Maria
Madalena
Tudo o que no seu coração havia de
santidade e de sideral pureza dera-o ela aos homens que tinha amado, arrastada
por um tumulto de ilusões que nunca floriram; e agora, a sua mocidade e a
candura da sua beleza iam mirrando tristemente, como uma rosa caída há poeira
dos caminhos e de todos os pés calcada. Outrora, nas douradas manhãs da
adolescência, a formosura radiante de Maria Madalena iluminava almas e vergéis.
Em pequenina, as morenas mulheres bíblicas, se lhe afagavam o rosto sereno onde
se espelhava o alvor da inocência como a estrela da madrugada num lago manso,
erguiam as mãos e exclamavam:
— Abençoados sejam os peitos que te
deram de mamar e o ventre que te gerou!
As pombas, descendo em revoadas dos
altos minaretes, nas tardes loiras de sol, vinham arrulhar na graça virginal
dos seus ombros nus, e as cotovias pousavam-lhe cantando nos braços, feitos
para pendentes e manilhas de ouro, na religiosidade das auroras nascentes.
Assim fora crescendo, pura como um lírio.
Ao tempo em que era moça, o seu corpo
imaculado tinha o viço e a romântica alvura das açucenas: e os seios, severos e
rígidos, como frutos novos, com lágrimas de aurora tremendo no meio, lembravam
jaspes brunidos onde, por um milagre, manassem gotas de sangue que o frio
congelasse. No lar em que desabrochara como um jasmim, errava um perfume de
felicidade e de paz, que a sua virgindade enternecia. Um dia, veio o primeiro
amado e uma íntima e casta adoração encheu-lhe o peito ingênuo. Pelos finos
silêncios do crepúsculo, ficava-se a olhá-lo enlevada, os olhos vagos tocados
de luar, o peito arfando de sobressalto, a face ardendo de rubor. Ah! ser
querida para sempre, ter perto de si alguém que a amparasse com toda a bondade
e todo o carinho, possuir um braço forte que a guiasse pelas ermas asperezas do
mundo!
Era como se na sombra caíssem estrelas,
desprendidas da seda dos céus plácidos e que esclarecessem toda a treva. Mas o
nem amado fugira, deixando-a, quando ela chorou de mágoa e de vergonha. Então,
outros vieram, queimou-se no lume impuro que a abrasou, andou de mão em mão
como uma flor a que se houvesse aspirado todo o aroma.
E sempre a humilhação, a desventura, o desalento,
a crueldade! Não sonhava já. As suas quimeras iam longe, num poente expirante
que a vista mal alcançava. Desprezada, repelida da porta das herdades,
escorraçada de toda a piedade, esmolava sem destino pelas estradas, lavando as
manchas do corpo com prantos ardentes.
Os cães ladravam-lhe pelos atalhos, as
crianças debandavam espavoridas quando ela, invadida por uma funda saudade,
queria beijá-las e apertá-las meigamente contra o seio; os homens
murmuravam-lhe ao ouvido palavras sórdidas, com gritos roucos de desejo; e as
noivas, ao voltar das fontes coroadas de narcisos frescos, cobriam
aflitivamente a face, se a encontravam bebendo nos regatos ou repousando das
soalheiras que queimavam como labaredas, sob os sicômoros e as figueiras
bravas.
Através das montanhas, correndo os descampados
e escutando o sussurro das fontes, lembrava os momentos amorosos de outrora e a
sua juventude tão malfadada.
Os pastores atiravam-lhe côdeas duras
que ela devorava sofregamente; escondia-se pelos côncavos das serranias ou
pelas quebradas dos vales, fugindo ao vento das noites sem luar.
Toda a vida amara os outros, por eles se
perdera e nunca alguém lhe teve amor. Com que alegria, com que piedosa
gratidão, com que enlevo descansaria a cabeça no seio daquele que a levantasse
da lama! Mas quem se compadeceria da sua dor, quem apeteceria sequer o seu
corpo maculado? Lívida, desgrenhada, batida de sarcasmos, mostrava as carnes
por entre os farrapos que as chuvas tinham apodrecido. Os dedos esguios e
ósseos engelharam e havia muito que não colhiam rosas; na sua boca que o
sofrimento empalidecera e enrugara, morreram as canções de idílio que
antigamente lançava à aragem sonora. Todos a esqueceram; somente os soldados
romanos, de grandes lanças com ferros polidos brilhando no cimo, a osculavam
com fúria, se a deparavam no seu caminho, ao acaso, tão pobre e só como sempre,
ou os foragidos e os vagabundos a assaltavam pelos matagais e pelos brejos, de
olhar falseando como brasas vivas. E assim vivia, no lento desespero dos anos
que nenhuma consolação serenava. Até das sinagogas a varriam como a um lixo,
para que a sua podridão moral não profanasse os templos e não corrompesse dum
hálito empestado o ar e a unção dos ambientes purificados de virtude e de fé.
Jesus Cristo repousava uma tarde à beira
de um rórido pomar. Ia esmorecendo a rosa divina do sol; em ranchos, os íbis
passavam para os ninhos, e as cores gritantes desfaleciam na candidez do fim da
tarde pacífica. Da terra, das cearas maduras, dos rios correndo e murmurando
por entre os aloendros em flor, onde dormiam cegonhas, das densas florestas,
dir-se-ia elevar-se uma oração que subia tranquilamente para o céu. Uma poesia
esparsa, feita de sonho, de infindável aspiração, de ternura, pairava na
atmosfera translúcida.
Jesus palmilhava a terra negra da
Judeia, ensinando a misericórdia e o perdão. Na gleba estéril que as suas
sandálias rotas pisassem, rejuvenesciam ervas; rocha dura que o seu bordão de
peregrino roçasse, inundava-se de água; os próprios cardos reverdeciam, se o
visionário sublime os lamentava. Não se sabia de onde viera. A sua existência
andava envolta numa teia de lendas e de mistérios; mas a lama dos seus milagres
e a doçura da sua caridade espalhavam-se por toda a Galileia.
Dizia-se que Jesus não possuía eirado ou
vinha, choupana ou rebanho, trigal ou horta, e que, por isto mesmo, abalara,
evangelizando, pregando o desdém pelas riquezas e rasgando ao infortúnio das
almas a transcendente vereda da salvação, que atravessava charcos, galgava
carcavões, trepava montes e se alava aos intermúndios da beleza eterna. O seu
nome era abençoado pelos que muito padeciam; as suas palavras vertiam bálsamos
maravilhosos nos peitos ulcerados de dor.
Curava os leprosos, refrescava-lhes e
ungi-lhes as chagas com remédios e aromas desconhecidos, oferecia aos famintos
um pedaço do seu pão e mergulhava a palma da mão nos charcos para saciar a sede
aos mendigos. As criancinhas aproximavam-se dele e queriam espreitar--lhe os
olhos azuis, puxando-lhe levemente pelas pontas do coffie.
O Rabi nascera num casebre humilde de
Nazaré e era filho de gente resignada e boa.
Mais tarde, chamara para a sua companhia
rudes pescadores, aconselhara-lhes o renunciamento das vaidades e partira no êxtase
da sua crença, libertando os escravos e redimindo os condenados. O seu poder
extra-humano comunicara-se aos companheiros. Uma desamparada mãe clamava um dia
contra a morte que lhe arrebatara o filho, seu derradeiro auxílio; e Cristo
ressuscitara-o, rezando.
Pedro, seu companheiro, ouvindo uma vez
em Jafa soluços abafados e vendo as mulheres carpir mágoas pela morte de
Dorcas, velha e ingênua tecedeira, trouxera-a novamente para a vida,
levantando-lhe a pedra do túmulo. E logo da sepultura brotaram anémonas, e
abelhas de ouro, como numa aleluia!
Jesus criou também a esperança, que
surgiu gloriosamente da terra sagrada da Palestina.
Madalena assistia deslumbrada ao
desenrolar destes milagres. Dentre a turba humana, Jesus Cristo era o único ser
que não repelia os deserdados com a ponta do pé. Procurou-o através de selvas,
de despenhadeiros e pragais. Os outros jogavam-lhe pedradas e duros escárnios;
mas as vilezas e as maldades não a afrontavam, porque na sua alma dealbava uma
clara manhã de felicidade. Pensava que Jesus a acolheria com carinho e lhe
enxugaria docemente as suas lágrimas, e esta esperança seduzia-a.
Certo dia, explicava Cristo ao povo
triste, num casal de Samaria, essas doutrinas libertadoras que volvidos séculos
iluminaram a vasta desolação universal. Escutavam-no as multidões prosternadas
que a miséria devorava como uma chaga, e sobre as suas frontes brilhava um
nimbo radiante. Madalena viu-o e ficou deslumbrada. Os seus desejos carnais
acenderam-se diante da figura ideal desse homem na flor dos anos.
Tinha os lábios tão vermelhos que, por
certo, jamais neles haviam flamejado pecaminosos beijos: e as suas parábolas
eram de uma tal suavidade que derramavam nos peitos atormentados uma
pacificação indizível. Como a adoração de Jesus daria gozo às vontades sedentas!
Pudesse ela rolar a cabeça delirante, desvairada de luxúria, naqueles ombros
que as privações definharam!
Começou, então, a seguir o Rabi pelas
sarças, pelos espinhais, pelos campos, pelas aldeias. Ele tão bom e tão justiceiro,
não lhe negaria um quinhão desse amor que é a razão de toda a vida. Havia de
amá-lo apaixonadamente, de sofrer por ele, de acariciar-lhe os pés, chaguentos
das caminhadas, na macieza das mãos.
Uma vez aproximou-se, tímida, medrosa, apavorada,
e Cristo sorriu-lhe com meiguice. Sentia-se feliz, era a primeira vez que
alguém se não enojava do seu crime. E contou, com os olhos rasos de água, todas
as suas desditas, todas as suas angústias, toda a sua desgraça imensa. No
poente de ouro voavam as garças, batendo as asas, e as rosas desfaleciam na
languidez crepuscular. Jesus ajoelhara, comovido. Uma serenidade augusta dava
relevo à sua figura etérea e a sua voz pausada e profética ressoava no
silêncio.
— O mundo é mau, em verdade to digo. Ama
as coisas efémeras da terra e a tua desventura será enorme. Mas ergue a fronte,
que o teu amor vá para o alto, para Deus, que não engana...
Um pranto de consolação e de alívio
inundava as faces de Madalena, desoprimindo-a; as revoltas do seu sangue
apagavam-se.
— Chora! — murmurou Cristo. Chora
sempre, que o pranto purifica e torna a dor fecunda como as cearas. Chegará um
minuto supremo em que a tua existência atinja o céu.
— Todos me repelem! Sou mais desgraçada
do que as cadelas leprosas.
— Sofre, que o sofrimento deixará o teu
coração tão branco como os lírios de Galaad.
Vinha subindo a lua redonda e
resplandecente, como numa apoteose. O ar toldava-se duma poeirada tênue de
astros. As palmeiras ramalhavam à perfumada aragem que passava. Madalena repousara
a fronte sobre os braços de Jesus!
Havia tanto tempo que não dormia assim!
Cristo admirou-a na sua quietude
confiada. Irradiava de claridade. E ele era moço; aquele coração torturado,
palpitando junto do seu, perturbava-o.
No seu sentimento, repentinamente,
definira-se um mistério. Era, afinal, humano e feito do mesmo barro que gerara
a primeira criatura; uma tentação empolgava-o. Estremeceu até à mais recôndita
fibra do seu ser, quando pousara a sua boca na de Madalena, num ósculo
imaterial e longo. A pecadora acordara dum sonho infinitamente lindo e
contemplava-o mudamente; mas Cristo, sublime, dizia:
— Que o beijo que eu te dei seja,
através dos tempos, o símbolo da misericórdia e do arrependimento e que as tuas
lágrimas lavem todas as culpas das que errarem!
Alvorecia; uma luz de incomparável
pureza cobria a terra inteira...
----
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...