Mors amor
A criança que toda a santa manhã andara
brincando, contente como uma ave que um dourado sol de primavera acordasse
entre as ramarias em flor, ao alvorecer da luz, entrara em casa com as faces escarlates
e os olhos rutilantes de febre, murmurando na sua débil voz infantil:
— Mamã, dói-me muito...
E apontava para a cabeça com os dedinhos
trêmulos.
Maria Eduarda, inquieta, tomou-a nos
braços, pegou-lhe ao colo, amimou-a com palavras que o temor sobressaltava.
Pousando-lhe a mão sobre a testa, assustou-se. A pele ressequida do doente
escaldava.
— É aqui que te dói, meu filho? —
preguntou.
— É!... — gemeu o enfermo.
As suas pálpebras cerravam-se, pesadas
de sonolência, e o rubor das faces aumentava. Respirava com esforço,
agitadamente.
— Andaste ao calor, não é verdade?
— Andei...
— Não é nada, não é nada. Amanhã estarás
melhor. Agora, vais para a cama...
Com infinitos cuidados, fazendo mais
leves os seus dedos para não magoar a carninha tenra do filho, Maria Eduarda
despiu-o docemente e foi deitá-lo. Sobre a alvura do travesseiro espalhou-se
uma nuvem de cabelos louros e anelados que enquadravam a fronte angélica do
pequenino, destacando-se vivamente na brancura da roupa. A frescura dos lençóis
pareceu reanimá-lo um momento, porque, fitando o olhar na mãe, teve um ligeiro
sorriso dolorido.
— Estás assim mais sossegadinho, amor?
— Estou. Mas não se vá embora, não saia
do quarto. Tenho medo...
— Descansa, vá. Não te deixo só — prometeu
ela, afagando-lhe os cabelos e beijando- o longamente no rosto.
Chamou a criada, mandou procurar um
médico a toda a pressa, porque a respiração do enfermo cada vez se tornava mais
ofegante, como se um grande peso lhe esmagasse o peito. Depois, colocando uma
cadeira perto da cabeceira do leito, sentou-se. Tinha fechado a janela que dava
para o quintal, para que a crueza da claridade não ferisse a vista da criança,
sofredora o paciente. No compartimento espalhava-se uma penumbra veludosa que
exagerava, alongava as linhas dos móveis. Numa jarra de vidro azul, diante da
imagem da Virgem, morriam violetas que vagamente perfumavam o ambiente...
Com a face inclinada na palma da mão,
Maria Eduarda meditava, enquanto ia esperando pelo médico. Envolvia constantemente
o pequeno num olhar de afeto e de indizível compaixão e mentalmente pensava na
injustiça de um Deus que fazia sofrer os sores virginais, limpos de toda a
culpa e que a vida não tivera ainda tempo de macular dos seus males
inevitáveis, dos seus vícios impuros, dos seus crimes.
— Antes fosse eu a padecer, meu Deus,
que sou mais forte e tenho mais pecados — monologava ela, com as lágrimas
caindo, redondas e brilhantes, pela cara macerada.
De fora, da rua, chegavam aos seus
ouvidos rumores de conversas, o estrépito dos carros que passavam a galope nas
calçadas, o canto idílico dos pássaros escondidos na folhagem dos arvoredos,
enquanto a tarde melancolicamente descia: — e todos estes ruídos se escoavam
com brandura sem que Maria Eduarda lhes ligasse a menor atenção. Que lhe
importavam as manifestações ruidosas da existência descuidada e feliz que
transbordava ao ar livre? O seu interesse supremo confinava-se totalmente no
estreito espaço marcado por quatro paredes, onde havia um leito inocente e sobre
ele um corpinho frágil, torturado pela dor, corpo que ela gerara no seu ventre,
que alimentou com o branco leite imaculado dos seus seios e em que punha a sua
maior ilusão de mulher desgraçada e o seu admirável orgulho de mãe!
— Ah! Se ele morresse, justos céus, se ele
morresse!... — murmurava Maria Eduarda, enclavinhando as mãos com desespero.
De novo se curvava, brandamente, sobre o
travesseiro, beijando o filho com infinita suavidade. A confiança
apaziguava-se. Não morreria, decerto, não podia crer em tamanha crueldade.
Bastante havia padecido já, em seis anos de casada, resignando-se às maiores
humilhações, devorando em silêncio a angústia do seu abandono, curtindo as
maiores amarguras, sem se queixar contra a tristeza dum destino que não merecia.
Deus restituiria ao seu amor, à sua purificada veneração materna, já sarado e
vigoroso, aquele pobre filho que, poucas horas antes, enchia a casa inteira da música
inefável do seu riso infantil...
O doente fez um movimento, descerrou as
pálpebras, fitando a mãe com um olhar vítreo... — Ainda te dói, amor? —
inquiriu ela com solicitude.
— Dói-me muito! — sussurrou debilmente o
enfermo.
A criada abriu mansamente a porta do
quarto, aproximando-se de Maria Eduarda na ponta dos pés, e disse:
— Minha senhora, o médico está lá em
baixo.
— Mande-o subir, imediatamente.
Levantou-se sem lazer barulho, foi ela
mesmo esperar o homem providencial de quem talvez dependesse a saúde, a
salvação de seu filho pequenino: mas o doente, pressentindo-lhe os movimentos,
outra vez pediu:
— Não fuja, mamã... Venha para aqui.
Tenho medo!...
— Espera um pouco, amorzinho. Volto
já... O médico entrou, pousando o chapéu e a bengala sobre uma cadeira, fora do
quarto, tomou o pulso da criança, arregaçou-lhe as pálpebras, observou-o
demoradamente e esboçou um imperceptível gesto de desalento.
— É grave a enfermidade, senhor doutor?
— preguntou Maria Eduarda.
— Tem alguma gravidade, minha senhora.
— Mas, está tudo perdido? — acudiu ela,
com um soluço mal reprimido e agarrando-lhe nervosamente o braço.
O médico teve piedade da mãe desditosa,
hesitou na resposta, procurou tranquilizá-la.
— Tudo perdido, ainda não... Nesta
idade, os organismos possuem um enorme poder de resistência... Enquanto vivem,
resta sempre uma
ilusão... Tenha coragem!
Pediu papel, receitou, deu instruções acerca
da maneira de aplicar os medicamentos e ordenou que, se os sintomas do mal se
agravassem,
o fossem chamar sem demora. Maria
Eduarda escutava-o, retendo a custo as lágrimas.
— Não chore! — murmurou o clínico. Por
enquanto, não há razão para isso... Não desespere!
— Que há de fazer uma desditosa mãe,
senão chorar, senhor doutor?
— Mas, se eu lhe digo que confie!...
Despediu-se rapidamente, pegou no chapéu
e na bengala, desceu as escadas e saiu, enquanto Maria Eduarda, depois de ter
mandado a criada a uma farmácia, voltou a sentar-se junto do leito do filho, aconchegando-lhe
a roupa à volta do corpo e acariciando-o.
— Mama, quem era aquele homem? — interrogou
o doente.
— Um nosso amigo, filhinho. Veio a nossa
casa, para fazer-te bem.
— Tenho medo, tenho medo...
— Medo de quê? Estou perto de ti, vês? Dá
cá a tua mão... Assim!... Agora, ninguém virá. Dorme um bocadinho, para
melhorares.
Sorrindo doloridamente, com a sua mãozinha,
que queimava, entre as da mãe amorosa, a criança fechou os olhos para dormir.
Um suor glacial porejava-lhe da fronte; a respiração era sibilante...
Baixavam apressadamente as sombras noturnas.
Já pelas ruas se acendiam os candeeiros de iluminação pública. O ruído exterior
afrouxava. Então, Maria Eduarda, com os olhos rasos de água e a descrença na
alma, começou a evocar o seu infortúnio, que parecia não ter fim. O passado
iluminava-se subitamente na sua memória, numa rápida sucessão de quadros. Lembrava-se
dos menores detalhes da sua vida, da confiança e da simpatia com que fora
levada para Vicente, por um ardente e sincero impulso de amor, da doçura, da
felicidade indizível dos seus primeiros anos de casada. Em saborosos meses, que
tão ligeiramente deslizaram e que atrás de si apenas deixaram a saudade, vivera
toda a ventura — uma ventura que chegou a julgar perpétua e que tão rudemente
havia de mentir-lhe. O filho, Luís, nascera dois anos depois do seu casamento e
foi como se no seu lar sereno e florido se erguesse uma aurora! Ainda agora
via, numa aleluia de esplendor, Vicente dobrar-se sobre o berço em que o
pequenino vagia, agitando os bracinhos rosados, para pousar-lhe um beijo doce
na face, que era gorda e que se vincava em covas, quando ele sorria! Considerou
Maria Eduarda que aquele fraco ser teria a força necessária para prender para
sempre o marido à esposa e que enlearia o amor de ambos em tão estreitos laços
que ninguém seria capaz de os desatar. Entre uma adoração que parecia
indestrutível, desabrochara a graça, o encanto, a ternura, a beleza de uma flor
pura!... Sonhos vãos...
Maria Eduarda foi interrompida nas suas
divagações pela criada, que regressava com os medicamentos receitados pelo
médico. Despertou o filho, que acordou alvoroçado e dizendo, no delírio da
febre, palavras sem nexo, o que a alarmou. Fê-lo tomar uma colher de remédio. O
doente insurgia-se, mas ela, meigamente, venceu a sua teimosia.
— É para sarares e voltares aos teus
arcos, aos teus cavalos, aos teus soldados de chumbo, meu amorzinho.
A noite fechara-se completamente. Sob um
céu profundo e cheio de estrelas, que dardejavam, a cidade dormia, mergulhada
em sombras densas. Maria fechou o bico de gás, acendeu um candeeiro com abajur
verde, embrulhou--se num xale de lã e foi estender-se num canapé estofado que
mandara pôr à beira da cama do enfermo. A solidão pesou então mais duramente à
sua roda. Enquanto em tantas outras vivendas a infância dormiria um sono
inalterável e pacífico, velada pelas aparições siderais, o seu pobre filho,
contentamento único de lancinantes desventuras, padecia amargamente, sem que
ela pudesse suavizar-lhe o padecimento. Mãe de Misericórdia! Como a sorte, era
áspera para certas criaturas! E por que, por quê? Nunca fizera mal a ninguém,
socorria as mãos trêmulas dos mendigos que batiam à sua porta donde a alegria
fugira, devotara-se aos outros, fora uma sacrificada que se não insurgira
contra os sacrifícios, tornara, na desdita, mais funda e perfeita a sua crença
religiosa. Tudo inutilmente! No seu caminho só encontrara a desilusão, o sofrimento,
o abandono. Àquela hora adiantada e solitária da noite, seu próprio marido
folgaria com a amante, por quem a trocara, não porque fosse mais amado, mas
pela sedução duma formosura que a sua perdera, queimada pelo fogo das lágrimas.
— Mamã, tenho medo! — gemera Luís,
revolvendo a cabeça sobre o travesseiro.
Maria passou-lhe levemente a mão pela
face, ameigando -o e murmurando:
— Sossega, meu amor, sossega!...
Novamente, quando o pequenino recaiu na sua sonolência, Maria Eduarda recordou
vários episódios da sua vida extinta — uma vida que ia já muito longe e de que
ainda conservava uma lembrança grata como um perfume... Vicente começara a ser
menos terno com ela justamente meses depois do nascimento do filho. Entrava em
casa a desoras, preocupado, respondendo com irritação às suas preguntas,
falando-lhe com enfado ou desabridamente, repelindo o seu afeto com tédio. Se
ela lhe fazia alguma observação ou formulava uma vaga queixa, exasperava-se,
praticava desatinos ou ria-se sarcástica mente. Uma vez dissera-lhe, mesmo, que
se não estava bem, era pela porta que se saía para a rua. Apesar disso, Maria
Eduarda suportava-o, procurando o desafogo no pranto; e, estreitando o filho
nos braços, exclamava:
— Só te tenho a ti neste mundo, meu amor!
Por fim, Vicente abandonou definitivamente o lar, indo viver com a amante, uma
costureira que seduzira e que instalara numa vivenda próxima, com elegância e
luxo. A Maria Eduarda enviava mensalmente uma pequena mesada que ela aceitava,
porque seu pai, um modesto empregado público, não lhe legara qualquer fortuna,
ao morrer. Daí em diante, todo o seu amor, todo o seu sentimento afetivo, todo
o seu espírito de devoção, se concentraram nesse filho que era o seu enlevo, a
sua companhia, o seu futuro. E agora, esse mesmo filho, por quem ela daria o
sangue das veias, a luz dos olhos sem um minuto de hesitação, parecia querer
fugir-lhe também.
— Senhor, Senhor, tem caridade! —
soluçava ela angustiadamente.
A noite foi longa e atribulada. Maria
Eduarda, que de duas em duas horas, tinha de medicar o doente, não repousou um
momento. A claridade matinal veio surpreendê-la pálida, com os cabelos em
desalinho e os olhos encovados. Apagou a luz, abriu uma frincha da janela,
espreitou Luís que agitava as mãos, inquietamente... Alvoroçada, quis
despertá-lo da sua modorra, mas a criança, descerrando as pálpebras, mostrou os
olhos revirados.
— Jesus, Jesus! O meu filho morre, Maria
Santíssima!...
Os seus gritos alarmaram a habitação, acudindo
a criada.
— Vá chamar o médico! Depressa!... E
olhe!... Procure também o senhor, na casa em que sabe, e diga-lhe que o menino
está a morrer!...
Ajoelhando junto do leito, num choro que
a transtornava, implorou:
— Luís, meu filhinho! Não morras! Não
morras!...
Mas o doente continuava a agitar as
pobres mãozinhas, revirando os olhos e torcendo a boca, sem a ouvir. Quando o
médico chegou, Maria Eduarda, correndo para ele, exclamou:
— Salve-o, Sr. Doutor, tenha pena de
mim!... Ele afastou-a brandamente, dizendo:
— A meningite! A meningite!...
Tremia-lhe uma lágrima ao canto dos olhos.
— Não há nada a fazer, minha senhora. A ciência
nada pode contra desígnios mais altos!
A manhã resplandecia. Num céu
translúcido brilhava um sol de ouro, com um brilho de luz intensa incidindo
sobre um cristal.
— Nada a fazer!... Nada a fazer!... —
repetia ela, num alheamento de loucura.
Com efeito, o enfermo, em seguida a uma
convulsão mais forte, ficou imobilizado, morto sobre o leito. Em breve a sua fronte
se cobriu duma palidez de cera. O médico saíra, desorientado. Enoveladas sobre
a roupa da cama, Maria Eduarda e a serva — que tinha voltado — lamentavam-se em
altos brados, quando de súbito Vicente, sem gravata, com os cabelos
desmanchados, entrou no quarto onde o filho acabara de expirar.
— Luís, Luís! — gritou.
— Morreu agora mesmo! — soluçou Maria
Eduarda, apertando nervosamente o pequenino cadáver nos braços. Já não chegaste
a tempo de vê-lo com vida...
Vicente, de pé, com uma tremura na face,
contemplava a cena dramática. Sentia na garganta uma constrição que o sufocava.
— Estou só, só! — bradou Maria Eduarda —
mais só do que os enjeitados... De resto, eu sou também uma enjeitada. Só tu me
não enjeitaste, meu amor! — dizia ela agarrada ao filho e cobrindo-o de beijos
e de pranto.
Vicente rompeu num fundo choro. Com os
olhos enevoados, avançou lentamente para o leito, beijou o morto, e voltando-se
para a esposa, como se na sua alma se fizesse, de repente, uma revelação,
soluçou:
— Maria, perdoa-me!...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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