CAPÍTULO 1
Tinha eu
vinte anos e não tinha vinte réis no bolso, quando me aconteceu o que lhes vou
contar.
Andava no
ano cirúrgico, a tombos com a anatomia; tinha segura a subsistência de um mês,
que pagara adiantado; possuía, fora do alcance dos meus condiscípulos, duas
libras de tabaco e quinze livros de mortalhas; as solas do meu único par de
botas prometiam longos dias de vida; o sol como que se obrigara para comigo a
não causar embaraço à roda-viva em que andavam de mim para a lavadeira e da
lavadeira para mim duas camisas, que me restavam; o chapéu não estava ruço de
mais, nem o casaco demasiado no fio — vivia feliz e sem cuidados.
Não tinha
dinheiro, nem comodidades, nem cavalos, nem luxo; mas tinha vinte anos, um
coração alegre, trinta e dois dentes afiados como navalhas de barba, um
estômago que digeria os alimentos de... empreitada, que me forneciam pernas de
ferro e saúde do mesmo metal... Que mais se pode querer aos vinte anos?
E, para
cúmulo de felicidade, tinha a janela das águas-furtadas em que vivia, janela
cujas portas já não sabiam fechar-se, porque os gonzos, por falta de exercício,
tinham perdido o movimento.
Não sei se,
mais tarde, alguém se lembrou de curar aquela paralisia dos gonzos; para mim
seria isso impossível, pois nem três mesadas bastariam para comprar o azeite
necessário a tal empresa.
Que mágica
janela!
No Inverno,
como que se alargava para deixar coar através dos vidros o luar das límpidas e
formosas noites de Janeiro; no Verão, quando eu me esquecia de descer a
vidraça, perfumava-me o quarto com os aromas do laranjal florido, que
assombrava o jardim do palacete vizinho.
O dono do
jardim, que não chegava à varanda e dormia com as janelas fechadas, estava
convencido de que o jardim era realmente dele; eu, porém, que de dia lhe
namorava as flores e à noite dormia com a janela aberta, para receber as
saudades que elas me mandavam, entendia que o jardim era meu.
Que noites
de julho, passadas a essa janela, em mangas de camisa, com as costas
obstinadamente voltadas para o candeeiro, que crepitava censuras, e para o
compêndio, que adormecera aberto, desesperando de me fazer dormir a mim!
Por uma
dessas noites, encostado ao peitoril, e emendando, por assim dizer, os cigarros
uns aos outros, deixava eu errar a vista pela floresta de chaminés, que se
destacavam no ar, sobre os telhados das casas que dali se viam, e corria-me à rédea
solta a vagabunda, a folle du logis —
a imaginação, enfim.
Quem, depois
de duas horas de meditação, poderá narrar por ordem todas as loucuras que lhe
atravessaram o cérebro?
Ao cabo de
longo cismar, os meus olhos começaram a contaras luzes, que brilhavam como
pirilampos, no fundo negro das casas.
Pouco e
pouco essas luzes foram-se extinguindo uma a uma, e ficaram apenas duas, em
pontos diametralmente opostos, e a enorme distância uma da outra.
A quem
alumiarão?
Traçado este
ponto de interrogação no espírito, a vagabunda, que eu, por assim dizer,
travara, deu um salto e partiu a toda a brida, talando em todas as direções o
campo infinito do ideal.
"Serão
costureiras, que terminam algum vestido?... Pobres pequenas! Avaliarão ao menos
as meninas, para quem trabalham, quanto custa àqueles dedos de fada essa
tarefa, que tem por fim torná-las a elas formosas?
Será
desgraçado poeta, tão alheio ao século, que ainda não descreu da ode ou mete
ombros ao primeiro verso — da vigésima estrofe do sexto canto de épico poema?
Serão mães,
que velam filhos enfermos; pobres velhas a braços com a asma; criminosos, a
quem as trevas engrossam o remorso?"
— Serão... o
que quiserem ser! — bradei eu de repente, agarrando a tresloucada, que parara a
tomar fôlego para novas correrias.
Neste
momento a luz do candeeiro começou a crepitar tão raivosa, que o pobre
compêndio acordou e chamou-me.
— Não há
remédio! — disse eu espreguiçando-me, e ia a retirar-me da janela, quando vi
que uma das duas luzes se movia.
Soou a
terceira das doze badaladas da meia-noite no relógio da Sé.
A luz
continuou a mover-se e acabou por aparecer francamente à janela, a que assomara
um vulto, que eu não podia distinguir se era de homem, se de mulher.
Lançando
instintivamente os olhos para a outra janela, notei o mesmo manejo de luz e
verifiquei a aparição de outro vulto!
Duas luzes,
que brilham em face uma da outra e aparecem ao mesmo tempo à frente das
janelas... meia-noite que soa...
Decididamente,
aquelas duas janelas entendem-se!
Como se
quisessem tirar-me de dúvidas, as luzes entraram de fazer movimentos
combinados; dir-se-ia que se cumprimentavam.
Estava eu
estudando aquela telegrafia, quando um ligeiro ruído me chamou a atenção.
Investiguei
o espaço e vi um ponto negro, que se dirigia para mim.
— É um
morcego, que vem esbarrar-se contra os vidros — pensei eu, sem me lembrar que o
voo — do morcego é silencioso.
Ora é
preciso dizer-lhes que eu tenho um horror instintivo do morcego.
Eu odeio o
rato, que me não deixa dormir, entregue à sua obra de destruição, em que
prossegue, apesar da bota que arremesso para o sítio de onde vem o ruído, e
gelo ao aspecto desse rato alado, que tem a consciência de não merecer que o
solo alumie; aborto condenado às trevas, sacrílego vampiro, que esvoaça às
noites por entre as colunas e recôncavos do templo, profanando a alâmpada e
extinguindo a luz, que se espelha nas lágrimas de sangue que correm ao longo da
face angustiada do Cristo.
Receoso do
repelente contato, recuei, mas o vulto negro, em vez de bater nos vidros da
janela, entrou por ela, esbarrou-se contra a parede fronteira e caiu de chofre
sobre a minha cama.
— É um
mocho! — exclamei eu aterrado, ao ver que, pelo tamanho, não podia ser morcego.
Ora é
preciso dizer-lhes que o mocho me merece especial antipatia.
Além de ser,
como o morcego, um parasita de igreja, acho-lhe um certo ar refalsado, o que
quer que é de beato fingido, de gato-pingado, com que embirro solenemente.
Se os outros
animais são, como o homem, obrigados a exercer uma profissão, o mocho deve ter,
com certeza, casa de prego e emprestar dinheiro a quatro e cinco leis.
Ora reparem
bem nele, e verão que me não engano. Óculos enormes, nariz de cavalete, casaca
arruçada pelo tempo, pernas curtas e fortes, unhas curvas e sujas — é um
usurário chapado.
Eu detesto o
mocho!
— Pois dou
cabo dele! — disse eu, fechando a janela e agarrando a bengala.
Peguei no
candeeiro, e erguendo o instrumento de morte, caminhei para o inimigo...
A luz
espalhou-se sobre a cama, e a arma caiu-me da mão.
— Que lindo
pombo preto!...
E era,
realmente, um lindo pombo, destes que à luz do sol despedem do dorso reflexos
metálicos, cambiantes.
E pobrezinho
estava tão cansado, que se deixou agarrar sem reagir.
Pousei o
candeeiro sobre a banca e pus-me a analisar a presa.
Nisto, os
meus dedos, introduzindo-se por baixo de uma das asas, encontraram um corpo
estranho; era um papel atado por uma linha.
O pombo
defraudava a fazenda; era um carteiro de contrabando.
Apoderei-me
do bilhete, apesar de duas picadelas que o fiel mensageiro me deu, em defesa do
que ele, naturalmente, considerava depósito sagrado.
Soltei o
pombo, que voou para a janela, onde se empoleirou, e abri o bilhete.
Eis o seu
conteúdo:
"Elisa:
Foi mais um
dia perdido!... Tudo se conspira contra nós, e começo a perder a esperança de
conseguir o que tua mãe exige de mim, para consentir na nossa felicidade.
Que mais te
hei de eu dizer, se, no pouco que aí fica dito, te causo uma noite — de insônia
e de lágrimas?!
Adeus!... O
nosso confidente está quase a acabar a sua ração.
Adeus!...
Amo-te.
Alberto."
— Quem será
este Alberto?... E quem será aquela Elisa?... — perguntava eu, voltado para o
pombo, que me mirava, espantado, com os seus grandes olhos orlados de encarnado.
— Deixo partir o correio... não deixo... — comecei eu a dizer de mim para mim.
Acerquei-me
da janela. Uma das luzes tinha desaparecido; a outra movia-se agitada por mão
assustada e ansiosa.
— Compreendo
— rosnei eu. — O Sr. Alberto escreveu aquela choradeira, botou-a ao correio,
fechou a janela, apagou a luz e está já a dormir como um porco, enquanto que — a
pobre da rapariga está ali a mirrar-se, agitando o farol, na esperança de
atrair o pombo transviado. Nada! Isto é negócio de consciência, um atentado
contra o direito das gentes! Soltemos o pombo!... Anda cá, amor — continuei,
ameigando a voz para não assustar a íris. — Anda cá, tolinho... Tu gostarás de
pão, lambareiro?...
E, abrindo
um armário de pinho, tirei um bocado de pão, que esfarelei. Lembrei-me de lhe oferecer
conhaque ou de lhe manufaturar um grogue, pois para isto tinha eu sempre o
preciso no quarto, mas tive medo que ele aceitasse e calei-me.
Parece que o
pão não era alimento desconhecido para ele, porque o pombo voou imediatamente
para cima da banca, onde eu o tinha colocado, e começou a cervir-se sem cerimônia.
— Ora já
basta, amigo — disse eu ao cabo de alguns minutos.
E, agarrando
o trânsfuga, amarrei-lhe de novo o bilhete debaixo da asa, abria janela e
soltei-o.
Passados
instantes, a luz retirava-se e desaparecia.
A mala tinha
chegado ao seu destino.
CAPÍTULO 2
Só muito
para a madrugada consegui adormecer.
Quando
acordei e vi o resto dos farelos de pão, saltei da cama e corri à janela; por
mais que fiz, não pude dizer com certeza quais eram as casas em que vira
brilhar as luzes.
Fiquei logo
de mau humor. Vesti-me, almocei à pressa e fui às carreiras para a escola.
O lente
chama-me, dou um estenderete formal e
os condiscípulos cravaram em mim olhos de espanto, ouvindo-me dizer em tom
raivoso:
— Leve o
diabo o pombo!
Andei todo o
dia de candeias às avessas.
À noite não
saí, e pus-me à janela.
Parecia arte
do Demônio!... Havia luz em todas as casas.
— Estes
malvados não têm sono! — pensava eu, batendo de raiva com os pés no chão. — Ide
deitar-vos, imbecis!... Olhai que são quase onze horas!... Amanhã não há quem
vos tire da cama!...
Afinal, como
na véspera, as luzes foram-se sumindo uma a uma, mas muito mais vagarosamente,
segundo me parecia, e ficaram apenas as duas.
— O pombo
não vem... Foi um acaso, uma extravagância de pombo... —dizia eu por entre
dentes, em resposta à voz secreta que me dizia o contrário. — Qual vem, nem
meio vem!... Foi uma vez a Cascais e nunca mais!... Adeus... Não me importa...
Queria ver a continuação da comédia, mas... acabou-se... não tenho ferro...
E tirava o
relógio a cada instante e tinha um ferro
por aí além!
Ecoou,
finalmente, a primeira badalada da meia-noite; as luzes repetiram — a dança da
véspera...
— E o pombo
não vem... — murmurava eu, com despeito.
E o
caluniado, agitando as asas, entrava sem hesitação, e voava direito às
migalhas.
Eu tanto não
esperava que ele viesse, que até... já tinha esfarelado o pão sobre a banca.
Dizia assim
a resposta de Elisa:
"Alberto:
Não imaginas
os transes por que me fez passar o nosso confidente!... Levou-lhe meia hora a
chegar!...
Queres que
te diga?.. Tenho hoje receio de te escrever com a franqueza do costume, porque,
já pela demora, já pela maneira diferente por que vinha amarrado o teu bilhete,
desconfio que o pombo foi detido na passagem... (Oh! com a breca! — exclamei
eu, vendo-me descoberto.)
Coragem,
Alberto!... Não desanimes!... A exigência de minha mãe é fundada num louvável
sentimento de previdência...
Pode levar
tempo a realizar o nosso desejo; mas... não temos nós confiança bastante um no
outro?... Valha-me Deus!... Se o pombo se desviasse outra vez... se alguém
lesse isto...
Nem me
atrevo a escrever mais...
Adeus!
Amo-te!
Elisa."
Pobre
rapariga!... compreendi o pudor daquela alma, ao saber-se devassada, mas... o
mal estava feito.
Tornei a
soltar o mensageiro.
No dia
seguinte interceptei a seguinte carta:
"Elisa:
O pombo
também na volta se demorou mais do que costuma.
Se é uma
senhora quem se entrega ao mesquinho prazer de nos angustiar, espero que, ao
ler estas linhas, se lembrará — de que despreza todos os ditames da delicadeza.
Se é um
homem, dir-lhe-ei que é ridícula essa curiosidade, e criminosa, por ser
satisfeita na sombra e com a certeza da impunidade.
Esta carta é
mais para ser lida por quem interceptou as outras, do que escrita para ti.
Alberto.
"
Pareceu-me
quixotesca esta carta, o sangue tingiu-me as faces, a consciência aceitou a
censura; mas o amor-próprio assanhou-se, os meus vinte anos riram contrafeitos
e eu tive a cruel coragem de escrever na mesma carta de Alberto as seguintes
palavras:
"Excelentíssima
Senhora:
Não sei se vossa
excelência gosta de pombo com ervilhas...
É o meu
prato favorito.
Ou vossa
excelência convence o Sr. Alberto a contar-me o começo destes amores, a
instruir-me sobre a educação dos pombos e a comunicar-me a exigência, de cuja
realização depende o consentimento de sua excelentíssima mãe, ou, na volta do
correio, depois de amanhã, mando comprar as ervilhas.
Creia-m e de
vossa excelência o mais humilde e desconhecido venerador."
No dia
seguinte, o mensageiro reconduzia a
carta de
Alberto, em que eu escrevera o que
acima fica,
sem um único comento da jovem. Elisa deixava a Alberto a decisão de tão
momentoso assunto.
À noite
recebia eu a seguinte carta do pobre namorado:
"Senhor:
Juro-lhe que
dava anos de vida para conhecer quem assim se atravessa entre duas almas que,
receosas da terra e dos homens, se comunicam por intermédio da inocência, e
através dos espaços do céu.
O senhor foi
cruel!...
Eu fui
talvez inconveniente; devia lembrar-me que quem tem a coragem de forçar um
segredo, mal poderia sofrer a censura que por tal abuso lhe fizessem...
Andei mal;
ando hoje pior em me mostrar independente, quando o amor e o sossego — de quem
amo me aconselham o papel de suplicante.
Não posso!...
Um sentimento, a que o senhor me parece alheio — a dignidade — não mo permite.
Quer
conhecera história do meu amor... Vou contar-lha! Conto-lha para que, chegando
ao fim, veja bem — o mal que me causa, e conheça — se há ainda um eco qualquer
na sua consciência — que, embora o não confesse, são justas as minhas
recriminações.
Leia.
Por uma
amena tarde de Estio — haverá dois anos — estava eu no meu quarto, em
convalescença de prolongada moléstia, quando pela janela entrou o pombo que o
senhor conhece.
Aborrecido,
e buscando, em vão distrair-me, atravessou-me uma ideia o cérebro.
Ergui-me,
fechei a janela e escrevi numa folha de papel:
"Se na
casa onde, a estas horas, choram talvez a tua ausência, há uma mulher jovem e
bela, leva-lhe os votos de ventura — de um coração que ainda não amou!"
Agarrei o
pombo e confiei-lhe a... pieguice, que acaba de ler.
No dia
seguinte, com espanto meu, entrava o pombo, como na véspera, portador desta
resposta:
"Uma
mulher jovem, a quem ainda ninguém disse se era bela, agradece a restituição de
"Meigo", cuja ausência lamentava, e retribui os votos de ventura.
Assim se
travou uma correspondência, que durou cerca — de dois meses, sem que a palavra
"amor"fosse empregada de parte a parte.
Ao cabo de
dois meses, pedi à minha incógnita correspondente que me dissesse onde podia
vê-la.
Depois de
muitas cartas trocadas, em que eu insistia — e ela recusava, veio uma, em que
me marcava a missa das onze, nos Congregados, no domingo seguinte, e me dava
sinais certos para a reconhecer.
Fui.
Não posso
descrever a ansiedade, que me torturava!...
Se era feia?!...
Era... é uma
formosura!
Que
dulcíssimo prazer me arrebatava a alma, vendo-a ali, de joelhos, estudando
ansiosa o rosto de todos os mancebos, sem me poder ver a mim, que a estava
observando, — encoberto pelo reposteiro!
A missa
acabou por fim; ela ergueu-se, e, ao passar junto de mim, murmurei em voz
abafada: "Obrigado!..."
Elisa não
pôde reter um pequeno grito; as faces tingiram-se-lhe com o rubor do pejo, e,
lançando-me um olhar entre assustado e curioso, aconchegou-se à mãe, e saiu.
Escusado é
dizer que a segui.
Começaram,
desde então, a falar de amor as nossas cartas.
Eu era
guarda-livros de uma casa respeitável e tinha um ordenado subido.
Entendi que
não seria repelido, e encarreguei um amigo meu de pedir à mãe a mão de Elisa.
A mãe
acolheu-me perfeitamente, e tratávamos já das mil pequeninas coisas,
necessárias a quem põe casa, embora modesta, quando, haverá um ano, o
negociante que eu servia morreu de repente.
Os herdeiros
liquidaram o negócio, e eu fiquei... e estou desempregado.
No dia em
que terminaram os meus trabalhos de liquidação, mandava a mãe retirar Elisa da
sala em que estávamos reunidos e falava-me nestes termos:
"Alberto!...
Sei que é um rapaz trabalhador e honrado, pois, se o não soubesse, não lhe
daria minha filha.
Sabe que só
à força de economia consigo sustentar a ela e a mim, com a modesta pensão que
recebo do Estado?
Enquanto o
Alberto não arranjar novo emprego, não é possível pensar em casamento...
Procure!
E — continuou
ela — perdoe-me o mal que vou fazer-lhe, mas é preciso que o Alberto deixe de
vir a minha casa.
Somos duas
mulheres sós; o mundo é mau; pode este casamento não chegar a realizar-se... É
preciso que deixe de vir aqui!"
Protestos,
rogos, lágrimas, tudo tem sido baldado!
A mãe de
Elisa é inabalável; eu bato em vão a todas as portas, e as minhas economias
desapareceram, fazendo-me antever a miséria num futuro pouco distante.
***
Aí tem a
minha história!
Faça — o que
entender!
O pobre
"Meigo"contraiu relações novas... Depende do senhor roubar a duas
almas a única felicidade que lhes resta, fazendo desaparecer o único meio de
comunicação que as liga.
Faça o que
entender!
Não imploro,
resigno-me; não torço, quebro; não vegeto, morro!
Alberto."
Não é
possível explicar-lhes a vergonha que senti escaldar-me as faces, o remorso que
me estorcia o coração!
Corri à
banca e escrevi o seguinte:
"Excelentíssima
Senhora:
Perdão para
os meus vinte anos, para a minha leviandade de rapaz!...
Não sou mau,
sou louco!... Creia-me, por quem é!...
Juro-lhe que
"Meigo"entrará no meu quarto e sairá dele sem que a minha mão torne a
roçar-lhe as penas!
Peça a
Alberto que me perdoe, como eu peço a Deus que lhes conceda a ventura de que
tão dignos parecem!..."
No dia
seguinte "Meigo"entrava no quarto, trazendo dois bilhetes, amarrados
por fora das asas.
Um deles
dizia: "Para o desconhecido."Abri-o e li esta única palavra: "Obrigado!"No
dia imediato, o pombo trazia igualmente
dois
bilhetes, presos da mesma maneira. Peguei no que me era dirigido e li:
"O
senhor é bom... Enganei-me... Perdoe-me!
Alberto.
"
E o pombo
continuou a vir todos os dias ao pão.
CAPÍTULO 3
Correram
meses, sem que peripécia nenhuma viesse apressar ou retardar a chegada ou
partida do correio.
Fiel à minha
palavra, nunca mais tentei devassar os segredos confiados ao voo possante do
"Meigo", e só de tempos a tempos a oferta de uma flor ou uma palavra
de gratidão vinham pagar-me a discrição.
Permita
agora, leitor, que lhe diga de mim duas palavras, que facilitem o
desenvolvimento desta narrativa.
Quando, no
princípio da nossa conversa, me apresentei sem um vintém no bolso, não tinha eu
em vista dar-me por necessitado, pois, pelo contrário, se não — tivesse cinco
irmãos, como ainda, felizmente, tenho, seria um rapaz rico.
Filho de um
abastado lavrador do Douro, recebia de meu pai uma mesada, que, bem dividida,
me permitiria viver modestamente, pondo ainda — de parte, no fim de cada mês,
alguns tostões, quando mais não fosse; infelizmente, porém, eu tinha um
verdadeiro culto pelas tradições da vida de estudante, e raro era o mês em que
no dia 8 o meu dinheiro não estivesse no fim, e em que, aí pelo dia 25 ou 26,
eu não fosse fazer uma visita ao Sr. Samuel Gibson, honrado negociante inglês,
a quem meu pai vendia o vinho que colhia.
O velho
inglês era deveras meu amigo, e se mais vezes me não aproveitava dos frequentes
convites que me fazia, para ir jantar com ele e com Miss Alice, sua formosa
filha, era porque o mau estado da minha roupa domingueira bradava alto contra o
desregramento do meu viver.
Havia ainda
outra razão, e era o receio de me enamorar seriamente de Miss Alice, que me
honrava com uma amizade a que eu bem desejara poder dar outro nome.
No dia 25 de
outubro — lembra-me perfeitamente que era em outubro —abria eu a porta, forrada
de baeta verde, que separava o gabinete do Sr. Gibson do escritório onde
trabalhavam os empregados, resolvido a fazer uma ligeira alteração no
calendário, transformando 25 de outubro em 1 de Novembro, para receber a
mesada.
O bom do
velho, mal me viu entrar, disse-me com os olhos: "Já vejo a que vem..."e
com os lábios: "Ora viva, senhor desertor!"
Balbuciei
uma desculpa, falei na carestia das subsistências, no enorme custo dos livros,
e acabei por pedir o adiantamento da mesada de Novembro.
Mr. Gibson
ria maliciosamente, fazendo-me perder a tramontana, e, quando terminei o meu
arrazoado, respondeu:
— Está
servido... com uma condição. — E é?... — perguntei eu.
— Ir jantar
amanhã comigo... É domingo... Ao domingo não se estuda.
— Com muito
gosto — respondi.
— Pois,
nesse caso, diga lá fora ao caixa que lhe dê o dinheiro — replicou ele.
Agradeci e
ia retirar-me, quando, chamando-me, perguntou:
— Olhe lá...
Você nunca viu um enterro protestante?
Como lhe
respondesse negativamente, continuou:
— Pois, se
quiser, pode vê-lo hoje à tarde... Às quatro horas enterra-se o guarda-livros
dos senhores Norris & Cia.
Disse-lhe
que não perderia aquela ocasião, e saí.
É escusado
dizer ao leitor que não fui ao enterro.
À noite,
estava eu no meu quarto a ver qual era a menos velha de três gravatas pretas
que tinha, e acabava de escovar o fatinho com que tencionava apresentar-me em
casa do inglês, quando o pombo entrou.
Chovia se
Deus a dava, e o pobre "Meigo", antes de dar a primeira bicada no
pão, sacudiu as penas três vezes, e pareceu agradecer-me o carinho com que o
enxuguei com uma toalha.
Quando,
passados minutos, o obriguei a partir, e vi as duas luzes, que brilhavam
separadas, não pude deixar de dizer:
— Quanto
tempo durará ainda aquele penar?... Não virá um dia, em que baste uma luz para
ambos?... Pobres crianças!
Nisto,
ocorreu-me uma ideia, e, dando uma palmada na testa, exclamei:
— Oh! que
lembrança!
E fui-me
deitar, afagando a ideia que me desabrochara no espírito, e que ainda em sonhos
continuou a sorrir-me.
Às 4 horas
da tarde do dia seguinte, batia à porta do Sr. Gibson, que morava em Entre
Quintas.
— O patrão
está ali, em casa do vizinho; a menina anda no jardim — disse-me o criado.
Eu tinha com
Miss Alice a familiaridade necessária para não ser tachado de importuno;
dirigi-me, portanto, ao jardim.
A nossa
conversa cifrava-se, quase sempre, num esgrimir de ironias, tendentes a
demonstrar a vantagem que havia em ter nascido português ou inglês. Contanto
que a discussão se não abalançasse a assuntos religiosos, era permitido
procurar e atacar todos os pontos fracos.
O que,
porém, era impossível encontrar em outra mulher era, a par da sólida e bem
dirigida instrução, mais angélica pureza e mais subida elevação de sentimentos.
Apresentei-me
a Miss Alice com desusada gravidade.
Notou-a ela,
que era o que eu mais queria, pois contava com o seu auxílio para realizar a
ideia que me ocorrera na véspera.
— O senhor
que tem?... Tem hoje um aspecto sério... quase inglês! — perguntou ela,
convidando-me ao combate.
— Estou
triste — respondi eu.
— Triste!...
o senhor?!... Ora deixe-se disso, que me não convence! — redarguiu a jovem.
— Vossa
excelência quer ouvir um idílio, um conto de amores, um verdadeiro assunto de
balada inglesa, um lied alemão? — perguntei eu bruscamente, ao cabo de alguns
minutos de silêncio.
Miss Alice
fez-se vermelha como uma romã, e flutuou-lhe entre os lábios o shocking tradicional, com que uma
inglesa fulmina o desgraçado convicto do crime de inconveniência.
— Quer
ouvir?... — insisti eu. — Escute-me, e conhecerá a causa da minha tristeza.
Aqui é que
uma nova camada de carmim veio estender-se sobre a que já enrubescia as faces —
da formosa Miss, receosa de que eu me atrevesse a uma declaração de amor, sem
mais "tir-te nem guar-te!
— Escute-me —
prossegui eu. — Ajude-me numa boa ação!
Os olhos de
Miss Alice, até ali obstinadamente cravados no chão, ergueram-se radiantes, os
lábios abriram-se e murmuraram simplesmente:
— Diga!
Contei-lhe
tudo o que o leitor já sabe.
Eram para
ver as mil impressões diferentes que o rosto ia espelhando alternativamente; as
frases, que traduziam o íntimo pensar, saíam-lhe espontâneas dos lábios, ora em
inglês, ora em português, à medida que a narrativa se adiantava.
— Poor, dear, little thing! — dizia ela,
referindo-se ao pombo. — Coitado! pobre rapaz!... Quem me dera conhecer Elisa!
Quando
cheguei ao episódio do pombo com ervilhas, pensei que toda a poesia e
acrisolada sensibilidade daquela alma de anjo, fundidas num gesto de suprema
indignação, me condenavam a arrastar para todo o sempre o pesado grilhão do
remorso, e valeu-me o meu procedimento posterior para não ficar perdido no
conceito da encantadora jovem.
Quando
terminei, Miss Alice chorava, mirando o céu, talvez na esperança de descobrir
um pombo preto, que lhe trouxesse carta de algum anjo.
— Mas que
quer agora fazer?... Em que posso auxiliá-lo?... Conte comigo! — disse ela por
fim.
— Pode
transformar dois infelizes em dois bem-aventurados!
— Como?...
Fale! — replicou a inglesa, impaciente.
— Faça com
que seu pai peça para Alberto o lugar do guarda-livros da Casa Norris & Cia.
— respondi eu.
Oh! que
feliz ideia! — exclamou Miss Alice, batendo as palmas com infantil alegria. — Vou
já escrever a Betsy Norris! É uma das minhas melhores amigas... depois falarei
a meu pai.
E partiu a
correr, ligeira como uma gazela e alegre como uma criança.
— Já
escrevi! — disse-me ela, voltando passado um quarto de hora.
Três dias
depois, amarrava eu com inexplicável prazer à asa de "Meigo"um
bilhete, concebido nestes termos:
"Pode o
Sr. Alberto apresentar-se aos senhores Norris & Cia., por quem será
admitido como guarda-livros, se as informações, que dele se colherem,
satisfizerem os mesmos senhores."
Tenho pena
de não ter aqui à mão as cartas que recebi de Alberto e de Elisa.
Eu era o seu
anjo-da-guarda, a sua Providência, o seu benfeitor.
A carta em
que Alberto me participava que tinha sido finalmente provido no lugar,
terminava assim:
"Graças
a si, meu desconhecido amigo, antevejo um futuro de felicidades sem conta!...
Escrevi à mãe — de Elisa, e a boa senhora permite que eu vá hoje à noite tomar
chá com elas, e fixar o dia para o nosso enlace.
Sou
completamente feliz, meu amigo!... Completamente não! Pois não hei de
conhecê-lo?! Não hei de poder beijar a mão que me socorre?!... Seja bom em
tudo... Diga-me o seu nome!"
Fui mostrar
esta carta a Miss Alice, e consultá-la sobre o que devia fazer, "na
certeza — disse eu — que, se ele me quiser agradecer, eu digo-lhe que venha
entender-se com vossa excelência ".
A minha
gentil auxiliar era inglesa de lei, ou, por outra, possuía uma destas almas que
encobrem nas dobras do mistério a modesta e fragrante flor da poesia.
Em toda a
parte do mundo se chama a esta casta de mulheres — ser inteligente, poético,
ideal, angélico! — Entre nós chama-se-lhes "românticas", o que,
aplicado a uma senhora, importa o mesmo que chamar a um homem, que se estrema
um pouco do vulgar, "visionário, mágico, habitante da Lua... finalmente — tolo!
"
Proibiu-me
que me desse a conhecer; agradava-lhe o mistério... Segui o conselho, e recusei
satisfazer o justo desejo de Alberto e de Elisa.
Mr. Gibson,
a pedido meu, proporcionou-me ocasião de ir ao escritório de Norris & Cia.
Perguntei
pelo guarda-livros.
Era um moço
elegante, uma fisionomia distinta e insinuante, um olhar inteligente e leal.
Retirei-me satisfeito
com ele e comigo.
"Meigo",
seja dito em louvor da gratidão dos dois namorados, afinal unidos, não deixou
uma única noite de vir visitar-me, trazendo-me sempre palavras de
reconhecimento.
Passado um
ano, foi ele portador da seguinte carta:
"Meu
bondoso protetor:
Presenteou-nos
Deus com uma filhinha, e eu fiz voto de que ficaria por batizar, se o nosso anjo-da-guarda
se recusasse a servir-lhe de padrinho.
Quer deixar
a inocentinha fora do grêmio da Igreja?... Quer obrigar uma pobre mãe a gemer
sob o peso desse remorso?... E não o sentirá também?... Responda!
Elisa.
"
Tornei a ir
consultar o meu advogado, a formosa inglesa.
— E
agora!?... — perguntei eu, depois de ler a carta.
— Agora...
não há remédio! — respondeu ela. "Meigo"foi portador do meu
consentimento. No dia seguinte apresentava-me em casa de
Alberto e de
Elisa.
A modéstia
ordena-me que cale tudo quanto a gratidão lhes inspirou para me agradecerem.
Oito dias depois, na igreja da Sé, perguntava
o abade:
— Alice! Vis baptisare?...
E eu,
padrinho, respondia:
— Volo
E a avó,
madrinha, e a parteira, e a criada da parteira, e o sacristão, esses
respondiam:
— Bolo!
E está
acabada a história.
P. S. — "Meigo"foi durante dois anos
portador dos convites que me fazia o meu compadre para ir jantar com ele. Numa
dessas correrias chegou a casa atordoado, voou duas vezes à volta da sala e foi
cair morto sobre o berço de Alice, penhor da felicidade dos pais, felicidade
que só a ele era devida.
Até hoje,
ainda aquela família não teve outro desgosto.
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