6/06/2019

Noturno (Conto), de João Grave



Noturno

Na noite escura, picada pelo fulgor longínquo de vagas estrelas, que ardiam, cintilavam no alto, eu e Rodrigo errávamos indolentemente através das ruas quase desertas da cidade que, a essa hora já avançada, cambaleava de sonolência e bocejava o seu tédio. Os candeeiros da iluminação pública, que a espaços se erguiam funebremente como tochas de enterro, projetavam sobre a calçada trêmulas manchas de luz ondulando no fio do vento; e só de longe a longe uma claridade pálida se filtrava por entre as vidraças corridas dalguma vivenda onde se seroava ainda, nas intimidades do convívio familiar.

— Nada mais triste do que um populoso burgo, em certos instantes noturnos! — exclamou Rodrigo, para interromper a monotonia da nossa mudez. Do silêncio, da treva, da confusão dos aspectos exteriores, do adormecimento que parece invadir as próprias coisas inertes, exala-se uma funda melancolia que nos penetra até à alma e nos desola. E não sei que especial estado emotivo faz com que apenas recordemos o que na nossa existência há de amargo, de desgraçado, de aflitivo!...

— Assim é, com efeito... — atalhei eu, com a imaginação perdida em outras evocações e sem refletir nas palavras do meu amigo.

— Repara na linha irregular das construções: há nela não sei quê de sinuoso, de agressivo, de irritante, que nos exacerba até ao desespero. Os prédios em que um derradeiro clarão incendeia os vidros das janelas, semelham caveiras sorrindo, desdentadas e torvas, na penumbra. Estas casarias abismadas na solitude constituem cenário magnífico para um conto de Edgar Poe ou de Hoffman. Nem um riso claro vibrando na pacificação envolvente como à primeira nota idílica duma canção de amor, nem uma fugaz palpitação de vida... É tudo extático, parado, morto. E, no entanto...

Por vezes, silhuetas de vadios ou de pobres esgueiravam-se rentes às paredes, deslocando-se apressadamente. Raros carros passavam, ao galope de cavalos cansados, num grande estrépito de ferragens, deixando entrever de relance brancuras de formas femininas, perfis suaves e sorridentes recortando-se com doçura na misteriosa meia tinta da luminosidade das lanternas.

— No entanto?... — disse eu, interrogando Rodrigo.

— No entanto — reencetou ele, cofiando a barba negra e cerrada — estas noctívagas paisagens citadinas são maravilhosamente sugestivas para os homens de fantasia e de sensibilidade. Neste momento incerto em que vivemos, quantos dramas, quantas tragédias, quantas ternuras, quantos lirismos comovidos, quantas misérias, quantos risos e quantas lágrimas se escondem nessas moradas que julgamos mergulhadas em quietude e na plena inconsciência do sono! Vou pensando nas infâmias, nas vilezas com que hoje foi comprado o jantar de muitas famílias; nas angústias inenarráveis com que os vencidos estarão cogitando no pão que amanhã hão de almoçar; nos crimes com que os egoístas formam o seu bem-estar; nas mentiras que neste minuto supremo maculam a boca divina das mulheres apaixonadas; nos falazes sonhos amorosos que vão sonhando as virgens adolescentes; nos olhos queimados pelo fogo do pranto; nas ilusões caídas sem chegarem a florir; nas dores ocultas que escolhem a tranquilidade da noite para soltarem o seu grito rouco de socorro — e a flor do sentimento fecha as pétalas no meu peito.

— Na verdade, Rodrigo, eis aí um lúcido resumo da atormentada luta numa desvairada e enorme aglomeração humana! — acudi eu. As cidades são como aquele livro fatídico de que fala Ralph Emerson. A mão dos seres conscientes abre-o com sofreguidão, volta uma página luminosa e logo uma página sombria surge, tenebrosa, enigmática e terrível!

— Nas cidades, efetivamente, a sombra e a luz são inseparáveis, andam sempre unidas, simbolizando a alegria e o sofrimento, as fomes e as abundâncias, as sodas e os farrapos, as purezas angélicas e as devassidões monstruosas, a lama e o ouro, as ascensões até aos astros e as quedas até aos charcos... O mundo é pavoroso, e conhecê-lo em todos os seus espetáculos será uma tortura desfibrante para as almas dotadas de finuras de subtileza sensitiva.

— Aí estás tu com os teus negros pessimismos! — atalhei eu.

— Na realidade, não poderás chamar-me “Cândido ou o Optimismo!” — respondeu Rodrigo ironicamente.

— Decerto, decerto! Mas outrora, quando eu subia à tua trapeira para conversarmos durante alguns minutos com o doce espírito de Maine de Biran, tinhas uma concepção mais risonha da vida.

— Que queres? Os anos, a experiência, os desenganos!... E, depois, os dons de observação e de análise, que só muito tarde se revelaram na minha inteligência, secaram-me, estragaram-me, tisnaram-me a mocidade do coração...

Caminhando constantemente ao lado um do outro e sentindo sobre os ombros o peso duma fatalidade a que não podíamos fugir, tínhamos recaído na nossa mudez, porque a conversa principiava a fatigar-nos. Rodrigo exilava-se, talvez, para o passado, a relembrar uma jovialidade extinta, a sua confiança morta, uma promessa de ventura que o traíra: e eu reavivava o tempo saboroso e inolvidável em que o havia conhecido, enérgico, viril, continuamente enredado em meigas aventuras para que era arrastado menos pelo ardor sensual do que pela romântica esperança de encontrar a doce mulher superior em que a sua ternura cristalizasse. Como, porém, nunca a encontrou, dos dias remotos apenas lhe restava uma indecifrável saudade que excitava o seu padecimento de homem entrado no entardecer dos quarenta anos.

Rodrigo era, então, culto, apaixonado, lia os moralistas, os poetas líricos e comovia-se profundamente com a música de Schubert. O instinto do amor era nele tão vivo que se na rua, no passeio, numa reunião amável, numa soirée, uns olhos femininos e pensativos o fitavam mais demoradamente, logo a sua ansiedade de carinho, a sua sede de interesse emotivo, o sobre-excitavam, fazendo-lhe perder o senso da realidade e das conveniências sociais. Nesta intensa e permanente tempestade sentimental se queimou, perseguindo sempre uma quimera que nunca pôde alcançar. O outono da sua existência vinha encontrá-lo pessimista.

Imersos nestas divagações, entramos, sem dar por isso, numa ruela envolvida em treva e ermo. Cães vagabundos revolviam, com o focinho, os montes de lixo arrumados aos cantos; gatos de olhos fosforescentes espiavam a calçada.

— Isto é lúgubre, lúgubre! — bradou Rodrigo.

Aceleramos a marcha para sairmos depressa do beco sinistro; e inesperadamente, ao dobrarmos a esquina, uma descarnada mão hesitante, surdindo de dentro dum xale roto, estendeu-se para nós e tremeu um momento no ar, ao passo que uma voz enfraquecida choramingava:

— Esmola, pelo amor de Deus!... Paramos, desorientados. Rodrigo procurava nervosamente, no bolso do colete, placas de cobre: a pedinte, respirando com dificuldade, conservava a mão estendida, numa súplica, fixando o meu amigo com uns olhos em que dardejava um brilho de febre. Quando ele deixou cair sobre os magros dedos que tremiam o dinheiro, a mesma voz murmurou com brandura e reconhecimento:

— Então, seja por alma de quem lá tem, Sr. Rodrigo!...

Perturbado, o meu amigo que dera já algumas passadas para a frente, voltou atrás com surpresa, aproximando-se do vulto desconhecido e inquirindo:

— Como sabe o meu nome? Quem é você?

A ponta do xale com que a mendiga abafava o rosto desceu até ao peito e uma face emagrecida, de mulher ainda nova, apareceu. Na soturnidade da noite, essa pobre face de tísica tinha uma brancura de papel e toda a vitalidade da pedinte ignorada parecia concentrar-se no olhar aceso penetrante.

— E Sr. Rodrigo não sabe o meu nome? Ora veja se se recorda...

O meu amigo, enquanto eu, comovidamente contemplava a cena estranha, curvou-se a observar o rosto doente e emaciado que sorria, e gritou:

— Pois és tu, Maria Rosa? És tu?...

— Sou eu!

— E como chegaste a esta miséria, a este abandono?

— Os médicos que me tratam por caridade dizem que eu estou tuberculosa... E estou! Olhe que isto vai apagar-se!... Tenho cá por dentro um frio, um frio!...

Rodrigo, apiedado, tirou a carteira, desdobrou uma nota que entregou a Maria Rosa — que queria beijar-lhe as mãos por tanta generosidade — e limpou uma teimosa lágrima que lhe tremia nas pálpebras.

— Vou ter que comer para uma semana! — soluçou ela.

— Mas, como foi, como foi?... — gaguejava Rodrigo sem encontrar uma frase consoladora para a penúria que inesperadamente se lhe atravessava no caminho.

— Ora!... Como foi!... — respondeu Maria Rosa

Rapidamente, enxugando os olhos rasos de água, contou-nos a sua história. Enquanto teve saúde e beleza, viveu no luxo e na fartura, passando duns amantes de acaso para outros. A sua juventude esplendia, a sua graça iluminava-a, era apetecida, fora talvez amada um dia. Nunca se preocupou com o futuro.

— Quando se é moça — comentava Maria Rosa — não se pensa no que há de vir.

Mas a sua formosura desbotou-se, como uma rosa crestada pelo sol, começou a ser desdenhada e repelida, a fome bateu à sua porta. Foi vendendo alguma rara joia, que representava o preço dos seus beijos, empenhou as roupas, empenhou o próprio mobiliário da sua casa e o leito em que dormia, quando na sua existência de vergonhas, de baixezas, de humilhações, se levantava uma aurora espiritual de repouso e de comiseração. Esta decadência fora agravada pela tísica, que a roía interiormente, que lhe dilacerava o pulmão desfeito nos arrancos violentos da tosse. Para se alimentar, como já ninguém a queria, desceu à rua, de noite, esmolando. E ia pendendo para o descanso ambicionado do coval, num cemitério, aquele corpo que fora lindo e perfeito.

— Qualquer dia, porém, não posso levantar-me da enxerga para vir mendigar, e lá morrerei sozinha e esquecida, eu que dei a minha mocidade e a minha beleza aos outros! — concluiu Maria Rosa, num sorriso doloroso.

Comovido, Rodrigo apontou na sua carteira a morada da enforma, despediu-se dela e puxando-me pela manga do casaco, exclamou:

— Vamos!... Anda daí!...

Largo tempo deambulamos pelas ruas solitárias, sem reatarmos o fio da conversa tão dramaticamente cortada. Tínhamos ambos medo de avivar emoções que nos sobressaltassem; mas, a certa altura, foi-me impossível conter a curiosidade que me espicaçava e murmurei:

— Rodrigo, quem é esta Maria Rosa?

— Uma tuberculosa que, a horas mortas, pede o seu escasso pão à caridade que passa. Não a ouviste? — respondeu ele, de mau humor.

— Mas quem foi antigamente?

Insistiu ainda um instante no seu silêncio: mas, tomando uma resolução decisiva, acrescentou:

— Ah! antigamente... Estou a experimentar um secreto pudor em te revelar o que sei acerca daquela desditosa rapariga. Por quê? Talvez que eu seja também um pouco culpado no seu infortúnio... Contudo, para que hei de eu ter segredos para ti, que es o meu melhor amigo e, certamente, o amigo mais íntimo? Ouve lá...

Acendi um cigarro, enquanto Rodrigo reconstituía as suas velhas e dispersas recordações. A cidade ressonava profundamente, numa imobilidade de monstro que faz a sua brutal digestão.

— Ouve lá... Maria Rosa foi a Musa da juventude, nos meus tempos de estudante. Não existiu água-furtada onde houvesse livros e um rapaz preparando -se, pelo estudo, para as asperezas da vida futura, que ela não alegrasse com a sua gracilidade, com o encanto da sua ternura, com a maravilhosa poesia do seu corpo de flor humana. Nas nossas ruidosas ceias, quando havia dinheiro, coroávamo-la de rosas à moda grega, pedíamos-lhe a inspiração para os nossos poemas e pedíamos-lhe beijos para a nossa ilusão amorosa. Também nas áridas páginas dos meus livros a sua imagem gentil se iluminou um minuto. Foi célebre entre a boemia da cidade há seis, há dez, há quinze anos; e, por minha parte, não tendo remorsos, porque fui eu, porventura, um dos que melhor a trataram, um dos raros que se compadeceram com a amargura da sua sorte. Perdi-a de vista depois que acabei o meu curso de engenheiro, que não me serve para nada, e que principiei a gastar em viagens, em loucuras, em vãos caprichos, a herança paterna. Julguei que tivesse morrido, e eis que, de súbito, ela reaparece, ainda viva, mas tropeçando na terra solta das sepulturas...

— Que destino! — interrompi.

— E, apesar disso, queres que eu seja optimista. Não tinha esta infeliz rapariga direito ao seu quinhão de sol e de felicidade?"...

Insensivelmente havíamos chegado a casa de Rodrigo. Detivemo-nos. Já com a chave na fechadura, o meu amigo disse:

— Hei de ir ao enterro de Maria Rosa e hei de pôr-lhe um orvalhado ramo de violetas sobre a cova... Ela é mais uma das minhas ilusões que se some...

Entrando no portal ainda bradou:

— Amigo, na nossa idade, como o amor envelhece e morre!


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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