Manhã Bendita
(A Antônio Correia de Oliveira)
Em casa do José Grilo, quando de
manhãzinha lhe bateram à porta – “Truz, truz, truz!” – acordaram todos
sobressaltados: – “Quem demônio seria?!...”
– Schiu! Nem pio! – fez o José
Grilo para a mulher. – Moita carrasco! Mas de fora tornaram a bater: – “truz,
truz, truz!”
Do seu cubículo, a Ana, filha do
José Grilo, pôs-se de lá a chamar pelo pai:
– Ó meu pai! Vossemecê não ouve bater?
– Bem ouço, deixa! Algum bruto
que se quer divertir. Isto é Entrudo.
Mas ainda outra vez bateram à
porta, agora com força.
– Arre, bruto! – gritou então o
José Grilo. – Vá bater ao diabo que o leve, ou com a cabeça às grades do
inferno! Arre, bruto!
Mas pondo-se à coca de orelha
fita, os olhos na telha vã do casebre, sentiu passos de alguém que fugia.
– Bem digo eu! É bruto! Aquilo
foi animal que se quis divertir!
Mas palavras não eram ditas, o
José Grilo pôs-se outra vez à escuta, e disse para a mulher:
– Não ouves, ó Joana?...
– Não...
– Um cachorrinho... Mesmo à porta...
– E como quem lhe palpita que acertou, emendou logo: – Tate! Isto é volta de
zorro!
– Volta de quê?!
– De zorro! Queres tu apostar que
há novidade?!
E de um pulo saltou da cama,
atirou com a manta para cima das costas, – e abriu a porta.
– Ele que dianho?...! – perguntou
o José Grilo vendo um embrulho. Era um embrulho de trapos.
–...Ele que demônio de embrulho?!...
Pegou-lhe. Não pesava nada. Mas
era efetivamente um recém-nascido, envolto nuns trapos velhos.
– Ó mulher! – pôs-se o José Grilo
logo a chamar. – Ó Ana! Mas ele próprio veio a correr onde à mulher:
– Deixa! Deixa! Abre aí um cantinho
da cama, pra este inocente!
– Pra este quê?
– Pra este inocente! Está mesmo
morto com frio!
– Uma criaturinha de Deus, vede!
E já o José Grilo a ajeitava na
cama, envolta ainda nos seus trapinhos; e enquanto a mãe enfiava o saiote,
bafejava a filha, muito solícita, a criancinha:
– Coitadinho! Parece mesmo um
novelinho! Tão pequenino e tão bonito! – Ó minha mãe! Mas a mãe, silenciosa,
acabava de se vestir, e o José Grilo já enfiava a jaqueta.
– Ouves?! – acudiu ele para a
filha. – Despacha-te! Ele quem há por aí que tenha leite? A filha do Antônio
das Veredas, essa. A Brites, que lhe morreu o cachopo! Acode já para que venha
cá! Despacha-te!
– A pressa... – resmungou a Sra.
Joana.
E o José Grilo, inda sem
perceber:
– Nada! Deixa-se agora p’r’ aí a
criança, a morrer de fome!
E da porta, gritando para a
rapariga que ia correndo:
– Ouves?! Que se não demore! Que
se lhe paga o que for preciso! Corre! Mas a mulher do José Grilo, a Sra. Joana,
embezerrada já no meio da casa...
– Ó mulher! – espertou-a o
marido. – Parece que algum medo te deu! Não tenhas aflições, que não vale a
pena.
…Oh, mas parecia-lhe agora ter
percebido: – “Aquilo eram zelos! Capaz era ela de estar com ciúmes!... Então
espera...” – E desfechou-lhe para a arreliar:
– É tal qual como se fosse nosso,
faz de conta!
– Nosso, é um modo de falar! Será
do meu homem, mais de alguma desavergonhada como a ele!
E o José Grilo, na sua:
– Faz de conta que te nasceu a
ti.
– A alguma “cadela”, mas é!
O José Grilo abotoava o colete. Fingiu
um tom de ameaça e de repreensão:
– Ó mulher!...
E ela, no mesmo tom:
– Ó homem!...
– Tu não me rezingues, olha que
me desgraças!...
(E reprimiu uma gargalhada).
– E tu não negues, que negas a
Cristo! O meu homem é um “santinho”! O José Grilo, sério:
– Ajeita a criança, anda! Não
fazes mais que é o teu dever. Uma caridade faz-se a um inimigo.
– Ajeita-o tu!
– Vai lá ver, que estará molhado!
Agora, ela fitou-o, turbada...
O José Grilo entendeu recuar:
– Então! Não querem ver?! Capaz
és tu...
– De dizer que é teu?! E digo, e
digo, e digo!
– Ó mulher, ó mulher!...
E ela, na mesma:
– Ó homem, ó homem!...
– Ó mulher dos meus pecados!
– Anda cá ver que é um rapaz. Vem
cá se queres ver.
– Isso! Era só agora o que cá me
faltava! Agora até os filhos das outras!
E berregando que lembrava uma
cabra, a Sra. Joana rompeu a chorar, – jurando que o “filho” era do seu homem!
– Ai Jesus, que estou perdida!
– Ó mulher! – acudiu o José Grilo
como se fosse a um fogo. Mas ela, desaustinada:
– Má hora em que m’eu casei! Má
hora em que eu fui à igreja! Ai Jesus, que vai ser de mim!
– Mau, mau... mau, mau! – entrou
o José Grilo de regougar também, nem ele sabia já se de zangado.
Mas firme como uma rocha,
plantou-se agora diante da mulher:
– Pois assim me Deus salve...
Ouves?! A mulher fitou-o de frente.
…Mas ele – fingindo que se
arrependia:
– Nada.
– Não jura! O meu homem não jura!
Àq’del-Rei que o “filho” é dele! Tornou o Grilo a recuar:
(... Demônio!...)
E outra vez diante da mulher, com
os dedos em cruz chegados à boca:
– Pois juro que não é meu o
rapaz!
– E beijas a cruz?!
– Olha!
– E assim te Deus dê saúde, ó
José?!
– Assim me Deus dê saúde!
– Preto sejas tu como o teu
chapéu?
– Preto seja eu como o meu
chapéu!
Já a Sra. Joana corria para o
canto da casa, onde tinha a arca do bragal. Abriu-a; e uma “Nossa Senhora do
Caminho” que tinha na tampa, colada com bocadinhos de hóstia, cobriu-a de
beijos com muita ânsia!
Desabafou, aliviada:
–...Ai!
O José Grilo pusera-se a rir: – “O
demônio da mulher picada de ciúmes!...”
E agora, como espantado e muito
ofendido:
– Mas ciúmes de quê, ó mulher?!...
Ciúmes de quem?!... Não farás favor de me dizer?!...
A Sra. Joana já ajeitava o
pequeno, encafuando-o muito debaixo da roupa:
– Isso! Agora vê se o abafas!
Caíra em si a Sra. Joana; – mas
não queria, agora, dar de pronto o braço a torcer:
–...Bem sei!... O meu homem é um “santinho!”
– Lá pra “santinho” inda me falta...
Mas como o outro que diz...
– Gaba-te, cesto!
– Não é “gaba-te!” – tornou o
José Grilo, outra vez para arreliar a mulher. – Eu não me meto com elas!
– Olha quem!
–...Mas se elas vêm e se metem
comigo...
– José... José...
– Joana... Joana!... Se m’eu
casei, tu me perdeste...
–...Mas se elas se metem comigo...
– Que tem?!
– Que tem?!... Não hão de dizer
que não tens homem! O pequeno chorava mais.
– É fome, coitadinho! – disse a Sra.
Joana. – E a Brites que se demora tanto!
E ela mesma acudia à porta, a ver
se chegava a filha com algum recado, e atrás dela o José Grilo.
– Não queres ver?! – espantou-se
ele para a mulher. – Aquela que vem é a Doroteia! E atirando-se para fora da
porta, gritou para elas:
– Não és tu! É a tua irmã! Que
diabo vens tu cá fazer?!
E pregou à filha dois bofetões, –
“para que soubesse dar o recado”.
Mas a Doroteia acudiu: – “que a
Ana não tinha culpa. A irmã é que a mandava a ela para levar a criança, porque
a Brites, adoentada, fazia-lhe mal apanhar o relento”.
– Só se lhe queres tu dar de
mamar! – inda insistiu o José Grilo para a Doroteia, irreverente pela sua
virgindade.
– Ó José!... – repreendeu-o a
mulher. – Essas coisas nem por graça...
– Eu sei lá se “nem por graça!” O
que eu sei é que não veio a outra! E leva a criança e não leva, e chega e não
chega daqui ao Varandas, capaz é a criança de me morrer de fome!
Já as mulheres pegavam no menino,
– aconchegando-o com mil carinhos.
E o José Grilo, da porta:
– Então vem ou não vem?!
E quando depois chegaram as
mulheres:
– Com jeitinho, hem?!...
…Parecia mesmo que levava o Santíssimo,
a Doroteia, e que as outras duas, agasalhando-lho ainda no colo, rezavam o
Bendito...
E quando abalou a filha do
Varandas, dizia o José Grilo recolhendo-se:
– Seja tudo pelo amor de Deus!
Seja de quem for, é uma alma cristã!
E a mulher e a filha, com os
olhos rasos de lágrimas, – beijavam-se dando os bons-dias:
– Bons-dias, mãe.
– Bons-dias, filha.
E para o pai, reparando que ainda
nessa manhã lhe não pedira a bênção:
– A sua bênção, pai.
– Deus te abençoe.
…No campanário, que o sol nascente
doirava na aresta, – tocavam as ave-marias...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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