Literatura
Qual e o estado da nossa
literatura?
Qual é o trilho que ela
hoje tem a seguir?
Estas duas perguntas pedem
nada menos do que a dolorosa confissão da decadência em que se acha em Portugal
a poesia e a eloquência, e o encargo dificultoso de indicar os meios de
melhoramento no ensino e no estudo delas. Sem pretender que sejam as únicas,
nem as melhores, exporemos a série das nossas ideias sobre este duplicado
objeto.
A convicção de uma verdade
literária produziu nos séculos XVI e XVII um erro na Itália, que, estendendo-se
à Espanha e a Portugal, transviou da legítima direção todos, ou quase todos os
escritores da época chamada do seiscentismo. Sentiu-se que a metáfora, a mais
bela de todas as figuras Poéticas e oratórias, a mais repetida, a mais
necessária mesmo nos discursos comuns da vida, abundava por isso nos bons
escritores clássicos e modernos, que já nesse tempo ilustravam a Europa: viu-se
que as passagens belas ou sublimes de Horácio, Píndaro e Virgílio, de Dante e
Ariosto, deviam-lhe em grande parte a sua beleza e sublimidade, e isto era
certo; inferiu-se daí que a metáfora era o principal e talvez o único meio da
poesia e eloquência, e que ela devia revestir todas as imagens e sujeitar ao
seu império todos os gêneros, todos os estilos, e isto foi um erro: a vertigem
metafórica se apossou dos poetas e oradores, e, por uma consequência natural, o
fundo das ideias esqueceu e só se olhou para as formas: à sombra desta mania
prosperavam os conceitos e as agudezas, chegando as letras a cair numa
barbárie, que tanto mais irremediável parecia por ser filha da civilização
literária já exagerada. O Zodíaco
soberano, Os cristais d'alma, A Fênix renascida e outros muitos
escritos desse tempo, são lamentáveis monumentos da corrupção de gosto a que
chegou Portugal no princípio do décimo oitavo século.
Porém o mal não foi sem
remédio, e os membros da Arcádia fizeram volver as letras à severa singeleza
das puras formas da Grécia. Muito aí deve a Garção, Gomes e Quita; mas ninguém
tanto como Diniz mostrou a superioridade do gênio e do gosto que caracterizaram
a segunda metade do século XVIII. Dando os seus principais cuidados à poesia
chamada pindárica, gênero difícil pelo audaz das figuras, pelo gigantesco das
imagens, ele soube escapar aos defeitos e frioleiras do seiscentíssimo que
bebera na escola, em composições nas quais era mui fácil introduzir-se o mau
gosto; e ainda que Quita e Garção tentaram o mesmo gênero, em nosso entender,
Diniz não foi emulado. Capaz de todos os tons, no burlesco, no pastoril, no
ditirâmbico, nos deixou apreciáveis exemplos, e as suas dissertações sobre a
poesia campestre são ditadas por um grande conhecimento da arte, ainda que não
excedam em merecimento teórico as anotações de Gomes às próprias poesias, nem
os trabalhos de Freire e posteriormente de Barbosa e Fonseca sobre as Poéticas de Aristóteles e Horácio.
Entretanto nenhum dos
poetas e literatos do século de José I olhou as letras de um ponto de vista
eminente. Semelhantes aos escritores do século de Luís XIV, foram muito
eruditos, mas pouco filósofos, e assim o caráter das duas literaturas é a
confusão dos princípios absolutos com os de convenção. Cingindo-se quase
cegamente à autoridade dos antigos, miudeada e explanada pelos comentadores, a
sua obediência ilimitada a alheias opiniões contribuiu muito para a posterior
decadência. A impertinente questão dos arcaísmos e neologismos veio tomar o
lugar das discussões da Arcádia e essa ocupação dos meios talentos e da meia
instrução, influindo sobre objetos mais importantes, viciou e acanhou toda a
literatura. Se as notas, que sobre palavras e frases Francisco Manuel ajuntou
às suas poesias, fossem dedicadas a coisas,
quão ricas messes nós colheríamos do saber deste homem! Mas infelizmente não
foi assim, e a polêmica suscitada sobre o mérito do imortal cantor dos Lusíadas, pelos insultos que contra ele
vomitou o orgulhoso autor do gelado Oriente,
mostraram a que mesquinho estado tinha a crítica chegado em Portugal. Parte dos
reparos que Macedo copiou dos críticos franceses ficaram sem cabal resposta,
porque os sistemas estéticos mais liberais e filosóficos que o dos antigos, e o
da escola de Boileau, eram em geral desconhecidos entre nós, e estamos
persuadidos de que o juízo a respeito do tão grande quanto infeliz Camões ainda
resta a fazer, apesar da abundância de escritos que sobre este objeto se
publicaram.
Enquanto assim entre nós a
crítica se apoucava, um sentimento vago de desgosto pelas antigas formas
Poéticas, a influência da filosofia na literatura, a necessidade que sentia o
gênio de beber as suas inspirações num mundo de ideias mais análogas às dos
nossos tempos, e enfim, várias outras causas difíceis de enumerar, começaram a
criar na Europa uma Poética nova, ou, digamos antes, a fazer abandonar os
cânones clássicos. A Alemanha foi o foco da fermentação, e foi lá que os
princípios revolucionários em literatura começaram a tomar desde a sua origem
uma consistência, e a alcançar uma totalidade de doutrinas metódicas e consequentes,
não dada, ainda hoje, ao resto das nações. Lá não havia a lutar com a glória
nacional para a introdução de novas ideias, porque os monumentos da escola
afrancesada de Opitz não honravam demasiadamente o dogmatismo intolerante do
século de Luís XIV, impropriamente chamado clássico, e Bodmer e Breitinger
deram começo à revolução ousando preferir a Poética de Shakespeare e de Milton
à de Racine e de Boileau; contudo as opiniões na Alemanha têm-se desviado, em
parte, desta direção e as ideias de Schlegel já têm reagido na sua tendência um
tanto nova, sobre a literatura inglesa donde tiveram origem. Na França o antigo
sistema, amparado pelo renome de muitas produções imortais, disputa ainda a
campanha às inovações que entre esse povo, extremo em tudo, têm chegado a um
deseafreamento bárbaro e monstruoso.
Mas a Portugal não coube o
figurar nesta lide. A parte teórica da literatura há vinte anos que é entre nós
quase nula: o movimento intelectual da Europa não passou a raia de um país onde
todas as atenções, todos os cuidados estavam aplicados às misérias públicas e
aos meios de as remover. Os poemas D.
Branca e Camões apareceram
um dia nas páginas da nossa história literária sem precedentes que os
anunciassem, um representando a poesia nacional, o romântico; outro a moderna poesia sentimental do Norte, ainda que
descobrindo às vezes o caráter meridional de seu autor. Não é para este lugar o
exame dos méritos e deméritos destes dois poemas; mas o que devemos lembrar é
que eles são para nós os primeiros e até agora os únicos monumentos de uma
poesia mais liberal do que a de nossos maiores.
Contudo, não existindo
ainda um só livro sobre as letras consideradas de um modo mais geral e mais
filosófico do que os que possuímos; sem uma só voz se ter levantado contra a
autoridade de Aristóteles e de seus infiéis comentadores, será impossível
emitir um juízo imparcial sobre escritos de semelhante natureza. Julgá-los por
formas que o poeta não admitiu, será um absurdo, enquanto se não provar a
necessidade dessas formas; e isto, mesmo que elas sejam legítimas, só pode ser
resultado de um maduro exame ou de uma polêmica sincera. Antes disso os velhos
eruditos, vendo ofendida a inviolabilidade de
um tropel de preceitos que julgavam imprescritíveis, só darão ao gênio nascente
o sorriso do desprezo; e os mancebos poetas, a quem o sentimento incerto das
opiniões contemporâneas dirige por estradas que muitas vezes não conhecem,
farão que as suas poesias corram brevemente parelhas com os desvarios que tem
ultimamente manchado a mais bela das artes na França e na Inglaterra.
Um curso de literatura
remediaria os clanos que devemos temer, e serviria ao mesmo tempo de dar
impulso às letras. Em Portugal ainda há homens cheios de vasta erudição, de
filosofia e de gênio. Tiranias mais ou menos longas, mais ou menos cruéis, os
têm conservado na obscuridade de que devem sair, agora que se não receia a
instrução, agora que os resguarda a égide da lei. Nós não desejaríamos, porém,
que uma tal obra fosse puramente órgão desta ou daquela escola; deste ou
daquele partido. Convém que os princípios opostos sejam examinados de boa fé e
sem acrimônia: a intolerância em ideias políticas ou religiosas é odiosa; em
matérias científicas é ridícula. Se coubesse nas nossas diminutas forças um
trabalho de tanta magnitude, nós começaríamos por discutir qual é o objeto da
poesia, e desta questão nos parece que já se tirariam importantes resultados, e
que as duas características — o icástico e
o ideal — que distinguem as
tendências do antigo e do novo sistema, surgiriam dela para nos servirem depois
na resolução de vários problemas que se nos apresentariam na série das nossas
indagações. O exame das diferentes teorias sobre o belo e o sublime, e as
consequências, objeto imediato a que nos conduziriam os primeiros raciocínios,
dariam em resultado os princípios necessários e universais de todas as
Poéticas, e consequentemente aqueles sobre que deveríamos emitir uma opinião
absoluta e exclusiva: no resto respeitaríamos as opiniões de cada povo, de cada
época, em tudo aquilo em que elas se não opusessem aos princípios gerais.
Indagando a história da poesia nos diversos tempos e nações, vê-la-íamos depois
da queda da bela literatura greco-latina, surgindo do norte com um sublime de
melancolia e mesmo de ferocidade, próprio dos povos que a inventaram: veríamos
esta poesia fundida com os restos da romana, e posteriormente com a árabe,
produzir as diversas espécies do romântico, dessa poesia variada e
verdadeiramente nacional, na França e nas duas penínsulas, e termo médio entre
a bela simetria clássica e o sublime gigantesco do setentrião: acharíamos essa
originalidade nascente da literatura da meia-idade destruída quase no
ressurgimento das letras, e substituída por teorias antigas, que, conservando
sempre o mesmo nome, foram sendo enxertadas em ideias, em preceitos modernos:
encontraríamos, finalmente, o espírito de liberdade e de nacionalidade da atual
literatura. O quadro das novas opiniões nas suas variedades todas, as vantagens
ou danos resultantes de cada uma comparada com os elementos universais da arte,
nos poria em estado de formar um corpo de doutrina que determinasse as
proporções essenciais da futura poesia portuguesa, completando ao mesmo tempo
uma série de juízos imparciais sobre as produções das diferentes eras e das
diferentes escolas, em relação ao seu gênio particular, e à filosofia geral das
letras.
Todos sabem que os antigos
dividiam a eloquência em três gêneros, que muitas vezes se confundem: um
destinado ao elogio ou à invectiva; outro a fazer condenar ou a absolver, a
invocar a lei a favor do inocente, a invocá-la contra o criminoso; outro,
enfim, destinado a ventilar os grandes interesses das nações nos congressos ou
na tribuna popular. Foi a estas três classes que eles reduziram a oratória,
divisão que ainda hoje se conserva e que, apesar da sua arbitrariedade, nós
respeitaremos em nossas reflexões. Em Portugal, onde a representação nacional
não existia, onde os tribunais eram fechados às defesas orais e aos juízos
públicos, e a arte de defender e acusar consistia geralmente em conhecer os
meios de opor entre si a nossa ora mesquinha, ora contraditória, ora obscura
legislação, e numa dialética as mais das vezes pueril, tanto o gênero
deliberativo como o judiciário não tinham quase aplicação: ficava somente a
eloquência dos panegíricos para o orador profano, e uma mistura de todos os
três gêneros para o orador sagrado; mas em nenhuma das duas classes temos de
que nos gloriar neste século. Por uma parte elogios de encomenda ou feitos com
miras de interesse pessoal não podiam sair da boca do orador acompanhados das
inspirações do entusiasmo; e sem convicção e persuasão própria não se pode
convencer nem persuadir os outros: por outro lado a eloquência sagrada nunca
pode preencher inteiramente o fim da arte, uma vez que não divague do seu
objeto — a moral religiosa. O fim da eloquência é persuadir; para isto não só é
necessário mover os afetos, mas também obrigar a razão. O usar deste meio,
nervo principal da oratória entre as nações civilizadas, seria ridículo perante
um auditório cristão. O incrédulo não vai ouvir sermões, e o orador que
empregasse uma lógica severa para provar a conveniência da moral do
cristianismo, a quem disso está de antemão convencido, obraria com tanta
impropriedade, como se o missionário diante de homens de diversa crença
buscasse tão somente mover os afetos sem falar à razão.
O exemplo de dois grandes
homens parece opor-se ao que temos acabado de dizer. São eles Bourdalone e
Bossuet: o primeiro empregando a severidade do raciocínio, o segundo tateando
todas as cordas do sentimento, excitando todos os terrores, todas as esperanças
da imaginação, e ambos considerados como grandes modelos. Mas de que são eles
modelos? É, justamente, dessa eloquência imperfeita, cujo vício se contém na
sua própria natureza. Com efeito, Bourdalone não preencheu, nos discursos em
que se lançou no abismo dos mistérios, o objeto da arte: esta dirige-se à
vontade, pela ação; e a defesa metafísica bem que eloquente dos dogmas cristãos
não requer ação alguma. Bossuet está no caso contrário: para que as suas
orações tenham efeito é necessária a fé. O homem indiferente em matérias de
religião, e que não possuir gosto bastante para avaliar seu merecimento,
dormirá tranquilamente à leitura de qualquer delas, enquanto uma filípica ou olíntia de Demóstenes fará sempre
impressão em todo o homem que tiver uma Pátria, uma fortuna a perder. Sabemos
quanto nos podem opor sobre estes dois oradores, e sobre a oratória sagrada em
geral; mas, não sendo possível o entrar aqui numa questão bastante vasta que
estas reflexões não comportam, lembraremos só aos leitores que nós consideramos
os panegíricos e os sermões de controvérsia como alheios do púlpito; que
Bourdalone, de todos os oradores sacros o que mais sentiu a necessidade dos
raciocínios como meio da eloquência, nos seus panegíricos fugia constantemente
para a moral, o que nos faz crer que ele a considerava o objeto da sua arte
como acima dissemos. Em último lugar transcreveremos uma cita da tentativa
sobre a eloquência do púlpito pelo abade Mauri, obra a mais acreditada entre as
desta natureza: J'avoue, diz
elle, qu'il est très-rare de pouvoir
suivre cette marche didactique dans nos chaires, où les discussions morales ne
sont jamais problématiques, et où la conscience, qui ne ment jamais, ne saurait
contester la vérité à ses remords. O que entra justamente na ordem de
nossas ideias, tanto sobre o objeto como sobre o defeito constitutivo da
eloquência sagrada.
Voltando ao nosso país, na
mesma eloquência do púlpito, a única em Portugal cultivada, só um orador deixou
pela estampa monumentos dignos de exame, se atendermos à fama popular que para
seu autor granjearam: já se vê que falamos do P. Macedo. Como orador sagrado,
Macedo deveu a popularidade de que gozou a um falso brilho no fundo das ideias,
e sobretudo a essa instrução perfunctória que começa a invadir a capital e que
é mais danosa às letras do que a ignorância. Sem vislumbres da sublimidade de
Bossuet, sem a unção de Fénelon, sem a profundeza de Bourdalone, sem a nobre e
evangélica simplicidade de Paiva de Andrade, ganhou seu renome com os ouropéis
de Sêneca; mas tal renome, se ainda soar na posteridade, não será para as suas
cinzas um bafejo consolador de glória.
Porém não é a eloquência
sagrada que deve hoje chamar a nossa atenção: ela tem sido o luxo da religião,
e nós desejamos vê-la substituída por meios mais conducentes a fazer prosperar
esta. A bela e sublime moral do evangelho não precisa dos socorros da arte de
Demóstenes e Cícero; e a religião prática de um clero virtuoso, seria a homilia
mais eloquente para insinuar a moral do Crucificado.
Antes de passar avante
ocorreremos a um reparo que farão os leitores: o de não falarmos sobre a
eloquência desenvolvida nas cortes da nossa primeira época de liberdade, que
forma uma exceção de quanto dissemos sobre a eloquência portuguesa do 19º
século. Tivemos para isso razões, e talvez a principal seja o quão longe nos
levaria o exame de alguns discursos ali pronunciados; entretanto diremos por
honra da nossa Pátria que então apareceram mui grandes homens, e que
desejaríamos ver publicar uma escolha das opiniões e relatórios então
ventilados, à maneira do que se fez em França das orações dos representantes
nacionais desde o princípio da revolução.
É, portanto, a educar
homens que ventilem dignamente as questões de interesse público nas câmaras
legislativas, ou que defendam a inocência e persigam o crime nos tribunais já
públicos, que o estudo e ensino desta parte da literatura se deve dedicar: é
assim que nós faríamos da essência destes dois gêneros de oratória o objeto da
segunda parte de um curso literário, tocando apenas de leve quanto é formal na
arte e que sapientíssimos retóricos, copiando-se uns aos outros, de sobejo
explicaram; mas tratando com profundeza os princípios aplicáveis principalmente
aos gêneros judiciário e deliberativo em relação à nossa situação política.
Para isto seria do exame da eloquência nos diferentes tempos e lugares, que nós
partiríamos em nossas indagações: veríamos Demóstenes, trovejando na tribuna,
armado da razão e da indignação, admiravelmente conciso e misturando com esta
concisão os sublimes movimentos do patriotismo, arrastar após si a opinião das
multidões; veríamos Cícero defender os seus clientes, tratar os mais
importantes negócios da República quase sempre com uma gravidade e eloquência
estudadas: na história da oratória moderna acharíamos a vigorosa razão de
Mirabeau acompanhada de um estilo raras vezes rasteiro; acharíamos nos
discursos de Maury os mais belos monumentos de uma eloquência máscula mas
tranquila; e, finalmente, o frenesi inspirado pelo amor às velhas formas do
absolutismo nas orações de Montlosier: passando à da Inglaterra exporíamos o
gênero de Pitt, gênero severo, renovado hoje por Makintosh e Burdett, a que
sucedeu o igualmente nervoso, porém mais cheio de artifício, de Burke, Sheridan
e Caning, e o gênero médio de Fox, terminando assim o exame das fontes verdadeiras
da eloquência.
Seria a desta última nação
que nós proporíamos como principal modelo sem excetuar contudo as outras. Entre
os gregos, romanos, e franceses há muito que aproveitar; mas, se é verdade que
a literatura em parte depende de certa harmonia com as circunstâncias de cada
povo, nenhuma eloquência é mais digna para nós de estudo do que a inglesa. Nem
entre os antigos, nem na República francesa, ela estava na mesma relação com as
instituições sociais que vai a estar na nossa Pátria. O orador, na discussão de
uma lei perante a plebe, que deve votar sobre ela ou influir na votação, como
acontece no calor das revoluções, tem de usar de meios diferentes dos que há de
empregar para a impugnar ou defender em uma câmara, cujos membros são, ou devem
ser, os mais conspícuos da nação por suas luzes e virtudes. No primeiro caso os
raciocínios convém sejam acompanhados dos meios formais da arte para dirigir as
paixões populares; no segundo, expostos a homens que conhecem a arte tão bem
como o orador, sem alcançarem o seu efeito, os artifícios só atrairiam sobre
ele a suspeita de má fé: isto sem pretendemos dizer que ele discuta com a
secura de um geômetra as questões do público interesse; porém os seus
movimentos devem surgir sinceros de um coração intimamente comovido e de nenhum
modo dar a conhecer que foram tranquilamente calculados pelos preceitos de
Quintiliano.
Entre os romanos, a pequena
porção de leis que havia ainda nos últimos tempos da República e o espírito de
generalidade a que se limitavam, dava motivo a que nas causas particulares o
advogado ou acusador de qualquer réu buscasse despertar a compaixão ou a sanha
dos juízes, de quem muitas vezes era guia única o senso comum e a moralidade,
na falta de disposições preceptivas, e apesar da semelhança dos tribunais civis
e criminais de Roma com os nossos modernos jurados, existe entre nós e eles uma
diferença enorme por causa das circunstâncias legais. Hoje, entre os povos
livres, há, ou deve haver, um código que previne todos os casos com clareza e
exação, e o mister do orador reduz-se a provar se o seu cliente está ou não no
caso da lei: então todo o pleito deverá ser uma questão de fatos provados ou
prováveis, e vice-versa.
Daqui se colhe quão sóbrio
ele deve ser empregando os meios que lhe ministra a arte. Clareza, ordem de
ideias, lógica severa, eis os meios principais da eloquência do foro e das
câmaras legislativas.
Tal é o rápido quadro do
nosso modo de pensar sobre a atual literatura portuguesa, e sobre os meios de a
dirigir. As curtas reflexões que temos feito sobre a poesia e a eloquência são
as bases em que julgamos dever-se fundar um curso de literatura, que serviria
como de introdução aos estudos mais profundos do poeta e do orador. Oxalá que
dentre os nossos literatos algum se encarregue desta útil e importante tarefa.
---
ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1834, e publicado em: Opúsculos, tomo IX, 1909.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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