabe, afogado em mato...
Claro está que o compadre Rabino
não tinha um processo especial, um processo seu para encabeçar um montado; mas
tinha a pachorra de estacar diante de cada árvore, mirando-a bem, quase
contando-lhe as boletas, e assim os seus cálculos tinham a possível exatidão.
Ao encetar a sua tarefa, metia umas poucas de pedras na algibeira da jaleca,
lado esquerdo, cada uma das pedras correspondendo a um porco magro. À medida
que ia engordando essas cabeças, passava-as para a algibeira direita, e assim,
terminada a vistoria, contando as pedras que tinha nessa algibeira, sabia
quantas cabeças fazia o montado. Podia vir mau tempo; as geadas queimarem a
boleta; o vento sacudia as árvores, formando soleiras que o gado não podia
levantar, ficando para ali a comida a estragar-se. Com estes acidentes nada
tinha o compadre Rabino, que baseava o seu cálculo na inspeção direta e
confiava na regularidade dos fenômenos atmosféricos, mais do que era permitido
à sua experiência de maioral.
Quando eu apanhava licença para
ir ao Poço Seco levar as comédias ao compadre Rabino, que ali andava com o
alfeire, o meu contentamento não tinha limites. Era uma jornada
de vinte e tantos quilômetros montado no Carrula, um macho velho que havia em
minha casa, muito manso, muito vagaroso — não mudava uma pata sem pedir licença
à outra. Havia um perigo no caminho, se o Inverno era de chuvas copiosas — a
ribeira de São Romão, que enche com facilidade e é caudalosa como um rio
africano. Recomendava então meu pai:
— Se o macho fizer querena de não
atravessar a ribeira, não o obrigue, venha-se embora.
Na verdade o macho sabia calcular
muito melhor do que eu o volume de água que levava a ribeira, e porque era um
animal calmo, raciocinador, em ele recusando atravessá-la, o que havia a fazer
de melhor era aceitar-lhe a indicação.
As comédias ficavam aviadas de
véspera, de modo que eu podia abalar cedo, à hora que me aprouvesse, e como não
pregava olho em toda a santíssima noite, a antegozar a jornada, mal luzia o
buraco saltava da cama, e era num rufo enquanto me punha a caminho.
A alegria do compadre Rabino em
me vendo, e a sua carinhosa solicitude em arranjar-me um bom almoço que eu
dispensava quase sempre por ter almoçado a choutear no Carrula.
— Os Srs. Compadres como estão?
os manos?, toda a mais família?
Estavam todos bem, e
recomendavam-se muito.
Guardadas as comédias e dada a
ração ao macho, o compadre Rabino convidava-me a ir ver o gado, ia dar uma
volta pela herdade, convite que sempre aceitava, jubiloso, vendo-me tratado
como uma pessoa grande, um homem que fosse dono daquilo tudo.
— Isto é uma bela herdade, Sr.
Compadre. O Sr. Seu Pai nem sabe o que aqui tem. Se andasse limpa, fazia o
dobro do gado, não falando da pastagem, que podia ser desfrutada com ovelhas.
Mas quê!... Há aí estevas maiores que as azinheiras. Então os sobreiros,
coitadinhos, até faz pena olhar para eles. Alguns já são velhos; mas as estevas
e as daroeiras chupam-lhes as raízes, e os pobres, em vez de crescerem, até
parece que mínguam. Só com o dinheiro da cepa, vendida para carvão, o Sr.
Compadre limpava a herdade sem por nada da sua algibeira.
Para me tornar mais sensível aos
seus argumentos, o compadre Rabino levava-me por onde o mato era mais espesso,
recomendando-me sempre que tivesse cuidado não fosse rasgar o fato e fazendo-me
notar que as árvores, ali metidas, nem rama davam, quanto mais boleta.
Eu concordava com o compadre
Rabino, às vezes nem sequer ouvindo o que ele dizia, entretido a colher
medronhos, a colhê-los e a comê-los, porque eles eram magníficos, muito
vermelhos, grandes e carnudos.
— Não se meta muito neles, Sr.
Compadre, porque pode agarrar uma bebedeira. Eu logo apanho uma porção para
levar.
Se o gado estava bom, o compadre
Rabino não se dispensava de me dizer que melhor ele estaria se meu pai, fazendo
como ele tinha aconselhado, deixasse ficar no monte umas trinta cabeças para
levar à Feira de Castro. Se estava magro, pior que à saída do restolho,
explicava que se tinha perdido muita comida com as geadas e que o gado, tendo
de ir beber fora da herdade, perdia nessas andanças muito lustro e chorume.
— Ele água há em toda a parte, Sr.
Compadre, o ponto é procurá-la. Todas as herdades que pegam com a nossa têm
água com fartura. Ainda no outro dia, no Azinhal, abriram um poço, e quando
chegaram à fundura de pouco mais de um homem, veio um jorro de água que parecia
um braço de mar. Ora, se há de haver aí água! O Sr. Compadre o que devia era
trazer aqui um vedor e abrir um poço onde ele dissesse.
Eu nunca tinha pressa de abalar,
mas o compadre Rabino é que nunca se esquecia de que eu tinha de fazer, para
chegar ao monte, umas boas três léguas da velha.
— Vão sendo horas, Sr. Compadre.
A jornada é comprida, e o machinho não é grande coisa a andar.
Se à ida eu não tinha entrada em
casa do compadre Rabino, passando fora de Messejana, à volta não me dispensava
de o fazer, o que dava uma grande alegria à comadre Maria Inácia e à tia Mônica
— além de que me fazia pousar em cavaleiro perante as gentes do povoado.
Quem me dera nesse tempo!
A comadre Maria Inácia era das
mulheres mais feias da vila e termo, mas a sua fealdade não era repulsante,
antes a disfarçava, quase tornando-a simpática, uma bondade que a todos
prendia. Eu era, para ela, o Sr. Compadrinho, e por seguro tenho que ela não
distinguia, na repartição dos seus afetos, alma afetuosa que era, entre os seus
filhos e netos e os senhores Compadres das Mesas, grandes e pequenos.
A tia Mônica, baixota,
redondinha, era surda como uma porta e falava a toda a gente quase a gritar — como
se os outros é que fossem surdos. Era de uma alegria exuberante, fato
excepcional nos surdos, que são, por via de regra, de uma tristeza sombria,
ásperos, quase agressivos no seu trato. Os cegos, pelo contrário, são criaturas
de bom humor, muito expansivos, de fisionomia aberta e iluminada, como se a luz
que lhes falta nos olhos se lhes difundisse na cara. Figuro a hipótese de não
ouvir, e parece-me que em pouco isso alteraria o meu viver habitual; figuro a
hipótese de não ver, e instintivamente levo a mão à algibeira a verificar se
trago o revólver.
Era uma grande frasquejadeira, a
tia Mônica, e fazia uns ladrilhos de marmelada que eram dignos da mesa de um
rei, sem quebra das minhas convicções republicanas. Diz-se que há famílias de
bandidos, verdadeiras dinastias de facínoras, como se os germes da
criminalidade andassem diluídos no sangue e fossem passando de uns para outros
por via hereditária. Pois também há famílias de gente boa, dinastias de homens
honrados e mulheres castas, podendo-se afirmar que nenhuma excederia em pureza
a que o compadre Rabino representava.
De uma vez... Era quinta-feira de
Ascensão, e o compadre Rabino, todo barbeado, com fato domingueiro, apareceu no
monte pela meia tarde. Via-se que tinha bebido a sua goladinha porque falava
com muita vivacidade e gesticulava com alguma exuberância.
Tem vagar, compadre João?
Se a Sra. Comadre precisa de mim,
lá o vagar arranja-se.
Tratava-se de colher uma porção
de avenca, da muita que o poço tinha, e que minha mãe queria guardar, bem seca,
para cozimentos.
Aqui vamos todos a caminho da
cerca, lá embaixo, rente ao barranco, o compadre João com uma grande escada às
costas, as criadas com o farnel, minha mãe com uma joeira destinada à avenca,
meu pai com o mais pequeno de meus irmãos pela mão, e o Manuel Narciso, no seu
abominável saracoteio de maricas, levando ao quadril, como as mulheres, uma infusa
com vinho.
O poço tinha mais de um homem de
água, e quando o compadre Rabino começou a descer a escada para colher a
avenca, meu pai recomendou-lhe que tivesse muito cuidado, não fosse cair. De
tal forma ele se arranjou que lhe escorregaram os pés ao mesmo tempo, e aí vai
deslizando pela escada, sem querer largar a joeira. Já metido na água até ao
pescoço, agarrou-se escada com as duas mãos, conseguindo sair do poço sem um
fio enxuto.
Ficou mal, compadre João?
Nada, mal não fiquei; mas ainda
lá volto antes de mudar de copa, que a Sra. Comadre não há de ficar sem a
avenca.
Era dedicado até este ponto o
compadre João Rabino.
Explicava ele depois, no outro
dia:
— Quando me escorregaram os pés,
cuidei que ia morrer afogado; mas assim que entrei na água, ergui os olhos ao
céu e vi Nossa Senhora da Assunção no bocal do poço a rir-se para mim. Foi
então que deitei fora a joeira e me agarrei à escada com unhas e dentes.
Ninguém mais tinha visto a
Senhora da Assunção no bocal do poço a rir-se para o compadre Rabino; mas
tinha-a visto ele, e como ao seu aparecimento atribuía a sua salvação,
mandou-lhe dizer uma missa cantada, e ofereceu-lhe um alqueire de azeite, que
naquele ano se vendia a quartinho.
***
As porcas afilhadas era o
compadre Rabino quem tratava delas — delas e dos filhos. A cortelhada, graças
aos seus cuidados, parecia uma creche em que as crianças fossem bacorinhos.
Andava tudo num brinco, o
corredor, ao centro, varrido duas vezes ao dia, e as camas de junco, nos
cortelhos, renovadas amiúde para que não estivessem sujas.
— O porco é o animal mais asseado
que há, Sr. Compadre.
Porventura o burro será o mais
estúpido animal de quantos existem?
É preciso conhecer muito pouco o
homem para sustentar uma opinião semelhante. Certo que de um indivíduo muito
estúpido se diz que é muito burro; mas não é menos certo dizer-se que tem
talento como um burro um indivíduo que é muito inteligente.
Os porcos não bebem a água suja
do maceirão, e quando dormem no pocilgo, não urinam na cama, se a hora certa,
pela noite adiante, o maioral tem o cuidado de os fazer sair — procedendo como
as mães solícitas com os filhos pequeninos.
Porcas havia — grandíssimas
porcas — que não faziam caso das crias, e então o compadre Rabino moía a
paciência a demovê-las dos seus ruins propósitos, fazendo-lhes todas as
gatimanhas que podem enternecer... um suíno. Dava-lhes palmadinhas na testa e
no lombo, fazia-lhes cócegas muito levemente na barriga, e com muita arteirice
ia pondo os bacorinhos a mamar, mais conhecedor da psicologia das fêmeas, sejam
porcas, sejam mulheres, que muitos psicólogos de carreira. O leite é uma
secreção que precisa de ser exaurida para que as fêmeas que o produzem tenham
saúde.
Com muita arte, o compadre Rabino
fazia adotar por uma porca os filhos de uma outra, e as porcas, honra lhes
seja, prestavam-se complacentemente a esta manobra, dando assim aos humanos um
grande exemplo de abnegação.
Às vezes, o compadre Rabino
aparecia de semblante carregado, o ar triste de um homem que passou por uma
grande contrariedade ou sofreu um grande desgosto.
Há alguma novidade, compadre
João?
Novidade!... Esta noite pariu
aquela marrã que ficou mal capada e comeu os bacorinhos. A minha vontade foi
dar cabo dela! Eram cinco bacorinhos tão perfeitos! Não torna a fazer outra,
isso lhe juro eu. Por minha vontade, já ela cá não estava há muito tempo...
Parecia que me adivinhava o coração!...
As porcas não são as únicas
fêmeas que comem os filhos num acesso de loucura puerperal; mas entre elas o
fato dá-se com relativa frequência. Os que ignoram a sua razão científica
atribuem-no a uma perversão de instintos, a uma ferocidade canibalesca, que é a
negação do que há de fundamental na psicologia das mães. Nunca pude compreender
a razão por que o Cristo, fazendo sair os diabos do corpo de certas pessoas, os
autorizou a meterem-se no corpo de uns suínos que andavam ali perto foçando e
logo desataram a correr para o mar, afogando-se em tropel. Eles não eram
escribas nem fariseus — filósofos de tromba retilínea, alheios a toda a
especulação religiosa.
O compadre Rabino!
Como não havia de querer-lhe
muito se ele, incapaz de mentir em seu proveito, mentia para me livrar de uma
sova, e Deus sabe de quantas me livrou a sua complacência na mentira! Pelas
debulhas, à hora de maior calor, no giro do meio-dia, apanhando meu pai deitado
e minha mãe entretida a repartir o jantar da ganharia, eu abalava com outros
moços e íamos nadar num dos pegos do barranco, a que se chamava o Burdo. Mesmo
suando, atiravamo-nos à água, e ali andávamos, os que sabiam nadar,
serigaitando dentro do pego na desenvoltura de golfinhos. Durava a folia uma
meia hora, porque eu precisava de chegar ao monte com o compadre Rabino, que me
serviria de testemunha abonatória, caso minha mãe tivesse dado pela minha escapulida.
Tu foste nadar?...
Nadar, Sra. Comadre, não foi.
Esteve com a gente à sombra, debaixo de uma oliveira.
***
Pouco dado a especulações
metafísicas, o compadre Rabino nunca inquirira das razões por que Deus criara
os animais daninhos e toda a bicharada inútil. Mas não se conformava com a
criação dos ciganos, gente incapaz de trabalhar, vivendo só do roubo e da
burla.
— Com ciganos nem para o céu.
Ora sucedeu que uma vez, pela
Feira de Garvão, em princípios de Maio, um bando de ciganos chegou ao monte, já
quase noite, e pediu agasalho.
— Fiquem para aí.
Apeteceu ao compadre Rabino,
depois da ceia, visitar o arraial dos ciganos, e travou-se de conversa com um
deles, já velho, mais bem encarado que os outros.
Não vai à feira, maioral?
Não vou. Tenho aí uma burrita
para vender, mas fica para a Feira de Santo Antônio.
Eu compro-lhe a burra.
No dia seguinte, logo pela manhã,
lá estava o cigano ao pé dos porcos, decidido a comprar a burra.
A primeira ideia do compadre
Rabino foi não vender a burra ao cigano, nem que ele lhe desse por ela um conto
de réis. Mas entrou a conversar, a discutir, e daí a pouco estavam encalhados
no preço, o cigano a dizer que não podia dar mais de seis mil e quinhentos, e o
compadre Rabino jurando que lha não dava por menos de duas libras — tão certo
como estar-nos Deus ouvindo!
A burra não era grande coisa, já
velha, parida umas poucas de vezes, mas não tinha as mazelas que o cigano lhe
atribuía. Pois se ele até fez com que o compadre Rabino lhe visse uma névoa no
olho esquerdo!
O caso é que a burra foi vendida
pelos 6$500, e ainda a corja não tinha saído da herdade, já o compadre Rabino
clamava que o cigano o tinha roubado porque a burra valia muito mais.
Passados uns quinze dias, os
mesmos ciganos apareceram, bivacaram no mesmo lugar, mandando dizer ao monte
que ali estavam, para efeitos da ceia.
O compadre Rabino não se conteve
que não fosse de visita ao arraial dos ciganos, disfarçadamente, como quem não
quer a coisa, a ver se eles ainda se não tinham desfeito da burra.
Vossemecê arranjou-me bem,
maioral. A burra tinha alifafes nas duas mãos, e em andando meia légua entrava
numa ofegância que parecia querer deitar os bofes pela boca.
Então vendeu-a?
Qual vendi! Entreguei-a pelo
primeiro dinheiro que me ofereceram por ela, sempre a ver quando caía para
nunca mais se levantar. Olhe que sempre foi uma partida!...
Pois se você ainda a tivesse,
desfazia-se o negócio, e eu dava-lhe pela burra o mesmo por que lha vendi.
Conversa para aqui, conversa para
além, uma cigarrada, acabando o cigano por lhe perguntar se já estava governado
com respeito a jumenta.
Não estou. Já agora espero a
Feira de Santo Antônio.
Pois eu trago aí um animalzinho
que lhe deve servir.
Sem esperar resposta, foi buscar
a burra, bateu-lhe duas palmadas na anca e disse ao compadre Rabino que a
montasse e visse o belo cômodo que dava.
Embora resolvido a não fazer
negócio, o compadre Rabino pôs-se a mirar a burra, abriu-lhe a boca,
examinou-lhe os dentes, curvou-se para lhe examinar os cascos, deu-lhe
palmadinhas na barriga.
— O raio da burra — murmurou por
entredentes —, é a outra por uma pena.
Saltou o cigano para as ancas da
burra e, excitando-a com uma dupla chicotada nas ilhargas, obrigou-a a correr
na extensão de alguns metros, voltando na mesma corremaça ao ponto de partida.
— Isto vale quanto pesa, maioral.
E então mansinha como uma borrega.
Fechou-se o negócio — doze mil
réis.
No outro dia, quando o compadre
João Rabino apareceu no monte, todo ancho, montado na sua jumenta, os outros
criados gritaram, em coro, mal o viram:
— Olha a burra do tio João
Rabino! Como é que ela lhe veio parar de novo às mãos, ó tio João?
O compadre Rabino sorriu-se,
desdenhoso, e disse-lhes, como para dispensar outros argumentos:
Vocês até se esqueceram de que a
minha burra era bragada na barriga. Acudiu logo o Manuel André, que por ter
sido almocreve toda a vida conhecia bem as traças dos ciganos:
Lá isso, tio João, não quer dizer
nada. Ora espere aí que eu já lhe conto um conto...
Daí a pouco, estava o Sr. Manuel
André, armado de uma luva e ferro de limpar as mulas, a esfregar a barriga da
burra como se fosse um sobrado. A água e o sabão fizeram o milagre, pondo a
descoberto, na barriga desta burra, a mancha branca que tinha a outra no mesmo
lugar! Um bocado de cortiça queimada, umedecida com azeite, fizera desaparecer
a mancha branca, que era, para o compadre Rabino, a característica
inconfundível da sua burra — inconfundível e inapagável.
Os ciganos!
Rebeldes a toda a disciplina,
incapazes de qualquer trabalho honesto e aturado que lhes garanta os meios de
subsistência, os ciganos vivem do roubo, e nada mais; é, bem consideradas as
coisas, o comércio que eles fazem com bestas. Nas mãos de tal gente não há
cavalgadura molengona, e apresentado por um cigano numa feira, qualquer vil
pileco tem ares de um cavalo de cem moedas. Comprar, vender e trocar bestas é o
único ofício que exercem, o único comércio que praticam, e
cada uma destas operações nada mais é do que uma modalidade do roubo, o roubo
quase sempre astucioso, algumas vezes, não podendo ser de outra maneira,
violento.
— Dá-me licença que monte o
cavalo? Aqui tem o sinal, para o caso do negócio me convir.
Escarranchado na sela, o cigano
mete o cavalo num trote discreto, e quando se apanha fora da corredoira, por
aqui me sirvo, numa correria doida, como se fosse tirar o pai da forca. Grande
banzé, um levantamento geral contra os ciganos, que são obrigados a abandonar a
feira, mas que na confusão sempre larapiam qualquer coisa, retirando alguns com
a cabeça rachada.
É má gente, dizia meu pai. Mas
corredoira em que não haja ciganos, não presta.
Estou a vê-los no arraial que
eles faziam ao pé do monte, por ocasião das feiras no distrito de Beja para
baixo! Era um acampamento de gente imunda, esfarrapada, dormindo ao relento,
sobre enxergas, numa promiscuidade bestial. São muito prolíficos os ciganos, e
isso explica porque a raça subsiste, a despeito de todos os baldões da sorte.
Casam segundo o seu rito, e diz-se que as mulheres, por via da regra, são de
uma grande fidelidade conjugal. Envelhecem muito cedo, as ciganas,
principalmente quando têm filhos, e como velhas são de uma fealdade execrável.
As raparigas têm uma singular
predileção pelas cores vistosas, berrantes, e eu gostava muito de as ver,
carregadas de saias, quer fizesse frio, quer fizesse calor, saias de barra
vermelha, cobrindo-as um vestido de folhos, em jeitos de balão policrômico. O
seu penteado — uma garridice — era bizantino, de risco ao meio, e fazia-me
desagradável impressão, quase de nojo, o lustro do cabelo, quase a escorrer
banha de porco.
Os rapazes, altos e magros, olhos
negros, a face macilenta, os dentes muito brancos, os lábios descorados, uma
barbinha rala salpicando-lhes a cara, encantavam-me pela sua agilidade,
sobretudo quando jogavam o pau, dando saltos prodigiosos.
Em se dizendo "Aí vêm os
ciganos!", minha mãe dava logo ordem para se meter em casa tudo aquilo,
fosse o que fosse, a que eles poderiam deitar a mão, e mais cedo que de
costume, antes do sol-posto, recolhia a criação — as galinhas e os perus, indo
o moço da água passar vistoria às serras de palha e ao monturo da lenha,
delgada e grossa, em demanda de algum ovo que por lá houvesse.
Pediam tudo, os ciganos, e não
havia recusa que os desanimasse. "Uma gotinha de azeite, Sra. Lavradora!
Um bocadinho de toucinho, por alma de quem lá tem no outro mundo! Umas ceroulas
que o Sr. Lavrador já não queira! Uma camisinha para o meu menino, que não tem que vestir! Uma chávena de mel para um xarope! Uns sapatos
que a Sra. Lavradora já não use! Uma gorpelha de palha para os nossos
burrinhos! Uma esmolinha em dinheiro para ajuda de uma missa à Senhora da
Cola!"
Os ciganos!
Singular raça a desses boêmios,
incapazes de se fixarem em qualquer parte, e na sua eterna peregrinação, hoje
aqui, amanhã além, praticando o roubo como um modo de vida, talvez honestos
adentro de uma moral que as gentes civilizadas ignoram!
***
Velho de mais de 80 anos, mas
ainda rijo, andando sem arrastar os pés, o compadre Rabino, sabendo que eu
estava em Aljustrel, foi visitar-me.
Acho o Sr. Compadre estragado.
São os anos, compadre João.
Os anos! Parece-me que ainda me
doem os braços de o trazer ao colo.
Morreu em terça-feira de Entrudo
e deve ter ido direitinho ao céu, alojando-se na mansão destinada aos bons — se
é que não se pratica lá uma injustiça igual à da Terra.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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