Noturno
Na noite escura, picada pelo fulgor
longínquo de vagas estrelas, que ardiam, cintilavam no alto, eu e Rodrigo
errávamos indolentemente através das ruas quase desertas da cidade que, a essa
hora já avançada, cambaleava de sonolência e bocejava o seu tédio. Os candeeiros
da iluminação pública, que a espaços se erguiam funebremente como tochas de
enterro, projetavam sobre a calçada trêmulas manchas de luz ondulando no fio do
vento; e só de longe a longe uma claridade pálida se filtrava por entre as
vidraças corridas dalguma vivenda onde se seroava ainda, nas intimidades do
convívio familiar.
— Nada mais triste do que um populoso burgo,
em certos instantes noturnos! — exclamou Rodrigo, para interromper a monotonia
da nossa mudez. Do silêncio, da treva, da confusão dos aspectos exteriores, do
adormecimento que parece invadir as próprias coisas inertes, exala-se uma funda
melancolia que nos penetra até à alma e nos desola. E não sei que especial
estado emotivo faz com que apenas recordemos o que na nossa existência há de
amargo, de desgraçado, de aflitivo!...
— Assim é, com efeito... — atalhei eu,
com a imaginação perdida em outras evocações e sem refletir nas palavras do meu
amigo.
— Repara na linha irregular das
construções: há nela não sei quê de sinuoso, de agressivo, de irritante, que
nos exacerba até ao desespero. Os prédios em que um derradeiro clarão incendeia
os vidros das janelas, semelham caveiras sorrindo, desdentadas e torvas, na
penumbra. Estas casarias abismadas na solitude constituem cenário magnífico
para um conto de Edgar Poe ou de Hoffman. Nem um riso claro vibrando na pacificação envolvente
como à primeira nota idílica duma canção de amor, nem uma fugaz palpitação de
vida... É tudo extático, parado, morto. E, no entanto...
Por vezes, silhuetas de vadios ou de
pobres esgueiravam-se rentes às paredes, deslocando-se apressadamente. Raros
carros passavam, ao galope de cavalos cansados, num grande estrépito de
ferragens, deixando entrever de relance brancuras de formas femininas, perfis
suaves e sorridentes recortando-se com doçura na misteriosa meia tinta da
luminosidade das lanternas.
— No entanto?... — disse eu,
interrogando Rodrigo.
— No entanto — reencetou ele, cofiando a
barba negra e cerrada — estas noctívagas paisagens citadinas são
maravilhosamente sugestivas para os homens de fantasia e de sensibilidade.
Neste momento incerto em que vivemos, quantos dramas, quantas tragédias,
quantas ternuras, quantos lirismos comovidos, quantas misérias, quantos risos e
quantas lágrimas se escondem nessas moradas que julgamos mergulhadas em quietude
e na plena inconsciência do sono! Vou pensando nas infâmias, nas vilezas com
que hoje foi comprado o jantar de muitas famílias; nas angústias inenarráveis
com que os vencidos estarão cogitando no pão que amanhã hão de almoçar; nos
crimes com que os egoístas formam o seu bem-estar; nas mentiras que neste
minuto supremo maculam a boca divina das mulheres apaixonadas; nos falazes
sonhos amorosos que vão sonhando as virgens adolescentes; nos olhos queimados
pelo fogo do pranto; nas ilusões caídas sem chegarem a florir; nas dores
ocultas que escolhem a tranquilidade da noite para soltarem o seu grito rouco
de socorro — e a flor do sentimento fecha as pétalas no meu peito.
— Na verdade, Rodrigo, eis aí um lúcido
resumo da atormentada luta numa desvairada e enorme aglomeração humana! — acudi
eu. As cidades são como aquele livro fatídico de que fala Ralph Emerson. A mão
dos seres conscientes abre-o com sofreguidão, volta uma página luminosa e logo
uma página sombria surge, tenebrosa, enigmática e terrível!
— Nas cidades, efetivamente, a sombra e
a luz são inseparáveis, andam sempre unidas, simbolizando a alegria e o
sofrimento, as fomes e as abundâncias, as sodas e os farrapos, as purezas
angélicas e as devassidões monstruosas, a lama e o ouro, as ascensões até aos
astros e as quedas até aos charcos... O mundo é pavoroso, e conhecê-lo em todos
os seus espetáculos será uma tortura desfibrante para as almas dotadas de
finuras de subtileza sensitiva.
— Aí estás tu com os teus negros pessimismos!
— atalhei eu.
— Na realidade, não poderás chamar-me “Cândido
ou o Optimismo!” — respondeu Rodrigo ironicamente.
— Decerto, decerto! Mas outrora, quando
eu subia à tua trapeira para conversarmos durante alguns minutos com o doce
espírito de Maine de Biran, tinhas uma concepção mais risonha da vida.
— Que queres? Os anos, a experiência, os
desenganos!... E, depois, os dons de observação e de análise, que só muito
tarde se revelaram na minha inteligência, secaram-me, estragaram-me,
tisnaram-me a mocidade do coração...
Caminhando constantemente ao lado um do outro
e sentindo sobre os ombros o peso duma fatalidade a que não podíamos fugir,
tínhamos recaído na nossa mudez, porque a conversa principiava a fatigar-nos.
Rodrigo exilava-se, talvez, para o passado, a relembrar uma jovialidade
extinta, a sua confiança morta, uma promessa de ventura que o traíra: e eu
reavivava o tempo saboroso e inolvidável em que o havia conhecido, enérgico,
viril, continuamente enredado em meigas aventuras para que era arrastado menos
pelo ardor sensual do que pela romântica esperança de encontrar a doce mulher
superior em que a sua ternura cristalizasse. Como, porém, nunca a encontrou,
dos dias remotos apenas lhe restava uma indecifrável saudade que excitava o seu
padecimento de homem entrado no entardecer dos quarenta anos.
Rodrigo era, então, culto, apaixonado,
lia os moralistas, os poetas líricos e comovia-se profundamente com a música de
Schubert. O instinto do amor era nele tão vivo que se na rua, no passeio, numa
reunião amável, numa soirée, uns olhos femininos e pensativos o fitavam mais
demoradamente, logo a sua ansiedade de carinho, a sua sede de interesse
emotivo, o sobre-excitavam, fazendo-lhe perder o senso da realidade e das
conveniências sociais. Nesta intensa e permanente tempestade sentimental se
queimou, perseguindo sempre uma quimera que nunca pôde alcançar. O outono da
sua existência vinha encontrá-lo pessimista.
Imersos nestas divagações, entramos, sem
dar por isso, numa ruela envolvida em treva e ermo. Cães vagabundos revolviam,
com o focinho, os montes de lixo arrumados aos cantos; gatos de olhos fosforescentes
espiavam a calçada.
— Isto é lúgubre, lúgubre! — bradou
Rodrigo.
Aceleramos a marcha para sairmos depressa
do beco sinistro; e inesperadamente, ao dobrarmos a esquina, uma descarnada mão
hesitante, surdindo de dentro dum xale roto, estendeu-se para nós e tremeu um
momento no ar, ao passo que uma voz enfraquecida choramingava:
— Esmola, pelo amor de Deus!... Paramos,
desorientados. Rodrigo procurava nervosamente, no bolso do colete, placas de
cobre: a pedinte, respirando com dificuldade, conservava a mão estendida, numa
súplica, fixando o meu amigo com uns olhos em que dardejava um brilho de febre.
Quando ele deixou cair sobre os magros dedos que tremiam o dinheiro, a mesma
voz murmurou com brandura e reconhecimento:
— Então, seja por alma de quem lá tem, Sr.
Rodrigo!...
Perturbado, o meu amigo que dera já
algumas passadas para a frente, voltou atrás com surpresa, aproximando-se do
vulto desconhecido e inquirindo:
— Como sabe o meu nome? Quem é você?
A ponta do xale com que a mendiga
abafava o rosto desceu até ao peito e uma face emagrecida, de mulher ainda
nova, apareceu. Na soturnidade da noite, essa pobre face de tísica tinha uma
brancura de papel e toda a vitalidade da pedinte ignorada parecia concentrar-se
no olhar aceso penetrante.
— E Sr. Rodrigo não sabe o meu nome? Ora
veja se se recorda...
O meu amigo, enquanto eu, comovidamente
contemplava a cena estranha, curvou-se a observar o rosto doente e emaciado que
sorria, e gritou:
— Pois és tu, Maria Rosa? És tu?...
— Sou eu!
— E como chegaste a esta miséria, a este
abandono?
— Os médicos que me tratam por caridade
dizem que eu estou tuberculosa... E estou! Olhe que isto vai apagar-se!...
Tenho cá por dentro um frio, um frio!...
Rodrigo, apiedado, tirou a carteira,
desdobrou uma nota que entregou a Maria Rosa — que queria beijar-lhe as mãos
por tanta generosidade — e limpou uma teimosa lágrima que lhe tremia nas
pálpebras.
— Vou ter que comer para uma semana! —
soluçou ela.
— Mas, como foi, como foi?... —
gaguejava Rodrigo sem encontrar uma frase consoladora para a penúria que
inesperadamente se lhe atravessava no caminho.
— Ora!... Como foi!... — respondeu Maria
Rosa
Rapidamente, enxugando os olhos rasos de
água, contou-nos a sua história. Enquanto teve saúde e beleza, viveu no luxo e
na fartura, passando duns amantes de acaso para outros. A sua juventude esplendia,
a sua graça iluminava-a, era apetecida, fora talvez amada um dia. Nunca se
preocupou com o futuro.
— Quando se é moça — comentava Maria
Rosa — não se pensa no que há de vir.
Mas a sua formosura desbotou-se, como
uma rosa crestada pelo sol, começou a ser desdenhada e repelida, a fome bateu à
sua porta. Foi vendendo alguma rara joia, que representava o preço dos seus
beijos, empenhou as roupas, empenhou o próprio mobiliário da sua casa e o leito
em que dormia, quando na sua existência de vergonhas, de baixezas, de
humilhações, se levantava uma aurora espiritual de repouso e de comiseração.
Esta decadência fora agravada pela tísica, que a roía interiormente, que lhe
dilacerava o pulmão desfeito nos arrancos violentos da tosse. Para se alimentar,
como já ninguém a queria, desceu à rua, de noite, esmolando. E ia pendendo para
o descanso ambicionado do coval, num cemitério, aquele corpo que fora lindo e
perfeito.
— Qualquer dia, porém, não posso
levantar-me da enxerga para vir mendigar, e lá morrerei sozinha e esquecida, eu
que dei a minha mocidade e a minha beleza aos outros! — concluiu Maria Rosa,
num sorriso doloroso.
Comovido, Rodrigo apontou na sua
carteira a morada da enforma, despediu-se dela e puxando-me pela manga do
casaco, exclamou:
— Vamos!... Anda daí!...
Largo tempo deambulamos pelas ruas
solitárias, sem reatarmos o fio da conversa tão dramaticamente cortada.
Tínhamos ambos medo de avivar emoções que nos sobressaltassem; mas, a certa
altura, foi-me impossível conter a curiosidade que me espicaçava e murmurei:
— Rodrigo, quem é esta Maria Rosa?
— Uma tuberculosa que, a horas mortas,
pede o seu escasso pão à caridade que passa. Não a ouviste? — respondeu ele, de
mau humor.
— Mas quem foi antigamente?
Insistiu ainda um instante no seu
silêncio: mas, tomando uma resolução decisiva, acrescentou:
— Ah! antigamente... Estou a
experimentar um secreto pudor em te revelar o que sei acerca daquela desditosa
rapariga. Por quê? Talvez que eu seja também um pouco culpado no seu infortúnio...
Contudo, para que hei de eu ter segredos para ti, que es o meu melhor amigo e,
certamente, o amigo mais íntimo? Ouve lá...
Acendi um cigarro, enquanto Rodrigo
reconstituía as suas velhas e dispersas recordações. A cidade ressonava
profundamente, numa imobilidade de monstro que faz a sua brutal digestão.
— Ouve lá... Maria Rosa foi a Musa da
juventude, nos meus tempos de estudante. Não existiu água-furtada onde houvesse
livros e um rapaz preparando -se, pelo estudo, para as asperezas da vida futura,
que ela não alegrasse com a sua gracilidade, com o encanto da sua ternura, com
a maravilhosa poesia do seu corpo de flor humana. Nas nossas ruidosas ceias,
quando havia dinheiro, coroávamo-la de rosas à moda grega, pedíamos-lhe a
inspiração para os nossos poemas e pedíamos-lhe beijos para a nossa ilusão
amorosa. Também nas áridas páginas dos meus livros a sua imagem gentil se
iluminou um minuto. Foi célebre entre a boemia da cidade há seis, há dez, há
quinze anos; e, por minha parte, não tendo remorsos, porque fui eu, porventura,
um dos que melhor a trataram, um dos raros que se compadeceram com a amargura
da sua sorte. Perdi-a de vista depois que acabei o meu curso de engenheiro, que
não me serve para nada, e que principiei a gastar em viagens, em loucuras, em
vãos caprichos, a herança paterna. Julguei que tivesse morrido, e eis que, de
súbito, ela reaparece, ainda viva, mas tropeçando na terra solta das sepulturas...
— Que destino! — interrompi.
— E, apesar disso, queres que eu seja
optimista. Não tinha esta infeliz rapariga direito ao seu quinhão de sol e de
felicidade?"...
Insensivelmente havíamos chegado a casa
de Rodrigo. Detivemo-nos. Já com a chave na fechadura, o meu amigo disse:
— Hei de ir ao enterro de Maria Rosa e
hei de pôr-lhe um orvalhado ramo de violetas sobre a cova... Ela é mais uma das
minhas ilusões que se some...
Entrando no portal ainda bradou:
— Amigo, na nossa idade, como o amor
envelhece e morre!
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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