6/18/2019

O Berço (Conto), de Pedro Ivo



O Berço
Quem é que, depois de quinze dias de chuva, deixa de aproveitar uma formosa manhã de sol?!...
Ninguém!
Ao cabo de uma semana de rigoroso Inverno, atormentava-me a necessidade de movimento, luz, ar, alegria e vida, e saí, por isso, para a rua, logo às primeiras negaças — que o sol se lembrou de me fazer.
O meu espírito — e, neste ponto, julgo-o de acordo com todos os espíritos — acompanha fielmente o barômetro.
Chove e faz frio?... Veste-sede negro, assume  um ar grave, que lhe não é natural, e torna-se  apto para afrontar os encargos mais fastidiosos.
Nessas disposições, não há tarefa árida que  lhe meta medo; folheia autos, digere o código  civil, executa com facilidade e exatidão as quatro operações aritméticas, e não o assusta a obrigação de ler os papéis velhos, que enchem umas poucas de gavetas, até dar com o recibo de uma conta, que inocentemente se lembram de querer cobrar de mim pela segunda vez.
Sobe o barômetro, e ri o sol lá de cima?... Adeus!... Não há meio de me obrigar a prestar atenção a coisa alguma.
Um "sim" ou um "não", se me forçarem a refletir para o pronunciar, é, naquele estado do meu espírito, a maior das dificuldades.
Eu sei lá se "sim" se "não"!... O que sei é... que o sol está lá fora à minha espera.
O tamanco da aldeã estalando na calçada, o assobio do garoto, o chilrear cínico do pardal — são outras tantas vozes que me chamam, que me anunciam o azul do céu e o calor do sol, e eu não sou homem que resista a tais convites, e saio, e rio, e salto como colegial em férias, e deixo-me guiar pelo acaso, sem destino, para onde as pernas me levam, e só recolho a casa quando o sol me dá as boas-noites — antes é que não!
Depois destas explicações, dizendo eu que andava na rua, já os leitores sabem como o tempo estava.
Era uma destas manhãs de Inverno em que o sol fulge radiante e esplêndido, depois de longa reclusão, como que para convencer os incrédulos de que é dele que nos vem o calor e a luz!
O que eu, porém, ainda não disse, é que apesar de um sem-número de pirraças e traições, creio no sol como na morte!
Quando o feiticeiro me aparece, julgo impossível que me torne a fugir, entrego-me a ele com cega confiança, e, se razão mais prudente do que a minha me aconselha que leve um guarda-sol, indigno-me de que me suponham capaz de repelir um amigo!
O que me tem acontecido mil vezes, graças à minha delicadeza, é ver-me abandonado pelo amigo, quando menos o espero, e acossado pela chuva.
Ora foi isto o que mais uma vez me sucedeu nessa formosa manhã.
Saíra de casa alegre e sem receios e, em meio do caminho, o meu inconstante amigo despediu-se sem cerimônia, puxando para os olhos a gola de um espesso e negro capote de nuvens, e este, que vinha malhado de longa jornada, começou a escorrer sobre a terra.
Passava eu na Rua do Almada, perto do Campo de Santo Ovídio, quando as primeiras gotas começaram a cair.
Não ver o sol e ver a chuva — foi o bastante para se me virar o espírito do avesso.
"Pois apanho-a!... — concluí eu mentalmente. — Onde diabo me hei de eu meter?..."
Mandei os olhos adiante em procura de um portal cômodo, e eles, depois de correrem um pouco, estacaram diante de uma casa, a cuja janela flutuava uma bandeira vermelha com a inscrição em letras brancas: "LEILÃO."
Hesitei antes de entrar; mas entrei.
Vou agora dizer-lhes porque hesitei.
Hesitei, porque as peripécias de um leilão produzem em mim o mesmo efeito que produzem o cheiro da pólvora e o ardor da refrega no ânimo do recruta. À vista do combate, ou, para melhor dizer, teima dos licitantes, animo-me, impaciento-me, encarno-me num dos contendores, sofro e odeio com ele e estou numa tortura, se noto que o objeto da minha simpatia começa a fraquear!
Chegado a este ponto, se o meu homem cede, abafo um rugido de cólera e, lançando um olhar odiento ao que se julga senhor do campo, murmuro por entre dentes:
"Pois não a levas barata... Deixa estar que eu arranjo-te!..."
E aí começo eu então a fazer tolices, a debater-me como um furioso, até que o leiloeiro deixa cair o martelo e me pergunta com irônica amabilidade:
"O nome do senhor?..."
Dado este primeiro passo, se alguém, consciencioso, se lembra de me fazer notar a asneira, desnorteio, vou para diante e... é contar que, no dia seguinte, tenho em casa, por preço fabuloso, uma feira de objetos, a que não tenho destino a dar!
lá veem que um homem assim organizado deve fugir de leilões.
Mas... a chuva caía... entrei, depois de exigir de mim próprio a promessa de não comprar coisa alguma!
Subi.
O leilão ainda não tinha começado.
Não sei se o leitor terá assistido, unicamente como espectador, por não ter que fazer, a um leilão?...
Este, que eu presenciei, por assim dizer, contra vontade, era o da mobília de uma casa de gente rica.
Peguei num catálogo...
Era feito o leilão a requerimento dos credores à massa falida de um homem, que morrera, havia pouco, deixando os seus negócios num estado deplorável.
A casa estava atulhada de gente.
Havia de tudo naquela multidão!
No primeiro plano os adeleiros-raça mal estudada e pouco conhecida — que farejam um espólio, como os corvos, de longe, as exalações do cadáver.
Palavreado cínico, olhos — de cobiça, dedos queimados pelo cigarro, com as unhas orladas de negro, uma espécie de instinto, que, à falta de conhecimentos, lhes faz descobrir o quadro de mestre e rejeitara cópia sem valor, o livro clássico entre os apreciáveis como papel de embrulho — eis, em geral, o adeleiro do Porto.
A par destes, via-se, afetando indiferença, o verdadeiro amador, o que, no fim de vinte anos de fadigas e decepções, encontra o que deseja e vê em cada um dos circunstantes um adversário, um maníaco como ele.
Analisando miudamente, com escrúpulo, cruzavam-se os chefes de família, procurando um móvel que as esposas lhes pedem vai em dois anos, e folgavam com a ideia da agradável surpresa que lhes iam causar.
Consultando os magros haveres, mudando de cor a cada instante, noivo simpático, pássaro ansioso por perder a sua liberdade de solteiro, espera — pois está na quadra em que tudo é esperança! — espera que a sua estrela lhe fará ali encontrar parte do que precisa, para guarnecer um Linho digno dos seus amores.
Juntem a todos esses, e a quantos ali estavam para um ou outro fim, os que entraram para ver, por ócio, para fugir, como eu, da chuva, e farão os leitores ideia da gente que ali encontrei.
Em má hora subi!
Tristemente impressionado pela deserção do sol, o meu espírito enegrecera-se, e começara de analisar aquela gente com olhos de má vontade.
O que via... irritava-me, afligia-me, transtornava-me a harmonia dos nervos, obrigava-me a reparos e reflexões, que até então jamais me lembrara de fazer.
Pouco e pouco apoderou-se de mim profunda melancolia, e acabei por considerar aquela casa um templo e aqueles homens outros tantos profanadores!
E era um templo, era!... e eram profanadores!...
É templo, sim, o lar doméstico, onde sob as vistas de Deus, respeitando o próximo, aplaudido pela sua consciência, o chefe de família com a alma cortada de amarguras, com a mente povoada de cuidados, encontra na virilidade do seu coração o sorriso aprovador, que diz ostensivamente à esposa: "És uma boa mãe!", que alenta os filhos na luta da vida; mas que serve, sobretudo, para encobrir uma prece: "Conservai-me, meu Deus, para esta gente, que só me tem a mim para os amparar!
E eram profanadores aqueles homens que calcavam as alcatifas; que pisavam e avaliavam num segundo o que o mísero juntara ao cabo de longos anos de trabalho!
A minha casa!... Quem há aí que não sinta um dulcíssimo prazer ao proferir estas palavras?!
A minha casa!... O cofre onde encerramos quanto nos torna aprazível a existência!
A minha casa!... O lugar onde, se somos solteiros, temos a certeza de encontrar o conselho de um pai, as carícias de nossa mãe, o ouvido de nossos irmãos atentos às nossas confidências, uns poucos de corações animados por um único desejo-a nossa felicidade!
A minha casa!... O reino onde, se casados, exercemos o poder absoluto, mas baseado no amor; onde a esposa nos exige a sua parte de dor em troca das alegrias que nos dá; onde os anjos louros, em que nos vemos renascer, nos dão um pretexto para vivermos, e enchem, com a voz e com o riso, o lar doméstico de cânticos e luz!
A minha casa! — Não!... Esta frase não é vã para ninguém!
O homem que nunca teve família, o solteirão, vê na sua casa o único refúgio onde está à vontade; onde o seu desculpável egoísmo se sente bem; onde não vem procurá-lo o ruído dos males alheios, a ele que neste mundo só julga dignos de lástima os próprios males!
O solitário, o desgraçado que teve família e a viu desaparecer pouco e pouco, esse mesmo! — só está bem em sua casa!
Não há canto, móvel, livro, quadro, que lhe não conte uma história, que lhe não traga aos olhos uma lágrima, filha de um sorriso de outras eras!
Oh! sim!... Eram profanadores aqueles homens que atiravam a ponta — do — cigarro para cima dos tapetes da sala, onde a esposa sabia, com um sorriso, proibir ao marido que fumasse; que maculavam com os dedos sujos aquelas cortinas, que nunca a lavadeira conseguira trazer de forma a satisfazer a senhora; que faziam gemer as molas do sofá, até então escrupulosamente coberto pela sua capa de lona!
Revoltava-me sobretudo a linguagem deles!
Causavam-me asco os ditos cínicos, os olhares estupidamente maliciosos, inspirados pela vista de certos objetos; mas o que sobretudo me repugnava, era a sua presença no quarto nupcial, onde o retrato da dona da casa, que se haviam esquecido de retirar, parecia contemplar com humilhado assombro toda aquela gente, que assim estava viciando a atmosfera, em que o ser, que representava, vivera até então ali, naquele santuário de virtudes domésticas!
Contristado por estas ideias, ia retirar-me, quando prolongado rumor e duas pancadas me anunciaram que ia começar o leilão.
— Vamos, meus senhores!... Vamos a isto!... Há poucas pechinchas destas!...
Senti uma dolorosa impressão, ouvindo esta primeira amostra do espírito brutal e soez do leiloeiro.
— Já era tempo!... Minha rica filha!... Vamos a ver como isto corre... — disse de repente alguém a meu lado.
Voltei-me.
Era uma mulher de cinquenta anos, aproximadamente.
Trajava de luto. O rosto emoldurado no lenço de seda preta, de sob o qual se escapavam dois ou três anéis de cabelos grisalhos, era uma destas fisionomias enérgicas, resolutas, de feições pronunciadas, que revelam uma alma rijamente temperada.
Há mais destas fisionomias entre as mulheres do povo, e sobretudo do povo das aldeias, do que entre as de outra qualquer posição social.
Almas tais, sejam quais forem as tormentas que lhes agitam o oceano da vida, sobrenadam sempre à superfície.
Sustenta-as uma vontade superior, um fatalismo sublime que não é da terra, que é o fio invisível que as prende ao céu e que tem por divisa: "Deus o quer!... seja feita a sua vontade!..."
Arde-lhes o lar?... Morre-lhes um filho?... Leva-lhes Deus o marido, o guia, o ganha-pão?...
Paciência!... Deus assim o quis!... Seja feita a sua vontade!... Era ele quem trabalhava para os filhos?... Trabalhará ela agora.
E o que se concebeu, assim, no meio da — dor, sem hesitar — põe-se em prática no dia seguinte, naturalmente, sem sacrifício, por devoção ainda mais do que por dever!
E os olhos que até ontem procuravam incertos e receosos os do marido, para saber o que se devia fazer, contemplam confiadamente o futuro e se, por acaso, uma nuvem negra surge no horizonte, cravam-se no céu e a consciência murmura, resignada e quase alegre: "Será o que Deus quiser!... seja feita a sua vontade!..."
Estas almas, repito, resistem a todas as tempestades, porque as escora a crença!
Hoje como ontem, amanhã como hoje, desde o berço até à campa, em tudo, por tudo e para tudo — Deus!
A boa mulher enxugava apressadamente os olhos, quando me voltei ao ouvir-lhe a voz.
— Vossemecê era cá de casa?... — perguntei eu.
— Era e sou... sou criada daquela santa!... — respondeu a velha, apontando para o retrato, e enxugando mais duas lágrimas.
Receoso de aumentar aquela comoção, calei-me.
— Cinco mil e seiscentos!... e seiscentos!... e seiscentos!... Vá, meus senhores!... Mais... vale a pedra!... — dizia nesse instante o leiloeiro.
— O que é que está agora, meu senhor?... — perguntou-me a criada, que em vão tentava, pondo-se em bicos de pés, ver o objeto em praça.
— É o lavatório... — disse eu, depois de verificar.
— Cinco mil e seiscentos!... O lavatório!... corja de tratantes!... — rosnou a velha, chorando.
— Um par de jarras, meus senhores!... Quanto oferecem vossas senhorias por um par de jarras?... Quanto oferecem? — bradou o leiloeiro.
— Ora espera... — acudiu a velha — sempre quero ver por quanto vão as jarras...
— Dez tostões!... — exclamou uma voz de entre a multidão.
Grandessíssimo judeu!... Dez tostões!... — continuou a boa da criada.
— Dez tostões!... Dez tostões!... Há quem dê mais? Dez tostões!... Dez tostões — duas... Dez tostões!... três... Ali ao senhor... Como se chama vossa senhoria?... — perguntou o leiloeiro.
— Costa...
— Ali ao Sr. Costa!...  
— Desalmados!... súcia de marotos!... — murmurou a mulher indignada. — Dez tostões por aquelas jarras!... Olhe que fui eu mesmo que as fui pagar ao João Pinto... Custaram sete mil e duzentos, meu senhor!... cega seja eu, se isto não é verdade!...
— Então... vossemecê que quer, minha santa?... — disse eu, na ideia de a consolar.
— O que quero?... Quero que esta gente tenha mais consciência!... Se assim continua, hão de ser boas as sobras!... Minha querida senhora!... — atalhou a velha.
— Parece-me muito amiga dela... — observei.
— De quem?... Da minha senhora?... Quem lhe havia de querer mais do que eu, se fui eu que a criei, àquela rica filha!... exclamou a triste, indicando-me de novo o retrato.— Desde que ela nasceu, nunca mais a larguei... Não há duas como aquela!... E quem Deus levou... o Sr. Magalhães?... Aquilo é que era um santo!
— E ficaram filhos? — perguntei.
— Um, meu senhor!... Chama-se Zezinho... Meu rico anjinho! A estas horas já tens chamado mais de vinte vezes pela tua Rita!...
— Ah! vossemecê chama-se Rita?...
— Uma sua criada, meu senhor!... O senhor parece-me pessoa de bem; logo engracei com o senhor!... Tenho pena que não conheça o Sr. Zezinho!... Aquilo é que é mesmo uma feitiçaria!... Que, também, se vossa senhoria já o viu alguma vez, decerto se lembra dele!... Ele muito gordinho, com os olhinhos muito azuis, a boquinha muito pequenina, o cabelo... E o cabelo!?... O cabelo muito lourinho, aqui... pelos ombros... todo aos caracóis... Eu nunca vi coisa assim!... E é que, de não estar acostumada a ver-me tanto tempo sem ele, parece-me que já não estou boa cá de dentro!
E os olhos daquela santa criatura choravam e riam a um tempo, fazendo-me a descrição da criança, a quem ela respeitosamente chamava o Sr. Zezinho!
— E então... a sua senhora... o que faz agora?... ficou em más circunstâncias?... — perguntei eu.
— Coitadinha!... Olhe, meu senhor... Ela, quando casou, pouco tinha de seu... Que o pai dela, o Sr. Morais — Deus te tenha lá! — teve sempre a sua casinha muito farta; mas... isto de empregados...  Vossa senhoria bem sabe... afinal, como o outro que diz, se bem o ganham bem o gastam. Ora... — continuou — a velha — o Sr. Magalhães tinha bastante, e ia muito bem com a sua vida; mas... parece que lá uns amigos dele, do Brasil, quebraram... ou fugiram... Eu nunca entendi bem como aquilo foi... O que sei é que ele parece que perdeu muito dinheiro com eles, e foi isso que o matou!... Entrou a apaixonar-se muito... a secar, a secar, a secar... sempre triste  por fim... acamou e... morreu!...
A voz da velha mal se ouvia ao proferir as últimas palavras.
— E onde está agora a viúva?... — indaguei com sentido interesse.
— Está com a irmã, meu senhor!... Mas... coitadinha!... A Sra. D. Amelinha é muito amiga dela, mas... não pode!... O homem está estabelecido há pouco tempo, de maneira que... é muito... é muito peso para eles!... Vontade não lhes falta; mas... Coitados! não podem!... E é isso o que mais mortifica a minha rica filha!... Eles, vai em cinco meses que escreveram para o Brasil, ao Sr. Antoninho, e estamos todos os dias à espera da resposta... A resposta vem... Lá isso vem!... Ele era muito bom menino... e muito, amigo das irmãs, de maneira que, qualquer dia, não deixa de vir por aí carta e mesmo dinheiro... Ah! Lá disso estou eu certa!
Neste meio-tempo fora continuando a venda, sem que a criada e eu lhe prestássemos atenção.
— Mas... vossemecê deve estar aqui a afligir-se muito — observei eu. — Há de, com certeza, ter muita pena de ver ir tudo isto, uma coisa para cada lado?...
— Tenho, tenho, meu senhor!... — respondeu a Sra. Rita, levando de novo o lenço aos olhos.
— Então, por que não vai para casa?... Olhe que, por estar aqui, não vão as coisas mais bem vendidas...
— Isso sei eu, meu senhor... Isso sei eu!... E olhe que tenho bem que fazer em casa... e está lá o Sr. Zezinho sem mim, que é o que mais me custa... É o mesmo!... É mais meia hora!... Quero ver se levo a minha avante! É cá uma coisa... uma lembrança que eu tive...-acrescentou a velha, em resposta à curiosidade que me leu nos olhos.
— Basta!... Olhe que eu não quero saber os seus segredos! — acudi eu, sorrindo.
— Não é segredo... é uma lembrança!... O senhor verá... se se demorar, há de ver o que é...
"Não... embora já eu não vou, sem saber o que te prende aqui"-disse de mim para mim.
E esperei, ralado de impaciência, o momento de descobrir a intenção daquela santa criatura.
Mais de uma hora durou ainda aquele meu martírio.
A delicadeza dizia-me que não devia ser indiscreto, ao passo que a curiosidade me impelia a surpreender o segredo da criada.
Poucos objetos restavam já por vender, e, à medida que o leilão se aproximava do seu termo, os olhos da venda ora brilhavam febris de ansiedade, ora desmaiavam desalentados.
— Um berço de vinhático!... Está em praça o berço!... Quanto oferecem pelo berço?!... — bradou o leiloeiro.
— Ele não vale dez réis!... Está bom para o lume!... — disse uma voz.
— Pois estará... — continuou o leiloeiro. Mas quanto oferecem vossas senhorias pelo berço?... — Ponha lá... dois tostões... — exclamou um adeleiro, depois de breve hesitação.
— Doze vinténs!... — gritou alguém a meu lado.
Era a velha!... O berço era a coisa... a lembrança inspirada pela sublime delicadeza daquele coração de mulher!
Ou porque embirrasse com a voz da criada, ou porque tivesse aplicação a dar ao berço, o adeleiro cobriu a oferta e, animando-se pouco e pouco, transformou o modesto berço em verdadeiro casus belli.
Eram tão francas e pronunciadas as impressões que a cada instante se desenhavam no rosto da boa mulher, que eu lia nela como em livro aberto.
Com a mão direita metida no bolso do vestido, os olhos ansiosos, os lábios trêmulos, via-se que a triste contava, apalpando-o, o dinheiro que tinha reservado para aquela aplicação, ao passo que mentalmente dizia: "Está aqui... está a não chegar!..."
— Dezenove tostões!... — clamou o pregoeiro.
— E um vintém... — disse em voz trêmula a Sr Rita.
— Mil novecentos e vinte!... — confirmou ele.
— Ponha lá... dois mil-réis!... — disse o adeleiro.
— E um vintém... — volveu a mulher.
— Meia libra!... — exclamou, irado, o contendor.
— Meia libra!... meia libra!... Olhe que está em meia libra, minha senhora!... — disse o leiloeiro.
— Meia libra!... uma; meia libra!... duas; meia libra!...
— Três mil-réis!... — exclamei. (Chegara-me o cheiro da pólvora.)
— Três mil-réis!... três mil-réis... Que diz, senhor?... Olhe que são três mil-réis... — insistiu o leiloeiro, voltando-se para o meu antagonista.
— Deixe-o ser!... Que o leve o diabo e leva um bom mono! — respondeu o adeleiro com mau modo.
A velha, apenas o lanço cobrira o valor da soma que trazia, havia-se deixado cair sobre uma cadeira, escondendo o rosto nas mãos.
— A quem devo lançar o berço?... — perguntou o escrevente do leiloeiro.
— Ali à Sra. Rita!... — respondi.
Em vão tentei evitar os agradecimentos da boa mulher.
Ouvindo a minha resposta, ergueu-se de repente e procurou beijar-me as mãos à força.
— Não consinto, meu senhor!... Três mil-réis... é muito!... Eu sou uma pobre... e não me envergonho de receber uma esmola... mas... aceite o senhor a meia libra que eu trazia... bem basta o resto!... Ora receba, meu senhor!
— Deixe-se disso, Sr a Rita!... Deixe-se disso!... — atalhei comovido. — Guarde isso para um saiote!... Tem o berço, não tem?... Vá-se embora, santinha!... Vá-se embora!... Olhe que está o Sr. Zezinho à espera!...
— Está bem, meu senhor!... seja pelo divino amor de Deus!... Se vossa senhoria soubesse!... Aquele bercinho... antes de ser do menino... foi da senhora!... da minha rica filha!... Veja o senhor se eu lhe terei amor!...
E a velha, pondo o berço à cabeça, desceu rindo e chorando a escada daquela casa onde vivera feliz!
Desde então, escondo-me todas as vezes que a vejo, porque me incomodam os francos protestos do seu reconhecimento!
Possa o anjo louro, que hoje ocupa o principal lugar naquele coração, conservar eternamente as asas cândidas e abrigar debaixo delas os derradeiros dias da santa mulher, que o ama como filho!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...