O
caminho, trilhado pelos carros sobre as terras lavradas, subia docemente para a
ermida caiada. De vez em quando, via-se lá no alto uma nuvenzinha branca,
formada no céu azul; e, instantes depois, ouvia-se estalar um foguete. Aos
lados, os campos estendiam-se a perder de vista em ondulações quase insensíveis,
amarelando no tom claro dos restolhos, brutalmente feridos pelo sol de julho,
que inundava tudo. Apenas, de longe em longe, algumas oliveiras enfezadas
punham sobre o caminho poeirento estreitas nesgas de sombra. E a sombra magra,
tênue, caindo da árvore pálida, onde as cigarras entoavam o seu hino ao calor;
a sombrazita leve parecia ainda mais quente do que o resto.
Mas,
apesar do calor, a estrada ia já cheia de gente. As moças do povo, muito sécias
nos seus lenços novos puxados à testa, nos seus vestidos de chita clara, que
faziam parecer mais negras as suas mãos queimadas, caminhavam num passo firme,
indiferentes à torreira do sol, como quem ceifou na véspera, e tem de ceifar no
dia seguinte. E, atrás das moças, mais rudes, mais lorpas do que elas, levados
pelo beiço, iam os rapagões de trabalho, afogueados, quentes também por dentro
com alguns quartilhos de vinho, os chapéus na nuca, e as largas cintas
vermelhas, as mangas brancas das camisas, reluzindo na luz intensa.
Um
cocheiro gritou aos grupos, que se afastaram, saindo para o restolho, deixando
passar a carruagem. Alguns homens levaram a mão ao chapéu, lentamente, de má
vontade. Era a caleche do Sr. João
Cardoso, o rico, que ia à festa ver as moças, com o delegado e o José Carlos da
botica.
Atrás
da carruagem, no passo mais lento das mulas velhas, vinha agora um carro
alentejano, sem toldo, trazendo dentro um ramalhete de sorrisos frescos, de
saias claras e refesteladas, de lenços garridos, azuis como a flor do almeirão,
escarlates como as papoulas, amarelos como os malmequeres — todas as cores
fortes do meio-dia, faiscando na luz meridional. Vinham ali a Josefa Vila
Verde, e as duas Lameças, e a Chica Sirgueira, e a Anica do Corro, e, atrás, no
pior lugar, a Rita Camacha — porque o carro era dela, e a rapariga, ufana da
sua superioridade, fazia as honras às amigas.
Eram
bonitos de lei, os vinte anos da Rita Camacha. No seu narizito um pouco
levantado, e na sua boca graciosa brilhava ainda um sorriso alegre de criança;
mas os cabelos pretos, pesados, e os olhos grandes, de um tom castanho, a que
os laivos verdes davam transparências fundas de ágata, modificavam-lhe a
expressão, tornando-a mais mulher, involuntariamente provocante. E o que havia
de singular naqueles olhos da Rita, eram as pestanas negras e bastas, tão
negras e tão bastas, que os olhos pareciam pintados, artisticamente jeitos a
lápis preto por uma atriz francesa.
Mesmo
as suas rivais confessaram depois, que ela, nesta tarde, ia: “Muito bem
composta” — muito elegante no seu vestido novo, com um lenço de seda na cabeça,
e outro lenço grande, vermelho e amarelo, cruzado sobre os seios já fortes.
Direita no carro, segurava-se ao taipal com a mão pequena, apenas queimada;
porque a Rita pouco trabalhava no campo. Saía às vezes à azeitona, quase por chic, para ir com as outras, e mondava
na sua seara; mas aos trabalhos duros, às ceifas, ao mato, nunca ia. O pai
dela, o João Camacho, estava bem. Tinha ricas fazendas; e, com as suas quatro
parelhas, ganhava muito bom dinheiro nos carretos de trigo para a estação, e
para os moinhos da ribeira.
E
justamente neste dia da Festa das Moças,
a Rita ia alegríssima; alegre porque se sentia bonita e bem vestida; porque ia
no seu carro; porque adiante do carro, num rancho de rapazes, ia o Zé Severo,
que de dois em dois passos se voltava para a ver.
A
chegada do carro ao terreiro da ermida, foi um triunfo. Vinham ali as moças
mais elegantes — o beijinho; e apenas as raparigas saltaram para o chão,
compondo os beiços, endireitando as pregas das saias, foram arrebatadas para o
baile pelos pares que as esperavam.
Ficaram
horas no baile, andando à roda num passo vagaroso, cantando em coro as modas lentas, entoadas em terceiras,
prolongadas em sonoridades singulares e doces. A cada volta havia um changez de dames; e as moças calculavam
já de longe quando chegava o namorado. Mas, depois, mostravam-se indiferentes,
sonsas, muito sérias, deitando-lhes apenas o rabinho do olho, respondendo
levemente à pressão terna das mãos calosas e suadas.
Já
tarde, quando a luz horizontal passava roçando nos restolhos ruivos, e a sombra
da ermida se alongava sem fim pelo campo queimado, a Rita deixou o baile; e,
com a Chica Sirgueira, foi tomar ar, espairecer em volta da ermida. Pararam um
momento a ver a vila, embaixo, saindo clara do cinzento terroso dos farrejais:
as casas brancas do arrabalde, rosadas agora na luz do poente; as árvores dos
quintais, recortando-se em pequenas manchas escuras; os últimos raios do Sol,
batendo de chapa nos vidros novos do prédio alto do Cardoso. Isto
interessou-as.
—
Olha! parece que está a arder — disse uma delas.
Mas
seguiram, enlaçadas, os braços à roda das cinturas, mascando nos dentes uns
raminhos de alecrim, cochichando confidências amorosas. Na volta, quando
passavam diante do adro, o João Cardoso destacou-se de um grupo de ricos, que
ali estavam fumando, e veio falar-lhes:
—
Olá, Ritinha! Cada vez mais linda. Que boa que tu estás hoje!
A
Rita quis passar sem responder. Detestava “o bruto do Cardoso”. Mas ele
atravessou-se no caminho. Estava ignóbil na virilidade sanguínea e bem mantida
dos seus quarenta e cinco anos, gordo, o beiço caído, o branco do olho raiado
de sangue, as mãos fundamente plantadas nos bolsos das calças, quebradas em
pregas velhas. E, cinicamente, sem se importar que a Chica ouvisse:
—
Olha lá, Rita, em querendo é dizê-lo. Ainda que seja uma vez só, hás de andar
aí vestida de sedas, metendo as outras todas num chinelo.
Perante
a injúria, daquela oferta bruta de compra, a Rita sentiu-se corar até à raiz do
cabelo. Os olhos encheram-se--lhe de lágrimas de raiva. Procurou uma resposta,
uma palavra com que açoitasse as faces do homem; mas só soube dizer:
—
Deixe-me passar.
E
fugiu com a Chica para o baile.
Dançaram
o meio. Os moços e as moças, de mãos
dadas, formavam uma larga roda, andando mais depressa, cantando num ritmo vivo;
e dentro de cinco ou seis pares pulavam — uma polca especial, pulada, valente,
batida no chão pelos sapatos grossos. A Rita viu o Zé Severo, e foi tirá-lo
oferecendo-se, com os braços abertos. Foram ao meio; e, encostada ao peito do
namorado, enlaçada pelo seu braço robusto, pela sua mão dura que lhe magoava as
costelas, a rapariga ficou mais contente, instintivamente protegida pela
honestidade rude daquele abraço, vingada do bruto Cardoso.
***
Quando
a Rita chegou a casa, já depois das nove horas, o pai ainda não recolhera, e a
mãe, a Benta, começava a estar inquieta; mas a rapariga tranquilizou-a: “O pai
tinha ido com as duas parelhas buscar uma mó à Pedra Furada para a levar ao moinho
da Vargem. Eram mais de três léguas de caminho; e, com uma mó em cima do carro,
as parelhas não podiam andar, como se levassem cinquenta alqueires de trigo...
primeiro que chegassem à beira... que descarregassem a mó... que voltassem. Por
ora não tardava.”
Tinha-se
sentado junto da porta, procurando fresco, esbraseada ainda do dia, o lenço da
cabeça desatado, o pescoço úmido, vendo, lá fora, uma nesga de campo preto, e,
por cima, o céu estrelado — porque a casa dos Camachos ficava ao sair da vila,
mesmo no fim da rua.
Dentro,
a mãe punha a mesa para a ceia; e, estendendo a toalha, colocando os pratos,
perguntou-lhe pela festa.
—
Estava muito bonita, um balho bom,
quase todas as moças da vila — disse a rapariga.
Mas
subitamente, corada, toda raivosa, não se teve mão, que não contasse à mãe o
que lhe sucedera com o Cardoso. Então a Benta parou, com um prato na mão,
indignada:
—
Pois ele disse-te isso! Pois, olha, livre-se ele que teu pai o saiba, que lhe
há de partir a cara. Não lhe há de valer lá o seu dinheiro... há de lhe partir
a cara. Ora o condenado!... O alma do diabo!...
Estavam
tão acesas as duas mulheres, tão entretidas na conversa, que não ouviram, fora,
um passo rápido na areia da estrada; e quando o almocreve, que tinha ido com o João
Camacho, entrou a porta, tiveram um sobressalto. O moço vinha alterado, branco,
e apenas pôde balbuciar estas palavras:
—
Oh! Tia Benta, não se assuste... foi uma desgraça... uma desgraça... mas oh!
Tia Benta, não se assuste.
A
mulher escutava imóvel, sem perceber, sem perguntar; e a Rita de pé, pálida, as
mãos postas, não se atrevia a dizer uma palavra. Então o rapaz explicou
confusamente:
—
Foi aquela cabra da mula vermelha que se furtou numa sobroda, mesmo já às
quedas da ribeira... o carro voltou-se... e a mó apanhou o Tio João, que nunca
mais deu acordo de si... foi uma grande desgraça... mas oh! Tia Benta, não se
assuste... o Tio João talvez esteja melhor, desde o meio do caminho que não
geme.
Lá
fora, na noite límpida, serena, estrelada, começava a ouvir-se o andar
compassado de homens que traziam um fardo. Uma voz baixa dava instruções:
—
Devagar moços, devagar, com cuidado.
E
agora, aparecia entre portas a extremidade de uma escada, segura adiante por
dois moleiros, todos brancos de farinha, suados, estafados. Vinham assim, às
varas da escada, desde a ribeira — seis quilômetros. Sobre a escada traziam o
João
Camacho, coberto por uma manta alentejana, que pendia aos lados, em pregas
moles, como o pano de um ataúde.
De
repente, ao vê-lo, a Benta levou as duas mãos à cabeça, arrancando o lenço,
desgrenhando-se, exclamando:
—
Ai! que mo mataram!
E
sem saber porquê, nem contra quem, começou a gritar:
—
Aqui-del-rei! aqui-del-rei, que me mataram o meu homem!
Os
moleiros entraram cuidadosamente. Queriam passar para o quarto interior, mas a
porta era estreita, a escada não cabia. Alguém lembrou:
—
Tragam daí um colchão.
A
Rita, enfiada, alumiava; um dos moleiros foi lá dentro, arrancou o colchão de
uma cama, veio estendê-lo na casa de fora. E, com muitas cautelas, passaram o
Camacho para o colchão. Aos gritos da Benta, a casa enchia-se de gente. Toda a
vizinhança estava ainda levantada, sentada pelas portas naquela noite quente de
Julho. Ao fundo da casa, os moleiros, tirando o chapéu, passavam os lenços de
cor sobre as testas, escorrendo suor. E, em volta do colchão, à roda da Benta,
que não cessara de gritar, as mulheres aglomeravam-se, condoídas e curiosas,
num burburinho de exclamações e de choros. Mas todos ficavam hesitantes, como
medrosos, sem se atreverem a tocar no Camacho, absolutamente imóvel,
aparentemente morto. O regedor, que entrara indagando o que tinha sucedido, foi
o primeiro a lembrar:
— É
preciso chamar o médico.
—
Já lá foi o Zé Russo a correr — disse um dos rapazes.
Pouco
depois, ouvia-se uma voz forte na rua, dizendo:
—
Deem licença. Deixem passar... fazem favor.
E o
Dr. Sousa entrou, sem tirar o seu grande chapéu de abas largas, abrindo os
grupos, perguntando:
—
Onde está o ferido?
Antes
de ouvir a resposta, viu o homem estendido ao meio da casa; e foi rapidamente
ajoelhar junto do colchão, dizendo ao acaso para um dos rapazes que ali estavam
de pé, aparvalhados numa contemplação idiota:
—
Dá cá daí essa luz.
E,
enquanto o rapaz, tremendo, segurava a candeia, o Sousa debruçou-se sobre o
Camacho, rasgou-lhe a camisa ensanguentada, pondo a descoberto o braço
esquerdo, partido em duas bandas, e o tronco horrivelmente ferido, como
esmagado pela pancada da mó. Fez-se então um grande silêncio. A Benta mesma se
calara. Todos estendiam os pescoços; e, sob as abas largas do chapéu, viam-se
brilhar os vidros dos óculos fixos do médico, tocados pela luz da candeia. O
exame durou pouco, e o Sousa disse alto:
—
Não há nada a fazer... está morto há perto de uma hora.
Ao
levantar-se deu com os olhos no regedor.
—
Ah! boas noites, Sr. Pedreira, não o tinha visto quando entrei. Isto foi um
acidente?
—
Voltou-se-lhe o carro, segundo dizem.
—
Bem, então não sou necessário. Mandem buscar a certidão, que eu lá lha encho
mesmo em casa.
Quando
saía, passou junto da Benta que soluçava, e, mudando de tom, disse-lhe:
—
Adeus, Sra. Benta... coitada!... coitada...
E,
pondo a mão No ombro da Rita, que ali estava de pé, hirta, pateta:
—
Tu, rapariga, vê se tiras daqui a tua mãe... Boas noites, Sr. Pedreira...
Deixem passar, fazem favor.
Pouco
a pouco, o Pedreira fez sair a gente, ficando apenas com as duas mulheres cinco
ou seis vizinhas mais íntimas. E no silêncio, que se estabeleceu na grande casa
vazia, houve uma sensação de fim, de se ter acabado tudo na desgraça
irreparável. Acocorada junto do colchão, a Benta lamentava-se alto, amparada
por duas vizinhas. A Rita, esquecida, medrosa, foi sentar-se mais longe numa
cadeira baixa. Chorava devagarinho. As lágrimas corriam-lhe aos cantos da boca,
com um sabor a salgado, levemente amargo, caindo uma a uma, orvalhando o seu
lenço de festa, vermelho e amarelo. Não fixava bem as ideias, não tinha
consciência do que sucedia — chorava, abalada pela comoção da cena, pelas
lamentações da mãe, pelo terror que lhe inspirava o pai mutilado, estendido
naquela colchão branco, que parecia tão fúnebre, visto à luz mortiça das
candeias.
As
vizinhas começavam já os arranjos, arredando móveis, colocando uma mesa ao
fundo. A Gaudência, que dirigia, consultava as outras em voz muito baixa:
—
Fica melhor aqui, não lhe parece, comadre? Mais decente.
Abrindo
a porta, chamou um dos rapazitos, que estavam lá fora nos grupos:
—
Ouve cá; sabes onde mora o prior?
—
Sei sim senhor.
—
Então vai lá, e dize à Sra. Maria dos Remédios, que lhe mando eu pedir — a Ana
Gaudência, percebes? — que lhe mando eu pedir um crucifixo e dois castiçais, que é
para casa do João Camacho, que morreu.
E,
enquanto o rapaz partia, muito inchado pela súbita importância que lhe dava
aquela missão de confiança, a Gaudência voltou para dentro, e, indo junto da
Rita, perguntou-lhe baixo:
—
Oh! filha, tens uma toalha de rendas?
—
Na arca, Tia Gaudência.— respondeu a rapariga por entre lágrimas.
E
ficou quieta, pasmada na sua contemplação inconsciente, seguindo com os olhos a
Gaudência que trastejava, assistindo a todos os preparos tristes da morte,
naquela promiscuidade da casa pequena, do povo, às vezes tão dolorosa.
Ao
lume, aquecia ainda a ceia do João Camacho, e, como a panela levantasse
fervura, a Rita ergueu-se maquinalmente, foi arredar o testo, espumou a panela
e voltou para a cadeira. Sentia-se muito quebrada, da aflição e da festa. Tinha
um esvaimento, um cansaço fundo, até aos ossos: daquele dia passado no sol
ardente; do banho de luz crua, refletida nos restolhos amarelos e nas paredes
caiadas da ermida; das longas voltas em roda, ao som das cantigas arrastadas;
dos bailes ao meio, com os rapagões brutos, que lhe apertavam a cintura nas mãos
fortes, duras dos cabos das enxadas e das rabiças dos arados. E todas estas
imagens, de sol, de lenços claros, de cintas encarnadas, de caras alegres e
boçais dos pares, lhe dançavam diante dos olhos na casa sombria, onde a
Gaudência continuava nos seus fúnebres arranjos. Voltavam-lhe agora as
cantigas: uma moda nova muito lenta, ou o estribilho rápido de um baile ao
meio, sacudido e alegre:
Pra matar, malar, malar,
Pra malar lima saoidade...
Mas
a Gaudência, veio dizer-lhe:
—
Oh! Rita, não acho os lençóis novos.
Então
a rapariga levantou-se, para os ir buscar à casa de dentro; e, ao passar junto
do cadáver do pai, as lágrimas rebentaram-lhe de novo, rápidas e quentes. Mas,
depois de entregar os lençóis à mulher, veio outra vez sentar-se; e as imagens
da festa voltaram insistentes, numa alucinação que a distraía.
Lembrava-se
agora de tudo o que tinha sucedido: das risadas da Chica e da Josefa no
caminho, quando o carro dava solavancos; da cena com o Cardoso, o bruto do
Cardoso, atrevido, que lhe vinha oferecer vestidos de seda, a ela, uma rapariga
honrada a quem ninguém tinha nada que dizer. Lembrava-se também do seu Zé
Severo, alegre, bem vestido, com a cinta escarlate, as mangas da camisa muito
brancas. E, sem ser por mal, arrastada pela sucessão inconsciente das ideias,
começava a fazer planos de futuro diante do cadáver do pai. Ia casar com o
namorado... a mãe ficava rica... decerto não se opunha...
E,
estonteada e chorosa, com as lágrimas ainda úmidas nas faces, sorria,
parecendo-lhe ouvir a voz valente do Zé Severo a cantar o estribilho:
Pra malar, matar, matar,
Pra matar uma saoidade.
***
Na
rua, os amigos do Camacho esperavam a hora do enterro, vestidos de briche,
cobertos pelos pesados capotes das solenidades, indiferentes ao calor de Julho.
Havia muita gente — o João Camacho era popular, e aquela morte súbita, por uma
desgraça, fizera impressão. Mesmo, lá mais acima, viam-se alguns grupos de
pessoas graúdas da vila, corretas nas suas sobrecasacas pretas de pano
lustroso, nos seus chapéus altos, luzidios, um pouco fora de moda. Em frente da
porta, na nesga de sombra de um muro, o velho escrivão Salgueiro conversava com
o Costa da loja, um homem novo na vila, mas que julgara do seu dever vir ao
enterro.
— A
viúva e a filha ficam muito bem, segundo ouvi? — disse o Costa, continuando a
conversa.
—
Bem! — respondeu o Salgueiro, no tom de superioridade de quem conhece todas as
coisas por dentro. — Bem! A comadre Benta, coitada, fica a pedir esmola.
—
Ora essa! Diz que tinham muito boas fazendas.
—
Pois lá isso tem. Tem as courelas do Sesmo, que são boas; tem alguns quatro ou
cinco olivais às Águas Quentes; tem...
O
Salgueiro interrompeu a enumeração para acender o cigarro, abrindo o fósforo de
pau nas mãos magras, muito curvadas, esperando tranquilamente que o enxofre
acabasse.
E,
depois de tirar duas fumaças:
—...
tem perto de vinte milheiros de vinha. Mas quê, tudo isto está hipotecado aos
Farias.
—
Aos Farias, oh! diabo! — exclamou o Costa.
—
Pois é assim mesmo. O compadre João meteu-se nuns negócios de trigos e de
farinhas que deram cabo dele. A comadre Benta não tira das fazendas nem um
real; e o mais que aí tem, a casa, as parelhas, vai-se embora nas outras
dívidas.
Olhe,
só ali ô Chincha da diligência — e mostrava um gordo, todo vestido de preto,
que conversava num dos grupos próximos — tem ele uma letra de trezentos e
cinquenta mil réis... fora o mais. A comadre Benta, coitadita, fica a pedir
esmola.
—
Pobre mulher! — disse o Costa, comovido; e acrescentou: — A filha é uma rica
moça!
Mas
como o prior descesse a rua, precedido pelo sacristão, o velho Salgueiro
apertou cuidadosamente o cigarro entre os dedos amarelos, meteu a ponta apagada
na algibeira do colete, e foi tomar o seu lugar no acompanhamento.
Tudo
quanto o escrivão disse ao Costa da loja era a pura essência da verdade.
Passados poucos dias, a Benta recebeu um recadinho dos Farias, dizendo-lhe:
“Que sentiam muito incomodá-la, que lhe não queriam fazer mal; mas que, enfim,
necessitavam do seu dinheiro; havia já três anos de juros em dívida; e, demais,
as ordens para a execução estavam dadas mesmo em vida do Camacho.”
A
Benta sabia dos negócios do marido; mas não os conhecia a fundo, em toda a sua
realidade desoladora. Este recado consternou-a. Deitou um xale aos ombros, pôs
na cabeça o seu lenço de luto de chita preta, e foi consultar o Salgueiro, que era seu compadre de águas bentas.
Quando
a mulher entrou, o velho escrivão, sentado à mesa profissional, coberta de
oleado preto, tendo em volta a clássica saia de baetilha verde muito amarelada
já do sol, copiava pachorrentamente uns documentos, fumando um cigarro.
E,
em volta dele, sobre o oleado da mesa, no tinteiro de latão, por entre os
papéis, no chão de ladrilho da casa, havia um número incalculável de fósforos
de pau ardidos, e de pontinhas velhas de cigarros, fumados até à última.
Levantou os óculos para a testa, reconheceu a Benta, e acolheu-a com um
desconsolado:
—
Ah! é você, comadre! Já cá a esperava. Sente-se... sente-se.
Mas
era difícil saber onde; e ele então ergueu-se, alcanchinado na curva daquela
vida abancada, tirando de cima de uma cadeira dois registros de tabelião, e o
vestido de me ri no de uma das filhas, orlado embaixo de lama, conseguindo
acomodar a mulher. E, antes que ela falasse, prevenindo-se:
—
Olhe, comadre, você vem mal. Eu hei de lhe fazer tudo o que puder,
absolutamente tudo; mas o meu tudo é quase nada. Como escrivão estou amarrado
ao que me mandam; e como homem, você bem sabe, que o que aí se ganha nem sempre
chega para o pão dos filhos.
A
comadre Benta sabia-o muito bem; várias vezes alguns sacos de farinha tinham
vindo por empréstimo de casa do Camacho para casa do Salgueiro. Mas ela queria
sobretudo um conselho; que a esclarecessem; que dirigissem a sua ignorância
desarmada e fraca. O escrivão explicou-lhe o negócio, atenuando um pouco com dó
dela; mas, no fundo, dizendo-lhe toda a verdade. E como ela hesitasse, querendo
ainda pegar-se a uma esperança, acabou por lhe mostrar esta coisa misteriosa e
temerosa entre todas; esta coisa que pode ser uma doação, uma quitação, uma
escritura de compra, a fortuna; mas que tantas vezes também representa a
dívida, a penhora iminente, a ruína e a miséria — mostrou-lhe um caderno de
papel almaço azul, selado, escrito de ponta a ponta, corretamente cosido a
linha branca. Do caderno resultava tintim por tintim, com todas as formas em
direito necessárias, que as courelas do Sesmo, e os olivais, e a vinha, estavam
irremediavelmente perdidos:
—...a
não ser, comadre — terminou o Salgueiro que tinha seus laivos de erudição
sagrada... — a não ser que Deus toque no coração dos Farias, o que me parece
muito mais difícil do que curar o paralítico, ou mesmo do que ressuscitar
Lázaro.
A
viúva não percebeu esta referência aos Sagrados Evangelhos; nem percebeu as
complicações jurídicas no negócio; mas ficou sabendo o bastante para sair mais
chorosa do que tinha entrado. Não lhe lembrou recorrer diretamente aos Farias;
tinha a certeza de receber uma resposta doce e inexorável. Foi bater a outras
portas, e por toda a parte encontrou protestos de amizade, afirmações de
simpatia condoída, promessas vagas de auxílio, nenhum apoio eficaz. Teve,
porém, um oferecimento, que nem esperara, nem solicitara.
Um
dia entrou-lhe em casa a senhora Joaquina da Cruz, magra como um cabide,
embrulhada no seu xale preto, avermelhado pelos sóis dos últimos vinte anos, e
que dava a impressão aflitiva de que se ia furar nos ombros, tão fina se havia
tornado a sua trama, e tão agudos eram os ossos da mulher: “Vinha ver a senhora
Benta. Já devia ter vindo há muitos dias, se não estivesse tão doente que se
não podia bulir. Mas nem por isso deixara de tomar parte no seu desgosto.
Aquela morte do João Camacho tinha-lhe feito lembrar tanto a do seu homem,
morto também de uma desgraça, sucedida no trabalho” — a verdade era, que o
matou um castelhano com duas facadas numa barraca da feira da Vidigueira —
“deixando-a sem amparo, uma pobre de Cristo. Ai! ninguém sabia melhor do que
ela o que eram desgostos e trabalhos... Por isso não seria ela que abandonasse
quem estava na desgraça. Mas tinha a sorte de lhes trazer uma boa notícia.
Naquele mesmo dia, logo de manhã, tinha-a mandado chamar o Sr. João Cardoso”...
A
este nome, a Rita, que ao fundo da casa embainhava uma saia de luto, levantou a
cabeça, escutando com atenção.
A
Joaquina continuou:
—
Ai! que santo homem é o Sr. Cardoso. Mandou-me chamar logo de manhã e
disse-me... formais palavras: “Vossemecê, Sra. Joaquina, há de ir a casa das
Camachas”, assim se diz na ausência; “quero que elas saibam, que eu estou
pronto a fazer tudo para se não venderem as fazendas. Quatrocentos ou
quinhentos mil réis, ou isso que for, aqui estão às suas ordens...”
—
Nós ficamos muito agradecidas ao Sr. Cardoso... — ia a dizer a Benta.
— Ai!
e tem razão — atalhou a Joaquina. — Que rico homem! E tão amigo da menina Rita!
Ele não vê outra coisa neste mundo. Nem vossemecê sabe o que ele era capaz de
fazer por ela...
Ao
ouvir estas palavras, a Rita levantou-se de repelão, derrubando a cadeira,
dirigindo-se para a porta do quintal.
Aquele
gesto violento acordou a Benta, fê-la sair da sua hesitação. E agora, de pé,
excitando-se, reagindo contra as insinuações da mulher, talvez contra as
cumplicidades vagas do seu pensamento íntimo:
—
Olhe, Sra. Joaquina, dê-se vossemecê por muito feliz de não estar aqui quem
Deus tem; talvez as coisas não acabassem assim. Pode dizer ao Sr. Cardoso que
estamos muito agradecidas ao seu favor; mas que esta é uma casa honrada, não
está acostumada às visitas de... mulheres do seu ofício.
Mas
a Joaquina ficou impassível, encolhendo os ombros, como se decididamente desta
vez quisesse furar o xale com as pontas dos ossos. Ergueu-se devagarinho, muito
tolhida do reumático, dizendo tranquilamente:
—
Ai! Sra. Benta, vossemecê lá se entende. Cada: um sabe de si... E cá a mim não
me descandaliza; estou muito avezada a receber maus pagos, pelo bem que quero
fazer.
Quando
a Joaquina saiu, as duas mulheres ficaram silenciosas, embaraçadas. Aquela
visita humilhava-as. A velha tocara numa questão, que se não discute entre mãe
e filha. E, depois, já não tinham a cólera desdenhosa com que semanas antes se
aplaudiam de repelir as ofertas do Cardoso. Hoje, na sua recusa havia
reticências. A Benta sentia um remorso sutil de ter cumprido o seu dever. Por
que, enfim, aquele auxílio podia ser a salvação; e... quem sabe, talvez fosse
desinteressado? Mas, perdido ele, estava tudo acabado. Desajudadas e sós,
naquela honestidade que ninguém lhes agradecia, tinham diante de si a miséria.
E a
Benta fixava tristemente os olhos da filha, que ficara na saída para o quintal,
de costas voltadas. No quadro luminoso da porta, sobre o azul-claro e rosado do
céu de Verão, desenhava-se em negro a figura esbelta da rapariga, com a
cabecinha graciosamente pousada sobre os ombros, coroada pela massa espessa dos
seus cabelos opulentos. Em volta dela brilhava uma auréola de beleza robusta e
sã, de mocidade em folha, que já agora... era todo o seu capital.
Os
dias corriam. As courelas do Sesmo, vendidas em praça, arrematadas pelos
Farias, mal tinham dado para a hipoteca. Estava anunciada a venda dos olivais e
da vinha. O Chincha da diligência, na liquidação da letra e de outras
continhas, ficava com os carros e as parelhas. Levava mesmo aquela cabra da mula
lazã, que tinha causado a morte do Camacho. E várias dívidas mais pequenas
surgiam de todos os lados. O Estado entrava também no rol dos credores. Nos
últimos tempos, o Camacho, atrapalhado, não pagava nada; e agora apareciam as
contribuições, relaxadas, engrossadas pelos três por cento, e pelos seis por
cento, e pelas custas, e por outros seis por cento. Em casa da viúva choviam
avisos, mandados, citações, contrafés — uns papelinhos impressos, cheios depois
com hieróglifos manuscritos.
A
mulher não percebia os papelinhos. Nem os hieróglifos, porque nunca ninguém os
percebeu; nem mesmo o impresso, porque não sabia ler. Quando lhos liam, quando
lhos explicavam, continuava a não perceber. E esta incompreensão aumentava o
seu terror. Sentia pesar sobre si uma coisa inexplicável e vaga, como a
fatalidade antiga. Julgava-se condenada, perdida — metida em justiça. Esta
palavra justiça, tão desviada do seu
sentido primitivo, aterrava-a, tomava para ela a significação de uma grande
máquina, impessoal e dura, contra a qual é impossível lutar; de uma engrenagem,
que pega nos pobres e nos pequenos, triturando-os, laminando-os, deixando-os
sem fato e sem pele. E, sucumbida, aniquilada, sentada na cadeirinha baixa, as
mãos no regaço, via as suas coisas partir uma a uma.
A
Rita não sofreu tanto. Reagiu com a sua mocidade alegre e descuidosa. Começou a
ir regularmente aos trabalhos do campo; e, nas conversas picantes do rancho,
nas noites dormidas de um trago, depois do cansaço do dia, quase não tinha
tempo para pensar. Teve, porém, dois grandes desgostos. Um deles foi o abandono
do José Severo; um abandono gradual, sem crise e sem explicações. Também, o
Severo não lhe devia nada, era apenas um namorado, que pouco a pouco deixou de
rondar a rua, e de se demorar na esquina em descantes noturnos. A rapariga não
gostava muito dele; teve mais ferro
do que pena de ser abandonada; mas teve um grande ferro, sobretudo quando uma
amiga bem-intencionada a veio prevenir de que o rapaz arrastava agora a asa à
Chica Sirgueira.
Mas
um desgosto mais fundo do que o abandono do Severo, foi o da venda das suas
argolas de ouro. Eram umas argolas grandes, bonitas... muito lindas! que o pai
lhe trouxera da feira de Évora. Ninguém as tinha assim na vila, nem as filhas
dos ricos. Já no Inverno, depois de vendidas as fazendas e as casas, as
Camachas tiveram de vender as argolas, para pagar a renda de uma casita
pequena, onde se recolhessem. E a Rita passou uma noite inteira a chorar,
soluçando, molhando o travesseirinho com as lágrimas grossas. Gostava muito das
suas argolas. Sabia que lhe ficavam bem. Tinha saudades daquelas curvas
brilhantes de ouro, acompanhando gentilmente as faces, onde, adiante da
orelhinha rosada, a pega do cabelo forte se esbatia e descia em penugem fina.
Depois,
a venda das argolas era o seu sacrifício pessoal. Nunca percebera bem a quem
pertenciam as fazendas. Julgava-as da mãe. Mas as argolas eram suas. Ao vendê-las sentiu pela primeira
vez o toque direto da pobreza. Viu-se, de repente, descer ao nível das moças mais
pobres do rancho, daquelas que tinham tombas nas botas, e remendos nas salas.
***
Uma
tarde do fim de janeiro, a Benta, sentada ao lume, vigiando a panela onde
ferviam os grãos para a ceia, esperava pela Rita. A chuva caía tesa,
repenicando da calçada deserta; apenas alguns moços subiam a rua, voltando da
lavoura com as parelhas pela arreata, embrulhados nas mantas, abaixando a
cabeça na refrega. Escurecia já, naquele chegar rápido das noites de Inverno,
apressado pelo véu cinzento da água, que encurta o horizonte. E, das portas
entreabertas, as candeias, que se acendiam, começavam a pôr linhas de reflexos
vermelhos nas paredes lustrosas. Ouviu-se agora um ruído de passos,
vozes de raparigas despedindo-se; e a Rita entrou a porta, batendo os pés molhados
no ladrilho, inclinando para diante o chapéu, donde correu um fio de água.
—
Vens molhada? — perguntou-lhe a mãe.
—
Encharcada! — respondeu a rapariga de mau humor.
—
Leve o diabo a alma à azeitona, mais o tempo que faz.
E,
tirando o xale dos ombros, deitando o chapéu para cima da arca, veio sentar-se
ao lume. Ficaram caladas. A Rita enxugava-se; levantava as saias até às ligas,
pondo no calor da chama as pernas finas e robustas, apertadas nas meias de
linha azul, donde começaram a levantar-se pouco a pouco pequeninas nuvens de
vapor. Em frente, a Benta, imóvel, olhava para a filha numa hesitação; e, de
repente, cobrando ânimo:
—
Sabes quem esteve cá hoje?... o Sr. João Cardoso.
A
Rita ergueu os olhos para ela, e, sem responder, baixou-os lentamente para o
lume. Nas brasas via agora o Cardoso tal qual o vira no Verão, na Festa das
Moças, gordo, bruto, o beiço pendente, os olhos injetados. Mas a Benta
continuou devagar, embaraçada na sua explicação difícil:
—
Passou aí já depois do meio-dia... e entrou. Coitado... ele é bom homem. Diz
que lhe dava lástima ver a gente assim... tu a trabalhares... sem estares
avezada. Queria levar a gente pro monte dele... pra Raposeira. Diz que nos
semeava lá a seara... que nos não haverá de faltar coisa nenhuma...
A
Rita nunca despregou os olhos das brasas, ouvindo uma a uma as palavras da mãe.
Sabia muito bem o que elas significavam — sabia-o claramente, na sua ciência
rude e completa de rapariga do campo. Não estranhou que a mãe, a sua própria
mãe, lhas dissesse; já não tinha as indignações prontas e altivas do Verão.
Estava cansada, muito farta de trabalhar, de molhadelas, de ceifas pobres, de
grãos duros, malcozidos com um fio de azeite. Tinha um quebramento de tudo, uma
cobardia, que lhe ia dei indo as repugnâncias e os escrúpulos.
Mas
sentiu dentro de si uma resistência — toda a sua mocidade intacta e fresca
protestando num calafrio revoltado dos sentidos. Teve como um apego ao ar, ao
sol, às festas alegres, onde fosse de cabeça levantada. Pareceu-lhe, de
repente, melhor o trabalho, o apanho da azeitona nas grandes encostas lavadas
de luz, ouvindo os varejadores cantar, em cima das oliveiras. Lembrou-se do Zé
Severo, o ingrato que ia casar com a Chica Sirgueira; e de um moço que
ultimamente a namorava, um belo mocito, muito pobre, que andava lá no varejo.
E
ficou ali quieta, calada, fitando as brasas. Instintivamente olhou para si:
para a saia de batido, rota já, toda esfiada embaixo; para as mangas das
roupinhas de chita preta, velhas e ruças, molhadas ainda, coladas sobre o seu
bonito braço redondo, esfumado de finos pelos negros. Viu-se então, como estava
naquele dia de festa, muito sécia, muito bem composta. Teve saudades dos lenços
de seda, que lhe iam tão bem; e das suas argolas de ouro, vendidas para pagar a
renda da casa. Voltou-lhe de repente a pena das suas argolas... muito lindas!
uma pena funda de criança a quem quebravam um bonito, tão funda ainda que lhe
trouxe de novo as lágrimas aos olhos. Sabia que os lenços, e as argolas, e mais
argolas, e vestidos, e cordões, podiam voltar... o Cardoso era muito rico, e
muito generoso.
A
velha questão surgia ali diante da rapariga, dançava na chama oscilante do lume
pobre, luzia nas pequeninas brasas vermelhas, brilhantes no branco das cinzas...
Vender-se! Vender-se para não trabalhar, para comer bem, para ter coisas
bonitas, lenços de sedas ou diamantes.
Somente
a Rita não sabia o que eram diamantes; e não sabia também que a questão era
velha, mil vezes debatida em prosa e em verso, que o seu caso era comum, que
ela era apenas... Mais uma! Nem chegava a estabelecer a questão na sua fórmula
crua — vender-se. Simplesmente a coisa repugnava-lhe. Vinha-lhe agora um terror
de andar nas bocas da gente; do que haviam de dizer; de lhe chamarem a amiga do
Cardoso.
Recuava
diante esta palavra... a amiga do Cardoso. Voltavam-lhe os escrúpulos de moça
honrada. Sentia impulsos de independência arisca. Não... antes trabalhar! Mais
valiam os dias chuvosos da azeitona, com o fato repassado na umidade gelada; ou
as madrugadas ensonaradas das ceifas, quando às duas horas é necessário saltar
para o chão, toda quebrada ainda do cansaço da véspera...
Mas
depois começou a pensar nas raparigas suas conhecidas, que viviam bem, nas
tolerâncias complacentes da província. Na Zabel Carrasca, que estava com o Sr.
Fernandes, muito à sua vontade, na sua casa. E todos a cumprimentavam, todos
lhe tiravam o chapéu. Até, as semanas passadas, a tinham ido convidar para
madrinha de um casamento. Na Joana Guerreira, que estava com o doutor Carvalho,
um homem casado, e já velho. Justamente, na antevéspera, recolhendo mais cedo
da azeitona, tinha encontrado a Joana Guerreira, que voltava do Freixial — a
horta do Carvalho.
Vinha
muito bonita, no seu xale de lã preta fina, um lenço de seda azul na cabeça,
acompanhada pela sua moça, que lhe trazia um cesto de tangerinas. As raparigas
do rancho foram-lhe falar, familiares, respeitosas quase, vendo-a tão senhora,
com a sua criada.
Pouco
a pouco tranquilizava-se. Arquitetava uma moralzinha prática, errada e fácil,
feita de maus exemplos. — Era tola! Que lhe haviam de dizer a ela? Nada! Isso
era bom para as desgraçadas, como a Gertrudes, que tinha arranjado um filho com
um guarda. Mas ela, era diferente — ia para casa do Sr. Cardoso, dez vezes mais
rico do que o Fernandes, vinte vezes mais rico do que o Carvalho. E vinha-lhe
um respeito instintivo pela riqueza. Obscura e confusamente começava a sentir a
força do dinheiro: via os pobres sempre dependentes, sempre inferiores; ouvia
aquela frase, tantas vezes repetida num tom de deferência: — Está muito bem!
Como
contraste com a sua existência miserável de privações e de trabalho, teve a
visão de um futuro, que, para ela, realizava todos os sonhos da opulência:
viver no seu monte, servida pelas suas moças, como uma lavradora. Quando viesse
à vila, havia de vir no seu carro, muito bem vestida. Talvez encontrasse então
a Chica Sirgueira, casada com o Zé Severo, um almocreve, que afinal não passava
de um criado de servir. Esta ideia de humilhar a Chica fê-la sorrir para o
lume, descobrindo os dentes brancos, em que as brasas puseram uns reflexozinhos
vermelhos, cor de sangue.
Pela
primeira vez, levantou os olhos e encarou a mãe. Viu-a curvada sobre o lume,
rapidamente envelhecida, como apatetada pelos desgostos. E foi ela, a rapariga,
quem quebrou o silêncio pesado:
— E
vossemecê, mãe, que lhe disse ao Sr. Cardoso?
A
velha pareceu acordar, sem perceber a princípio; mas depois:
—
Que lhe haveria eu de dizer... nada. Ele diz que passava aí amanhã.
Então
a Rita, lentamente, decidida:
----Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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