O Berço
Quem é que,
depois de quinze dias de chuva, deixa de aproveitar uma formosa manhã de sol?!...
Ninguém!
Ao cabo de
uma semana de rigoroso Inverno, atormentava-me a necessidade de movimento, luz,
ar, alegria e vida, e saí, por isso, para a rua, logo às primeiras negaças — que
o sol se lembrou de me fazer.
O meu
espírito — e, neste ponto, julgo-o de acordo com todos os espíritos — acompanha
fielmente o barômetro.
Chove e faz
frio?... Veste-sede negro, assume um ar
grave, que lhe não é natural, e torna-se apto para afrontar os encargos mais
fastidiosos.
Nessas
disposições, não há tarefa árida que lhe
meta medo; folheia autos, digere o código civil, executa com facilidade e exatidão as
quatro operações aritméticas, e não o assusta a obrigação de ler os papéis
velhos, que enchem umas poucas de gavetas, até dar com o recibo de uma conta,
que inocentemente se lembram de
querer cobrar de mim pela segunda vez.
Sobe o barômetro,
e ri o sol lá de cima?... Adeus!... Não há meio de me obrigar a prestar atenção
a coisa alguma.
Um "sim"
ou um "não", se me forçarem a refletir para o pronunciar, é, naquele
estado do meu espírito, a maior das dificuldades.
Eu sei lá se
"sim" se "não"!... O que sei é... que o sol está lá fora à
minha espera.
O tamanco da
aldeã estalando na calçada, o assobio do garoto, o chilrear cínico do pardal — são
outras tantas vozes que me chamam, que me anunciam o azul do céu e o calor do
sol, e eu não sou homem que resista a tais convites, e saio, e rio, e salto
como colegial em férias, e deixo-me guiar pelo acaso, sem destino, para onde as
pernas me levam, e só recolho a casa quando o sol me dá as boas-noites — antes
é que não!
Depois
destas explicações, dizendo eu que andava na rua, já os leitores sabem como o
tempo estava.
Era uma
destas manhãs de Inverno em que o sol fulge radiante e esplêndido, depois de
longa reclusão, como que para convencer os incrédulos de que é dele que nos vem
o calor e a luz!
O que eu,
porém, ainda não disse, é que apesar de um sem-número de pirraças e traições,
creio no sol como na morte!
Quando o
feiticeiro me aparece, julgo impossível que me torne a fugir, entrego-me a ele
com cega confiança, e, se razão mais prudente do que a minha me aconselha que
leve um guarda-sol, indigno-me de que me suponham capaz de repelir um amigo!
O que me tem
acontecido mil vezes, graças à minha delicadeza, é ver-me abandonado pelo
amigo, quando menos o espero, e acossado pela chuva.
Ora foi isto
o que mais uma vez me sucedeu nessa formosa manhã.
Saíra de
casa alegre e sem receios e, em meio do caminho, o meu inconstante amigo
despediu-se sem cerimônia, puxando para os olhos a gola de um espesso e negro
capote de nuvens, e este, que vinha malhado de longa jornada, começou a
escorrer sobre a terra.
Passava eu
na Rua do Almada, perto do Campo de Santo Ovídio, quando as primeiras gotas
começaram a cair.
Não ver o
sol e ver a chuva — foi o bastante para se me virar o espírito do avesso.
"Pois
apanho-a!... — concluí eu mentalmente. — Onde diabo me hei de eu meter?..."
Mandei os
olhos adiante em procura de um portal cômodo, e eles, depois de correrem um
pouco, estacaram diante de uma casa, a cuja janela flutuava uma bandeira
vermelha com a inscrição em letras brancas: "LEILÃO."
Hesitei
antes de entrar; mas entrei.
Vou agora
dizer-lhes porque hesitei.
Hesitei,
porque as peripécias de um leilão produzem em mim o mesmo efeito que produzem o
cheiro da pólvora e o ardor da refrega no ânimo do recruta. À vista do combate,
ou, para melhor dizer, teima dos licitantes, animo-me, impaciento-me,
encarno-me num dos contendores, sofro e odeio com ele e estou numa tortura, se
noto que o objeto da minha simpatia começa a fraquear!
Chegado a
este ponto, se o meu homem cede, abafo um rugido de cólera e, lançando um olhar
odiento ao que se julga senhor do campo, murmuro por entre dentes:
"Pois
não a levas barata... Deixa estar que eu arranjo-te!..."
E aí começo
eu então a fazer tolices, a debater-me como um furioso, até que o leiloeiro
deixa cair o martelo e me pergunta com irônica amabilidade:
"O nome
do senhor?..."
Dado este
primeiro passo, se alguém, consciencioso, se lembra de me fazer notar a
asneira, desnorteio, vou para diante e... é contar que, no dia seguinte, tenho
em casa, por preço fabuloso, uma feira de objetos, a que não tenho destino a
dar!
lá veem que
um homem assim organizado deve fugir de leilões.
Mas... a
chuva caía... entrei, depois de exigir de mim próprio a promessa de não comprar
coisa alguma!
Subi.
O leilão
ainda não tinha começado.
Não sei se o
leitor terá assistido, unicamente como espectador, por não ter que fazer, a um
leilão?...
Este, que eu
presenciei, por assim dizer, contra vontade, era o da mobília de uma casa de
gente rica.
Peguei num
catálogo...
Era feito o
leilão a requerimento dos credores à massa falida de um homem, que morrera,
havia pouco, deixando os seus negócios num estado deplorável.
A casa
estava atulhada de gente.
Havia de
tudo naquela multidão!
No primeiro
plano os adeleiros-raça mal estudada e pouco conhecida — que farejam um espólio,
como os corvos, de longe, as exalações do cadáver.
Palavreado
cínico, olhos — de cobiça, dedos queimados pelo cigarro, com as unhas orladas
de negro, uma espécie de instinto, que, à falta de conhecimentos, lhes faz
descobrir o quadro de mestre e rejeitara cópia sem valor, o livro clássico
entre os apreciáveis como papel de embrulho — eis, em geral, o adeleiro do
Porto.
A par
destes, via-se, afetando indiferença, o verdadeiro amador, o que, no fim de
vinte anos de fadigas e decepções, encontra o que deseja e vê em cada um dos
circunstantes um adversário, um maníaco como ele.
Analisando
miudamente, com escrúpulo, cruzavam-se os chefes de família, procurando um
móvel que as esposas lhes pedem vai em dois anos, e folgavam com a ideia da
agradável surpresa que lhes iam causar.
Consultando
os magros haveres, mudando de cor a cada instante, noivo simpático, pássaro
ansioso por perder a sua liberdade de solteiro, espera — pois está na quadra em
que tudo é esperança! — espera que a sua estrela lhe fará ali encontrar parte
do que precisa, para guarnecer um Linho digno dos seus amores.
Juntem a
todos esses, e a quantos ali estavam para um ou outro fim, os que entraram para
ver, por ócio, para fugir, como eu, da chuva, e farão os leitores ideia da
gente que ali encontrei.
Em má hora
subi!
Tristemente
impressionado pela deserção do sol, o meu espírito enegrecera-se, e começara de
analisar aquela gente com olhos de má vontade.
O que via...
irritava-me, afligia-me, transtornava-me a harmonia dos nervos, obrigava-me a
reparos e reflexões, que até então jamais me lembrara de fazer.
Pouco e
pouco apoderou-se de mim profunda melancolia, e acabei por considerar aquela
casa um templo e aqueles homens outros tantos profanadores!
E era um
templo, era!... e eram profanadores!...
É templo,
sim, o lar doméstico, onde sob as vistas de Deus, respeitando o próximo,
aplaudido pela sua consciência, o chefe de família com a alma cortada de
amarguras, com a mente povoada de cuidados, encontra na virilidade do seu
coração o sorriso aprovador, que diz ostensivamente à esposa: "És uma boa mãe!",
que alenta os filhos na luta da vida; mas que serve, sobretudo, para encobrir
uma prece: "Conservai-me, meu Deus, para esta gente, que só me tem a mim
para os amparar!
E eram
profanadores aqueles homens que calcavam as alcatifas; que pisavam e avaliavam
num segundo o que o mísero juntara ao cabo de longos anos de trabalho!
A minha casa!... Quem há aí que não
sinta um dulcíssimo prazer ao proferir estas palavras?!
A minha casa!... O cofre onde encerramos
quanto nos torna aprazível a existência!
A minha casa!... O lugar onde, se somos
solteiros, temos a certeza de encontrar o conselho de um pai, as carícias de
nossa mãe, o ouvido de nossos irmãos atentos às nossas confidências, uns poucos
de corações animados por um único desejo-a nossa felicidade!
A minha casa!... O reino onde, se
casados, exercemos o poder absoluto, mas baseado no amor; onde a esposa nos
exige a sua parte de dor em troca das alegrias que nos dá; onde os anjos
louros, em que nos vemos renascer, nos dão um pretexto para vivermos, e enchem,
com a voz e com o riso, o lar doméstico de cânticos e luz!
A minha casa! — Não!... Esta frase não é
vã para ninguém!
O homem que
nunca teve família, o solteirão, vê na sua casa o único refúgio onde está à
vontade; onde o seu desculpável egoísmo se sente bem; onde não vem procurá-lo o
ruído dos males alheios, a ele que neste mundo só julga dignos de lástima os
próprios males!
O solitário,
o desgraçado que teve família e a viu desaparecer pouco e pouco, esse mesmo! — só
está bem em sua casa!
Não há
canto, móvel, livro, quadro, que lhe não conte uma história, que lhe não traga
aos olhos uma lágrima, filha de um sorriso de outras eras!
Oh! sim!...
Eram profanadores aqueles homens que atiravam a ponta — do — cigarro para cima
dos tapetes da sala, onde a esposa sabia, com um sorriso, proibir ao marido que
fumasse; que maculavam com os dedos sujos aquelas cortinas, que nunca a
lavadeira conseguira trazer de forma a satisfazer a senhora; que faziam gemer
as molas do sofá, até então escrupulosamente coberto pela sua capa de lona!
Revoltava-me
sobretudo a linguagem deles!
Causavam-me
asco os ditos cínicos, os olhares estupidamente maliciosos, inspirados pela
vista de certos objetos; mas o que sobretudo me repugnava, era a sua presença
no quarto nupcial, onde o retrato da dona da casa, que se haviam esquecido de
retirar, parecia contemplar com humilhado assombro toda aquela gente, que assim
estava viciando a atmosfera, em que o ser, que representava, vivera até então
ali, naquele santuário de virtudes domésticas!
Contristado
por estas ideias, ia retirar-me, quando prolongado rumor e duas pancadas me
anunciaram que ia começar o leilão.
— Vamos,
meus senhores!... Vamos a isto!... Há poucas pechinchas destas!...
Senti uma
dolorosa impressão, ouvindo esta primeira amostra do espírito brutal e soez do
leiloeiro.
— Já era
tempo!... Minha rica filha!... Vamos a ver como isto corre... — disse de
repente alguém a meu lado.
Voltei-me.
Era uma
mulher de cinquenta anos, aproximadamente.
Trajava de
luto. O rosto emoldurado no lenço de seda preta, de sob o qual se escapavam
dois ou três anéis de cabelos grisalhos, era uma destas fisionomias enérgicas,
resolutas, de feições pronunciadas, que revelam uma alma rijamente temperada.
Há mais
destas fisionomias entre as mulheres do povo, e sobretudo do povo das aldeias,
do que entre as de outra qualquer posição social.
Almas tais,
sejam quais forem as tormentas que lhes agitam o oceano da vida, sobrenadam
sempre à superfície.
Sustenta-as
uma vontade superior, um fatalismo sublime que não é da terra, que é o fio
invisível que as prende ao céu e que tem por divisa: "Deus o quer!... seja
feita a sua vontade!..."
Arde-lhes o
lar?... Morre-lhes um filho?... Leva-lhes Deus o marido, o guia, o ganha-pão?...
Paciência!...
Deus assim o quis!... Seja feita a sua vontade!... Era ele quem trabalhava para
os filhos?... Trabalhará ela agora.
E o que se
concebeu, assim, no meio da — dor, sem hesitar — põe-se em prática no dia
seguinte, naturalmente, sem sacrifício, por devoção ainda mais do que por
dever!
E os olhos
que até ontem procuravam incertos e receosos os do marido, para saber o que se
devia fazer, contemplam confiadamente o futuro e se, por acaso, uma nuvem negra
surge no horizonte, cravam-se no céu e a consciência murmura, resignada e quase
alegre: "Será o que Deus quiser!... seja feita a sua vontade!..."
Estas almas,
repito, resistem a todas as tempestades, porque as escora a crença!
Hoje como
ontem, amanhã como hoje, desde o berço até à campa, em tudo, por tudo e para
tudo — Deus!
A boa mulher
enxugava apressadamente os olhos, quando me voltei ao ouvir-lhe a voz.
— Vossemecê
era cá de casa?... — perguntei eu.
— Era e sou...
sou criada daquela santa!... — respondeu a velha, apontando para o retrato, e
enxugando mais duas lágrimas.
Receoso de
aumentar aquela comoção, calei-me.
— Cinco mil
e seiscentos!... e seiscentos!... e seiscentos!... Vá, meus senhores!... Mais...
vale a pedra!... — dizia nesse instante o leiloeiro.
— O que é
que está agora, meu senhor?... — perguntou-me a criada, que em vão tentava,
pondo-se em bicos de pés, ver o objeto em praça.
— É o
lavatório... — disse eu, depois de verificar.
— Cinco mil
e seiscentos!... O lavatório!... corja de tratantes!... — rosnou a velha,
chorando.
— Um par de
jarras, meus senhores!... Quanto oferecem vossas senhorias por um par de
jarras?... Quanto oferecem? — bradou o leiloeiro.
— Ora espera...
— acudiu a velha — sempre quero ver por quanto vão as jarras...
— Dez
tostões!... — exclamou uma voz de entre a multidão.
— Grandessíssimo judeu!... Dez tostões!...
— continuou a boa da criada.
— Dez
tostões!... Dez tostões!... Há quem dê mais? Dez tostões!... Dez tostões — duas...
Dez tostões!... três... Ali ao senhor... Como se chama vossa senhoria?... — perguntou
o leiloeiro.
— Costa...
— Ali ao Sr.
Costa!...
— Desalmados!...
súcia de marotos!... — murmurou a mulher indignada. — Dez tostões por aquelas
jarras!... Olhe que fui eu mesmo que as fui pagar ao João Pinto... Custaram
sete mil e duzentos, meu senhor!... cega seja eu, se isto não é verdade!...
— Então...
vossemecê que quer, minha santa?... — disse eu, na ideia de a consolar.
— O que
quero?... Quero que esta gente tenha mais consciência!... Se assim continua,
hão de ser boas as sobras!... Minha querida senhora!... — atalhou a velha.
— Parece-me
muito amiga dela... — observei.
— De quem?...
Da minha senhora?... Quem lhe havia de querer mais do que eu, se fui eu que a
criei, àquela rica filha!... exclamou a triste, indicando-me de novo o retrato.—
Desde que ela nasceu, nunca mais a larguei... Não há duas como aquela!... E
quem Deus levou... o Sr. Magalhães?... Aquilo é que era um santo!
— E ficaram
filhos? — perguntei.
— Um, meu
senhor!... Chama-se Zezinho... Meu rico anjinho! A estas horas já tens chamado
mais de vinte vezes pela tua Rita!...
— Ah!
vossemecê chama-se Rita?...
— Uma sua
criada, meu senhor!... O senhor parece-me pessoa de bem; logo engracei com o
senhor!... Tenho pena que não conheça o Sr. Zezinho!... Aquilo é que é mesmo
uma feitiçaria!... Que, também, se vossa senhoria já o viu alguma vez, decerto
se lembra dele!... Ele muito gordinho, com os olhinhos muito azuis, a boquinha
muito pequenina, o cabelo... E o cabelo!?... O cabelo muito lourinho, aqui...
pelos ombros... todo aos caracóis... Eu nunca vi coisa assim!... E é que, de
não estar acostumada a ver-me tanto tempo sem ele, parece-me que já não estou
boa cá de dentro!
E os olhos
daquela santa criatura choravam e riam a um tempo, fazendo-me a descrição da
criança, a quem ela respeitosamente chamava o Sr. Zezinho!
— E então...
a sua senhora... o que faz agora?... ficou em más circunstâncias?... — perguntei
eu.
— Coitadinha!...
Olhe, meu senhor... Ela, quando casou, pouco tinha de seu... Que o pai dela, o
Sr. Morais — Deus te tenha lá! — teve sempre a sua casinha muito farta; mas...
isto de empregados... Vossa senhoria bem
sabe... afinal, como o outro que diz, se bem o ganham bem o gastam. Ora... — continuou
— a velha — o Sr. Magalhães tinha bastante, e ia muito bem com a sua vida; mas...
parece que lá uns amigos dele, do Brasil, quebraram... ou fugiram... Eu nunca
entendi bem como aquilo foi... O que sei é que ele parece que perdeu muito
dinheiro com eles, e foi isso que o matou!... Entrou a apaixonar-se muito... a
secar, a secar, a secar... sempre triste por fim... acamou e... morreu!...
A voz da
velha mal se ouvia ao proferir as últimas palavras.
— E onde
está agora a viúva?... — indaguei com sentido interesse.
— Está com a
irmã, meu senhor!... Mas... coitadinha!... A Sra. D. Amelinha é muito amiga
dela, mas... não pode!... O homem está estabelecido há pouco tempo, de maneira
que... é muito... é muito peso para eles!... Vontade não lhes falta; mas...
Coitados! não podem!... E é isso o que mais mortifica a minha rica filha!...
Eles, vai em cinco meses que escreveram para o Brasil, ao Sr. Antoninho, e
estamos todos os dias à espera da resposta... A resposta vem... Lá isso vem!...
Ele era muito bom menino... e muito, amigo das irmãs, de maneira que, qualquer
dia, não deixa de vir por aí carta e mesmo dinheiro... Ah! Lá disso estou eu
certa!
Neste
meio-tempo fora continuando a venda, sem que a criada e eu lhe prestássemos
atenção.
— Mas...
vossemecê deve estar aqui a afligir-se muito — observei eu. — Há de, com
certeza, ter muita pena de ver ir tudo isto, uma coisa para cada lado?...
— Tenho,
tenho, meu senhor!... — respondeu a Sra. Rita, levando de novo o lenço aos
olhos.
— Então, por
que não vai para casa?... Olhe que, por estar aqui, não vão as coisas mais bem
vendidas...
— Isso sei
eu, meu senhor... Isso sei eu!... E olhe que tenho bem que fazer em casa... e
está lá o Sr. Zezinho sem mim, que é o que mais me custa... É o mesmo!... É
mais meia hora!... Quero ver se levo a minha avante! É cá uma coisa... uma
lembrança que eu tive...-acrescentou a velha, em resposta à curiosidade que me
leu nos olhos.
— Basta!...
Olhe que eu não quero saber os seus segredos! — acudi eu, sorrindo.
— Não é
segredo... é uma lembrança!... O senhor verá... se se demorar, há de ver o que
é...
"Não...
embora já eu não vou, sem saber o que te prende aqui"-disse de mim para
mim.
E esperei,
ralado de impaciência, o momento de descobrir a intenção daquela santa
criatura.
Mais de uma
hora durou ainda aquele meu martírio.
A delicadeza
dizia-me que não devia ser indiscreto, ao passo que a curiosidade me impelia a
surpreender o segredo da criada.
Poucos objetos
restavam já por vender, e, à medida que o leilão se aproximava do seu termo, os
olhos da venda ora brilhavam febris de ansiedade, ora desmaiavam desalentados.
— Um berço
de vinhático!... Está em praça o berço!... Quanto oferecem pelo berço?!... — bradou
o leiloeiro.
— Ele não
vale dez réis!... Está bom para o lume!... — disse uma voz.
— Pois
estará... — continuou o leiloeiro. Mas quanto oferecem vossas senhorias pelo
berço?... — Ponha lá... dois tostões... — exclamou um adeleiro, depois de breve
hesitação.
— Doze
vinténs!... — gritou alguém a meu lado.
Era a velha!...
O berço era a coisa... a lembrança inspirada pela sublime delicadeza daquele
coração de mulher!
Ou porque
embirrasse com a voz da criada, ou porque tivesse aplicação a dar ao berço, o
adeleiro cobriu a oferta e, animando-se pouco e pouco, transformou o modesto
berço em verdadeiro casus belli.
Eram tão
francas e pronunciadas as impressões que a cada instante se desenhavam no rosto
da boa mulher, que eu lia nela como em livro aberto.
Com a mão
direita metida no bolso do vestido, os olhos ansiosos, os lábios trêmulos,
via-se que a triste contava, apalpando-o, o dinheiro que tinha reservado para
aquela aplicação, ao passo que mentalmente dizia: "Está aqui... está a não
chegar!..."
— Dezenove
tostões!... — clamou o pregoeiro.
— E um
vintém... — disse em voz trêmula a Sr Rita.
— Mil
novecentos e vinte!... — confirmou ele.
— Ponha lá...
dois mil-réis!... — disse o adeleiro.
— E um
vintém... — volveu a mulher.
— Meia libra!...
— exclamou, irado, o contendor.
— Meia libra!...
meia libra!... Olhe que está em meia libra, minha senhora!... — disse o
leiloeiro.
— Meia libra!...
uma; meia libra!... duas; meia libra!...
— Três
mil-réis!... — exclamei. (Chegara-me o cheiro da pólvora.)
— Três
mil-réis!... três mil-réis... Que diz, senhor?... Olhe que são três mil-réis...
— insistiu o leiloeiro, voltando-se para o meu antagonista.
— Deixe-o
ser!... Que o leve o diabo e leva um bom mono! — respondeu o adeleiro com mau
modo.
A velha,
apenas o lanço cobrira o valor da soma que trazia, havia-se deixado cair sobre
uma cadeira, escondendo o rosto nas mãos.
— A quem
devo lançar o berço?... — perguntou o escrevente do leiloeiro.
— Ali à Sra.
Rita!... — respondi.
Em vão
tentei evitar os agradecimentos da boa mulher.
Ouvindo a
minha resposta, ergueu-se de repente e procurou beijar-me as mãos à força.
— Não
consinto, meu senhor!... Três mil-réis... é muito!... Eu sou uma pobre... e não
me envergonho de receber uma esmola... mas... aceite o senhor a meia libra que
eu trazia... bem basta o resto!... Ora receba, meu senhor!
— Deixe-se
disso, Sr a Rita!... Deixe-se disso!... — atalhei comovido. — Guarde isso para
um saiote!... Tem o berço, não tem?... Vá-se embora, santinha!... Vá-se embora!...
Olhe que está o Sr. Zezinho à espera!...
— Está bem,
meu senhor!... seja pelo divino amor de Deus!... Se vossa senhoria soubesse!...
Aquele bercinho... antes de ser do menino... foi da senhora!... da minha rica
filha!... Veja o senhor se eu lhe terei amor!...
E a velha,
pondo o berço à cabeça, desceu rindo e chorando a escada daquela casa onde
vivera feliz!
Desde então,
escondo-me todas as vezes que a vejo, porque me incomodam os francos protestos
do seu reconhecimento!
Possa o anjo
louro, que hoje ocupa o principal lugar naquele coração, conservar eternamente
as asas cândidas e abrigar debaixo delas os derradeiros dias da santa mulher,
que o ama como filho!
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