6/17/2019

Meigo (Conto), de Pedro Ivo


 Meigo

CAPÍTULO 1
Tinha eu vinte anos e não tinha vinte réis no bolso, quando me aconteceu o que lhes vou contar.
Andava no ano cirúrgico, a tombos com a anatomia; tinha segura a subsistência de um mês, que pagara adiantado; possuía, fora do alcance dos meus condiscípulos, duas libras de tabaco e quinze livros de mortalhas; as solas do meu único par de botas prometiam longos dias de vida; o sol como que se obrigara para comigo a não causar embaraço à roda-viva em que andavam de mim para a lavadeira e da lavadeira para mim duas camisas, que me restavam; o chapéu não estava ruço de mais, nem o casaco demasiado no fio — vivia feliz e sem cuidados.
Não tinha dinheiro, nem comodidades, nem cavalos, nem luxo; mas tinha vinte anos, um coração alegre, trinta e dois dentes afiados como navalhas de barba, um estômago que digeria os alimentos de... empreitada, que me forneciam pernas de ferro e saúde do mesmo metal... Que mais se pode querer aos vinte anos?
E, para cúmulo de felicidade, tinha a janela das águas-furtadas em que vivia, janela cujas portas já não sabiam fechar-se, porque os gonzos, por falta de exercício, tinham perdido o movimento.
Não sei se, mais tarde, alguém se lembrou de curar aquela paralisia dos gonzos; para mim seria isso impossível, pois nem três mesadas bastariam para comprar o azeite necessário a tal empresa.
Que mágica janela!
No Inverno, como que se alargava para deixar coar através dos vidros o luar das límpidas e formosas noites de Janeiro; no Verão, quando eu me esquecia de descer a vidraça, perfumava-me o quarto com os aromas do laranjal florido, que assombrava o jardim do palacete vizinho.
O dono do jardim, que não chegava à varanda e dormia com as janelas fechadas, estava convencido de que o jardim era realmente dele; eu, porém, que de dia lhe namorava as flores e à noite dormia com a janela aberta, para receber as saudades que elas me mandavam, entendia que o jardim era meu.
Que noites de julho, passadas a essa janela, em mangas de camisa, com as costas obstinadamente voltadas para o candeeiro, que crepitava censuras, e para o compêndio, que adormecera aberto, desesperando de me fazer dormir a mim!
Por uma dessas noites, encostado ao peitoril, e emendando, por assim dizer, os cigarros uns aos outros, deixava eu errar a vista pela floresta de chaminés, que se destacavam no ar, sobre os telhados das casas que dali se viam, e corria-me à rédea solta a vagabunda, a folle du logis — a imaginação, enfim.
Quem, depois de duas horas de meditação, poderá narrar por ordem todas as loucuras que lhe atravessaram o cérebro?
Ao cabo de longo cismar, os meus olhos começaram a contaras luzes, que brilhavam como pirilampos, no fundo negro das casas.
Pouco e pouco essas luzes foram-se extinguindo uma a uma, e ficaram apenas duas, em pontos diametralmente opostos, e a enorme distância uma da outra.
A quem alumiarão?
Traçado este ponto de interrogação no espírito, a vagabunda, que eu, por assim dizer, travara, deu um salto e partiu a toda a brida, talando em todas as direções o campo infinito do ideal.
"Serão costureiras, que terminam algum vestido?... Pobres pequenas! Avaliarão ao menos as meninas, para quem trabalham, quanto custa àqueles dedos de fada essa tarefa, que tem por fim torná-las a elas formosas?
Será desgraçado poeta, tão alheio ao século, que ainda não descreu da ode ou mete ombros ao primeiro verso — da vigésima estrofe do sexto canto de épico poema?
Serão mães, que velam filhos enfermos; pobres velhas a braços com a asma; criminosos, a quem as trevas engrossam o remorso?"
— Serão... o que quiserem ser! — bradei eu de repente, agarrando a tresloucada, que parara a tomar fôlego para novas correrias.
Neste momento a luz do candeeiro começou a crepitar tão raivosa, que o pobre compêndio acordou e chamou-me.
— Não há remédio! — disse eu espreguiçando-me, e ia a retirar-me da janela, quando vi que uma das duas luzes se movia.
Soou a terceira das doze badaladas da meia-noite no relógio da Sé.
A luz continuou a mover-se e acabou por aparecer francamente à janela, a que assomara um vulto, que eu não podia distinguir se era de homem, se de mulher.
Lançando instintivamente os olhos para a outra janela, notei o mesmo manejo de luz e verifiquei a aparição de outro vulto!
Duas luzes, que brilham em face uma da outra e aparecem ao mesmo tempo à frente das janelas... meia-noite que soa...
Decididamente, aquelas duas janelas entendem-se!
Como se quisessem tirar-me de dúvidas, as luzes entraram de fazer movimentos combinados; dir-se-ia que se cumprimentavam.
Estava eu estudando aquela telegrafia, quando um ligeiro ruído me chamou a atenção.
Investiguei o espaço e vi um ponto negro, que se dirigia para mim.
— É um morcego, que vem esbarrar-se contra os vidros — pensei eu, sem me lembrar que o voo — do morcego é silencioso.
Ora é preciso dizer-lhes que eu tenho um horror instintivo do morcego.
Eu odeio o rato, que me não deixa dormir, entregue à sua obra de destruição, em que prossegue, apesar da bota que arremesso para o sítio de onde vem o ruído, e gelo ao aspecto desse rato alado, que tem a consciência de não merecer que o solo alumie; aborto condenado às trevas, sacrílego vampiro, que esvoaça às noites por entre as colunas e recôncavos do templo, profanando a alâmpada e extinguindo a luz, que se espelha nas lágrimas de sangue que correm ao longo da face angustiada do Cristo.
Receoso do repelente contato, recuei, mas o vulto negro, em vez de bater nos vidros da janela, entrou por ela, esbarrou-se contra a parede fronteira e caiu de chofre sobre a minha cama.
— É um mocho! — exclamei eu aterrado, ao ver que, pelo tamanho, não podia ser morcego.
Ora é preciso dizer-lhes que o mocho me merece especial antipatia.
Além de ser, como o morcego, um parasita de igreja, acho-lhe um certo ar refalsado, o que quer que é de beato fingido, de gato-pingado, com que embirro solenemente.
Se os outros animais são, como o homem, obrigados a exercer uma profissão, o mocho deve ter, com certeza, casa de prego e emprestar dinheiro a quatro e cinco leis.
Ora reparem bem nele, e verão que me não engano. Óculos enormes, nariz de cavalete, casaca arruçada pelo tempo, pernas curtas e fortes, unhas curvas e sujas — é um usurário chapado.
Eu detesto o mocho!
— Pois dou cabo dele! — disse eu, fechando a janela e agarrando a bengala.
Peguei no candeeiro, e erguendo o instrumento de morte, caminhei para o inimigo...
A luz espalhou-se sobre a cama, e a arma caiu-me da mão.
— Que lindo pombo preto!...
E era, realmente, um lindo pombo, destes que à luz do sol despedem do dorso reflexos metálicos, cambiantes.
E pobrezinho estava tão cansado, que se deixou agarrar sem reagir.
Pousei o candeeiro sobre a banca e pus-me a analisar a presa.
Nisto, os meus dedos, introduzindo-se por baixo de uma das asas, encontraram um corpo estranho; era um papel atado por uma linha.
O pombo defraudava a fazenda; era um carteiro de contrabando.
Apoderei-me do bilhete, apesar de duas picadelas que o fiel mensageiro me deu, em defesa do que ele, naturalmente, considerava depósito sagrado.
Soltei o pombo, que voou para a janela, onde se empoleirou, e abri o bilhete.
Eis o seu conteúdo:
"Elisa:
Foi mais um dia perdido!... Tudo se conspira contra nós, e começo a perder a esperança de conseguir o que tua mãe exige de mim, para consentir na nossa felicidade.
Que mais te hei de eu dizer, se, no pouco que aí fica dito, te causo uma noite — de insônia e de lágrimas?!
Adeus!... O nosso confidente está quase a acabar a sua ração.
Adeus!... Amo-te.
Alberto."
— Quem será este Alberto?... E quem será aquela Elisa?... — perguntava eu, voltado para o pombo, que me mirava, espantado, com os seus grandes olhos orlados de encarnado. — Deixo partir o correio... não deixo... — comecei eu a dizer de mim para mim.
Acerquei-me da janela. Uma das luzes tinha desaparecido; a outra movia-se agitada por mão assustada e ansiosa.
— Compreendo — rosnei eu. — O Sr. Alberto escreveu aquela choradeira, botou-a ao correio, fechou a janela, apagou a luz e está já a dormir como um porco, enquanto que — a pobre da rapariga está ali a mirrar-se, agitando o farol, na esperança de atrair o pombo transviado. Nada! Isto é negócio de consciência, um atentado contra o direito das gentes! Soltemos o pombo!... Anda cá, amor — continuei, ameigando a voz para não assustar a íris. — Anda cá, tolinho... Tu gostarás de pão, lambareiro?...
E, abrindo um armário de pinho, tirei um bocado de pão, que esfarelei. Lembrei-me de lhe oferecer conhaque ou de lhe manufaturar um grogue, pois para isto tinha eu sempre o preciso no quarto, mas tive medo que ele aceitasse e calei-me.
Parece que o pão não era alimento desconhecido para ele, porque o pombo voou imediatamente para cima da banca, onde eu o tinha colocado, e começou a cervir-se sem cerimônia.
— Ora já basta, amigo — disse eu ao cabo de alguns minutos.
E, agarrando o trânsfuga, amarrei-lhe de novo o bilhete debaixo da asa, abria janela e soltei-o.
Passados instantes, a luz retirava-se e desaparecia.
A mala tinha chegado ao seu destino.

CAPÍTULO 2
Só muito para a madrugada consegui adormecer.
Quando acordei e vi o resto dos farelos de pão, saltei da cama e corri à janela; por mais que fiz, não pude dizer com certeza quais eram as casas em que vira brilhar as luzes.
Fiquei logo de mau humor. Vesti-me, almocei à pressa e fui às carreiras para a escola.
O lente chama-me, dou um estenderete formal e os condiscípulos cravaram em mim olhos de espanto, ouvindo-me dizer em tom raivoso:
— Leve o diabo o pombo!
Andei todo o dia de candeias às avessas.
À noite não saí, e pus-me à janela.
Parecia arte do Demônio!... Havia luz em todas as casas.
— Estes malvados não têm sono! — pensava eu, batendo de raiva com os pés no chão. — Ide deitar-vos, imbecis!... Olhai que são quase onze horas!... Amanhã não há quem vos tire da cama!...
Afinal, como na véspera, as luzes foram-se sumindo uma a uma, mas muito mais vagarosamente, segundo me parecia, e ficaram apenas as duas.
— O pombo não vem... Foi um acaso, uma extravagância de pombo... —dizia eu por entre dentes, em resposta à voz secreta que me dizia o contrário. — Qual vem, nem meio vem!... Foi uma vez a Cascais e nunca mais!... Adeus... Não me importa... Queria ver a continuação da comédia, mas... acabou-se... não tenho ferro...
E tirava o relógio a cada instante e tinha um ferro por aí além!
Ecoou, finalmente, a primeira badalada da meia-noite; as luzes repetiram — a dança da véspera...
— E o pombo não vem... — murmurava eu, com despeito.
E o caluniado, agitando as asas, entrava sem hesitação, e voava direito às migalhas.
Eu tanto não esperava que ele viesse, que até... já tinha esfarelado o pão sobre a banca.
Dizia assim a resposta de Elisa:
"Alberto:
Não imaginas os transes por que me fez passar o nosso confidente!... Levou-lhe meia hora a chegar!...
Queres que te diga?.. Tenho hoje receio de te escrever com a franqueza do costume, porque, já pela demora, já pela maneira diferente por que vinha amarrado o teu bilhete, desconfio que o pombo foi detido na passagem... (Oh! com a breca! — exclamei eu, vendo-me descoberto.)
Coragem, Alberto!... Não desanimes!... A exigência de minha mãe é fundada num louvável sentimento de previdência...
Pode levar tempo a realizar o nosso desejo; mas... não temos nós confiança bastante um no outro?... Valha-me Deus!... Se o pombo se desviasse outra vez... se alguém lesse isto...
Nem me atrevo a escrever mais...
Adeus! Amo-te!
Elisa."
Pobre rapariga!... compreendi o pudor daquela alma, ao saber-se devassada, mas... o mal estava feito.
Tornei a soltar o mensageiro.
No dia seguinte interceptei a seguinte carta:
"Elisa:
O pombo também na volta se demorou mais do que costuma.
Se é uma senhora quem se entrega ao mesquinho prazer de nos angustiar, espero que, ao ler estas linhas, se lembrará — de que despreza todos os ditames da delicadeza.
Se é um homem, dir-lhe-ei que é ridícula essa curiosidade, e criminosa, por ser satisfeita na sombra e com a certeza da impunidade.
Esta carta é mais para ser lida por quem interceptou as outras, do que escrita para ti.
Alberto. "
Pareceu-me quixotesca esta carta, o sangue tingiu-me as faces, a consciência aceitou a censura; mas o amor-próprio assanhou-se, os meus vinte anos riram contrafeitos e eu tive a cruel coragem de escrever na mesma carta de Alberto as seguintes palavras:
"Excelentíssima Senhora:
Não sei se vossa excelência gosta de pombo com ervilhas...
É o meu prato favorito.
Ou vossa excelência convence o Sr. Alberto a contar-me o começo destes amores, a instruir-me sobre a educação dos pombos e a comunicar-me a exigência, de cuja realização depende o consentimento de sua excelentíssima mãe, ou, na volta do correio, depois de amanhã, mando comprar as ervilhas.
Creia-m e de vossa excelência o mais humilde e desconhecido venerador."
No dia seguinte, o mensageiro reconduzia a
carta de Alberto, em que eu escrevera o que
acima fica, sem um único comento da jovem. Elisa deixava a Alberto a decisão de tão momentoso assunto.
À noite recebia eu a seguinte carta do pobre namorado:
"Senhor:
Juro-lhe que dava anos de vida para conhecer quem assim se atravessa entre duas almas que, receosas da terra e dos homens, se comunicam por intermédio da inocência, e através dos espaços do céu.
O senhor foi cruel!...
Eu fui talvez inconveniente; devia lembrar-me que quem tem a coragem de forçar um segredo, mal poderia sofrer a censura que por tal abuso lhe fizessem...
Andei mal; ando hoje pior em me mostrar independente, quando o amor e o sossego — de quem amo me aconselham o papel de suplicante.
Não posso!... Um sentimento, a que o senhor me parece alheio — a dignidade — não mo permite.
Quer conhecera história do meu amor... Vou contar-lha! Conto-lha para que, chegando ao fim, veja bem — o mal que me causa, e conheça — se há ainda um eco qualquer na sua consciência — que, embora o não confesse, são justas as minhas recriminações.
Leia.
Por uma amena tarde de Estio — haverá dois anos — estava eu no meu quarto, em convalescença de prolongada moléstia, quando pela janela entrou o pombo que o senhor conhece.
Aborrecido, e buscando, em vão distrair-me, atravessou-me uma ideia o cérebro.
Ergui-me, fechei a janela e escrevi numa folha de papel:
"Se na casa onde, a estas horas, choram talvez a tua ausência, há uma mulher jovem e bela, leva-lhe os votos de ventura — de um coração que ainda não amou!"
Agarrei o pombo e confiei-lhe a... pieguice, que acaba de ler.
No dia seguinte, com espanto meu, entrava o pombo, como na véspera, portador desta resposta:
"Uma mulher jovem, a quem ainda ninguém disse se era bela, agradece a restituição de "Meigo", cuja ausência lamentava, e retribui os votos de ventura.
Assim se travou uma correspondência, que durou cerca — de dois meses, sem que a palavra "amor"fosse empregada de parte a parte.
Ao cabo de dois meses, pedi à minha incógnita correspondente que me dissesse onde podia vê-la.
Depois de muitas cartas trocadas, em que eu insistia — e ela recusava, veio uma, em que me marcava a missa das onze, nos Congregados, no domingo seguinte, e me dava sinais certos para a reconhecer.
Fui.
Não posso descrever a ansiedade, que me torturava!...
Se era feia?!...
Era... é uma formosura!
Que dulcíssimo prazer me arrebatava a alma, vendo-a ali, de joelhos, estudando ansiosa o rosto de todos os mancebos, sem me poder ver a mim, que a estava observando, — encoberto pelo reposteiro!
A missa acabou por fim; ela ergueu-se, e, ao passar junto de mim, murmurei em voz abafada: "Obrigado!..."
Elisa não pôde reter um pequeno grito; as faces tingiram-se-lhe com o rubor do pejo, e, lançando-me um olhar entre assustado e curioso, aconchegou-se à mãe, e saiu.
Escusado é dizer que a segui.
Começaram, desde então, a falar de amor as nossas cartas.
Eu era guarda-livros de uma casa respeitável e tinha um ordenado subido.
Entendi que não seria repelido, e encarreguei um amigo meu de pedir à mãe a mão de Elisa.
A mãe acolheu-me perfeitamente, e tratávamos já das mil pequeninas coisas, necessárias a quem põe casa, embora modesta, quando, haverá um ano, o negociante que eu servia morreu de repente.
Os herdeiros liquidaram o negócio, e eu fiquei... e estou desempregado.
No dia em que terminaram os meus trabalhos de liquidação, mandava a mãe retirar Elisa da sala em que estávamos reunidos e falava-me nestes termos:
"Alberto!... Sei que é um rapaz trabalhador e honrado, pois, se o não soubesse, não lhe daria minha filha.
Sabe que só à força de economia consigo sustentar a ela e a mim, com a modesta pensão que recebo do Estado?
Enquanto o Alberto não arranjar novo emprego, não é possível pensar em casamento... Procure!
E — continuou ela — perdoe-me o mal que vou fazer-lhe, mas é preciso que o Alberto deixe de vir a minha casa.
Somos duas mulheres sós; o mundo é mau; pode este casamento não chegar a realizar-se... É preciso que deixe de vir aqui!"
Protestos, rogos, lágrimas, tudo tem sido baldado!
A mãe de Elisa é inabalável; eu bato em vão a todas as portas, e as minhas economias desapareceram, fazendo-me antever a miséria num futuro pouco distante.
***
Aí tem a minha história!
Faça — o que entender!
O pobre "Meigo"contraiu relações novas... Depende do senhor roubar a duas almas a única felicidade que lhes resta, fazendo desaparecer o único meio de comunicação que as liga.
Faça o que entender!
Não imploro, resigno-me; não torço, quebro; não vegeto, morro!
Alberto."
Não é possível explicar-lhes a vergonha que senti escaldar-me as faces, o remorso que me estorcia o coração!
Corri à banca e escrevi o seguinte:
"Excelentíssima Senhora:
Perdão para os meus vinte anos, para a minha leviandade de rapaz!...
Não sou mau, sou louco!... Creia-me, por quem é!...
Juro-lhe que "Meigo"entrará no meu quarto e sairá dele sem que a minha mão torne a roçar-lhe as penas!
Peça a Alberto que me perdoe, como eu peço a Deus que lhes conceda a ventura de que tão dignos parecem!..."
No dia seguinte "Meigo"entrava no quarto, trazendo dois bilhetes, amarrados por fora das asas.
Um deles dizia: "Para o desconhecido."Abri-o e li esta única palavra: "Obrigado!"No dia imediato, o pombo trazia igualmente
dois bilhetes, presos da mesma maneira. Peguei no que me era dirigido e li:
"O senhor é bom... Enganei-me... Perdoe-me!
Alberto. "
E o pombo continuou a vir todos os dias ao pão.

CAPÍTULO 3
Correram meses, sem que peripécia nenhuma viesse apressar ou retardar a chegada ou partida do correio.
Fiel à minha palavra, nunca mais tentei devassar os segredos confiados ao voo possante do "Meigo", e só de tempos a tempos a oferta de uma flor ou uma palavra de gratidão vinham pagar-me a discrição.
Permita agora, leitor, que lhe diga de mim duas palavras, que facilitem o desenvolvimento desta narrativa.
Quando, no princípio da nossa conversa, me apresentei sem um vintém no bolso, não tinha eu em vista dar-me por necessitado, pois, pelo contrário, se não — tivesse cinco irmãos, como ainda, felizmente, tenho, seria um rapaz rico.
Filho de um abastado lavrador do Douro, recebia de meu pai uma mesada, que, bem dividida, me permitiria viver modestamente, pondo ainda — de parte, no fim de cada mês, alguns tostões, quando mais não fosse; infelizmente, porém, eu tinha um verdadeiro culto pelas tradições da vida de estudante, e raro era o mês em que no dia 8 o meu dinheiro não estivesse no fim, e em que, aí pelo dia 25 ou 26, eu não fosse fazer uma visita ao Sr. Samuel Gibson, honrado negociante inglês, a quem meu pai vendia o vinho que colhia.
O velho inglês era deveras meu amigo, e se mais vezes me não aproveitava dos frequentes convites que me fazia, para ir jantar com ele e com Miss Alice, sua formosa filha, era porque o mau estado da minha roupa domingueira bradava alto contra o desregramento do meu viver.
Havia ainda outra razão, e era o receio de me enamorar seriamente de Miss Alice, que me honrava com uma amizade a que eu bem desejara poder dar outro nome.
No dia 25 de outubro — lembra-me perfeitamente que era em outubro —abria eu a porta, forrada de baeta verde, que separava o gabinete do Sr. Gibson do escritório onde trabalhavam os empregados, resolvido a fazer uma ligeira alteração no calendário, transformando 25 de outubro em 1 de Novembro, para receber a mesada.
O bom do velho, mal me viu entrar, disse-me com os olhos: "Já vejo a que vem..."e com os lábios: "Ora viva, senhor desertor!"
Balbuciei uma desculpa, falei na carestia das subsistências, no enorme custo dos livros, e acabei por pedir o adiantamento da mesada de Novembro.
Mr. Gibson ria maliciosamente, fazendo-me perder a tramontana, e, quando terminei o meu arrazoado, respondeu:
— Está servido... com uma condição. — E é?... — perguntei eu.
— Ir jantar amanhã comigo... É domingo... Ao domingo não se estuda.
— Com muito gosto — respondi.
— Pois, nesse caso, diga lá fora ao caixa que lhe dê o dinheiro — replicou ele.
Agradeci e ia retirar-me, quando, chamando-me, perguntou:
— Olhe lá... Você nunca viu um enterro protestante?
Como lhe respondesse negativamente, continuou:
— Pois, se quiser, pode vê-lo hoje à tarde... Às quatro horas enterra-se o guarda-livros dos senhores Norris & Cia.
Disse-lhe que não perderia aquela ocasião, e saí.
É escusado dizer ao leitor que não fui ao enterro.
À noite, estava eu no meu quarto a ver qual era a menos velha de três gravatas pretas que tinha, e acabava de escovar o fatinho com que tencionava apresentar-me em casa do inglês, quando o pombo entrou.
Chovia se Deus a dava, e o pobre "Meigo", antes de dar a primeira bicada no pão, sacudiu as penas três vezes, e pareceu agradecer-me o carinho com que o enxuguei com uma toalha.
Quando, passados minutos, o obriguei a partir, e vi as duas luzes, que brilhavam separadas, não pude deixar de dizer:
— Quanto tempo durará ainda aquele penar?... Não virá um dia, em que baste uma luz para ambos?... Pobres crianças!
Nisto, ocorreu-me uma ideia, e, dando uma palmada na testa, exclamei:
— Oh! que lembrança!
E fui-me deitar, afagando a ideia que me desabrochara no espírito, e que ainda em sonhos continuou a sorrir-me.
Às 4 horas da tarde do dia seguinte, batia à porta do Sr. Gibson, que morava em Entre Quintas.
— O patrão está ali, em casa do vizinho; a menina anda no jardim — disse-me o criado.
Eu tinha com Miss Alice a familiaridade necessária para não ser tachado de importuno; dirigi-me, portanto, ao jardim.
A nossa conversa cifrava-se, quase sempre, num esgrimir de ironias, tendentes a demonstrar a vantagem que havia em ter nascido português ou inglês. Contanto que a discussão se não abalançasse a assuntos religiosos, era permitido procurar e atacar todos os pontos fracos.
O que, porém, era impossível encontrar em outra mulher era, a par da sólida e bem dirigida instrução, mais angélica pureza e mais subida elevação de sentimentos.
Apresentei-me a Miss Alice com desusada gravidade.
Notou-a ela, que era o que eu mais queria, pois contava com o seu auxílio para realizar a ideia que me ocorrera na véspera.
— O senhor que tem?... Tem hoje um aspecto sério... quase inglês! — perguntou ela, convidando-me ao combate.
— Estou triste — respondi eu.
— Triste!... o senhor?!... Ora deixe-se disso, que me não convence! — redarguiu a jovem.
— Vossa excelência quer ouvir um idílio, um conto de amores, um verdadeiro assunto de balada inglesa, um lied alemão? — perguntei eu bruscamente, ao cabo de alguns minutos de silêncio.
Miss Alice fez-se vermelha como uma romã, e flutuou-lhe entre os lábios o shocking tradicional, com que uma inglesa fulmina o desgraçado convicto do crime de inconveniência.
— Quer ouvir?... — insisti eu. — Escute-me, e conhecerá a causa da minha tristeza.
Aqui é que uma nova camada de carmim veio estender-se sobre a que já enrubescia as faces — da formosa Miss, receosa de que eu me atrevesse a uma declaração de amor, sem mais "tir-te nem guar-te!
— Escute-me — prossegui eu. — Ajude-me numa boa ação!
Os olhos de Miss Alice, até ali obstinadamente cravados no chão, ergueram-se radiantes, os lábios abriram-se e murmuraram simplesmente:
— Diga!
Contei-lhe tudo o que o leitor já sabe.
Eram para ver as mil impressões diferentes que o rosto ia espelhando alternativamente; as frases, que traduziam o íntimo pensar, saíam-lhe espontâneas dos lábios, ora em inglês, ora em português, à medida que a narrativa se adiantava.
Poor, dear, little thing! — dizia ela, referindo-se ao pombo. — Coitado! pobre rapaz!... Quem me dera conhecer Elisa!
Quando cheguei ao episódio do pombo com ervilhas, pensei que toda a poesia e acrisolada sensibilidade daquela alma de anjo, fundidas num gesto de suprema indignação, me condenavam a arrastar para todo o sempre o pesado grilhão do remorso, e valeu-me o meu procedimento posterior para não ficar perdido no conceito da encantadora jovem.
Quando terminei, Miss Alice chorava, mirando o céu, talvez na esperança de descobrir um pombo preto, que lhe trouxesse carta de algum anjo.
— Mas que quer agora fazer?... Em que posso auxiliá-lo?... Conte comigo! — disse ela por fim.
— Pode transformar dois infelizes em dois bem-aventurados!
— Como?... Fale! — replicou a inglesa, impaciente.
— Faça com que seu pai peça para Alberto o lugar do guarda-livros da Casa Norris & Cia. — respondi eu.
Oh! que feliz ideia! — exclamou Miss Alice, batendo as palmas com infantil alegria. — Vou já escrever a Betsy Norris! É uma das minhas melhores amigas... depois falarei a meu pai.
E partiu a correr, ligeira como uma gazela e alegre como uma criança.
— Já escrevi! — disse-me ela, voltando passado um quarto de hora.
Três dias depois, amarrava eu com inexplicável prazer à asa de "Meigo"um bilhete, concebido nestes termos:
"Pode o Sr. Alberto apresentar-se aos senhores Norris & Cia., por quem será admitido como guarda-livros, se as informações, que dele se colherem, satisfizerem os mesmos senhores."
Tenho pena de não ter aqui à mão as cartas que recebi de Alberto e de Elisa.
Eu era o seu anjo-da-guarda, a sua Providência, o seu benfeitor.
A carta em que Alberto me participava que tinha sido finalmente provido no lugar, terminava assim:
"Graças a si, meu desconhecido amigo, antevejo um futuro de felicidades sem conta!... Escrevi à mãe — de Elisa, e a boa senhora permite que eu vá hoje à noite tomar chá com elas, e fixar o dia para o nosso enlace.
Sou completamente feliz, meu amigo!... Completamente não! Pois não hei de conhecê-lo?! Não hei de poder beijar a mão que me socorre?!... Seja bom em tudo... Diga-me o seu nome!"
Fui mostrar esta carta a Miss Alice, e consultá-la sobre o que devia fazer, "na certeza — disse eu — que, se ele me quiser agradecer, eu digo-lhe que venha entender-se com vossa excelência ".
A minha gentil auxiliar era inglesa de lei, ou, por outra, possuía uma destas almas que encobrem nas dobras do mistério a modesta e fragrante flor da poesia.
Em toda a parte do mundo se chama a esta casta de mulheres — ser inteligente, poético, ideal, angélico! — Entre nós chama-se-lhes "românticas", o que, aplicado a uma senhora, importa o mesmo que chamar a um homem, que se estrema um pouco do vulgar, "visionário, mágico, habitante da Lua... finalmente — tolo! "
Proibiu-me que me desse a conhecer; agradava-lhe o mistério... Segui o conselho, e recusei satisfazer o justo desejo de Alberto e de Elisa.
Mr. Gibson, a pedido meu, proporcionou-me ocasião de ir ao escritório de Norris & Cia.
Perguntei pelo guarda-livros.
Era um moço elegante, uma fisionomia distinta e insinuante, um olhar inteligente e leal.
Retirei-me satisfeito com ele e comigo.
"Meigo", seja dito em louvor da gratidão dos dois namorados, afinal unidos, não deixou uma única noite de vir visitar-me, trazendo-me sempre palavras de reconhecimento.
Passado um ano, foi ele portador da seguinte carta:
"Meu bondoso protetor:
Presenteou-nos Deus com uma filhinha, e eu fiz voto de que ficaria por batizar, se o nosso anjo-da-guarda se recusasse a servir-lhe de padrinho.
Quer deixar a inocentinha fora do grêmio da Igreja?... Quer obrigar uma pobre mãe a gemer sob o peso desse remorso?... E não o sentirá também?... Responda!
Elisa. "
Tornei a ir consultar o meu advogado, a formosa inglesa.
— E agora!?... — perguntei eu, depois de ler a carta.
— Agora... não há remédio! — respondeu ela. "Meigo"foi portador do meu consentimento. No dia seguinte apresentava-me em casa de
Alberto e de Elisa.
A modéstia ordena-me que cale tudo quanto a gratidão lhes inspirou para me agradecerem. Oito dias depois, na igreja da Sé, perguntava
o abade:
— Alice! Vis baptisare?...
E eu, padrinho, respondia:
— Volo
E a avó, madrinha, e a parteira, e a criada da parteira, e o sacristão, esses respondiam:
— Bolo!
E está acabada a história.
P. S. "Meigo"foi durante dois anos portador dos convites que me fazia o meu compadre para ir jantar com ele. Numa dessas correrias chegou a casa atordoado, voou duas vezes à volta da sala e foi cair morto sobre o berço de Alice, penhor da felicidade dos pais, felicidade que só a ele era devida.
Até hoje, ainda aquela família não teve outro desgosto. 

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