Este foi um artista que completou
dignamente o ciclo da sua rotação. Passou pelas revoltas acesas do demolidor,
feriu os melindres da pátria, menoscabou-lhe as crenças, achincalhou-lhe as
tradições, numa esfuziante saraivada de sarcasmo e desdém, e quando sentiu a
vida declinar-lhe, interrompeu a obra admirável de panfletário e construiu essa
torre de bronze, onde encastelou a velha alma lusa, tal qual ela se nos
apresenta, com as suas grandezas e as suas imperfeições — A Ilustre Casa de Ramires.
Esta obra lapidar não foi recebida com
grande agrado pelos que se tinham habituado ao Eça irreverente e blasfemador de
A Relíquia e de O Primo Basílio; entretanto, ela, por si só, salva e redime toda a
longa opressão da sua ironia cruel, derramada por muitos livros destruidores,
em que foi vergastado o velho Portugal, pela sua impotência, pela decadência da
sua grandeza e pela sua ruína política, econômica e social. Eça, como artista,
foi muito coerente, desde o seu primeiro instante de escritor. A arte não tem
pátria nem fronteiras. Os motivos que ele encontrou para formar a sua obra eram
tristes e medíocres; ele os engrandeceu com a sua fecundidade intelectual,
iluminou-os com a sua poderosa verve de meridional; e os seus livros puderam
assim representar a sua nação e o seu tempo, numa espantosa caricatura. Nem se
lhe neguem, por isso, predicados de patriota. Ele o terá sido a seu modo; mas
acima desta preocupação pôs a verdade da sua análise e a interpretação das suas
sensações. Viajando por países estrangeiros, comparou e observou; da comparação
e da observação vieram-lhe as severidades de juízo e a contundência de análise.
Ele faz a tragédia do Primo Basílio, o drama de Os Maias e a comédia grotesca de A Relíquia com a mesma ironia vergastante
de analista enfastiado da época e do meio que lhe coube representar e de modo a
situar-se superiormente a uma e outro, o que é um característico do gênio.
Não trouxe para a arte novos
processos, não foi chefe de escola, não se abrasou na febre de ideais novos,
mas só de tratar a língua com um amor e com uma inteligência, em que nenhum
outro escritor português ou brasileiro o igualou, só de criar nela novos e
imprevistos elementos de construção, só de romper com ela horizontes não
sabidos, e de descortinar amplas e deslumbrantes perspectivas, só de extrair
dela fecundos e inéditos motivos de emoção, fez ele a sua silenciosa, a sua
profícua, a sua formidável revolução.
Língua moderna entre as línguas
latinas, a portuguesa, à medida que se ia emancipando do castelhano, com que se
fundiu em princípio, foi se aproximando, após a invasão dos bárbaros e o
domínio dos árabes, da fonte matriz, então cultivada com amor. E justamente
esta aproximação, de tão proveitosos resultados, deu-lhe essa truculência de
formas, essas asperezas sintáticas, que têm feito o desespero de inúmeras
gerações de escritores. Ela foi a filha bem-amada do idioma virgiliano, de que
herdou vícios e qualidades, mais que qualquer outra. O castelhano cedo se
fundiu com as algaravias de celtas, godos e árabes, deformado a cada elemento
preponderante nele introduzido. Assim os outros idiomas. Só o português foi
fiel à sua origem. Debalde na terra lusa outros povos predominaram e tentaram
introduzir as suas formas linguísticas. O português soube abroquelar-se e
dessas incursões ficaram apenas vestígios em certos termos e em pouquíssimas
locuções.
Ao contrário das outras línguas
latinas, esta não se degradou em dialetos distintos e a sua unidade foi que ele
tomou parte, conscientemente ou não. Eça, sem fundar escola, foi um naturalista
confesso, mas um naturalista na sua acepção mais estreita, isto é, sectário dos
processos radicais da escola. Quando, porém, a sua independência se fez, ele
soube dar à sua obra uma generalidade relativa, dentro do seu meio. Assim
fez-se um simbolista humano e accessível, criando tipos universais, mas de alma
humana e ao alcance das compreensões vulgares. É um perfeito e maravilhoso
símbolo o do Defunto, como o é o do Milhafre, como são entidades simbólicas
esses Ramires, evolução da alma e da civilização portuguesas, cheios de uma
vida tão poderosa, de uma tão empolgante sugestão, que para sempre se gravam no
espírito do leitor, como criaturas vivas.
Esse D. Gonçalo, o Ramires
contemporâneo, ao mesmo tempo poltrão e impetuoso, de alma honesta e de
transigências infames, é uma criação viva e forte. Ele exprime bem a última
caracterização de uma raça que dos senhores feudais, guerreiros fortes como
deuses, viajantes arrojados, descobridores e sábios e que hoje palpita na
agonia de uma degenerescência fatal, oscilando perpetuamente entre o espírito
histórico das grandezas pretéritas e a inanição atual, toda cheia, contudo, de
uma nobreza ingênita, sem forças embora para fazê-la efetiva e contínua.
Como um formidável contraste ele criou
o perfil truculento de D. Tructesindo de Ramires, o feroz senhor, de que
Gonçalo escreve a história num estilo antigo, páginas que se incrustam dentro
do livro moderno, produzindo um hibridismo peregrino e um efeito violento de
evocação de um passado que não voltará mais, com o deperecimento de energias da
atual civilização.
Depois de ter caricaturado o Portugal
decadente deste momento em O Crime do
Padre Amaro, em Os Maias, em O Primo Basílio, em O Mandarim, em A Relíquia,
depois de o ter cauterizado a fogo com As
Farpas, ele apresenta em Fradique
Mendes o ideal do tipo que quisera representar nesse meio para ele
abominável; e como para justificar e esbater a crueldade da sua obra anterior,
põe em A Ilustre Casa de Ramires o Portugal
de hoje em face do Portugal de antanho e criou esse D. Gonçalo, perfeito nas suas imperfeições, lógico nos
seus contrastes e nos seus desfalecimentos, natural e humano, cedendo ao
princípio e aos impulsos do seu coração admirável, depois às solicitações dos
seus interesses e das suas covardias, sacrificando por uma ambição mesquinha a
honra da família e por fim, conseguida a sua aspiração, inutilizando o fruto
dos seus esforços e dos seus sacrifícios, depois de ter verificado quão
miserável era a compensação que para eles tivera.
E, finalmente, em A Cidade e as Serras, a sua derradeira obra póstuma, dá o supremo
beijo de amor nessa pátria tão amada, que ele estremece com ímpetos tão íntimos
e de uma tão selvagem maneira. Aí diz quanto ela é boa e hospitaleira, quanta
doçura ela encerra no seu coração, longe dos tumultos da apodrecida civilização
que tudo corrompe; quanta fecundidade há no seu seio materno; e como ela merece
ser adorada e ser respeitada. Este período de reconciliação é notável e diz bem
o que era a alma desse artista. Rusgas de amante cioso arredaram-no da sua
bem-amada; encastelado no seu orgulho, não houve ironias e despeitos e
humilhações com que a não maltratasse. E essa mesma obsessão em magoar provava
a intensidade do seu amor. Dia porém chegou, em que os rebeldes assomos ruíram,
em que a forte soberba se abateu e ele finalmente se lhe atirou nos braços, com
ofego e ânsia, procurando reparar os estragos feitos pela sua longa e obstinada
guerra.
Toda a sua obra anterior é de punição
e de sarcasmo; estes últimos livros, porém, são feitos de piedade e, o que é
mais triste, de desalento. Abandonar a pátria e se refugiar na África, ou
desertar da civilização para se embrenhar nas serras, é sempre a mesma forma de
manifestar o seu desgosto pelas coisas que o cercam. Fradique desespera da
Arte, Gonçalo da pátria, Jacinto da civilização, isto é, o artista, tendo
olhado em torno de si, com o olhar perscrutador do filósofo, compreendeu a
inanidade de todos os esforços, abateu-se ante a impossibilidade de um destino
mais alto, para si e para a sua pátria, do que o que é a todos comum e então
aproveitou o seu último alento em amar, com um amor tanto mais veemente quanto
por longo tempo ele o teve recalcado bem no fundo do coração.
Esta foi a feição de artista de José
Maria Eça de Queirós, o codificador das formas literárias da língua portuguesa
e o criador das novas formas que hão de ficar no século XX como o limite para
que tenderão todos os artistas, tanto lusos, como brasileiros.
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FROTA
PESSOA
"Crítica e Polêmica, Rio de
Janeiro, 1902.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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