Mãe!
(Ao Dr. J. C. da Mota Prego)
Bela cabra, a Ruça! – posso
dizê-lo aos senhores. A melhor da manada, luzida e de pelo macio, sem
saliências de ossos como as outras, altiva de porte quando à frente do rebanho
parecia comandá-lo, badalando cadencialmente o seu chocalho enorme – tlão!
tlão! Era no rebanho a que mais dava que fazer ao pastor, requerendo
vigilâncias particulares no seu atrevimento, pois que se a deixassem livre não
havia árvore a que não trepasse, oliveira especialmente, nem rebento novo que
não triturasse esfomeada no seu dente acerado de roedora.
E depois, ali onde a viam, estava
cara só pelas coimas, que muitas vezes iludira ela a atenção do pastor, e se
ficara por hortas e quintalórios, causando estragos que os louvados depois
avaliavam caro. Por isso Alípio José, pastor a quem doíam as denúncias, ao
pescoço da Ruça prendera o chocalhão, para dar do atrevido animal mais fácil
rumor, pois era de timbre muito distinto dos demais, e muito mais grave.
Em pastagem pelos montados, a
Ruça era de uma audácia extrema. Fazia gosto vê-la trepar às últimas cumiadas,
subir destemidamente às arestas superiores dos rochedos, muito serena, ereta
nas suas pernas delgadas, pescoço alto, ajoelhando destemida a retouçar as
ervas dos declives alcantilados e escorregadios, não medindo perigos nem se
importando com abismos, enquanto as companheiras se ficavam pelas encostas e
córregos, saboreando as giestas, sem se atreverem a segui-la nas suas excursões
arriscadas de touriste.
Se a miravam de baixo, sentia-se
orgulhosa de superiores audácias, e então cabriolava em saltos funambulescos,
de rochedo em rochedo ou de garganta em garganta, pouco se lhe dando de
perigos. Cobra que encontrasse por essas paragens era para ela um desespero –
tamanha a fúria com que a perseguia, e a insistência com que se ficava às
marradas na lura onde se lhe acoitava. O chocalho então badalava com força, e o
Alípio, que dormia à sombra das azinheiras, de chapéu sobre a cara,
levantava-se sobre um cotovelo e intimava para o alto, com o seu vozeirão que
fazia eco: – Toma tento, Ruça!
E depois, de ventre para baixo,
estirado sobre a manta, cotovelos fincados no chão, os queixos entre as mãos
espalmadas, Alípio José ficava-se a olhar a cabra, invejoso daquela facilidade
em subir aos últimos pináculos, admirado dos saltos que ela fazia para salvar
gargantas pedregosas e perpendiculares, onde, se caísse, a morte seria
infalível. E por lá andava dias inteiros a Ruça, naquela vagabundagem por
sítios inacessíveis ao resto do rebanho, resguardando-se da chuva em recôncavos
de rocha, onde as águias faziam ninho.
***
Foi num desses sítios que a Ruça
teve o primeiro filho, por lá se deixou ficar, acho que dormindo ou toda a
noite velando. Ao outro dia quis ela descer, e vir para o rebanho que a
aguardava. Mais de cem vezes, fitando o topo da ladeira, Alípio José gritara cá
de baixo, cada vez mais desesperado:
– Volta ao rebanho, Ruça!
E cuidando que mais lhe feria
assim a atenção, punha-se a agitar com fúria o molho dos chocalhos, gritando
sem cessar:
– Ruça! Torna ao rebanho, Ruça!
Mas impossível! que a não deixava
a quebreira em que toda ela ficara do parto, nem o pequeno poderia –
pobrezinho! – descer por tais ladeiras, de pedregosas e ásperas que eram.
Mas de noite o frio era intenso
naquelas alturas, e o filho congelava unindo-se à mãe que o bafejava para o
aquecer, e a si o aconchegava mais e mais para lhe transmitir o natural calor
do seu corpo enfraquecido e doente.
Por altas horas da noite, na
solidão lúgubre daquele sítio, alcantilado e íngreme, entre penedias escarpadas
onde o vento sibilava lugubremente, num como choro dolente e prolongado, o balido
da mãe, traduzindo angústias e desesperos íntimos, respondia ao vagido fraco do
filhinho, cuja vida parecia ir-se apagando de hora a hora e instante a
instante, inteiriçando-se-lhe, com o frio, os membros delicados e tenros.
Eram assim as noitadas dos
desgraçados. Por tais frios e doenças, impossível dormir. Toda a noite velavam
e gemiam, achegando-se mais e mais num como abraço de eterna despedida – amigos
que se iam apartar para uma longa viagem de trevas, com o coração alanceado
pela saudade, soluçando e gemendo, num adeus! que era infinito, como o infinito
amor que os unia...
E a cada momento, como um dobre
de finados, o chocalho badalava lugubremente, assustando o animalzinho, como se
aquele fora o sinal para o transe derradeiro...
Para maior desgraça, as noites
eram sem lua. Encravadas na abóbada, as estrelas bocejavam dormentes, numa
criminosa indiferença por aquela dor suprema de que eram as únicas testemunhas.
E balando muito, e balando
sempre, a pobre cabra imprecava ao céu a vida do filho ao menos, – ora súplice
em balidos de resignação que uma profundíssima dor ungia, ora desvairada e
louca, em gritos que significavam blasfêmias – blasfêmias de desespero contra o
céu que a não ouvia, e contra a morte que bem sentia aproximar-se para lhe estrangular
o filhinho que ela amava tanto.
E a fazer-lhe mais viva a sua
enorme dor – a ironia acerba da chocalhada longínqua das companheiras, que se
iam pelos montes da outra banda, deixando-a a ela só com o filho, à espera da
morte que era inevitável.
Então ergueu-se por instantes!
Agitou convulsamente o pescoço, e pelo ar fora o som triste do chocalho
espraiou-se lentamente, num – adeus! adeus! – de despedida às companheiras
felizes que lá iam, num ruído longínquo de chocalhos...
***
Naquela solidão os dias eram
melhores. Com os primeiros raios do sol entravam de reanimar-se os dois; pouco
a pouco os membros desentorpeciam e o sangue circulava.
E o animalzinho sem poder ainda
descer!...
De pé, ao lado do filho, a pobre
cabra lançava olhos compungidos para as escarpas da ladeira, ia para um lado e
outro, desvairada e trémula, como que a escolher o melhor caminho por onde
levasse o filho. Mas eram todas horríveis! Silvedos e rocha viva era o que mais
se via.
E depois o rio, lá baixo, rugia
nas cachoeiras, aumentando-lhe o receio.
Impossível! Impossível!
E sentia-se enfraquecer à míngua
de sustento, pois a erva, por ali, estava comida e recomida pela pastagem
miserável de três dias.
Num momento de desespero, quando
os gemidos do filho eram mais dolentes e crebros, refez-se de coragem a cabra,
e, segurando entre os dentes o filho, tentou o primeiro passo, arrastando-o
pela ladeira, do lado em que o declive era menor. Mas em breve desanimou a
pobre, que o filhito, assim arrastado, mais e mais gemia, convulsionado e
trémulo...
Impossível! Impossível!
Nada que signifique a dor daquela
mãe, e traduzir possa em linguagem toda a gama de sentimentos e emoções no seu
balar expressos. Atirou-se de joelhos sobre o corpinho do filho que hirto
chorava e tremia, estendido para ali, na prostração pesada do último desalento;
animava-o com carícias, aproximava-lhe da boca os úberes já flácidos e
amolentados, convidando-o a mamar, como se aquele leite pudesse levar ao filho
a coragem que a ela própria faltava em tamanho transe aflitivo...
Mas pouco a pouco a noite ia
caindo. Tinha-se já apagado a última cambiante do poente e sobre as gargantas
dos montes passavam sutilmente as primeiras névoas, alvadias e ténues. À medida
que a treva se condensava, decresciam os ruídos em todo o horizonte,
acentuando-se cada vez mais a melopeia sonolenta do rio nos açudes.
Perpassavam pelo ar as aves para
os ninhos. Bandos de pombas, como flocos voláteis de arminho, cortavam em voos
mansos a profundidade calma do céu, demandando os pombais e os povoados, onde
se acolhessem da noite que vinha caindo. Revoadas de perdizes e de tordos
passavam por ali alegremente, num chilrear sonoro, caindo de chofre sobre o
monte, a esconderem-se nos estevais e nas urzes. Pelas ervagens secas rastejavam
apressados os répteis, e sob os tojais bravios a lebre buscava a cama...
…E tudo tinha ninho – pombas que
voavam e perdizada sonora, quem passava no ar e quem rastejava no monte,
lagartos, sardões, cobras, toda a colônia vagabunda de répteis e de aves, que
passou alegremente o seu dia, e se ia recolher agora para recomeçar dia amanhã...
Só a desgraçada cabra, ali, junto
do filho tenro, não mais fizera passo. Com as brumas da noite, as brumas da
tristeza para o seu coração alanceado de mãe. Aí vinha o frio inclemente
flagelar-lhe o filho... – o filho que já tremia a ela aconchegado – o triste
pobrezinho!
Rompia de toda a banda o gri-gri
sonoro dos grilos, vivo e cantante naquele silêncio que se definia. Cerrou de
todo a noite. O céu era baixo e torvo de nuvens. Estrelejava a espaços a
abóbada, irradiando uma luz mortiça e alvadia, que levava a pensar em últimos
transes de crianças, em que a vida gradualmente se extinguisse, num latejar
vagaroso de pálpebras sonolentas...
Mais álgida fazia a noite, e mais
pesada de melancolias, essa torva aparência da atmosfera e do céu. Noite pior
do que as outras, porém com menos balidos, pois que mãe e filho estavam
extenuados de forças e nem gemer podiam. E a morte que não vinha arrancá-los do
abraço em que se uniram, mal cerrara a noite!
A pequena distância, o monte era
cortado de profundíssima garganta em rocha viva. Do lado oposto, e quase
defronte dos moribundos, acenderam-se na treva dois pontos fosforescentes, de
uma claridade esverdeada e rútila. E, imóveis, esses dois olhos estoirados de
lobo, a que parecia terem arrancado as pálpebras, projetavam a sua luz sinistra
na direção do grupo que velava. A natureza inteira retraía-se num como pavor
medonho, concentrado de íntimos terrores e silêncios lôbregos de horas altas.
Cerrava-se mais no céu a falange muda das nuvens, densificando-se em tintas
negras, impenetráveis e caliginosas, sem cintilas de estrelas, por fugidias e
ténues que fossem...
E sempre, e constantemente
imóveis na escuridão pesada, aqueles dois olhos flamejavam, de instante a
instante mais vivazes, perscrutando a treva na direção mais exata do grupo.
Transida de susto, arquejando convulsamente no último paroxismo da sua enorme
dor, a pobre mãe não ousava arriscar um único movimento, e mais e mais cerrava
contra si o corpo inanimado do filhito que parecia adormecido.
Assim durante horas que aquele
atrocíssimo suplício fez enormes, quase eternas, tumultuosas de acerbos
sofrimentos e de indizíveis angústias, vazias de esperança na vida do seu
pequenino filho.
De repente, aqueles dois pontos
brilhantes apagaram-se na treva, e de novo os viu brilhar a cabra, mas já a
maior distância. Estremeceu a pobre de súbita alegria, – e no abalo que sofreu
o seu corpo, até então retraído, o chocalho badalou. Voltou a correr o lobo, e
então a desgraçada viu errarem na treva, como dois grandes coleópteros de asas
fosforescentes, os olhos até então imóveis do inimigo. E por ali levou a noite
toda, farejando e uivando, até que, cansado de perscrutar o insondável, se foi
ladeira abaixo, aos primeiros assomos da madrugada que vinha, docemente,
alumiando píncaros e arestas.
***
Ao romper d’alva o céu era azul.
Apenas de longe em longe penachos de nuvens brancas ondulavam as suas cristas
alvadias, que se esfarpavam lentamente ao menor sopro da aragem. Pouco a pouco
o azul ia desmaiando, diluindo-se na luz esbranquiçada que vinha do alto em
gradações imperceptíveis e suaves.
Começavam de animar-se os longes
da paisagem, e a retina acusava já as diferenças mais salientes dos campos e
herdades, pedaços esbranquiçados de restolhos, tons pardos de olivais, terras
plantadas de vinhedo, e pinheirais cerrados galgando desfiladeiros e investindo
com o céu nos altos dos montados.
Pelas ladeiras de além, caminhos
e atalhos corriam em torcicolos até ao areal da margem. Em turbilhões de espuma
alvíssima precipitava-se a água nos açudes marulhando nos altos penedos
marginais, denegridos e informes, de uma mudez contemplativa e perpétua. Do teto
do moinho, lá embaixo, uma coluna azulada de fumo elevava-se tranquilamente no
ar sereno e doce, até se desfazer no espaço amplo e benigno, como uma ambição
ou como um sonho...
***
Foi então que Alípio José, à
frente do rebanho, de novo abordou àquelas paragens, no intuito de procurar a
cabra tresmalhada.
– Ruça! Torna ao rebanho, Ruça!
Mas precisamente a essa hora, a
Ruça exalava o último alento, pendida sobre o cadáver do pobre filhinho morto!...
E ao pino do meio-dia, quando o
sol faiscava causticando nos rochedos – passava na direção da montanha, crocitando
lugubremente, a esfaimada legião dos amaldiçoados corvos...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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