O Caixão
(A Ricardo Teixeira Duarte)
(A Ricardo Teixeira Duarte)
... E, no
meio da alegria ruidosa dessa ceia de rapazes, a voz grave do Patrício Cruz fez-se
ouvir:
Há de haver
três anos, numa linda tarde de abril, estava eu sentado na minha varanda, lendo
o jornal, quando de súbito os meus olhos se fixaram em dois moços de fretes
que, a passo regular, caminhavam conduzindo um grande caixão forrado de
vermelho.
Ao passarem
por defronte de uma taberna, pararam, pousaram o lúgubre traste e entraram no
estabelecimento... "A noite vinha caindo serenamente e enquanto os dois
homens saboreavam lá dentro o ‘‘divino licor’’, o caixão jazia cá fora, à borda
do passeio...
Os transeuntes,
achando o fato vulgar, nem sequer lhe lançavam um olhar distraído... No
entanto, ele, ali, na rua atravessada continuamente por numerosos entes vivos,
era como que um cartaz anunciador da morte!...
Sempre com
os olhos pregados nele, pus-me a meditar e, meditando, fantasiei um par de
jovens noivos, cheios de vida, alegres, felizes, avançando ternamente
enlaçados, murmurando doces palavras d’amor, fazendo mil projetos para o futuro
e que de repente tropeçassem no hediondo monstro que, inexorável, lhes clamaria
numa gargalhada estrídula, horripilante: – ‘‘Folgai! Folgai que eu vos
espero!...’’
Mas os dois
homens haviam já saído, e, erguendo do chão o fúnebre objeto, lá continuaram o
seu caminho...
Era possível
que à mesma hora, na casa habitada pelo corpo a que esse caixão ia servir de
leito eterno, estivesse uma mãe chorando amargamente, rodeada pelos seus pobres
filhos que – morto o pai – ficavam na miséria...
Sim, era
possível; mas também era possível haver apenas, em lugar desse comovedor
quadro, um ‘‘herdeiro’’ ambicioso, voraz, derramando lágrimas hipócritas sobre
o corpo ainda quente daquele que acumulara e aferrolhara por largos anos a
fortuna que finalmente lhe ia pertencer...
Impelido por
uma força desconhecida, levantei-me, fechei a janela e, sem saber como, achei-me na rua seguindo a horrível caixa vermelha!...
Tinha
caminhado não sei durante quanto tempo, tinha atravessado não sei que ruas,
quando de súbito estaquei anelante e como que paralisado: o sinistro frete
entrava para o Teatro do Príncipe Real, onde na noite seguinte se devia
realizar a primeira representação do Morto-Vivo,
drama cujo segundo ato – lá dizia o cartaz – se passava numa câmara
mortuária...
Ah! ao ver
tal, ao ver que esse caixão que tanto me impressionara, que me sugerira tão
sombrios pensamentos, não passava de um mesquinho adereço de teatro, senti uma
sensação igual à que sentiria se me tivessem arremessado à cara com um balde
d’água fria...
A passos
vacilantes, a cambalear como um ébrio, encaminhei-me para minha casa...
Deitei-me.
Adormeci...
No outro
dia, ao acordar, lembrei-me da terrível ‘‘aventura’’ da véspera, soltei uma
gargalhada e, à noite... fui assistir à ‘‘primeira’’ do Morto-Vivo.
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