Má-língua
(A
José Leite Nogueira Pinto)
Naquela mesa de bluf, era feroz a debinage...
Apenas o Barros, que ganhava com uma veine espantosa, sorria
beatificamente, cheio de indulgência, e para as arrojadas arremetidas dos
parceiros, tinha sempre a mesma frase:
— Mais caridade, meus senhores...
Eram sempre ocasiões em que o Leite mostrava "quatro cartas"
ou "street flesh."
O baile, na sala próxima, corria animado. As valsas, o pas-de-quatre e as quadrilhas marteladas
ao piano, tinham concorrência. E uma ou outra que fugia do calor, para as salas
de jogo, era apanhada na passagem, amarfanhada, esmiuçavam-lhe a crônica,
apimentada de notas inéditas, calunias talvez.
— A Gracinda Fortes!
O conde de Marvilla teve um sobressalto. Voltou-se para trás. A Gracinda
vinha com um vestido de tonkin
cinzento que mostrava toda a graça frágil do seu corpo magro. O conde
comentou, eriçando mais o bigode louro, cortado à inglesa:
— Um cabide para vestidos!...
— Mais caridade!...
— Ah, já sei: tem pelo menos um flash
na mão... Passo!
Depois, olhando ainda a figura esbelta que saía...
— Mas ela não é uma mulher — é uma boneca de Nuremberg!... Vejam o andar
articulado, mecânico... Tudo aquilo se mexe por molas! E aquela cabeça de arara
a dar a dar, como se estivesse preza às espáduas por um parafuso lasso? E
depois, meus amigos, ela é toda postiça... O cabelo louro pertenceu já a três
cabeças... É uma mulher feita de colaboração por um cabeleireiro, um droguista
e uma costureira. Tudo aquilo é sustentado por baleias e faixas, senão
desabava, de lasso... Imaginam que o marido está arruinado por causa dos
vestidos? Não: pelos cosméticos... À quantidade de drogas que anda por aquela
pele é inconcebível. Já repararam em como se não decota nunca, completamente,
que o colo é sempre coberto por uma gaze ou uma renda? É que a pele, estragada
por uma ftiríases qualquer, esfarela-se. Todas as manhãs a criada de quarto
tira-lhe quilos de farelos da cama. E já não pode com o serviço de maquilagem —
tapar buracos, concertar rugas, pés-de-galinha, disfarçar sardas e sinais
de varíola — manda chamar um trolha...
— Seu amante?
— Talvez... Para a rebocar. Para que ande, é preciso dar-lhe corda. Anda
sempre da mesma maneira, às continências, cabeça para cima e para baixo, como
um desses bonecos movidos por relojoarias. Imagina que aquilo é o andar rítmico
das parisienses, esse andar leve e airoso como o de um pássaro... É parisiense,
é: também são parisienses as macacas que nascem no Jardin des Plantes...
Ainda por cima, velha. Não tem frescura nem mesmo nos olhos parados, conçados
do espelho. A pele despega-se da carne e na cara faz papeiras em feitio de
bambinelas. E toda aquela pintura, às chapadas, faz sombras, aumenta-lhe as
papeiras...
— Tens-lhe ódio!...
— Não, tenho olhos. Não é preciso mais. Por causa dela lá me fez você
um bluf sem eu dar por isso... — Conheço-a muito. Veio da
província e por aí andou a mostrar ao Chiado e à Avenida as suas toilettes,
como um manequim de loja de modas em furor de reclame. Ninguém a recebia, senão
as casas em delírio de festas, onde a ida de um conde, dos feitos ultimamente
às canastradas, enche de jubilo os amáveis donos da casa, como se diz nos
jornais. Mas a sua ambição era do podre-de-chique,
e não podendo supor-se com sangue azul— a mercearia do pai, ainda lá está a
falsificar — imaginava-se com o chá das cinco horas nas veias... Um chá
requentado como o espírito dela, estudado em velhos almanaques.
Enquanto não entrou na sociedade, vestia-se seis vezes ao dia, e nos
intervalos injuriava o idiota do marido, essa bola de sebo com suíças brancas,
que, atolambado, não lhe respondia que não tinha culpa de não convidarem uma
amostra de cocote do Maxim para casas de famílias honestas. E era uma vida
dura, atroz, naquela casa, ela de mau humor, acre, dizendo horrores na voz
impertinente, sem inflexões, monocorda, e ele angustiado, sempre em cálculos diabólicos
para saldar as contas monstruosas que lhe mandava o Goodefroy, dos cosméticos
e postiches com que se engalanava a mulher.
A vida naquela casa! Vocês não calculam a expressão dura, injuriosa, que
se estampava naquela cara agora risonha, quando recolhia, à tarde, cansada de
fazer a Avenida, quase sem um chapéu a cumprimentá-la, sem meios para ter uma
carruagem, olhando, gulosa, as pessoas chiques que passavam, sorrindo às
saudações. E na mesa de jantar, silenciosa, apenas se ouvia o tilintar dos
talheres e uma ou outra frase grosseira ao Fortes, que abanava a
cabeça, todo ele se agachava, no receio, talvez, de um prato ou de um copo
arremessado na fúria.
Depois das refeições, separavam-se, ele para a rua tomar ar, fugindo da
perigosa vizinhança, ela a arrastar-se nos quartos, a enfeitar-se de joias,
punha-as todas, enchia as mãos de anéis, rodeava a garganta magra com todos os
colares, enchia os braços de pulseiras quase até o cotovelo e via-se ao espelho
estudando sorrisos, gestos de comprimento para os grandes bailes a que havia de
ser convidada um dia.
— Para falar desse modo é preciso ter sido éconduit...
O conde corou, encolheu os ombros:
— Às vezes não se levantava da cama em dias de chuva em que se tornava
impossível fazer a parada nas ruas, troteuse à cata de olhares:
vestia uma camisa de noite de que caíam valencienes e cobria a
cabeça com pentes e travessas de ouro com pedras finas, e as mãos floriam-se de
toda a coleção de anéis. Era ouro por toda a parte, sem falar nos dentes em que
se combinavam todos os metais e todas as massas. Ouvi que se lhe podia dirigir
o epigrama de Marcial: Não te rias porque só tens três dentes e esses mesmos
são de buxo.
— Conheces tão intimamente?
— Pela criada do quarto... Agora, saracoteia-se, esqueleto feito
manequim, arrebanhando os rapazolas inexperientes para flirts —
ó só flirts! não por virtude ou amor conjugal, mas porque a
ftiríases não permite o desnudamento — flirts que acabavam logo que
um mais afoito falasse em beijar a pele perfumada.
— Schiu! Lá vem ela!
O conde olhou para a porta, por onde entrara, fina e flexível como haste
florida, a Gracinda Fortes. A boca pequena, que o cosmético fazia sangrar,
abria-se num sorriso fresco, que mostrava os dentes brancos. E de todo esse
corpo magro exalava-se, como um perfume que entontece, um encanto perturbante.
E seguiu-a com os olhos, comovidamente, até que desapareceu, como um
sonho...
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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