Mário
Conheceis a Beira Alta?
É uma fértil província, portuguesa de
lei, que vê, a leste, a serra da Estrela com as suas neves; a oeste, o Caramulo
com a sua tristeza; ao sul, o Buçaco de gloriosa memória e de mística tradição.
É acidentado o solo, sucedendo-se às
pequenas ondulações do terreno as colinas, os cerros e os montes, separados uns
dos outros por quebradas e valeiros, onde sussurram as águas, caídas das alturas.
As cumeadas ou são vestidas de urzes e
de ásperos tojos, ou são toucadas com a rama verde-negra dos pinheiros. Mas tão
rica de seiva é toda a terra que, nos lugares em que o machado desbastou o
pinhal, vedes logo aparecer a leira verdejante, que irá escorregando pela
encosta, até se casar com a farta cultura dos vales.
Aos soutos de castanheiros de carcomido
tronco, e aos pinhais e carvalhedos, segue-se, aqui, o rico plaino animado pelo
ribeiro e pelo moinho ruidoso; ali, a vinha a espreguiçar-se na encosta; mais
acima, e longe e perto, a oliveira.
São tristes as aldeias, porque o granito
beirão, mal desbastando e enegrecido, lhes dá a cor do luto; e como elas, e
como a oliveira, é triste o aspecto do país. Não há as amplas planuras, em que
a vista se deleita e se namora; nem os meandros da lisa corrente a luzir, em
longa fita, por entre as folhas dos salgueirais; nem o alvejar de muita casa
branca, no pendor das colinas; nem a laranjeira odorosa, enfileirada em pomares
extensos, que, fora do Vale de Besteiros, somente a encontrareis como benéfico
atavio da casa do lavrador!
Mas na altura, no lugar vistoso,
aparecer-vos-á bem caiada a capela ou a igreja, meia escondida detrás das
folhas de castanheiros, de carvalhos e de oliveiras. São a devota alegria das
povoações vizinhas; são a respeitada causa de festas e romagens, onde o povo
troca por sincera alegria o ar sério e grave, que lhe é habitual.
Na Beira vereis a infância dos processos
agrícolas; o homem a suar trabalhos, a mulher a lidar no campo, e até as
crianças empregadas no duro serviço, que só é devido aos braços. Mas ao cair do
dia, vê-los-eis alegres e cantantes, apesar da fadiga de tantas horas.
Descobrir-se-ão diante de vós, e ouvi-los-eis a dizerem “guarde-o Deus” ou “Deus
o salve”!
Da torre da próxima igreja descerá o
toque da ave-maria, como bênção da tarde, que vem de cima; e enquanto vão
caminhando, silenciosos e recolhidos na breve oração, só ouvireis as campainhas
dos gados, que se recolhem ao redil.
E em tudo vereis a crença e a força; o
trabalho e a paz, e esta sã virilidade dos povos lavradores, que é o eterno
louvor da natureza!
Caminhai para leste, vinde comigo. Na
falda dessa Estrela, desse velho Hermínio, vereis unidas a agricultura e a
indústria: que dos alcantis da montanha lhes corre a água em torrentes, para em
baixo ser transformada em motor econômico.
Dizeis-me que estamos em dezembro de
1828; que tudo agora ali está velado por farto lençol de neve; que atravessa o
corpo o frígido vento, que de lá sopra; que toda aquela parte da Beira é como
um corpo morto e amortalhado.
Vinde, porém, assim mesmo. A
hospitalidade é lá generosa e franca, e na lareira das asas crepitam os cavacos
e ramos secos.
Daquela altura parecer-vos-á planície,
este imenso espaço até ao Caramulo.
Levar-vos-ei ao presbitério de S. Romão:
quereis vir?
É uma casa solitária, de um só andar,
bem rasgada por janelas pouco acima do solo. Tem na frente um jardim, que
parece guardado por duas grandes olaias, plantadas aos lados da entrada.
Sobem-se dois degraus, e dá-se numa sala pequena com três portas ao fundo. À do
meio aponta um corredor, sobre o qual se abrem alguns quartos, e que vai
terminar em outra saída, atravessando todo o edifício. Às dos lados
correspondem duas salas; uma, das visitas; outra, quarto de dormir do atual
possuidor.
São oito horas da noite; Dezembro vai no
fim, e esta nevando.
No fundo da casa vê-se o clarão
brilhante, que da cozinha se expande para o próximo corredor. Sente-se de longe
o rumorejar das fortes chamas, e o crepitar da lenha seca.
Sopra gélido vento! Brame nevosa
tempestade! A lareira do presbitério de S. Romão é, a um tempo, conforto e
alegria.
Lá fora pendem dos beirados as
estalactites cristalinas, geladas lágrimas do Inverno. Do cimo da serra desce a
grande toalha branca, que esconde, até muito longe, toda a verdura e toda a
vida. As árvores cobertas de neve fazem lembrar rocadas de alvíssima lã, que
alguém (feiticeira, decerto) emaranhasse, arrepelasse, desgrenhasse com fúria.
E voam e revoam em confusão os flocos de
neve, encontrando-se, impelindo-se, afastando-se, subindo, descendo, pousando,
erguendo-se: borboletas disformes, leves, subtis, a nadarem silenciosas no
fluido atmosférico!
Sopra gélido vento! A lareira do
presbitério tem calor e vida.
***
A lareira é ampla. Tem no topo a
pilheira da cinza, e dos lados dois troncos aplainados. Está encostada à
extremidade inferior do mais curto uma cadeira de braços, coberta de sola, com
grandes pregos de cobre luzente, e assaentado nela um homem de cabelos brancos.
É o vigário de S. Romão.
Uma mulher idosa, senhora no rosto, na
linguagem e nas maneiras, entra na cozinha com os preparativos para o chá da
noite. Desprende do gancho, cravado na parede, comprida mesa, que, gemendo nos
gonzos, desce até à ilharga do vigário, e se firma no pé, que lhe está apenso.
Estende-lhe em cima branca toalha, fabricada em casa; dispõe o necessário para
a refeição, e ilumina tudo com um candeeiro de três bicos.
– Valha-te Deus, Leonor! – disse o
vigário. És a abelha cuidadosa! Não podes chamar a criada?
– Não queres que eu te sirva, Maurício?
A criada está a fabricar o pão.
– Vem então para aqui, irmã. Aproxima a
tua cadeira.
– Que tempestade lá vai fora!
– E o rapaz sem vir – exclamou o
vigário. – Colheu-o, decerto a neve pelo caminho, e ficou-se em algum povo.
– É nós aqui tão consolados! – disse
Leonor, levantando um pouco a saia, e mostrando quentes sapatos de ourelo.
– Graças a Deus! – lhe tornou o padre.
Coitada da pobreza.
– É para os pobres, Maurício, o pão que
a criada está preparando. Ao menos, nenhum tem fome.
Acabado o chá, e levantada a mesa,
pôs-se Leonor a fiar, e o vigário a ler, em voz alta, nos trabalhos de Jesus
Cristo, do nosso Frei Tomé de Jesus.
***
Cantava o fuso na mão de Leonor; fervia
o cozido nas panelas enfileiradas aos lados da fogueira, e os testos arfavam
com a tensão dos vapores. Suspensa de fone corrente, estava uma caldeira com a
comida dos porcos, e sobre esta, comprida colher de pau, com que Leonor, às
vezes, abrandava o ímpeto da fervura. Em cima, no caniço, estalava, de quando
em quando, a casca das castanhas. Tudo ali falava.
O vigário interrompeu a leitura, para
admirar, com a irmã, as santas páginas do belo livro; e algum tempo depois,
disse outra vez:
– O rapaz já cá não vem!
Como se lhe respondesse ao cuidado,
entrou este na cozinha, com grande capa de palha, toda coberta de neve.
– Guarde-nos Deus, sr. vigário, e sra.
D. Leonor!
– Pudeste romper, Antônio Marcos! Ó
rapariga, traz dali vinho para o meu afilhado. Senta-te, Marcos! Chega-te ao
lume.
– Muito obrigado, sr. vigário...
– Pois sim, mas senta-te. Anda, tira a
capa, e vem aquecer-te. Pobre rapaz!
– Aqui tem uma carta do correio, meu
padrinho.
Leonor saiu, enquanto este se aquecia e
o padre começava a ler. Quando voltou, viu Maurício com as lágrimas nos olhos,
e perguntou inquieta:
– Que é, irmão?!
– Põe as mãos, Leonor, e agradece a Deus
a felicidade que nos manda. Paulo volta de Itália, e traz consigo a nossa
sobrinha para nunca mais nos deixarem. Oh! Deus de bondade!
– Deus de bondade! – repetia a velhinha
de mãos erguidas.
***
O padre Maurício era um velho alto, de
sessenta e quatro anos. O seu rosto magro, e pálido, faria lembrar as figuras
ascéticas dos painéis religiosos, se uns olhos portugueses, de bondosa vivacidade,
e uma boca de afável expressão, não suavizassem a séria gravidade das outras
feições.
Tinha a fronte espaçosa, alta, e bem
comada de cabelos brancos, que, rareados na frente, lhe caíam dos lados, em
anéis.
Este velho abraçara o seu estado como
verdadeiro crente da religião católica, e convencido de que o celibato, no
sacerdócio, era uma homenagem e um sacrifício necessário. Pensava e ensinava
que o período mais sublime da história da humanidade era aquele em que Jesus
havia consagrado a liberdade e a igualdade, pregando no meio do aniquilamento
geral das nações sujeitas a Roma.
Conhecia bem a história do papado, e
condenava-lhe os abusos; mas cria e sustentava que eram, e seriam sempre, úteis
e grandiosas a autoridade e unidade da Igreja. Lera Voltaire, e achava-o tão
torpe como as máximas daqueles que, fazendo da religião uma arma política,
haviam querido abafar a razão humana e a liberdade de pensamento. E no meio
destas altas questões, que sabia tratar com ânimo seguro e refletido,
conservara sempre as tendências e os prazeres de um poeta namorado da natureza!
Nos seus largos passeios, ao descair do
dia, punha-se a olhar para o Sol no ocaso, ou para a nuvem de colorido
inconstante, ou para as flores do campo, ou para as árvores seculares, como se naquele
peito houvesse um coração de vinte anos. Espreitava o lidar do inseto, e
quantas vezes arredava obstáculos que lhe empeciam o trabalho! Quantas vezes se
afastava de um lugar por supor que o voejar de tímido passarinho denunciava
ninho próximo! Para que havia de inquietar a pobrezinha da ave, ele, que tanto
se enlevava nos seus cantares; ele, que, dois passos mais além, achava, como
atrás, como ao lado, a nervura da folha para admirar, o gomo do ramo para lhe
imaginar a vida interior, a flor da árvore para lhe embalsamar o ar, o azul do
céu, de além do qual via Deus?!
E então da sua alma subiam para o
Criador de tantas harmonias, de tantas vidas, hinos santos. Cantava-os, mais e
melhor que as palavras, o seu agradecido olhar.
– Deus! Deus! – clamava ele de mãos
postas.
Os aldeões, ao vê-lo sereno e grave,
sozinho, olhando, como em êxtase, para o longínquo horizonte, perguntavam de
longe uns aos outros:
– O nosso vigário estará a rezar ali?
E estava! Orações sem palavras, que o
Céu entende muito bem.
Às vezes procurava um e outro dos seus
fregueses, longe das casas, no meio das lavouras. Deixava aqui um conselho;
além, fazia um pedido; mais adiante, repreendia com severidade. Dias depois,
havia mais alegria numa casa; noutra, viam-se mais lavados os filhos; naquela,
havia no domingo o salário da semana, porque o homem o não fora jogar no sábado
à noite; nesta o Manuel não batera na mulher, antes era bem-falante, e
agradecia, mal ou bem, a alvura e o engomado da camisa.
Topou, numa tarde, com um menino que
martirizava um feio sapo. Ao pé dele, muitos outros a rirem-se do esforço que o
pobre animal fazia para fugir. A pouca distância uns homens, a olharem para
aquela luta desigual, e a rirem-se como as crianças.
– Para que fazes mal a esse desgraçado?
– perguntou o pastor ao pequeno.
– É tão feio, nosso vigário...
– Coitado! – tornou o padre, afagando a
cabeça do menino. É verdade! mas nunca te fez mal; e faz-te bem indiretamente.
Olha, come muitas lagartas de insetos, que haviam de roer as raízes do que teu
pai semeia. Deixa-o. A caridade é para tudo quanto vive.
– Eu cuidava...
– Bem sei, filho. Julgavas que não
fazias mal. Eu também não ralho: aconselho e peço. E vós? – continuou o vigário
olhando para os outros pequenos. Tendes andado a caçar e a matar pintassilgos!...
É mal feito: são tão lindos e tão alegres! E além disto, pequenos, comem as
sementes dos cardos, que são daninhos à cultura. Não torneis a fazer isso.
– Mas os pardais, esses sim, são maus;
não são, sr. vigário?
– Não, minha cabecinha loira – respondeu
este a um pequeno de sete anos, guapo e decidido. Não. Olha cá: não valem, os
poucos grãos que eles comem, a alegria que lançam no ar? E, além disto, também
matam muito bichinho, que, se vivesse, desbastaria a seara! Não sabias?
– Não sabia.
– Aí tens. Não é maldade vossa, é
ignorância. É como a tua, Lucas – disse o vigário para um dos homens. Apanhaste
uma pobre coruja, mataste-a, e ergueste-a, num pau, acima do teu telhado! Para
quê?
– Nosso vigário! Para as outras terem o
exemplo, e fugirem!
– Pobre Lucas! Então também inventas a
pena de morte para ensinares as aves? Ouve. Se não queres emendar-te por
caridade, emenda-te por interesse. Tu sabes de que se sustentava aquela
desgraçada coruja?
– Do azeite que ia furtar à lâmpada da
igreja.
– Valha-te Deus! – disse o vigário,
repetindo a frase, que era o seu bordão. Olha, caçava os ratos, que dizimam o
teu pobre celeiro. Era o teu gato, mas que não miava a pedir-te de comer! E
também têm os seus afetos, os seus ninhos, os seus filhos. Tem dó disto. Só voa
de noite? Que queres? É porque os seus olhos se magoam com a muita luz. Adeus.
– Adeus, nosso vigário.
– Está célebre – disse o Lucas. Não se
pode fazer mal a nenhuma alimária, que o nosso vigário não venha acudir!
Mas iam-se respeitando os conselhos e
pedidos do padre, que vivera sempre em estreitezas porque repartia, com todos,
as rendas da vigairaria. E ele, que em tudo lia a bondade divina, que por toda
a parte pregava a aridade, entrava no presbitério com o espírito cheio de Deus.
Sua irmã Leonor era como ele, até onde
podia sê-lo. Lastimava que todos os padres não fossem como o irmão, e
distinguia sempre o padre do homem. Quando o sacerdote estava no exercício das
funções religiosas, entendia que tomava, quase, outra natureza, e que nesse
momento devia ser acabado com sincero respeito, embora a sua vida fosse cheia
de pecados. Era dois anos mais velha que o vigário, e muitas vezes tinha
passado com tristeza que morreria sem ver sua sobrinha, nem seu irmão Paulo,
médico residente na Itália, havia muitos anos.
O pai destes dois homens, e de Leonor,
tinha casado na Índia Portuguesa, para onde fora pouco tempo depois do
terramoto de 1755. Levaram-no para tão longe a perda dos haveres que tinha
depositados em casas comerciais em Lisboa, e o incansável ódio de uma família
poderosa pela opulência e pela proteção do marquês de Pombal, então Sebastião
José de Carvalho e Melo.
O pai do vigário era amigo da família
dos Melos, à qual havia jurado inexorável guerra a dos Pintos, uma e outra a
pequenas distâncias do presbitério.
Granjeada alguma fortuna, mandou Paulo
para França, onde se formou em medicina, e cedeu aos desejos de Maurício, que
tomou ordens e começou a missionar. No último quartel da vida voltou a
Portugal, e obteve para Maurício á vigairaria de S. Romão. Ali viviam todos, no
tempo da primeira invasão francesa.
Junot não pôde sustentar-se, e quando
chamou para Lisboa o general Loison, que estava em Almeida, agonizava o pai do
vigário. Não o desampararam os seus três filhos, e a vanguarda de Loison achou
uma casa habitada na sua descida para o sudoeste. Comandava-a um brilhante
general de brigada, parente muito próximo da imperatriz Josefina Beauhamais.
Achando ali três portugueses, que lhe pediam proteção e respeito para a agonia,
que estava próxima, deu-lha generosamente, e no dia seguinte foi honrar, com
soldados em funeral, a descida do velho à sepultura, que mandara abrir na
igreja.
O general de brigada chamava-se Eugênio
de Aurilly, e deixou no presbitério uma sagrada e imensa gratidão.
O príncipe regente, depois D. João VI,
deixara em Portugal uma regência, que, logo depois da saída dos franceses,
começou a perseguir, com o nome de jacobinos, um grande número de portugueses.
A família dos Pintos acendeu as iras do governo contra Paulo, e este viu-se
obrigado a emigrar. Encontrou em Paris o general de Aurilly, e acompanhou-o
quando ele partiu para o exército de Itália.
– Não vai bater-se contra portugueses –
lhe dizia ele – nem contra soldados de qualquer país. É médico, e vai exercer a
sua profissão nas ambulâncias.
Paulo foi, e a amizade, começada em
Portugal, radicou-se numa extrema afeição do general francês ao médico
português.
Acompanhou sempre o príncipe Eugênio, e
quando em 1815 o imperador sucumbiu, sob a coalizão, já Paulo tinha uma filha
de dois anos, cujo nascimento custou a vida da mãe. Foi então para Ravena, onde
tinha parentes de sua mulher, e ali exerceu a medicina.
Na velha cidade, alumiada sempre pela
memória do Dante no exílio, recordando com entusiástico afeto todas as partes
da Itália napoleônica, mas sereno e mudo perante os pequenos herdeiros do
grande império, aparentemente só viveu para os seus doentes, para os seus
estudos e para a educação de sua filha.
E isto pode explicar que o condecorado
com a “Legião de Honra” não fosse perseguido pela intolerância do governo
papal, exercido então por baionetas austríacas.
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