Luzia
Mesmo
ao fundo da povoação, ficava, parece que já esquecida, a casita do Antônio
Valente. Pela porta dele não se fazia caminho para banda nenhuma. A aldeia
acabava ali. Começava logo adiante, numa pequena chapada sem parapeito, esse
terreno ladeiroso que ia dar ao rio, e da banda de lá do rio – tudo aquilo era
já Espanha: largos e compridos vinhedos que pela Primavera entravam de revestir
de verde todos aqueles montes e cabeços, – montes e cabeços que além, à borda
do rio, estacavam, de repente, eriçando-se, imóveis, em fragaredos escalvados
de meter medo.
Dir-se-ia,
pois, com efeito, esquecida já para aquele deslado a casita do jornaleiro, mas
ficava, como veem, muito bem situada, porque de mais a mais era vizinha de uma
pequena ermida – a ermidinha branca da Senhora das Graças – que devia, vista de
lá, sorrir-se para os espanhóis, como sorria aos portugueses, especialmente ao
Antônio Valente quando aos domingos assomava à janelita, essa linda capelinha
da Senhora chamada del Pilar, que
alvejava naquele grande trono de verdura, além, debaixo do céu azul.
O
Antônio Valente era ainda novo, e tinha dois filhos muito bonitos e ambos muito
louros: a Maria da Graça, a mais velhinha, que fizera sete anos, e então o
Manuel, que tinha seis. Sete anos e nove meses tinha ele de casado com a Luzia,
a mais linda, a mais alegre rapariga das que no Verão arranchavam nas vindimas.
Namorara-o o seu lindo cabelo preto, o seu rosto de nazarena, aquele seu ar
esbelto de choupo, os belos olhos da rapariga, que lhe lembravam duas amêndoas
grandes no feitio, – e então certa covinha que fazia na sua linda face
trigueira, quando se ria, aquele demonete...
–
Ora aí está uma covinha em que eu gostava de enterrar beijos! – dissera-lhe uma
vez, também a rir, esse mocetão do Antônio Valente.
Ela
respondera-lhe, fingindo uma grande surpresa:
–
Gostavas?!...
–
E esses dentes, ó Luzia! Queres-me tu dar uma dentada com esses dentinhos?
–
Isso não, rapaz! Preto por preto, está em primeiro lugar o pão centeio!
–
Ah, marota!
A
esse tempo, a Luzia era órfã de pai e mãe, e não tinha irmãos. – "Sou como
o sargacinho do monte!" dizia ela às vezes. – Pensava em se casar?
Pensava. Mas não era "para se arrumar"; que muitas vezes dizia ela
que "enquanto Deus lhe desse saúde, e força naqueles braços..." – "Esconde
lá isso, rapariga! Ora para que hás de tu estar a arregaçar os braços se mos
não atas aqui ao pescoço!" dissera-lhe de outra vez o Antônio Valente –
...que enquanto Deus lhe desse saúde e força naqueles braços, não era ela que
caía nessa, – a não ser, já se vê, acrescentava fazendo a covinha, que lhe
desse o demo na cabeça para gostar para aí de algum feiarrão...
Certa
vez, o Antônio Valente, que já andava aflito de lhe ouvir a conversa,
volvera-lhe:
–
Ouves, Luzia? Mas para te livrares desse perigo, aqui estou eu que sou bem guapo!
–
Tu?! – perguntara ela muito estranha.
E
o Antônio redarguiu-lhe logo:
–
Olha lá agora se me enjeitas, ó cachopa!
Estavam
a cear, por sinal. Tinham andado à azeitona todo o santo dia, e estavam a cear,
de ranchada, em casa do amo. Prosseguiu a conversa em grande galhofa enquanto
durou o caldo, e enquanto, depois do caldo, comeram as batatas guisadas. Era na
cozinha, a grande cozinha escura do lavrador, – com o lume a arder além, o
armário acantoado acolá, ali a cantareira, além a boca do forno, a masseira
logo ao pé, a banca daquela banda, onde a moça, mais a ama, despachavam as
refeições, e em cima, pingando, as varas do fumeiro. A um lado, ao pé da porta
que dava saída para o quintal, as azeitoneiras comiam, alumiadas por uma
candeia.
Ao
lume, escarranchado, estava o amo, a regalar-se de os ouvir, e de ouvir ferver
a panela. E por que não esmorecesse a conversa, meteu de lá também a sua "foiçada",
enquanto, enxotando o gato dorminhoco, ajeitava com as tenazes um tição:
–
Quem há de casar com a Luzia bem eu sei...
–
Quem?! Quem?! Ó Sr. Antônio, diga lá quem! – acudiram logo em coro as
azeitoneiras.
Mas
ele, desviando a conversa:
–
Ó Ana! Ó mulher dos meus pecados! Não me tirarás de cima do lume esta
amaldiçoada caldeira?!
–
Mas quem, ó Sr. Antônio?! Diga lá quem! – insistiram as outras.
–
Isso agora... Ó Ana, olha que esta vianda já está farta de ferver. Tira para lá
a caldeira!
–
Então não diz, ó Sr. Antônio?!
–
Não! É segredo. – E voltando-se para trás: – Se não tiras a caldeira, tiro-a
eu!
–
Mas ora o que te aflige a caldeira! – disse zangada a Sra. Ana, pegando-lhe
pela asa e levando-a, num rompante.
–
Bem. Agora venha de lá o caldo, que eu também sou filho de Deus.
–
Não! Não! Mas antes, há de dizer quem é o derriço da Luzia! – impetravam de lá
os outros todos. – Diga, ó Sr. Antônio! A gente guardamos segredo!
–
Isso guardam vocês, olha quem! Ó Ana, mas vem esse caldo ou não vem esse
caldo?!
–
Jesus! Santo nome de Jesus! – exclamava aflita a Sra. Ana.
–
...Porque enfim, rapazes, há coisas que são segredo – desculpou-se o lavrador.
E dando uma palmada – pá! – no lombo gordo do maltês, que vinha, lambareiro,
fariscar a panelinha dos petiscos: – Só se a Luzia deixar...
A
Luzia, que o percebera, acudiu de lá contendo a risa, – e, levantando no ar o
garfo de ferro, suplicou:
–
Não diga, ó Sr. Antônio! Pelas suas alminhas não diga! Peço-lhe eu que não
diga!
Foi
um alvoroço na cozinha, todos a pedirem-lhe que dissesse! Mas a voz fina de
Luzia trepava mais alto que as mais:
–
Não diga, ó Sr. Antônio! Sempre quero ver agora se é meu amigo!
–
Já vocês veem... – rematou o lavrador desculpando-se. Mas fingindo logo que se
arrependera, emendou: – E tu que é que me dás se eu me calar?!
–
Olhem o interesseiro! Eu só se lhe der este anel...
–
Valeu! Mas ele de que é o anel?
–
É de coralina, quer?
–
Não! Só se me deres um beijo!
Foi
uma risota.
–
Ó Luzia, vai-lhe ali dar um beijo! – acudiu logo, chamando-lhe tolo, a Sra. Ana. – Ora o grande tolo!...
–
Pois então, ó mulher de juízo, dá-me cá tu o caldo! Não se envergonha de ter
aqui o seu homem a morrer de fome!
–
...De fome de beijos, ó Sr. Antônio! – acudiu de lá a Luzia, a rir.
–
Ah, grande magana! – disse o lavrador repreendendo-a. – Ora mas é mesmo p’r
amor disso...
–
Diga! Diga! – clamaram em coro as azeitoneiras.
–
...é mesmo p’r amor disso – continuou o lavrador, – que vou chimpar aqui com
quem te tu casas!
E
erguendo-se a meio corpo, já com o caldo em uma das mãos, na outra o carolo de
pão centeio, começou, voltado para o rancho suspenso:
–
A Luzia... – e pisou sem querer o rabo do cão, arredando-o com a ponta do pé. –
Vai-te!
–
A Luzia... – repetiram todos.
–
...Casa-se com o porqueiro!
Foi
uma assuada! Trinta vozes clamaram ao mesmo tempo:
–
Casas-te co’ o porqueiro! Casas-te co’ o porqueiro!
O
porqueiro era um muito feio, gago e aleijadinho, que estava a comer a um canto
do escano.
Perguntaram-lhe:
–
Ele é verdade, ó Luís?!
–
Quem tera! – acudiu muito contente,
soprando a garfada fumegante, o pobre do Luís. E fungou uma risadinha...
–
Gostavas, ó Luís? – perguntou-lhe de lá o Antônio Valente.
–
To... tava! – disse o gago.
–
Tam’ém eu!
Fora
então que a Luzia, já de pé para se ir embora, no meio de alguns que se
despediam – "Boas-noites, Sr. Antônio! Muito boas-noites, Sra. Ana!"
– dissera outra vez a sua "história": – que "enquanto Deus lhe
desse saúde, e força naqueles braços..." – acabando por os seus receios de
que viesse enfim a dar-lhe volta ao miolo algum feiarrão – "inda mais
feiarrão do que o Luís!"
–
Olha que já esta noite disseste isso, ó Luzia! – tornara-lhe a rir o Antônio
Valente, anediando com a manga o chapéu grosso.
–
E tu que tens com isso? – perguntara-lhe ela fingindo-se zangada.
–
Tenho! – acudiu o Antônio. – É que se me não dava de casar contigo. – E abalou,
ato contínuo, direito à escada. – Com bem passem a noite. Adeus, Luzia!
Não
rira desta vez, a Luzia, nem tão-pouco lhe acudiu o remoque...
–
Ouves? – chamou ela, sem saber o que ia dizer.
–
Que é? – respondeu, já do fundo da escada, a voz do Antônio Valente.
–
Não é nada... Era cá uma coisa. Já não é nada.
Mas
o lavrador, que percebera, voltou-se logo para a Sra. Ana, e disse-lhe assim,
de velhaco:
–
Sabes que mais, ó mulher? Olha se me vais arejando a roupa sécia, que há de ser
precisa pra um casamento...
Atirando
o xale para a cabeça, a Luzia botara a correr para a escada, sem dizer
palavra.
–
Então boas-noites, ó rapariga! Vê lá agora se cais...
–
Ah, não caio... – respondera ela de
certa maneira.
–
Não é isso! Que não vás cair que me quebres a escada! – explicou o lavrador
alçando a voz, e desfechando-lhe uma gargalhada!
Enfim,
enfim, caso é que daí a menos de um ano, à missa do dia, o bom do senhor
Reitor
dizia assim ao lavabo, com uma grande chapada de sol a bater-lhe na casula
branca:
–
Na forma do Sagrado Concílio Tridentino...
Pausa.
–
Ora mal sabem vocês quem se vai casar! – pareciam dizer no altar-mor, a rir, os
lindos santinhos cheios de flores.
E
o povo parecia perguntar, escutando:
–
Quem será? Quem será?
...e pelo favor de Deus e da Santa
Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana, querem contrair o Santo Sacramento
do Matrimônio que pretendem...
Eram,
já se vê, os proclames do Antônio Valente mais da Luzia. Disse-lhes os nomes
dos pais, disse-lhes os nomes dos avós, o senhor Reitor: – "todos desta
freguesia". Riam, os santinhos: – "Todos desta freguesia!"
Sorriam-se cá baixo os do povo:
–
Pois vão bem! Pois vão muito bem!
E
o senhor Reitor, cheio de sol, fazendo ao alto do papel dos "banhos"
um rasgãozinho, para se lembrar que era aquele o primeiro pregão, concluía,
cheio de sol, na sagrada forma do estilo, mirando ao alto uma andorinha, que
viera também à missa:
– Se alguém souber dalgum
impedimento pelo qual os contraentes deixem de receber o Santo Sacramento do
Matrimônio que pretendem, debaixo de pena de excomunhão maior o descubram, e
debaixo da mesma pena maliciosamente o não embaracem.
Ora,
ora! pelo contrário!... Impedimentos não os havia de casta nenhuma, e todos
levavam muito em gosto, na freguesia, o casamento: – os santos, o povo, as
árvores, as andorinhas... E do mais velho ao mais novo, estou em dizer que não
houve ninguém que nos três domingos dos "parabéns" não provasse a
rica "pinguinha", e ninguém, dos quarenta para baixo, que na boda não
desse à perna – trup-trup! trup-trup!
– nesse lindo dia de sol...
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