I - AMADIS DE GAULA
As ideias de honra, de
valentia e de amor, que ocupavam quase exclusivamente os espíritos durante a
idade média, reproduziram-se em todas as formas sociais e instituições daquela
brilhante época: o sentimento religioso traduzia-se em cruzadas ou em guerras
de seitas: o do prazer em justas, torneios e caçadas, que eram imagem da
guerra, ou em serões, onde os temas inesgotáveis dos trovadores eram ou amores
ou armas: as leis apesar de terem a sua principal origem no direito canônico e
depois no romano, lá abriam a liça aos combates judiciários: as habitações eram
castelos, e os adornos dos aposentos corpos de armas pendurados, lanças, e
rases, onde as mãos das donzelas tinham lavrado a história de combates. Neste
predomínio exclusivo de certas ideias, como escaparia a literatura de ser
dominada por elas? Assim, depois das cantigas dos trovadores, vieram os rimances mais longos, os poemas e
as novelas de cavalaria. Era esta a literatura daqueles séculos, nem outra
podia ser: a imaginação dos poetas e noveleiros não alcançaria espraiar-se além
das formas da sociedade de então; porque a literatura de todas as épocas sem
excetuar a nossa, não é mais do que um eco harmonioso, ou um reflexo
resplendente das ideias capitães, que vogam em qualquer delas. As aventuras, os
amores, os feitos d'armas dos heróis do Boiardo eram a imagem, vista através de
um prisma, dos homens do XV século: a ânsia de liberdade descomedida, a
misantropia, os crimes, a incredulidade dos monstros de Byron são o transmuto
medonho e sublime deste século de exagerações e de renovação social.
O prazo durante o qual os
portugueses tocaram a meta do espírito cavaleiroso, e o conservaram em toda a
pureza e vigor, prolongou-se por obra de um século, desde os últimos anos do
reinado del-rei D. Fernando até o del-rei D. Afonso V. Antes desse tempo nossos
avós eram demasiado rudes para conceberem e reduzirem a inteira prática a
concepção imensamente bela da cavalaria; depois dele, eram muito cidadãos para
serem cavaleiros. D. Álvaro Vaz de Almada caindo morto na batalha de
Alfarrobeira era o símbolo da cavalaria expirando nas páginas da ordenação
afonsina. Nesta compilação indigesta e essencialmente contraditória da
legislação de três séculos, não bastava o ser inserido o velho regimento de
guerra português, emendado por jurisconsultos, para salvar da morte a
cavalaria, que outras disposições desse código indiretamente assassinavam.
Nisto como em quase tudo o mais, das atas das cortes portuguesas anteriores a
D. João II e da ordenação afonsina, se pode extrair toda a substância
filosófica da história dos primeiros três séculos da monarquia.
Se o espírito puro de
cavalaria dominou tão largo período, os cavaleiros-modelos (permita-se-nos a expressão) foram só os
que se criaram na corte de D. João I; e a Poética ficção dos Doze de Inglaterra
pinta a época em que se diz sucedera essa aventura. Cavaleiros andantes
portugueses houve-os nos séculos anteriores; mas a cortesia, a louçainha, e a
galantaria que caracterizam a verdadeira cavalaria só as amostra a nossa
história nos guerreiros indomáveis, que na batalha de Aljubarrota formavam o
esquadrão brilhante chamado a Ala
dos Namorados. Eram estes guerreiros que faziam aqueles votos denodados, em demanda de cuja
execução muitas vezes perdiam a vida: eram estes que, discorrendo pelas terras
estrangeiras, aí deixavam perene memória de seus esforçados feitos.
Foi na luzida corte do
mestre de Aviz onde achou a cavalaria de toda a Europa o seu Homero em Vasco de
Lobeira. Como antes daquela houve poetas, assim antes deste houve romancistas;
como Homero eclipsou a memória dos cantos dos seus antecessores, assim Lobeira
fez esquecer as mal tecidas invenções dos mais antigos noveleiros, e o Amadis de Gaula é a primeira e a
principal novela no estensíssimo catálogo dos contos de cavalaria.
Poucas memórias nos restam
acerca de Vasco de Lobeira. Sabe-se que foi natural do Porto, e armado
cavaleiro por D. João I antes de começar a batalha de Aljubarrota. Viveu a
maior parte da sua vida em Elvas, e morreu em 1403.
Escrito muito antes da
invenção da imprensa, o Amadis correu
manuscrito até o tempo de D. João V; porque os nossos antepassados nunca
tiveram a curiosidade de o imprimir. Foram assim escasseando as cópias dele, e
nos últimos tempos se havia tornado tão raro que apenas se lhe conhecia um ou
dois exemplares. O conde da Ericeira, testemunha acima de toda a exceção, o
viu, e o abade Barbosa diz que o próprio original estava na livraria dos duques
de Aveiro. O fatal terremoto de 1755 fez desaparecer este monumento precioso da
nossa literatura, e tudo nos incita hoje a crer que se perdeu para sempre.
Mas, se já não existe o
original, existem as versões dele, ainda que alteradas pelos tradutores.
Trasladado em espanhol se publicou em Sevilha em 1510. Vimos esta tradução, de
que há um exemplar na biblioteca pública da cidade do Porto; e bem sentimos não
ter tomado dela várias notas, que de grande utilidade nos foram para o que
vamos dizer. Lemos ultimamente a edição de Garciordonez de Montalvo, impressa
também em Sevilha, em 1526, da qual nenhum bibliógrafo, que nós conheçamos, faz
menção. Segundo o abade Barbosa as edições do Amadis, vertido em espanhol, se repetiram em 1539, 1576 e 1588.
Esta novela também apareceu
em 1540, traduzida em francês e acrescentada por Nicolau de Herberay: em 1583 a
publicaram os alemães na sua língua; e Bernarda Tasso, pai do grande Tasso, a
reduziu em italiano quase por esse mesmo tempo, fazendo um poema riquíssimo de
versos pomposos, e... de dormideiras. Esta aceitação unânime das diversas
nações é o maior elogio que se podia fazer à obra do nosso Lobeira.
O Amadis, como hoje o conhecemos, na antiga versão espanhola, consta
de quatro livros, o último dos quais foi grandemente alterado por Garciordonez,
segundo ele mesmo diz: "Corrigi (são palavras do prólogo) estes três
livros do Amadis, que por culpa dos maus escritores ou compositores mui
corruptos e viciados se liam, e trasladei e
emendei o livro 4º. Estes quatro livros, traduzidos também em francês, foram
continuados por diversos autores, constando hoje a obra de vinte e quatro.
Sendo impossível dar uma
ideia do Amadis de Gaula, teia
imensa de aventuras, que ao modo das do Ariosto formam um labirinto
inextricável, buscaremos ao menos dar a conhecer o tempo e o lugar da ação, e o
seu principal ator, com a brevidade a que nos constrangem os limites do Panorama.
A época escolhida pelos
romancistas de cavalarias para nela colocarem os seus heróis fabulosos é
indeterminada em todas as novelas. A do Amadis, ainda que bastante incerta, é menos vaga. O herói viveu
muito antes do célebre Artur ou Artus, rei de Inglaterra: mas já quando este
país e o de França eram cristãos. É o que se lê no 1º capítulo do Amadis, e sendo assim este guerreiro
floresceu no VI ou VII século; e como a maior parte dos romances de cavalaria,
que ainda existem, versam sobre a vida dos seus imaginários descendentes,
podemos também para eles estabelecer, ainda que imperfeitamente, uma espécie de
cronologia.
O teatro em que se passam
as aventuras de Amadis de Gaula,
é um teatro quase tamanho como o mundo conhecido no tempo de D. João I. O herói
e os mais cavaleiros seus contemporâneos cruzavam mares extensos, peregrinavam
centenares de léguas, com a mesma rapidez e facilidade com que nós fazemos
visitas dentro de Lisboa. Esta comodidade aproveitaram-na todos os noveleiros
que vieram depois de Lobeira; e para as distâncias que seria incrível fazer
correr em curtíssimo prazo a um cavaleiro, lá estavam as magas e os
encantadores, espécie de espada de Alexandre, que o escritor sempre tinha à mão
para cortar todos os nós górdios que embaraçavam as narrações.
Não nos cabendo neste lugar
tudo o que temos de dizer acerca do Amadis,
o deixaremos para segundo artigo, continuando nos subsequentes com a história
das outras novelas de cavalaria portuguesas.
***
Prometemos no antecedente
artigo dar uma brevíssima ideia desta primeira novela de cavalaria:
cumpri-lo-emos aqui, tocando depois um ponto em que de propósito deixamos de
falar, e vem a ser a célebre questão acerca de saber se esta novela é obra de
um autor português, espanhol ou francês. Todas estas três nações a pretendem
para si; e na contenda os portugueses parece estarem pior que os seus
adversários, visto já não existir o original. Mas, ao cabo, são eles que têm
razão, segundo nosso entender; e por isso não duvidamos de atribuir o Amadis a Vasco de Lobeira.
O rei Perion reinava na
Gaula (França): o rei Garinter na Pequena Bretanha, hoje a província de França
deste nome. Levado pelo desejo de conhecer Garinter intenta Perion uma longa
viagem; e com efeito o encontra numa caçada; dão-se a conhecer um ao outro, e
Perion é conduzido à corte do seu novo amigo. Tinha este uma filha chamada
Elisena, que se namora de Perion, o qual daí a pouco parte para a Gaula,
deixando-a grávida. Ela para esquivar-se à infâmia entrega o fruto dos seus
amores à mercê das ondas, encerrado em uma caixa. Foi este Amadis. Encontrado
por uma barca em que ia Gandales, cavaleiro escocês, este o salva e cria com
seu filho Gandalim, depois escudeiro de Amadis. Os dois moços são levados à
corte de Languines, rei da Escócia. Aqui viu a Amadis el-rei Lisuarte, que de
Dinamarca vinha reinar em Inglaterra, o qual deixou na corte de Languines a sua
filha Oriana. Foi então que começaram os amores desta princesa com Amadis, que
são o principal objeto da novela. Amadis é reconhecido por seu pai Perion, já
casado com a filha de Garinter, e cresce em poder e renome. Mil dificuldades se
alevantam para ele chegar a possuir Oriana, as quais vence com repetidos atos
de generosidade e valentia. Enfim o romance acaba de um modo incompleto com os
trabalhos que nos seus últimos anos cercaram a el-rei Lisuarte.
É esta, em suma, a matéria
que enche o volumoso romance de Amadis,
novela cheia de muitas páginas fastidiosas, mas também de muitas que
grandemente excitam a curiosidade. O estilo em que está escrito é o de uma
velha crônica do século XV, e notamos nele uma grande semelhança com os
escritos do pai da nossa história, o singelo cronista de João I, Fernão Lopes,
que tantas vezes se mostra mais poeta que muitos que se arrogam este título.
Traçado um leve esboço da
novela de Amadis de Gaula,
segue-se tratar a questão de saber se a devemos atribuir a um escritor
português.
Primeiro que tudo, é de notar
que a tradição constante em Portugal foi sempre que o Amadis fora composto por Lobeira. Antônio Ferreira e o Dr.
João de Barros, que escreveram no século XVI, não duvidam dá-lo por certo: o
conde da Ericeira numa conta dada à academia de história, de certa coleção de
livros que andava examinando, diz que ali se achava um manuscrito do Amadis, sem que sobre isso faça
admiração ou reparo; o que parece provar que naquela academia nenhuma dúvida
havia acerca da existência da novela, no original português. Mas não era só
nossa esta opinião: a maior parte dos escritores espanhóis convém em atribuir a
Lobeira o Amadis de Gaula.
Pretendem os franceses (não
todos os que na matéria têm escrito) que esta novela fora traduzida em espanhol
do idioma picardo, e Herberay diz a vira nesta língua: mas isto nada prova.
Quem impedia que os franceses traduzissem o original de Lobeira? A outra
objeção contra nós é ter feito o autor os seus heróis franceses e ingleses; mas
isto também nada prova: por que prova de mais. Os ingleses teriam ainda mais
razão para pedirem a glória desta obra, visto que, apesar de ser francesa a
personagem principal, a maior parte dos acontecimentos põe-nos o autor em
Inglaterra, e quase todos os cavaleiros notáveis são deste país, à exceção de
Amadis e seu irmão Galaor. O certo é que Lobeira, tendo vivido no tempo de
el-rei D. Fernando I e de D. João I, tinha visto as proezas que em Portugal
obraram os cavaleiros ingleses, a quem devemos os progressos que então fizemos
na arte da guerra. Devia ele fazer portanto alta ideia da cavalaria daquela
nação. Nada havia mais natural do que fazer da Inglaterra o teatro das façanhas
dos seus imaginários heróis. Como, porém, o agente principal de todos os
sucessos devia ser o amor, naturalíssimo era que o autor buscasse um príncipe
estrangeiro que viesse tornar brilhante a corte inglesa, com seus amores pela
dama principal, a filha de Lisuarte, que não poderia aliás corresponder à
afeição de um súdito de seu pai. Eis a razão óbvia porque Amadis é francês.
Além destas observações há
uma principal, que ainda ninguém, que nós saibamos, se lembrou de fazer: o
examinar em si a novela, para ver se das suas próprias entranhas se podia
arrancar a certeza da sua origem. Se isto se tivesse feito, a questão estaria
de há muito decidida.
Citamos mui de propósito no
primeiro artigo as palavras de Garciordonez, que diz emendara os três livros
de Amadis, que andavam viciados,
e trasladara o quarto. Aqui
o verbo trasladar, é claro que
não pode significar senão traduzir, o que mostra a olhos desapaixonados que a
obra não era originalmente espanhola.
Seria francesa? — Dizemos,
sem dúvida alguma, que não. Perion encontrando Garinter diz-lhe que viera de
mui remotas terras para o ver. Era possível acaso que um escritor francês
fizesse o rei da Pequena Bretanhi desconhecido do da França, e pusesse na boca
deste um tão descompassado erro geográfico? Além disto Perion e Lisuarte
reúnem cortes, nos casos
difíceis e circunstâncias importantes: nestas cortes aparecem, não os barões
das antigas assembleias feudais da Inglaterra e França, mas os ricos-homens e homens-bons das cortes portuguesas.
Enfim o autor descreve a passagem do canal de Inglaterra como uma viagem de
nove dias com vento favorável. As frequentes relações de guerra e de paz entre
a Grã-Bretanha e a França permitiam porventura que ignorasse um escritor
francês a distância de um a outro país?
Nós poderíamos acrescentar
muitos outros exemplos desta natureza; mas cremos serem de sobejo os que
apontamos, para que à nação portuguesa seja cedida a palma de ter saído da pena
de um escritor seu a mais antiga e mais célebre das novelas cavalheirescas.
II - NOVELAS DO SÉCULO XV
Quando escrevemos os dois
primeiros artigos acerca das novelas de cavalaria portuguesas, era nossa
intenção continuar sem demora a publicação do breve resumo, que encetamos desta
parte da nossa história literária, por ser aquela sobre a qual menos se tem
escrito. Mas por isso mesmo era preciso fazer maiores indagações, que outros
trabalhos nos não permitiam. Abrimos pois, mão do intento que hoje continuamos
a pôr por obra: não porque julguemos suficiente o que temos coligido, desde
então para cá, sobre a matéria; mas porque mais valem poucas notícias que
absolutamente nenhumas.
Antes que passemos adiante
cumpre-nos acrescentar aqui alguma coisa acerca do Amadis, de que largamente falamos nos artigos já publicados, e vem
a ser um testemunho que corta por uma vez a questão da sua originalidade. Este
testemunho é o de Gomes Eanes de Azurara, historiador que os nossos leitores já
conhecem, e que diz o seguinte no capítulo 63 da crônica do conde D. Pedro de
Meneses —"e assim o livro d'Amadis, como quer que somente este fosse feito
a prazer de um homem, que se chamava Vasco Lobeira em tempo del-rei D.
Fernando, sendo toda as coisas do dito livro fingidas do autor"— Este
lugar de um escritor, a bem dizer coevo, deve tirar a última sombra de dúvida
sobre a nacionalidade do célebre Amadis
de Gaula.
Assim como a corte de D.
João I foi a escola dos mais famosos cavaleiros de Portugal, assim a época do
seu reinado se pode considerar como a mais favorável para as letras, que
Portugal viu, até o tempo de D. Manuel. D. Duarte, o bom e infeliz D. Duarte,
proporcionalmente o mais instruído dos nossos reis, não teve que ir aprender,
nem virtudes, nem cavalaria, nem ciências nas cortes estrangeiras, porque as
virtudes de que foi ornado, e os vastos conhecimentos que possuiu, adquiriu-os
na de seu ilustre pai. O infante D. Pedro, príncipe grande entre os maiores que
Portugal tem gerado, se correu o mundo foi para encher de assombro os sábios
com sua ciência, os valorosos com seu valor.
O infante D. Henrique há aí
quem não o conheça? Quem não conheça o fundador da nossa glória marítima? Certo
que não. Nome é esse que nunca esquecerá. E todavia de todos os quatro filhos
de João I (contando o infante D. Fernando) é ele quem ocupa o lugar mais baixo
na escala das virtudes, e porventura na ciência apenas lhe caberá o terceiro
depois de D. Duarte e D. Pedro.
E ainda o infante D.
Fernando, esse pobre cavaleiro da cruz a quem a nação ousou negar o resgate,
preferindo alguns palmos de terra cingidos de muralhas, à liberdade e à vida de
um homem leal, que bem a servira, antepondo uma infâmia a uma perda, talvez
fácil de remediar; ainda, dizemos, o bom infante santo, o mártir resignado da
Pátria e da fé, quão amigo e protetor foi das letras e dos que as cultivavam!
Fernão Lopes e Fr. João Alvarez foram feitura sua; e, provavelmente, não nos
honraríamos hoje desses dois homens, dos quais um deu o primeiro impulso à
nossa linguagem histórica, e outro à nossa linguagem oratória, se a boa sombra
de D. Fernando os não fizesse medrar. Leia-se o testamento que fez quando
mancebo partiu para a África, e ver-se-á quantos e quão notáveis livros possuía
o infante; numa época em que, não existindo a tipografia, muitas vezes em
países então semibárbaros, como por exemplo a Inglaterra, era necessário
empenhar um castelo ou um solar inteiro para obter a cópia de qualquer livro. E
todavia, de todos os quatro irmãos D. Fernando é o menos conhecido na nossa
história literária.
Os vestígios da literatura
portuguesa do período que decorre desde os princípios do reinado de D. João I
até o de D. Afonso V são inumeráveis; mas são apenas vestígios. Das artes aí
está a Batalha, e ainda apesar de cônegos, Santa Maria de Guimarães, dizendo o
que em Portugal foi essa era de toda a casta de glórias, a que vertendo sangue,
se acolhem os corações que por ora não renegaram do nome português, hoje
vilipendiado e arrastado por tabernas e monturos de estrangeiros. Dos
monumentos, porém, da nossa velha literatura apenas restam alguns nomes, e
alguns títulos ou fragmentos d'obras, consumidas por incúria própria, e por
terremotos e incêndios, ou roubadas por castelhanos, franceses, ingleses, e,
enfim, por todos aqueles que têm querido tomar o leve trabalho de arrebatar, ou
por em almoerla as preciosidades dos nossos cartórios, bibliotecas e museus.
Do já citado testamento do
infante D. Fernando, do de Diogo Afonso Mangancha, do inventário de Vasco de Sousa,
do catálogo da livraria del-rei D. Duarte, e de muitos outros documentos
publicados e inéditos, bem como de várias passagens dos nossos cronistas, e
ainda mais dos historiadores monásticos, se vê quão grande era em Portugal o
trato dos livros, numa época, que por aí se chama bárbara, porque era de
grandes virtudes. E não se creia que esses livros eram só latinos: pelo
contrário, a maior parte estava escrita nas línguas vulgares de Espanha,
principalmente na portuguesa. As obras de Cícero foram traduzidas pelo infante
D. Pedro, e por sua ordem o livro do Regimento dos Príncipes. Só a lista das
obras del-rei D. Duarte espanta pela variedade de matérias em que este rei
filósofo empregou a sua pena nada rude. Marco Paulo já estava traduzido no seu
tempo. O livro da corte imperial prova que naquela época se tratavam em vulgar
as árduas matérias de teologia polêmica. Levantavam-se cartas topográficas do
reino, se é que os Cadernos das
cidades e vilas de Portugal, que existiam na livraria del-rei D. Duarte,
não eram antes uma espécie de estatística, o que, em nosso entender, mais
admirável fora. Então, Diogo Afonso Mangancha, Fr. Gil Lobo, os dominicanos Fr.
Rodrigo e Fr. Fernando d'Arroteia, e tantos outros oradores, faziam descer do
alto dos púlpitos palavras de eloquência e de unção, que chegavam ao fundo dos
corações, como se viu nas exéquias de D. João I. Estudava-se a filosofia e a
história, de que dão testemunho os livros filosóficos, e historiadores romanos
e modernos da mesma livraria del-rei D. Duarte. Enfim o ensino da
jurisprudência, trazido de Itália por João das Regras, produziu uma multidão de
jurisperitos, a quem depois Portugal deveu grande parte da legislação,
excelente para aquele tempo, que se encontra no código afonsino.
Que resta de tantos homens
e coisas? Esse código, que serviu de base aos que o substituíram. Dos livros
que ajuntou D. Duarte apenas sabemos da existência do intitulado Corte Imperial e de um fragmento
do Regimento de Príncipes. Tudo
o mais quase com certeza se poderia talvez dizer, que, ou o tempo o consumiu,
ou jaz sepultado por bibliotecas estrangeiras, como sucede às obras do mesmo
monarca.
Na sua já citada livraria
existiam quatro obras que pelos títulos se vê serem novelas de cavalaria. Eram
estas o Livro de Tristão, O Merlim, o Livro de Galaz, e o Livro
d'Aníbal. O referido catálogo, que apenas merece o nome de rol, só declara
expressamente ser em português o Livro
d'Aníbal. Incrível é quase que o Amadis ficasse
sem imitadores, e poder-se-ia conjecturar que alguma das citadas novelas fosse
original portuguesa. De todas, porém, temos achado rastos nas literaturas
estrangeiras, vindo por tanto, a serem provavelmente todas elas traduções do
normando-saxônio (inglês), ou com mais probabilidade da língua d'Oil (francesa)
ou da língua d'Oc (provençal).
Para inteligência desta
nossa opinião poremos aqui resumidamente uma ideia geral dos romances ou
novelas de cavalaria.
Os que têm escrito acerca
desta matéria, e nomeadamente Sismondi, dividem todos os romances em três
classes ou ciclos, conhecidos pelos nomes das primeiras personagens dessas
séries de novelas, que partindo da história de cada um daqueles heróis,
continuavam pela de seus filhos e netos, aliados, ou inimigos indefinidamente.
Estas três classes são a das novelas de Amadis, a das de Artus, ou Artur
d'Inglaterra, e a das de Carlos Magno. Todavia parece-nos que esta
classificação é imperfeita. Dividiríamos antes essa multidão de romances em
cinco ciclos ou classes: a de Artus,
a do Santo Brial, a de Carlos Magno, a de Amadis, e a dos romances a que podemos
chamar greco-romanos, porque eram as vidas dos heróis antigos, que davam
matéria às invenções dos noveleiros. Não esconderemos que a do Santo Brial está tão ligada à
de Artus, que se confunde com
esta; mas logo diremos porque nos parece dever-se dela separar.
Os romances de Artus ou da Távola redonda são a história
fabulizada do famoso Artur, último rei d'Inglaterra, da raça dos bretões, e que
defendeu valorosamente o seu país da invasão dos anglo-saxônios. Esta série de
novelas começa no romance de Bruto, composto por micer Gasse em 1155; a ela
pertence o romance de Merlin, filho de uma dama bretã e do diabo, no qual se
contam as guerras de Uter e de Pandragon, o nascimento de Artus, e a
instituição da Távola redonda, isto é, de uma espécie de doze pares ingleses,
que costumavam comer como iguais em
uma mesa redonda nos paços
del-rei Artus: a história de Tristão de Leonis também pertence a este ciclo,
sendo Tristão um dos cavaleiros da Távola redonda; e estes dois romances cremos
nós que eram os que existiam traduzidos na livraria de D. Duarte: no mesmo
ciclo entram as novelas de Meliott de Logres, Melinus de Dinamarca, Micer
Galvão, Lancelote do Lago, Vigalois, Vigamor, e Daniel de Valdeflores, e muitas
outras que fora longo enumerar.
Os romances do Santo Gral,
Gral ou Graal (que os nossos escritores chamam erradamente Santo Brial) formam
um ciclo bastante ligado com o antecedente, mas distinto pelo pensamento que
presidiu à sua invenção. O Santo-Greal (derivado de Sang-réal, ou Sanguis-réalis)
era o vaso ou copa em que Jesus Cristo tinha comido com os seus discípulos na
noite da ceia, e em que José de Arimateia tinha, segundo a tradição dos
noveleiros, recolhido o sangue derramado pelo Senhor na cruz; vinha assim esta
copa imaginária a ser o mesmo que o Santo Catino que os genoveses se gabaram de
ter trazido da terra santa. Este precioso vaso estava guardado, segundo os
romancistas, em um templo na Espanha, num sítio desconhecido, e só os
cavaleiros escolhidos por Deus podiam atinar com ele. Para isto era necessário
que se alevantassem à maior alteza, não só de feitos de armas, mas de virtudes
morais. Vê-se, portanto, que o pensamento destes romances era uma alegoria
religiosa, um tipo do alvo em que devia cada cavaleiro pôr a mira do seu
procedimento para merecer tal nome, ou para ser escolhido de Deus[14]. A este ciclo pertencem o Perceval,
Lohengrin, Titurel, e uma parte dos romances da Távola redonda, porque muitos
dos cavaleiros de Artus trabalhavam por conquistar o Santo Gral, que, segundo
escrevem alguns dos noveleiros desse ciclo, tinha sido levado para Inglaterra.
O primeiro e principal romance do Santo Gral foi escrito por Cristiano de
Troies no século XII, e existe manuscrito na biblioteca real de Paris, na sua
forma original, que é em verso.
O ciclo dos romances de
Carlos Magno começa com a crônica fabulosa do arcebispo Turpin, publicada em
1566, por Echardt, mas escrita, segundo a opinião mais seguida, no undécimo ou duodécimo
século. Este livro passou muito tempo por histórico, e as fábulas nele contidas
foram inseridas como autênticas nas crônicas de São Dinis, recopiladas por
ordem do célebre abade Sugério, nos fins do século XII: mas depois das
cruzadas, a obra atribuída a Turpin não serviu mais senão como de elo de uma
multidão de novelas relativas aos supostos pares de França, ou paladinos de
Carlos Magno. O romance de Bertha, o de Ogeiro de Dacia, e de Cleomadis, o de
Reinaldos de Montalvão, o dos quatro filhos de Aimão, o de Flora e Brancaflor,
o do gigante Morgante, e vários outros, de que se aproveitaram Boiardo,
Ariosto, Pulci, e os mais poetas romancistas de Itália pertencem a este ciclo.
O ciclo dos romances do
Amadis começa por o daquele nome, e pertencem-lhe todas as imitações que dele se
fizeram, e das quais, a mais notável é o Amadis de Grécia. Florismarte
d'Hircânia, Galaos, Florestam, as Sergas de Esplandiam, o D. Duardos, os
Palmeirins de Oliva e de Inglaterra, e muitíssimos outros entram nesta divisão.
É esta espécie de novelas de cavalaria propriamente espanhola. A maior parte
delas foram compostas nos idiomas da Península, e muitas nem daqui saíram.
Desgraçadamente os continuadores e imitadores de Lobeira foram, por via de
regra, faltos de talento e cheios de mau gosto. Daí veio a graciosa justiça que
deles fez Cervantes por mãos do cura, no seu inimitável D. Quixote.
A última classe de romances
de cavalaria é aquela em que as personagens e sucessos da história antiga,
conhecidos imperfeitamente, davam largueza à imaginação dos noveleiros, que
revestiam essas personagens dos costumes, crenças e opiniões da idade-média, e
afeiçoavam esses sucessos pelas instituições da cavalaria, enxerindo até os
heróis da Grécia e de Roma, nas Famílias fabulosas dos Artus e de Amadis.
Pertencem a este ciclo os romances d'Alexandre, descendente del-rei Artus, o de
Eneias, o da guerra de Troia (do qual segundo parece, também existia uma
tradução em aragonês na livraria de D. Duarte) e outros, com os títulos dos
quais escusado é encher papel. Em alguma destas cinco classes entram
naturalmente todas as novelas de cuja existência em Portugal, no princípio do
século XV, temos notícia. O Merlim e
o Livro de Tristão indicam
pelo seu simples título, serem, quando muito, versões dos dois romances do
ciclo da Távola redonda, conhecidos por aqueles nomes. O livro de Galaaz com toda a probabilidade não
era mais que a história de Galaad,
filho de Lancelote do Lago, pertencente ao mesmo ciclo. E finalmente o livro de
Aníbal seria uma tradução de
alguns dos numerosos romances do ciclo greco-romano.
Nem nos admiremos de que na
livraria del-rei D. Duarte predominassem os romances da Távola redonda. Todos
sabem que sua mãe, a rainha D. Filipa, era inglesa, e nada mais natural do que
ela e as pessoas da sua nação, que com ela vieram a Portugal, fizessem conhecer
essa classe de novelas que, mais que nenhumas, lisonjeavam o amor próprio dos
ingleses.
De outras obras se faz
menção no índice daquela livraria, que veementemente suspeitamos serem novelas
de cavalaria; mas não passando esta opinião de mera suspeita, guardaremos sobre
isso silêncio.
Desde a época de D. Duarte
até o princípio do reinado de D. Manuel nenhum rasto temos encontrado deste
gênero de literatura. Foi em 1496 que se publicou a Estória do mui nobre Vespasiano imperador de Roma, livro de que
demos notícia a página 164 do 1º volume deste jornal.
Esta História de Vespasiano, que examinamos
por permissão do nosso erudito colega o Sr. Vasco Pinto de Balsemão, e da qual
o único exemplar que existe pertence à biblioteca pública da corte, não é senão
uma novela de cavalaria, pertencente ao ciclo greco-romano. Há aí, na verdade,
alguns fatos históricos, mas os costumes, e as particularidades da narração não
passam de meras ficções. Que a obra seja uma tradução, não nos parece duvidoso.
Na subscrição dela se diz que fora ordenada "por Jacó e José abaramatia,
que a todas aquelas coisas foram presentes". Isto indica bastantemente a
origem estrangeira do livro. Se, porém, nos lembrarmos de que José de
Arimateia, figura nos romances do Santo Gral, como tendo recebido o sangue de
Cristo nesse célebre vaso, é naturalíssimo que o noveleiro, autor da história
de Vespasiano, se lembrasse de lhe atribuir a própria composição, tanto mais
que era quase como lei entre os romancistas dar uma origem misteriosa, ou ao
menos remota, ao fruto das suas imaginações.
Acresce, para mais
fundamentar a nossa opinião, que Mr. Fauriel menciona uma história romance da destruição de
Jerusalém por Vespasiano, escrita em provençal, e que ele classifica como livro
conexo com o ciclo das novelas do Santo Gral. Este romance, que, segundo nossa
lembrança, existe manuscrito na Biblioteca Nacional de Paris, é com toda a
probabilidade, o original da novela portuguesa.
Eis o que temos podido
alcançar acerca dos romances de cavalaria em Portugal, durante o século XV.
Outros mais hábeis e mais felizes terão chegado a maior profundidade com as
suas indagações. Trouxemos à praça, em proveito comum, a nossa pobreza. Não
éramos a mais obrigados.
No artigo subsequente
falaremos dos romances de cavalaria portugueses, no século XVI.
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ALEXANDRE HERCULANO
Escrito entre 1838 a 1840, e publicado em: Opúsculos, tomo IX, 1909.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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