Justiça
de Sua Majestade
Era por uma manhã de abril de 1852. O
campo vestia-se dos seus mais opulentos e matizados trajos.
O Minho estava fascinador.
Por toda a parte eram já espessuras
frondosas e impenetráveis; sombras discretas; vales misteriosos e encantadores,
graças ao claro-escuro, com que a vegetação renascente os coloria; colinas
adornadas e festivas, como um trono de altar em capela rústica; enfloradíssimos
silvados, veigas a exuberarem de vida; e, por entre tudo isto, casas de
brancura ofuscante, e acima de tudo um céu azul, daquele azul dos céus napolitanos,
a meu ver, tão culpados na existência dos Lazzaroni.
As torrentes estavam nas suas horas de
bom humor não bramiam, murmuravam apenas; não se precipitavam impetuosas do
alto dos outeiros, deixavam-se escorregar pelas anfractuosidades das quebradas.
Os ventos, como que arrependidos,
pretendiam com afagos fazer esquecer aos arbustos mais tenros as violências
passadas.
A luz salutar da Primavera
convertia-se, por mágica metamorfose, em perfumes que embalsamavam os ares, em
flores que esmaltavam os prados, em harmonias vagas que as brisas transportavam
de selva em selva, que as aves escutavam atentas e os ecos repercutiam sonoros.
Nestes dias assim sente-se palpitar de
vida a natureza inteira.
Por toda a parte se realiza um
gênesis. No solo é o grão que germina; nos troncos as novas folhas que brotam;
nos ramos as flores que desabrocham; nas águas, nas florestas, nos vergéis, nos
ares, uma jovem e inquieta geração de aves e de insetos que surge, animando
tudo com os seus magníficos concertos, com as valsas incessantes e rápidas,
iluminadas por um sol vivificador:
É
contagiosa esta alegria da natureza.
O
coração recebe o impulso dela.
A vida tem então também a sua
inflorescência. Nesta quadra as ilusões, as esperanças, as mais puras e ideais
concessões de fantasias exaltadas pululam, como as boninas na relva; a alegria,
os risos e os prazeres refletem-se nos rostos, como a luz do arrebol nos cimos
dos outeiros; ama-se melhor, perdoa-se melhor, e a poesia e os cânticos saem
tão espontâneos, como o trinado dos pássaros de entre a folhagem dos pomares.
A fisionomia das cidades perde também
então um pouco da sua habitual gravidade. O vento que lhes vem dos arrabaldes
inocula-lhes este fermento de folgazão regozijo. A Primavera desinquieta-os,
sedu-los, atrai-os, a esses soturnos cidadãos, e a população urbana transborda
nas aldeias circunvizinhas.
Os mais sisudos burgueses, que durante
o Inverno, revestidos da gravidade do seu paleta, e confiando os pés à
impermeabilidade dos seus sapatos de guta-percha, passavam sérios e ponderosos,
cortejando-se com irrepreensível compostura, agora vestidos de linho, de chapéu
de palha de forma pastoril e leveza que não era de esperar da sua idade e
posição, seguem, prazenteiros, caminho do campo, contando anedotas de índole
pouco edificante, fazendo sentir o sabor do sal, não absolutamente ático, que
as tempera: recordando as mais atrevidas coplas da Maria Cachucha, acompanhadas
de exibições coreográficas de fazerem estalar de riso a parte feminina do
rancho que capitaneiam.
É a época do esplendor dos “bons
retiros” campestres. Mas em 1852, alguma coisa havia, além da costumada
influência da Primavera, a sobressaltar a laboriosa população do Norte do
reino. A antiga província de Entre Douro e Minho mostrava o que quer que era
extraordinário no alvoroço e geral agitação, que por toda ela ia.
No Porto trabalhavam com azáfama as
modistas, os alfaiates, os sapateiros, as luveiras e os doceiros; enchiam-se a
deitar por fora as hospedarias; espanavam-se, como em dia de procissão, as
varandas, a cujos pacíficos aracnídeos se declarava guerra de extermínio;
lavavam-se as vidraças, caiavam-se as fachadas, e, graças a esta limpeza geral
que se fazia nas casas, os passeios tornavam-se intransitáveis. Ruas e largos
eram calçados com uma atividade sem análoga nos fastos do município. As sessões
extraordinárias do excelentíssimo corpo camarário não permitiam um momento de
repouso aos preocupados edis.
Uma população exótica das províncias,
trajando de uma maneira incrível, acotovelava-se nas praças, e, extasiada
diante das exposições de ouro da Rua das Flores dificultava a passagem ao
cidadão portuense, cuja proverbial celeridade era desta vez, por força maior,
modificada. A guarnição militar da cidade limpava e envernizava as correias e
estudava o exercício, e nos quartéis de Santo Ovídio, São Bento, Cano e Torre
da Marca ressoava de contínuo a música marcial das bandas que se ensaiavam.
Na Rua das Flores e à entrada das
Hortas erguiam-se arcos triunfais de madeira e lona e de uma arquitetura
problemática; no cais da Ribeira construíra-se um pavilhão de duvidosa
elegância; no centro da Praça de D. Pedro terminava-se um obelisco,
diversamente comentado pelas cadeirinhas do passeio do poente, pelos políticos
do sul, pelos vigias e empregados municipais do norte, e do lado do nascente
pelos grupos de elegantes, e literatos, que então estacionavam nas imediações
do Guichard, aquele café que há de merecer uma menção honrosa na história da
literatura portuense, se alguém se lembrar de a escrever um dia.
À entrada dos Aloques... — mal
agourada procedência — montava-se o primeiro gasômetro que viu a cidade
invicta, destinado a iluminar a gás uma árvore alegórica, em que se trabalhava
a toda a pressa no Alto da Rua de São João.
Este movimento não ficava concentrado
entre os limites das barreiras, estendia-se para o sul a Vila Nova de Gaia,
onde, no alto da Bandeira, se construíra também um arco e por toda a estrada de
Lisboa até além de Grijó; para o norte também a tranquila vida da província
havia sido alterada. Desde os fidalgos que lavavam os brasões das suas armas e
reformavam as librés desbotadas dos criados, até o aldeão, que tirava do fundo
da caixa meia dúzia de cruzados novos, cuja integridade e boa conservação eram
dignas daquelas dinheirosas épocas de D. João V que os mandara cunhar; todos,
mais ou menos, participavam deste geral alvoroço.
É tempo de dizermos o motivo de tanta
e tão excepcional agitação destes estranhos preparativos de festa, se é que o
leitor o não tem já descoberto. O motivo era efetivamente para todos estes
resultados.
As províncias do norte, que muitos
anos havia não tinham visto um monarca, preparavam-se para receber e saudar a
virtuosa filha do valente Soldado, de cuja gloriosa história aqui se tinham
escrito as páginas mais brilhantes e simpáticas.
No espaço de vinte anos o Porto, e o
Norte do reino, assistira a muitas revoluções, passara por muitos sacrifícios,
defendera a todo o transe o estandarte da liberdade, plantado pelas suas mãos
nas memoráveis areias do Mindelo; acontecimentos políticos, quase que sem
análogos na história das nações, observara-os o Minho, e nesse sentido já de
pouco se podia admirar, mas desafizera-se da vista da realeza; era para toda
esta boa gente quase um espetáculo novo.
Os mesmos soldados de D. Pedro não
estavam habituados a ela. Era o duque de Bragança, o coronel de Caçadores 5,
que militara ao seu lado, e não o rei ou o imperador, que antes de desembainhar
a espada e subir com os mais bravos às trincheiras do Porto, havia deposto o
cetro e as duas coroas, e despido os arminhos e a púrpura real.
O geral do povo fazia dos emblemas da
majestade uma ideia fabulosa.
O manto de São Luís, da igreja dos
Franciscanos, era um acessório, sem o qual não se podia conceber um rei, e de
antemão preparavam-se para admirarem o esplendor e a preciosidade da coroa de
ouro, que devia cingir a cara da soberana.
A multidão, como sempre e em toda a
parte, atraída pelos espetáculos novos, aglomerava-se à borda das estradas por
onde devia passar a real comitiva. Pinhas de cabeças infantis rompiam por entre
a folhagem dos álamos do caminho; as cobertas de damasco e as colchas de chita
ramosa adornavam as janelas, onde se encaixilhavam curiosos e pitorescos grupos
de fisionomias dos mais diversos aspetos, rindo, berrando, gesticulando,
pasmando; as câmaras municipais estavam a postos, tendo em punho os formidáveis
e irresistíveis documentos da sua eloquência; o presidente suava; o regedor decretava,
e os cabos de polícia passeavam a sua autoridade por entre as turbas que se
afastavam respeitosas.
De vez em quando, uma nuvem de poeira
ao longe, um coro desafinado de vivas infantis punha tudo isto em alvoroço,
ferviam os cotovelões, distribuíam-se com profusão as trilhadelas,
assobiava-se, gritava-se, berrava-se, imitavam-se as vozes de todos os animais
possíveis e impossíveis, esqueciam-se as conveniências; um espectador pacífico
sentia-se literalmente montado pelo vizinho, e vingava-se, procedendo de igual
sorte, com o que lhe ficava diante; a população subia até aos telhados, pendia,
como cariátides, das telhas e das cornijas; os camaristas sacudiam com os
lenços o pó das suas botas excepcionais e começavam a tirar os chapéus, o
presidente começava a desenrolar, com a gravidade que o caso pedia, o
monumental discurso...
Tudo em vão!
Era a carruagem de um proprietário das
imediações, o qual seguia para o Porto, onde tinha um peitoril à sua espera e
um lugar no teatro para essa noite.
Estes rebates falsos sucediam-se a
miúdo. Desde o princípio da manhã a vereação estava esperando!
Afinal chegava o cortejo. Os foguetes
estouravam com um estampido digno do município; os vivas elevavam-se num
crescente ameaçador; uma nuvem de crianças precedia os batedores; tudo falava
na sua passagem, tudo arrastava consigo; o povo pendurava-se às portinholas do
carro em que vinha a família real, devorava com o olhar a rainha, o rei e os
príncipes, e ficava como que espantado de os ver rir e conversar como simples
mortais.
Às vezes, chegado o momento solene, o
orador municipal engasgava-se à leitura da felicitação que andava estudando
havia um mês. O povo, a arraia miúda, sempre desatenciosa, atropelando então
todas as noções de acatamento envolvia os camaristas com irreverência
indesculpável e impedia assim que as suas municipais figuras se destacassem de
um modo conveniente.
O cortejo passava, e cada qual ficava
fazendo comentários sobre o trajo, o chapéu, o sorrir, os modos, os gestos ou
as palavras das suas majestades e altezas.
E isto se reproduzia, quase
invariavelmente, em todos os pontos da estrada até ao Porto, onde cenas não
menos curiosas se passaram então.
A agitação, que, segundo já dissemos,
havia muitos dias alvoroçava a cidade, subira de ponto à medida que o telégrafo
noticiava a chegada dos reais viajantes às terras mais próximas deste heroico
baluarte das liberdades pátrias.
— Era assim que os poetas e os
jornalistas chamavam ao Porto nas odes e artigos que estavam elaborando para a
ocasião.
Na manhã da véspera tinham começado a
rodar, em direção aos Carvalhos, as carruagens e trens das principais
personagens da cidade a esperar suas majestades e altezas, que na noite desse
dia ali repousaram. Para lá estava ainda o governador civil, o general da
divisão, e vários titulares antigos e recentes, bem como uma turba muito maior
de aspirantes a titulares; viam-se passar a todo o momento as deputações de
vários corpos coletivos que corriam a felicitar os augustos hóspedes. As
casacas, as gravatas e luvas brancas, as fitas dos hábitos e comendas, as
fardas agaloadas, os chapéus armados perpassavam, como brilhantes e rápidos
meteoros, perante os olhos curiosos dos peões que, depois de cortejarem os seus
possuidores, lhes ficavam redigindo uma biografia digna de Tácito pela
severidade.
O dia estava sereno e límpido. Um
noticiarista pôde escrever, esfregando as mãos por ter de empregar um
pensamento sempre novo: — Dir-se-ia que até o tempo, ostentando o seu brilho e
galas, quis manifestar alegrias confundindo as suas homenagens.com o regozijo
público.
A ansiedade geral tocava o seu auge.
Ás onze horas da manhã interrompiam-se todas as transações comerciais.
Fechavam-se as lojas, como em dia santificado. Os pais de família conduziam já
a fascinadora prole para as sacadas do amigo, que tinha a infelicidade de morar
num a das ruas do trajeto, e indiretamente arrastavam atrás de si, sem o saber,
uma corte mais ou menos numerosa de fascinados.
Os corpos da guarnição marchavam ao
som das músicas marciais, estimulavam o entusiasmo da população. Precedia-os
uma turba tumultuosa de garotos, que se voltavam seduzidos pelo brilhantismo
das fardas de grande gala e pelas evoluções do tambor-mor. No cais da Ribeira,
onde afluíam os curiosos de todos os lados para assistirem ao desembarque e à
cerimônia da entrega das chaves, a multidão era compacta, a ponto de dificultar
a trânsito das carruagens dos vereadores e as manobras dos batalhões do
cortejo.
Era um oceano de cabeças, ruidoso,
agitado, ameaçador! Donde como de um pandemônio, partia a gargalhada, o grito,
a aclamação, o insulto, o apupo, a ameaça, os vivas e os morras que a
curiosidade revolvia, e fazia ondular em grandes e impotentes marés. O Douro,
coalhado de navios, barcas, lanchas, escaleres e canoas embandeirados, e
refletindo nas suas águas, então serenas, a ponte pênsil, toda adornada de
flâmulas e galhardetes, oferecia um aspeto risonho e festivo, que lhe não é
habitual.
Ao meio-dia as salvas de artilharia, o
estourar das girândolas, e o repique dos sinos, comunicando uma violenta
comoção às turbas impacientes, anunciavam que a sua majestade chegara ao alto
da Bandeira.
Meia hora depois desembocando da
estreita e tortuosa Rua Direita na praia de Vila Nova, ao som dos vivas dos
nossos vizinhos de além-Douro, correspondidos pelos dos portuenses, o cortejo
real encaminhava-se para o rio, que, por entre fileiras de embarcações de todo
o gênero, atravessou.
No momento do desembarque, a multidão
teve um paroxismo de curiosidade entusiástica, para resistir ao qual a
guarnição militar obrou prodígios, que os fastos da polícia portuense deveriam
registrar. Esta crise durou todo o tempo empregado por o cortejo real em sair
dos escaleres e entrar no pavilhão, onde o presidente da câmara pronunciou a
felicitação do estilo e ofereceu a suas majestades as chaves da cidade, e só
terminou quando de novo tudo se pôs em marcha, observando a pragmática que a
etiqueta cortesã instituiu para casos tais.
Os sinos repicavam, os foguetes subiam
aos ares, as janelas e varandas vergavam sob o peso dos espectadores, as flores
choviam sobre o carro real, flutuavam as bandeiras, as flâmulas e os damascos
de diversas cores; o cheiro das espadanas e mais verdes, que juncavam as ruas,
completava as aparências de festa. A multidão continuava-se compacta da Ribeira
até à Lapa, onde devia ter lugar o Te-Deum,
e da Lapa ao palácio dos Carrancas, da Torre da Marca, ainda então propriedade
de particulares.
Estava enfim D. Maria II nos muros da
cidade invicta.
CAPÍTULO 2: EM QUE TRAVAM CONHECIMENTO ALGUMAS PERSONAGENS DESTA HISTÓRIA
Nós, porém, deixaremos o Porto,
justamente na ocasião em que de todos os lados aflui gente para ele, atraída
pelas iluminações, paradas, espetáculos líricos e dramáticos, bailes, ceias,
lanches e almoços, com que, durante oito dias, se ocupou a população desta
invicta cidade, que não desmentiu seus brios de abastada e amante da dinastia.
Os poetas contribuíram com o seu
contingente de sonetos, odes, hinos, cantatas e elogios para o esplendor dos
festejos.
Nos diários da época mais
circunstanciadas notícias do que quantas eu lhes pudera aqui dar, encontrarão
os que as desejarem.
O Porto conservou-se em folguedo
permanente até os princípios de Maio. Na manhã do dia 5 partiu a corte em
direção às províncias do Norte, indo almoçar a Castedo, onde a câmara de Bouças
serviu à família real, juntamente com o almoço, uma felicitação.
Precedendo o luzido cortejo,
percorramos a extensão da estrada que vai deste lugar a Vila Nova de Famalicão,
onde teremos de nos demorar.
Por toda a parte era movimento e vida!
Por baixo de um sem número de arcos
campestres e dos festões de murta e de flores, que adornavam todas estas léguas
de caminho, moviam-se e agitavam-se consideráveis magotes de gente da aldeia
que, a todo o momento, os caminhos laterais vazavam na estrada.
Os trajos pitorescos do Minho, as
cores garridas dos lenços e saias, a alvura das camisas de linho, o brilho dos
cordões e das arrecadas, as festas de viola e clarinete acompanhando vilancetes
improvisados de alguma cantadeira famosa, davam a toda esta multidão, que se
enfileirava de um e de outro lado da estrada ou, acampada em grupos nas devesas
e pinhais vizinhos, procedia a apetitosos repastos, complemento de todos os
regozijos populares no Minho, um ar de satisfação indescritível.
De tempos a tempos viam-se passar
caleças, cabriolés ou carroções — esse portuguesíssimo veículo, contra o qual o
Sr. Ricardo Guimarães soltara já então o fatal grito de extermínio — conduzindo
famílias que regressavam, repletas de festejos, à sua casa de província; outras
vezes eram correios de secretaria, carroças de bagagem, oficiais da corte
encarregados de disposições para o alojamento do séquito real, liteiras com
eclesiásticos, militares a cavalo, destacamentos de infantaria e em suma toda
essa população que, em tais ocasiões, se vê circular de terra em terra ou por
obrigação e oficio ou por curiosidade e prazer.
Foi então que se deu um fato
notabilíssimo, que a posteridade acoimará de fabuloso, como nós hoje acoimamos,
já não digo as façanhudas proezas do cavalo de Alexandre, mas até, com cena
escola histórica, as históricas ações dos sete reis de Roma.
Um dia, o povo portuense viu partir,
caminho do Norte, uma legião de cadeirinhas, que, a passo regrado, uniforme,
imperturbável e filosófico até, transpôs as barreiras da cidade invicta, para demandar
as da augusta Brácara.
Na cara destes beneméritos da
humanidade reluzia uma auréola que revelava a importância da missão que iam
cumprir assim! Nunca tão sublimes de estoicismo escutaram as chufas e apupadas
dos garotos; nunca tão cônscios da sua importância social guardaram mais solene
silêncio, apenas, de vez em quando, interrompido por uma interjeição galega,
que o tropeço de um adepto novel desafiara. Com que denodada coragem tomavam o
caminho da peregrinação, transportando, com cadenciado movimento, o inseparável
veículo!
E contudo o projeto que assim os
reunia em bandos era para fazer enfiar os mais ousados.
As façanhas de Hércules não lhe eram
superiores; a empresa imposta por Carlos Magno a Hugon ou Huol, do poema de
Wieland, não era de mais difícil execução.
Estes destemidos heróis propunham-se a
nada menos que a fazer viajar no Gerês — a por 2$400 réis! — toda a corte e a
família real!
Que pena que circunstâncias, alheias
ao ânimo dos novos e intrépidos argonautas, impedissem por fim a realização
desse feito! A humanidade enriqueceria a sua crônica de heroicidades e a águia
das serras abateria o orgulho, vendo ao seu lado o cadeirinha, limpando o suor
que o nobilitava e pendurando o capote listrado nos mais altos picos dos
rochedos, como o guerreiro vitorioso pendurava na sala de armas a cota, o elmo
e o morrião dos combates.
Menos feliz que o Porto, Vila Nova de
Famalicão sentia um pesadelo no meio dos seus regozijos. O dia não estava
seguro. Grossas nuvens, assopradas do sul, empanavam, de espaço a espaço, a
claridade da manhã; aumentavam, corriam e cerravam-se prestes a fundirem-se num
a só massa, como para reprimir todas aquelas expansões de entusiasmo festivo.
Junto a um arco de dimensões
colossais, flanqueado de um e outro lado por duas altas colunas, e que fora
erigido logo à entrada da vila, estacionava a câmara, dignitários e mais
convidados para a solenidade da recepção. Deste numeroso grupo a todo o instante
se erguia uma cabeça para fitar as nuvens, de cujo aspeto e movimento se
auferiam vários prognósticos meteorológicos.
— Isto passa, — dizia um velho, cujo
pescoço, armado de uma inflexível gravata branca, mal lhe permitia o movimento
necessário para fitar o céu.
— Hum! Não sei, — respondeu-lhe um dos
vereadores com ar de abatimento. — O vento está do sul.
— Ainda quando tenhamos chuva, é lá
mais para tarde. Quando o vento acalmar, pode ser — opinava um terceiro.
— O pior é ser hoje quarto crescente.
— Pois se temos água para a noite,
devem ser interessantes as iluminações! — observou um indivíduo, que, tendo
sido encarregado dessa parte dos festejos, via a sua glória futura ameaçada de
se evaporar, ou, mais propriamente, de se fundir na inundação que receava.
— Uma coisa assim! — suspirava um,
lembrando-se do chapéu novo que estreara.
— Vão-se demorando! — respondia-lhe
outro, a quem a incômoda construção de umas botas de polimento tomava
impaciente.
— Faz-se-me tarde para o jantar, —
retorquia-lhes um velho, consultando o relógio e dando a entender num a visagem
expressiva que este adiamento era o máximo sacrifício que podia fazer à
realeza.
E com os ânimos assim dominados pela
impaciência ou pelo receio, uns bocejavam, outros assobiavam, outros passeavam
e todos estendiam a vista pela estrada, a descobrir vestígios do que tão
ardentemente esperavam.
De repente um som distante de
morteiros e foguetes veio aumentar-lhes a ansiedade.
Chegara enfim o momento?
Tudo se pôs a postos. Erguiam-se nos
bicos de pés e estendiam os pescoços.
De fato, passados alguns momentos mais,
assomava no extremo da estrada, onde convergiam todos aqueles raios visuais, um
cano de grandes dimensões e de formas ainda não conhecidas ali, que, puxado por
mais de uma parelha e envolvido num turbilhão de poeira, se aproximava a toda a
brida do lugar donde o observavam estes ansiosos espectadores.
— Aí estão — disse um dos camaristas,
conjeturando que não podia deixar de ser real um tão estranho meio de
locomoção.
E, a um sinal dado, o morrão
aproximou-se dos foguetes aprestados, e uma salva de girândolas subiu aos ares,
quando o referido carro parava junto do arco triunfal.
Estava dado o alarme na povoação.
A câmara aproximou-se da portinhola.
Oh, desapontamento! Em vez do que
esperavam encontrar, apenas depararam com meia dúzia de fisionomias, que os
olhavam sorrindo, como se compreendessem e saboreassem o equívoco.
Caíram então em si.
Era uma das diligências da companhia
Viação Portuense, que escolhera aquele dia solene para inauguração das suas
viagens.
Não inventamos. Os viajantes que receberam
nesta jornada um acolhimento de príncipes, eram pela maior parte desta cidade,
e ainda hoje não terão por certo esquecido a honraria que um engano lhes
proporcionou.
Quando o presidente, chegando ao cano,
se preparava talvez para recitar os primeiros períodos da sua alocução, deu de
chapa com o rosto rubicundo e jovial, que, surgindo a um dos postigos, disse
para os circunstantes:
— Guarda dentro, guarda dentro, e à
vontade. Safa! Não se pode viajar incógnito por esta terra.
Os espectadores fizeram uma certa
careta expressiva porque tinham reconhecido a pessoa que assim lhes falava.
— Então isso faz-se, José? — disse-lhe
em tom de amuo um dos enganados.
— E célebre! — continuava este, e
depois de descer do cano e recebendo de um criado o saco de viagem. — É
célebre! Viemos em triunfo! Nunca imaginei que me estavam reservadas estas
glórias! Com que preparavas-te para me recitar a tua felicitação, não é assim?
— dizia para o orador municipal, que começava a achar graça ao sucedido. —
Escapamos de boa, meus senhores — disse depois para os seus companheiros de
jornada — escapamos de boa! A eloquência de município! Que pesadelo! E os
foguetes? Com os diabos! Esgotaram a provisão? Depressa! depressa! Olá, João
das Pipas, acende outra vez o morrão, meu homem. Perdeste o teu tempo e a tua
ciência. Mas não tem dúvida. Vocês, sem querer, saudaram um grande
acontecimento — a inauguração da Companhia Viação Portuense, da qual eu possuo
vinte e três ações. Não sabem o que saudaram com esses foguetes? Saudaram o
Minho, saudaram Braga, saudaram o progresso, os melhoramentos desta nossa
terra, o engrandecimento da província, do comércio e da agricultura. Não vos arrependais,
meus amigos: não choreis o dinheiro do município, que estourou agora nos ares.
São de bom agouro estes estouros. São palmas dadas a um grande cometimento. Não
estivesse eu com fome, que vos dissera já aqui quanto há a esperar desta
caranguejola em que eu vim mais estes cavalheiros, meus amigos, de quem me
despeço hoje, porque já agora aproveito a ocasião para ir a Barcelos na
comitiva real. Pensai vós nisto, e dai por bem empregada a pólvora que
consumistes. Todavia ponde-vos outra vez a postos, que as suas majestades não
tardam, e preparai também os guarda-chuvas, porque já sinto cair as primeiras
pingas.
E, terminando este aranzel, que os
circunstantes escutaram com um sorriso nos lábios, o jovial acionista da
Companhia Viação Portuense dirigiu-se, a correr, para a estalagem vizinha.
O seu prognóstico era verdadeiro. A
chuva começava a cair; e quando os coches reais entraram na vila era já tal a
cópia de água, que não pararam para se ler a felicitação camarária, e seguiram
imediatamente para a casa do Exmo. Sr. Antônio Emílio Brandão, onde a família
real tinha de pernoitar.
Estava em maré de infelicidades a
câmara de Vila Nova de Famalicão.
No entretanto o indivíduo que vimos
sair da diligência, fazendo alarde do desapontamento dos seus amigos de Vila
Nova, subia apressado os lanços da escada da hospedaria.
Era um velho baixo e magro, mas todo
viveza e atividade, de uma fisionomia aberta e expansiva, olhos penetrantes e
lábios habitualmente risonhos.
Trajava vestuário de jornada, e
mostrava claramente em certas particularidades do seu equipamento de viagem,
não ser noviço nestas empresas.
Trauteando um dos muitos hinos com
que, durante os dias que passara no Porto, tivera vagar de encher os ouvidos,
avançava a dois e dois os degraus, seguido do criado que lhe trazia as malas.
No primeiro patamar encontrou-se
frente a frente com o dono da hospedaria, que se descobriu ao avistá-lo.
— Olá! Viva o patrão. Passasse muito
bem. Quero um quarto para esta noite.
O estalajadeiro fez uma visagem de
embaraçado.
Então? Vamos, adiante. Mostre-me um
quarto, que tenho pressa.
— Mas... Valha-me Deus, Sr. José
Urbano... E que eu não tenho nenhum quarto que lhe dê.
José Urbano fez um gesto de espanto, e
pôs-se a olhar fito para o seu interlocutor.
— Com os diabos! Sr. Manuel! Você
esquece-se que está falando com um dos mais assíduos fregueses da sua baiuca?
— Não, senhor; mas é que eu não podia
adivinhar que vossa senhoria chegava hoje e pretendia ficar aqui. Aluguei todos
os quartos que tinha.
— Sr. Manuel! Olhe que eu sou José
Urbano de Melo Ribeiro, e nunca na minha vida dormi uma noite ao relento. Arranje-se
como puder; mas eu não saio daqui.
— Mas que quer vossa senhoria que eu
faça! Eu, se soubesse...
— Não tem desculpa nenhuma. Um homem
conta sempre com um amigo.
— Mas nestas ocasiões...
— Pois nestas ocasiões é que se
agradecem os favores. Então!
Decida-se. Eu quero hoje ficar em Vila
Nova. Parto amanhã para Barcelos. Não desejo incomodar nenhum dos meus amigos
que estão já abarrotados de hóspedes. Veja se me quer deixar numa situação
crítica. Tinha graça! Não saio daqui ao poder que eu possa...
— Valha-me Deus! — disse o
estalajadeiro, coçando a cabeça.
— Deixemo-nos de lamentações. Se você
não é homem de expediente, eu vou por aí pedir a esses inquilinos que me cedam
metade do seu quarto. Alguns hão de concordar. Com os diabos! por que não? Eu
arrancho sofrivelmente a uma partida de stromboy
ou voltarete ou de damas e gamão, e ainda não sou dos piores companheiros.
Vamos lá.
Quando José Urbano acabou de
pronunciar estas palavras, abriu-se por detrás dele uma porta, junto da qual se
travara esta altercação, e um velho, de aparência marcial, vestido de um amplo
capote ou sobretudo de mescla agaloado de vermelho e com botões de metal, e
cabelo cortado à escovinha, se intrometeu na discussão, dizendo para José
Urbano:
— Aqui tem um que lhe aceita a
companhia, se lha propuser e estiver disposto a aturar um velho soldado, que
por certo o não poupará à narração de uma das suas campanhas.
José Urbano voltou-se. Achava-se na
presença de um soberbo tipo de velho oficial, que desde logo lhe agradou.
Era uma figura, cuja cor e carnação
revelavam saúde e robustez; bigode espesso e alvíssimo, umas certas rugas ao
canto dos olhos, características de bom humor; porte airoso, movimentos fáceis,
cabeça ereta; peito saliente.
— Bom! — disse José Urbano, intimamente
satisfeito. — Eu logo vi que não estávamos em terra de bárbaros. Aceito,
general, e agradeço.
— Devagar, devagar, meu ilustre amigo.
Não posso com a patente. General! Safa! Como vai depressa! Major, major, e
graças à febre promotora da Regeneração.
— Major! — disse José Urbano,
instalando-se sem mais cerimônia no quarto do seu inesperado companheiro. —
Como é isso? Apre! Que tem andado a passo, meu salvador Major!
— Que quer? Servi junta do Porto em
1846. Está explicado o atraso.
— Hum! Então é dos meus! Está na
presença de um patuleia. Fique desde já sabendo.
— Folgo imenso.
E os dois apertaram novamente as mãos.
— Tirou-me de apertos, major —
continuou José Urbano, revolvendo as malas. — Entre parênteses, não repare se
eu, compensando de alguma sorte a incúria dos governos, lhe chamar às vezes
general.
— Chame-me o que quiser.
— Tirou-me de apertos, dizia eu.
Imagine que esse desalmado do estalajadeiro me queria deixar sem quarto. A mim,
que todos os meses lhe deixo aqui ficar alguns cruzados novos em troca de uns
bifes de cebolada que me dá a tragar. Olá, rapaz, traz-me cerveja inglesa —
exclamou para um criado que atravessava o corredor — Bebe cerveja, major?
— Para lhe falar verdade, meu caro
amigo, nunca fui afeiçoado a essa bebida de ingleses e flamengos. Lembra-me o
tempo de emigração.
— Ah! emigrou também? Olá, rapaz,
vinho do Porto.
— É para mim que o pede? Por quem é!
Eu já não bebo antes de comer. Foi tempo.
Está como eu. Rapaz, bifes de
cebolada.
— Com os diabos, senhor... como lhe
hei de chamar?
— José Urbano, um seu criado.
— Meu caro Sr. José Urbano, veja que
para jantar ainda é cedo.
— Chame-lhe lunch, chame-lhe o que quiser O essencial é que eu coma. Em todo o
caso... Rapaz, queijo londrino. Dá licença que me ponha à vontade, general?
— Sem cerimônia. Está no seu quarto.
José Urbano não esperou nova
autorização; vestiu um robe-de-chambre de chita, pôs um boné, calçou uns
sapatos de tapete, que tirou da mala, e começou a fazer os preparativos para se
barbear.
O major, acendendo um cigarro,
observava-o com visíveis mostras de satisfação.
— Então, com que o general ou o major
veio com alguns dos duques, não é verdade?
— Rigorosamente falando, eu vim só. Há
muito que desejava percorrer o Minho. Pedi licença em Lisboa, e aproveitei esta
ocasião para levar a efeito esta visita.
— Não conhece a província.
— Ora! como as minhas mãos.
— Visto isso, não tem roteiro marcado?
— Senão o instituído por mim próprio.
Quero abraçar alguns velhos camaradas e tomar a ver certos lugares.
— Segue para Barcelos amanhã, não é
assim?
— Não; vou primeiro a Braga.
— Diabo!
— Que é?
— Sinto não estar lá para o receber na
minha casa.
— Agradecido.
— Talvez ainda nos encontremos.
Demora-se?
— Veremos. Pode ser.
— Então é provável. Apressarei os meus
negócios.
— É de Braga?
— Resido lá.
— É negociante?
— Às vezes. Quando me faz conta. Quer
dizer, quando vejo probabilidades de bons resultados. No caso contrário vivo
dos meus capitais. Cultivo a minha horta, enxerto as minhas fruteiras, e uma
vez ou outra, por desfastio, trabalho em eleições. Assim vou vivendo.
E com estas conversas pouco e pouco se
foi estabelecendo a mais íntima familiaridade entre os dois: dentro de alguns
minutos mais estavam um em frente do outro, prestando a devida homenagem ao
talento culinário do Vate! da estalagem, manifestado num beef de cebolada, que teve as honras de bis.
Não os distraiu o estrondo dos
morteiros, os hinos marciais e o murmúrio da populaça, que a chegada dos reais
viajantes ocasionara nas ruas.
Acabada a refeição, José Urbano, que
continuava a pôr de parte toda a cerimônia, dirigia ao major uma pergunta que
envolvia uma intenção, evidente para o major.
— Não costuma dormir a cesta, coronel?
— Quase nunca, e hoje muito menos.
Tenho de visitar o duque de Saldanha.
— Nesse caso não se constranja. Vá,
vá. Eu dormirei, porque, para lhe falar francamente, ando muito falto de sono.
Estes dias passados no Porto arrasaram-me. Na quinta-feira estive em São João:
representou a companhia dramática; recitaram os poetas. Na sexta fui ao baile
da assembleia. No sábado voltei ao teatro; cantou-se a Lucrécia Bórgia. Na
segunda fui ao baile da Feitoria... num a palavra, não me tenho em pé. Até
logo, general ou major, até logo. E verdade! Como se chama?
— Clemente Samora.
— Clemente! Tem graça. Esquisito nome
de militar Adeus, adeus.
E os dois separaram-se; José Urbano
para se entregar às delícias de uma sesta que se não fez esperar; o major
Samora para descer à rua, onde vários grupos de oficiais, chegados ultimamente,
estacionavam.
Não havia muito que ali chegara o
major, quando o chamou à parte um alferes ainda jovem e imberbe, de compleição
delicada, elegância irrepreensível e mãos aristocráticas, e ocupado a calçar
uma luva de pelica com o mesmo escrupuloso cuidado que empregaria na plateia do
teatro de São Carlos.
A figura do recém-chegado, que a
julgar pelas aparências, dir-se-ia mais própria para adornar os salões da
capital ou os passeios do Chiado, e para ostentar garbos nas paradas, do que a pernoitar
em bivouas, vencer marchas e contramarchas, e dirigir uma carga de baioneta,
contrastava com o ar marcial do major, que o seguia a passos vagarosos,
revelando o hábito de cavalgar e talvez um princípio de reumatismo, que a vida
de campanha lhe granjeara para a velhice.
— Não é verdade que tenciona seguir
para Braga, amanhã, major?
— E, sim. Por que o pergunta? Posso
ser-lhe útil?
— Ofereço-lhe a minha companhia.
— Como! Pois não segue o cortejo?
— Não; o duque da Terceira
encarregou-me de uma mensagem para o comandante do 8. Parto amanhã.
— Estimo. Faremos uma bela jornada, e
a sua mãe?
— Segue ainda para Barcelos; depois
parte para a quinta do Coural, cujos proprietários prometeu visitar.
Esperam-na.
— Vai negociar o seu casamento, Filipe;
aposto. As filhas desse capitalista são ricas e interessantes, dizem.
— Que importa? A minha mãe sabe que
para eu começar a odiá-las bastava suspeitar que se tramava essa conspiração
matrimonial. Mas descanse. As raparigas julgo que até estão prometidas a não
sei que fidalgos do Minho.
— Então amanhã conto consigo?
— Sem falta.
— Eu moro na hospedaria. Acolá. E por
sinal que tenho por companheiro de quarto um originalão. E verdade, se puder,
apareça-nos esta noite. Jogaremos uma partida de voltarete.
— Pode ser. Até à vista.
— Até à vista.
As nove horas da noite ia grande rumor
no quarto do major Samora.
Este, José Urbano e Filipe de Rialva —
que assim se chamava o jovem alferes, com quem acabamos de tomar conhecimento —
jogavam uma partida de voltarete, a qual José Urbano acompanhava de observações
críticas e sonoras exclamações.
A exigências suas, flanqueava a mesa
do jogo uma boa provisão de bolacha, charutos e garrafas de Xerez e Porto, que
concorriam em grande parte para o caráter ruidoso da partida.
José Urbano estava infeliz ao jogo.
Rialva recordava-lhe, sorrindo, o velho adágio que lhe prometia felicidades nos
amores.
José Urbano torcia o nariz à alusão.
— Não, meu caro amigo, — exclamava
ele, bebendo um cálice do Porto — desse achaque estou eu livre. Curti o coração
ao sol do Rio de Janeiro e nas roças do sertão. Essas enxaquecas já não têm
presa em mim.
— Vamos, Sr. José Urbano, — continuava
Rialva — se quiser ser franco, talvez tenha que nos contar Um episódio ameno no
meio desse viver árido que diz.
— E certo, — disse o velho negociante,
tomando subitamente um ar de seriedade — é certo que nem tudo tem sido aridez
na minha vida. Mas os poucos episódios amenos, como diz, os meus únicos amores...
esses... são para mim demasiado sérios para os contar à mesa do jogo e entre
dois goles de Xerez. Agora... Bebamos em honra da Carta Constitucional —
exclamou, ao ouvir romper por baixo das janelas da hospedaria esse hino popular
executado por uma filarmônica da localidade.
— Apoiado — respondeu o major,
erguendo o cálice.
Rialva fitou por algum tempo José
Urbano.
— O que se não conta a uma mesa de
jogo, — disse passados alguns momentos nesta contemplação — poderá contar-se um
dia, dadas outras circunstâncias.
— Decerto — respondeu José Urbano.
— Bem; nesse caso... Em honra da
Carta!
E Rialva associou-se ao brinde.
CAPÍTULO 3: CONFIDÊNCIAS RECÍPROCAS
Na tarde do dia seguinte, a laboriosa
vila de Famalicão, tão alvoroçada e festeira na véspera, mostrava um ar, não
dissimulado, de abatimento e de tristeza. Com as primeiras alvoradas
desvanecera-se todo o fantástico efeito das iluminações da noite.
O sonho terminara, durava o desgosto
do acordar.
As colunas luminosas, os arcos
cintilantes, os esplêndidos obeliscos apresentavam-se agora em toda a sua
prosaica realidade de madeira pintada, lonas enodoadas, flores murchas, e
verdura defumada e sem viço. Os copos e as laranjas de azeite, que, sob o
prestígio da luz, horas antes atraiam com força irresistível as vistas da
multidão, já não desafiavam senão o tédio.
Raiara a luz verdadeira, e os falsos
astros, apagando-se, mostraram tudo o que eram. Quantas glórias, como eles, que
no meio das trevas ofuscam, não resistem aos primeiros clarões de um real
alvorecer!
Os restos e destroços dessas máquinas
de festa ali estavam expostos às fantasias, aos caprichos e espírito
aniquilador dos gaiatos, que os apedrejavam agora: de todos os esplendores que
desmaiam, de todas as reputações que periclitam, as turbas costumam tirar
destas vinganças, pelo entusiasmo e delírio em que momentaneamente as
arrebataram.
O desalento parecia nem dar ânimo para
remover essas últimas, deterioradas e quase repelentes memórias dos regozijos
findos. Compreendo aquele sentimento.
Eu não sei de nada mais triste do que o
terminar de todas as festas.
Em criança arrasavam-se-me de água os
olhos quando assistia ao desfazer do presépio que, em honra do Menino Deus, se
armava na minha casa pelo Natal.
Cerrava-se-me o coração de melancolia,
ao ver guardar outra vez na arca — e por um ano! — o Menino, Nossa Senhora, São
José, os grupos dos pastores, a vaca, o jumento, os três reis, os anjos e todos
os mais acessórios do pitoresco santuário, diante do qual, nesses quinze dias,
se rezava a coma em família e se cantavam as loas da ocasião! Amargo dia de
Reis, último desta abençoada quinzena, já te não via assomar sem que se me
enevoassem aquelas puras alegrias infantis. Que não encontrásseis mais estorvos
pelo caminho, venerandos Magos! Que aquela milagrosa estrela, que vos trouxe a
Belém, vos não fizesse errar mais tempo antes de lá chegardes! Fatal 6 de
Janeiro! com o teu anoitecer, anoitecia-me o coração. Voltava a vida normal,
voltavam os bancos das aulas, a aritmética, a caligrafia, oh! a caligrafia
sobretudo tão associada à férula do mestre-escola! e o que era pior que o mais
— acabava naquela santa comunidade, em que durante quinze dias vira a família;
o lar doméstico já não oferecia o alegre tumulto e desordem, em que velhos e crianças
tomavam parte, esse ruído e confusão que tão fundo calava no coração de todos.
A solenidade que nos reunira sob o mesmo teto, que nos fizera viver a mesma
vida, ia acabar. Nós, as crianças, chorávamos às claras na despedida; mas
suspeitávamos que as nossas lágrimas tinham companheiras envergonhadas. Quantas
vezes surpreendíamos segredos de comoção, que nos redobrava o choro!
Suspeitava-o eu então, mas acredito-o
agora que, apesar de na idade em que a lei autoriza a não me considerar
criança, ainda não sou superior a cenas daquelas.
Se ainda hoje experimento uma sensação
desagradável ao entrar num teatro vazio, assistindo ao findar de uma romaria,
ouvindo as derradeiras notas de uma valsa na última noite de carnaval! A
transição do movimento para o repouso é como uma imagem do pensamento!
As vezes, nesses momentos solenes, há
convulsões até como as da agonia. Nem outra coisa é a vertigem da última valsa.
E tanto isto se dá comigo, que só o
considerar no estado de desanimação em que, depois da partida dos augustos
viajantes, ficou a vila do Minho, onde se passaram as cenas do capítulo
anterior, me arrastou por divagações pouco alegres, que talvez fossem avivar ao
leitor memórias adormecidas, cujo delicioso pungir nem todos me perdoarão.
Mas o fato era que, ou por abatimento
moral ou por cansaço físico, o povo de Famalicão não andava na rua aquela
tarde.
À porta da hospedaria, onde contraímos
conhecimentos, que teremos de cultivar, estacionavam apenas alguns raros
ociosos que se entretinham a contemplar, com olhos de entendedores, dois
soberbos cavalos de raça de Alter, que um soldado segurava pelas rédeas. Os
nobres animais, ansiosos por partir, mordiam com impaciência os freios polidos,
resfolgavam, sacudiam as crinas, escarvavam com as ferraduras as pedras da
calçada, e expeliam dos beiços inquietos flocos de fumegante espuma.
Pelo selim e arreios que os ajaezavam
conhecia-se pertencerem a militares, e igual corolário se tirava da aparência
bélica do palafreneiro contra cuja astuciosa impassibilidade, e calculado
laconismo, se tinham vindo quebrar as mais inquisitoriais interrogações dos
curiosos do grupo.
O manhoso soldado, depois de ter feito
ampla provisão nos cigarros que, para o humanizar, um de mais expediente lhe
oferecera, limitara-se a responder por monossílabos, pouco de satisfazer, aos
quesitos sobre o preço, as manhas, a sustentação, o tratamento dos quadrúpedes,
e em seguida sobre a hierárquica posição, merecimento e mais partes que
concorriam na pessoa dos seus proprietários.
Com ciência superior foi sustentado
este jogo até que o tinir das esporas de alguém que descia as escadas pôs fim
às interlocuções.
Os grupos dispersaram para dar praça
aos viajantes; o soldado preparou as rédeas e fez a continência que, na posição
em que estava, lhe era possível fazer.
Seguidos pelo estalajadeiro, que se
desfazia em barretadas, assomaram ao patamar os dois oficiais.
Não surpreenderei por certo o leitor,
dizendo-lhe que eram os nossos conhecidos, o major Clemente Samora e o alferes
Filipe de Rialva.
Depois de dirigirem ao estalajadeiro
um gesto familiar e cortejarem os curiosos que se descobriam, os dois, tomando
as rédeas da mão do soldado, montaram com agilidade e partiram a passo em
direção ao norte. Os espectadores seguiram-nos por muito tempo com a vista e
ficaram fazendo comentários sobre o jogar das dianteiras dos cavalos, seus
merecimentos absolutos e relativos, e sobre as qualidades, posição oficial e
até a missão de que poderiam ir encarregados os cavaleiros.
Estes caminharam por muito tempo
silenciosos.
O major, deixando correr a vista por
todos os pontos da paisagem lateral à estrada, pelas veigas, almargens,
devesas, pinhais de um ameno e delicioso panorama do Minho, dir-se-ia ressentir
uma violenta comoção interior, como se lhe fossem conhecidos aqueles sítios, e
lhe estivessem evocando memórias de outros tempos com toda a inquieta turba de
saudades, que, de ordinário, as acompanham.
Filipe de Rialva tomara também uma
expressão de seriedade melancólica, que, lhe não era habitual.
Só a preocupação própria é que podia
fazer com que cada um não estranhasse a do seu companheiro, e não procurasse
devassar-lhe a causa.
Houve uma ocasião em que Clemente
Samora chegou a suspirar. Era isto nele tão extraordinário, tão pouco dado a
estas melancolias era o velho militar, que Filipe de Rialva saiu enfim da sua
abstração ao escutar este suspiro, e olhou admirado para o seu companheiro de
jornada.
Foi só então que reparou no ar de
tristeza que as feições acentuadas e expressivas lhe refletiam naquele momento.
— Que é isso, major? Se me não
enganei, ouvi-o agora suspirar — disse o alferes, dando um certo entono jovial
à interpelação.
O major conservou-se algum tempo
calado, depois respondeu, afetando indiferença:
— Que quer você, Rialva? O meu
reumatismo não se esquece de me dar de vez em quando notícias suas.
— Ai, major! major! a não descrer
muito da minha experiência na matéria, aquele suspiro não era desafiado por uma
dor articular.
— E então que quer dizer com isso?
Vejo-o com ares de quem me supõe apaixonado. Olhe bem para mim, Rialva. Acha-me
com cara de poeta erótico ou de galã de romance? Na minha idade!
— Um militar é sempre jovem, major É
aforismo de quartel. O coração não teve tempo de envelhecer no campo da
batalha.
— Mas contrai outros hábitos e
afeições por lá, e perde essa extrema inflamabilidade, que ameaça a de pessoas,
como você, de continuados incêndios. O meu não está sujeito àquelas enxaquecas
de que ontem nos falava o nosso amigo José Urbano. Se se não curtiu, como o
dele, nos calores dos sertões americanos, temperou-se no fogo da metralha.
— Mas aquele suspiro, major?
— Que tem aquele suspiro? Que
significa isso? Suspira-se sem motivo também e quantas vezes?
— Oh! mas é um terrível sintoma. Deve
confessá-lo.
— Olhe, Rialva, — disse o major depois
de alguns minutos de silêncio — vou falar-lhe com toda a franqueza. Não é com
indiferença e de ânimo tranquilo que tenho feito esta viagem do Minho. Sabe que
militei no Porto. Sabe que, sob o comando de D. Pedro, ganhei muitas das minhas
patentes e quase todas as minhas condecorações. A história das minhas
cicatrizes está escrita por estes sítios. Os episódios das campanhas
gravam-se-nos na memória e deixam saudades sempre. Sinto-as agora e vivas e
profundas! Se as sinto! E verdade. Conheço ainda tudo isto! Acodem-me à imaginação
coisas que julguei esquecidas para sempre. Lances arriscados, situações
difíceis, entusiasmos de vitória, desesperos das derrotas, episódios cômicos no
meio dos horrores da guerra, banquetes, onde folgavam e riam, ao nosso lado, muitos
que momentos depois estavam inanimados na campa... mil aventuras enfim, pecados
velhos, que agora vão recordando com certo travor.
— Pecados velhos também? — disse o
alferes, sorrindo.
— Que dúvida? E oxalá que fossem todos
leves!
— E não serão?
— Nem todos, Rialva, nem todos. E se
tiver de ser franco consigo, talvez que vá prender a um dos mais graves o
suspiro de que há pouco você me pediu a explicação.
— Ah! Bem que me parecia que vinha do
coração.
— Mas não de um coração namorado e
casquilho. Entendamo-nos. Graças a Deus e à minha boa sorte, tenho sido
preservado desse mau achaque de velhice. Mas de um coração arrependido... pode
ser... é. São remorsos de um mal feito, desejos de o remediar, desejos
irrealizáveis agora, e que por isso me serão perpétuos tormentos.
— Repare, major, que está dando às
ideias uma direção demasiado sinistra. Nunca assim o conheci apreensivo e
lúgubre.
— Tenho por costume não manifestar os
meus sentimentos. E pudor de coração que se não quadra com a empáfia militar.
Mas, à vista destes lugares, tão cheios de recordações para mim, a comoção foi
mais forte do que eu, venceu-me, zombou da minha repressão, transbordou. Já
agora deixá-la.
— Confie em mim, major; eu sei
compreender esses sentimentos.
— Não sabe tal. Na sua idade não se
pensa nisto. Somos imprudentes; mais tarde, demasiadamente tarde é que sentimos
o mal.
O alferes, longe de protestar contra o
conceito formulado pelo seu velho companheiro, calou-se e pareceu meditar.
— Desde 1843 que não voltei a estes
sítios — continuou o major. — Deveres em parte, e em parte o natural descuido
de ânimo dos que vivem aquela vida de Lisboa, mo impediram. E, contudo, alguma
coisa me devia ter trazido aqui há mais tempo.
— Vestígios de passadas afeições?
— Sim; mas vestígios tristes, vestígios
de lágrimas talvez. Entre muitas aventuras da mocidade, eu tive também o meu
romance, Rialva. Sossegue, que não gastarei estilo em lho narrar. Eu não me
entendo com a vossa literatura de agora. Bem sabe que sou contemporâneo dos
sonetos, e por isso abstenho-me de fazer narrações a rapazes que se alimentam
de romanticismo puro. Em vez de arroubamentos, e enleios que estão agora na
moda, eu poderia falar-lhe nas clássicas setas de Cupido e nas pouco ideais
seduções das três filhas de Vênus.
— Ora vamos, major Quer-me parecer
que, ainda que tarde, também se sujeitou àquela vacina, de que fala Garrett,
para se preservar das bexigas, as quais, na frase dele, matavam a fazer odes
pindáricas e sonetos os rapazes da sua época. Conte-me o seu romance.
— É preciso que lho conte? Pois não o
adivinhou já? Não o ia escrever capítulo por capítulo, prescindindo da minha
narração? É o eterno romance de um rapaz estouvado que, no meio das suas
afeições efêmeras, costumado a acreditar na inconstância dos corações, não
recua diante de nenhuma conquista; que se julga um profundo conhecedor da
humanidade, só porque lhe ignora o seu lado melhor. A quem seduz a fama de um
D. João ou Lovelace, e, como esses belos modelos, que pretensiosamente procura
imitar, fazendo de todas as mulheres um leviano juízo, joga com as afeições de
todas, sem se lembrar que um só coração que sacrifique nesse jogo é pagar muito
cara uma distração de rapaz.
— Bravo, major! Nunca me lembra de o
ter ouvido falar assim!
— Pois aproveite a ocasião, que talvez
seja a última. Eu não gosto de andar a fazer pelo mundo estas profissões
públicas de sentimentalismo. Mas a verdade é essa. Na época em que eu vivi por
estes sítios... Era eu então alferes como você, Rialva, e igualmente estouvado.
— Agradecido pelo conceito, major.
— Sabe que digo sempre o que sinto.
Nessa época contava as minhas aventuras pelos dias da semana, e esquecia-as tão
prontamente como elas se sucediam. Já ao terminar a campanha e próximo a partir
para Lisboa, pela primeira vez me encontrei com um coração, que me coube em
sorte despedaçar. Soube-o tarde, mas soube-o para a minha condenação. Foi uma mulher
que, mais que todas as que até então conhecera, me produzira uma profunda
impressão. Era uma rapariga que vivia nas imediações de Barcelos só com uma
criada, que fora sua ama de leite, e nesse tempo exercia as funções de
governanta da casa. A fortaleza não estava bem defendida; pode prever que me
não foi difícil a conquista, desde que consegui obter simpatias na praça.
Entreguei-me de olhos fechados a todos os prazeres e a todas as consequências
daquele amor Os primeiros pode concebê-los; estas porém talvez lhe
transtornassem as previsões que formasse.
Voltei para Lisboa desde que uma paz
definitiva se consolidou; e, confesso-lhe francamente, na vida da capital, onde
aos vencedores esperavam outras vitórias fáceis, e delícias dignas de Cápua,
esqueci-me daquela mulher
Lembrei-me tarde. Quando escrevi para
Barcelos, pedindo cautelosas informações a respeito dela, responderam-me que a
infeliz tinha morrido logo depois da minha partida.
— E o major ficou acreditando que ela
morreu de amores!
— Rialva, não se faça cético — disse
Clemente Samora, tomando um ar de serenidade. — Não há nada que fique tão mal a
um rapaz, do que essa endurecida descrença, que está agora na moda. Com
sinceridade, você não acredita que possa haver um amor verdadeiro?
— Acredito, mas julgo-o a civis rara,
que só a poucos felizes se mostra.
— Ora adeus! Em todo o caso, se quiser
que mais tarde o coração lhe não dê destes momentos de amargura que me está
dando hoje, não se deixe aconselhar por essa descrença. Receie sempre do
remorso.
— Remorso! É dura a palavra.
— E verdadeira. Quando em 1846 voltei
ao Podo, tremia só em lembrar-me que os incidentes de campanha, que ia
empreender, me poderiam levar àqueles sítios, e hoje vê que não sou tão senhor
de mim, que domine a comoção que eles me despertam.
Depois destas palavras, que o major
efetivamente pronunciou comovido, reinou por algum tempo o silêncio entre os
dois.
— Sabe o major que possui um notável
poder de catequese? — disse Rialva, passada esta pausa, procurando conservar às
suas palavras o tom jovial em que até ali as mantivera.
— Por que diz isso?
— Porque estou quase arrependido de
uma pequena aventura, que o ano passado tive nos arredores de Braga, quando,
por ocasião dos movimentos militares que se seguiram à Regeneração, me demorei
alguns meses naquela cidade.
— Alguma imprudência sua.
— Sossegue, major; eu não sinto
grandes apreensões a respeito do caso, porque, como lhe disse, não creio que se
mona de amores cá por este mundo, e muito menos que seja eu o destinado para
inspirar uma dessas paixões excepcionais.
— Mas enfim?
— Vi uma rapariga num convento de
Braga...
— E escalou-o, arrombou-o,
incendiou-o?
— Não, major E verá, pela narração que
lhe vou fazer, que nestas coisas ainda não deixei de ser noviço!
— Ouçamos a narração.
— Que interessantes olhos, meu amigo!
Uns olhos que valiam poemas; o rosto de uma cor de pérola fascinadora, e a voz
com mistérios de melodia, que a arte ainda não decifrou. Não havia ser-lhe
indiferente, major, acredite. O major que fosse...
— Bem, bem, adiante. Fale-me de si,
Rialva, fale-me de si. De mim sei eu de sobra o que devo pensar Conheço-me há
muito.
— Perdi a cabeça por aquela mulher Não
havia dia em que eu não procurasse vê-la, e consegui fazer-me notado. Passando
agora pelos pormenores desta inocente afeição, basta que lhe diga que ela me correspondia.
Parece-me que o vi sorrir quando pronunciei a palavra inocente! Mas juro-lhe
que é o epíteto apropriado.
— Longe de mim duvidá-lo. Continue.
— Sob o pretexto de visitar a escrivã
do convento, que era das relações da minha família, fui admitido à grade, e
ela, não sei sob que pretexto, lá estava sempre também.
Cada vez a admirava mais, porém ardia
de impaciência por lhe não poder falar de viva voz. O acaso...
— Mau, — disse o major com um meio
sorriso. — Agouro mal da intervenção do acaso no romance. É sempre perigosa e
inconveniente.
— Ouça, — continuou Rialva, sorrindo
também como se não fora sem fundamento a observação do seu companheiro. — O
acaso um pouco e muito a boa vontade dela, fez com que esta rapariga viesse
passar alguns dias fora do convento e em casa de um comerciante de Braga, de
cuja filha ela era íntima amiga. Eu tinha relações com este comerciante, e pude
então, mais à vontade, conversar com ela.
— Ora prossiga, prossiga.
— Pouco mais tenho para lhe dizer. O
meu amor foi tímido e respeitoso, como nem eu próprio suspeitava que fosse possível
sê-lo. Diante daquela mulher, diante daquela candura, desconhecia-me, achava-me
acanhado como qualquer rapaz de dezesseis anos. Creia, major, que não sabia o
que tinha feito da minha audácia habitual. Tinha de partir para Lisboa. A minha
mãe havia-me alcançado do ministro uma transferência de como. Disse-o à pobre menina,
que se banhou em lágrimas ao sabê-lo. O seu amor havia adquirido uma
intensidade que o denunciara. Em Braga falava-se muito nisso. Na noite a minha
partida consegui uma entrevista dentro do jardim da casa onde ela ainda então
se achava.
— Aproxima-se a peripécia — disse o
major. — Adeus timidez...
— Juro-lhe, major, que a respeitei,
como se a protegesse um ambiente de pureza e castidade. Davam onze horas na
igreja de São Marcos, e pela primeira e única vez os nossos lábios se
encontraram, e logo depois eu saltava o muro do jardim, montava o cavalo e
seguia o caminho do Porto, donde me transportei para Lisboa. E assim terminou
este inocente episódio da minha vida.
— E ela?
— Que lhe posso eu dizer dela? A
impossibilidade de nos correspondermos era manifesta. Dois dias depois devia
ela voltar ao convento, onde não podia receber cartas minhas. Ainda lhe escrevi
do Porto, esperando receber a resposta em Lisboa. Esperei debalde, e...
— E esqueceu-a, não é verdade? Nem
mais pensou nessa rapariga, que talvez a estas horas esteja chorando por si, ou
pela sua causa.
— Acredita, major? Não acha mais
natural que esteja pensando em outro?
— Pode ser. Em todo o caso, basta que
por uma efêmera distração arriscasse dessa maneira o destino do coração, que é
o destino inteiro de uma mulher, para que não possa ou não deva, pelo menos,
encarar levianamente o sucedido e deixar de sentir uns indícios de remorso.
— Acreditasse eu que produzira um padecimento
real...
— Que faria?
— Nunca o perdoaria a mim próprio.
— Cingia os cilícios e disciplinava as
carnes, não é assim?
— Condenar-me-ia a uma completa
abstenção de galanteios, pelo menos.
— E dessa maneira secaria as lágrimas
que fizera derramar!
— Qual era então o meu dever, major?
diga.
— Quando estiver em Braga, se se
demorar por lá averigue do sucedido e depois falaremos. Escusamos de estar
agora a traçar planos de imaginárias campanhas.
A estas palavras do major seguiu-se um
silêncio prolongado, durante o qual as ideias tomaram outra direção a ponto de
que, ao restabelecer-se, o diálogo versou sobre assuntos indiferentes que não
precisamos de referir, e assim se manteve até à chegada dos dois cavaleiros a
Braga, ainda com algumas horas de dia.
Desempenhando nesta cidade a missão
oficial de que viera encarregado, Filipe de Rialva propunha-se no dia seguinte
começar as averiguações a que o major e a sua própria curiosidade o convidavam,
quando um acontecimento imprevisto o veio impedir de as realizar.
Pela madrugada do dia seguinte chegara
a Braga uma notícia telegráfica, que lançara o espanto e consternação nos
ânimos de todos os seus habitantes.
Constava que às onze horas da noite
antecedente o palácio onde repousava em Barcelos a família real havia sido
devorado por um incêndio.
Os noveleiros políticos, sempre
prontos a darem aos mais insignificantes acontecimentos um colorido lúgubre,
filiavam aquele fato casual num a trama premeditada e misteriosa. As notícias
que se davam em voz alta, comentavam-se depois ao ouvido. As insinuações
transluziam das frases estudadamente formuladas. Os ociosos agrupavam-se em
frente das repartições públicas e das casas das autoridades, como se, das
fachadas desses edifícios, esperassem elucidações. Exagerava-se o sucedido.
Houve tal que condenou às chamas a vila de Barcelos inteira! Em outros grupos
enumeravam-se as vítimas e especificavam-se com escrupulosa exatidão a natureza
e caráter dos ferimentos! Uns revelavam a descoberta de uma máquina infernal; outros
noticiavam a prisão dos criminosos.
Os ódios partidários, então mais
acesos que hoje, todos estes boatos acolhiam, e de boa ou má-fé concorriam para
os divulgar, ampliando-os.
A nova, ao chegar aos ouvidos dos
nossos dois conhecidos, Clemente Samora e Filipe, havia adquirido já as mais
formidáveis dimensões, e revestira-se das cores menos para tranquilizar.
Desesperando de saber a verdade no
meio de tantas variantes, e até encontrando incertezas nas informações
oficiais, os dois, que tinham em Barcelos por quem se inquietar e que nada os
prendia atualmente a Braga, resolveram informar-se pelo seus próprios olhos, e
com este intuito partiram essa mesma manhã em direção à vila.
Algum tempo mais que se tivessem
demorado, teriam serenado as suas inquietações.
O pânico desvanecera-se afinal.
Sabia-se enfim que o incêndio não atingira nunca as proporções medonhas que se
dissera. A inverosimilhança dos romances inventados, com grande desespero dos
seus autores, ia já fazendo sorrir.
CAPÍTULO 4: FOGOS
DE MOCIDADE
Quatro dias depois dos sucessos do
capítulo anterior, percorria a estrada de Barcelos, em direção a Braga, uma
jovial cavalgada de oficiais do exército e de alguns estudantes do Porto, que a
promessa de um segundo perdão de ato trazia naquele tempo muito jubilosos e
como que em férias já.
Filipe de Rialva e o major Samora
tinham-se-lhe incorporado. Do rancho era talvez este último o único
melancólico. A sua estada em Barcelos avivara-lhe as saudades que o perseguiam.
Nenhumas informações pudera obter, nem sequer do Lugar onde repousava a morta.
Nem um só vestígio dos seus passados amores tinha encontrado o pesaroso velho.
Uma estrada em construção acabara de derrubar a pequena casa, que a imaginação
lhe estava agora ainda reproduzindo, e com ela dir-se-ia haver destruído todas
as memórias desse drama obscuro, que terminara em túmulo.
Rialva, ao inverso do seu companheiro,
no descuido dos vinte e dois anos, entregara-se inteiro ao prazer da jornada.
Pouco avultavam já na memória do
estouvado alferes as recordações da sua aventura de Braga. Tivera tempo e
ocasião de se distrair. De Barcelos seguira a corte a Viana, e nessa marítima
cidade do Minho foram demasiados os prazeres em que tomara parte, para que lhes
resistisse qualquer ideia melancólica. Vinha-lhe o coração desafogado ao voltar
a Braga, onde se antecipava um dia à comitiva real, que só no dia 12 devia sair
de Barcelos.
O gênio expansivo e bom humor de
Filipe valeram-lhe uma certa preponderância sobre o rancho, que parecia havê-lo
tacitamente elegido para seu chefe. Isto lisonjeava-o e obrigava-o a fazer
todos os esforços para justificar a escolha.
A cada passo, estridentes gargalhadas
e hurras espantosos partiam em coro do bando turbulento. Por vezes a algazarra
subiu a ponto que o major Samora, em poucas disposições para tomar parte nela,
sopeou o passo ao seu cavalo para se distanciar do tropel.
— Meus senhores! — disse um dos
estudantes, a quem no ano anterior um perdão de ato, poderoso Deus ex-machina, arrebatara milagrosamente dos
nevoeiros da matemática, onde se vira perdido, e que esperava que um outro o
ajudasse a livrá-lo da botânica, mau grado do Sr. Costa Paiva que não conseguira
ensinar-lhe a classificar nem a Digitalis
purpurea. — Meus senhores, nem todo o tempo gastemos a rir. A divina arte
do canto está em decadência entre nós. De todas as nações do mundo a portuguesa
é a que menos canta! Vergonha! Eu, digno e degenerado representante daquela
antiga e característica classe de estudantes que corria as estradas e estacionava
nas praças de capa traçada, espada ao lado e guitarra em punho, coro ao
repeti-lo!
O estudante de Salamanca, cantando
seguidillas debaixo da ventana da senhorita de tez morena e olhos travessos, um
pobre diabo sem dinheiro, mas cantando, cantando a escalar janelas, no meio das
rixas, cantando na cara dos guardas civis, e dançando, ao som da pandereta, o
fandango e o bolero — eis o tipo ideal, que se perde, que degenera desde que a
filosofia o estragou. O estudante hoje é folhetinista, é político, é erudito, é
sisudo e, mais que tudo, é sensaborão! Dá-lhe mais canseira a salvação da
república, do que o penteado da sua amante! Que tremenda responsabilidade nos
cabe, meus amigos! Nós, indignos depositários de um grande legado, que deixamos
esbanjar! Reajamos quanto nos seja possível, e reajamos cantando. A cantar se
têm feito revoluções. Deem-me o poder das canções, e eu revolverei o mundo. Cantemos!
— É justo que abras tu o exemplo —
respondeu-lhe um dos companheiros. O convite foi repetido por toda a companhia.
O orador não se fez muito rogado, e
num a toada popular, que então andava na boca de todos, cantou as seguintes
coplas, que nos parece serem da sua lavra:
Ouvia
gabar os beijos,
Dizer
deles tanto bem,
Que
me nasceram desejos
De
provar alguns também.
Que
esta fruta não é rara,
Mas
nem toda tem valor:
A
melhor é muito cara,
E
a barata é sensabor.
Colhi-os
dos mais mimosos;
Provei
três, mas, pelo meu mal,
Ao
princípio saborosos,
Amargaram-me
afinal.
Um
colhi eu de uma bela,
Que
era Rosa, sem ser flor.
Se
tinha espinhos como ela,
Dela
também tinha a cor.
Vi-a
a dormir, e furtei-lhe
Um
beijo que a acordou.
Eu
gostei, porém causei-lhe
Tal
susto, que desmaiou.
Logo
que a vi sem sentidos,
Fugi,
sem outro lhe dar;
Que
beijos, sem ser pedidos,
Não
são coisas para brincar.
Outra
vez, de uma morena.
Olhos
azuis, cor de céu,
Corpo
esbelto, mão pequena,
Um
beijo me apeteceu.
Pedi-lho
— e então por bons modos,
Pedi-lho
do coração.
Zombou
dos meus rogos todos
E
respondeu-me: que não.
Zombei,
como ela zombava,
E
um beijo, à força, lhe dei;
Mas...
bem dado ainda não estava
E
com um bofetão o paguei.
Custou-me
caro o desejo,
Que
muito caro ela o vendeu.
Pagar
por tal preço um beijo!
Assim
não os quero eu.
Este,
mais do que o primeiro,
Me
deixou fraca impressão;
Quis
provar ainda um terceiro
Para
não jurar em vão.
Mas
não quis fruta roubada,
Que
mal com ela me dei.
Uma
dama delicada
Ofereceu-ma...
Eu aceitei.
Ai,
que boa fruta que era!
Estava
mesmo a cobiçar.
Passar
a vida quisera
Tal
fruta saborear.
Mas,
no meio da colheita...
Da
fruta, o dono apareceu.
Zelosos
olhos me deita:
Se
zelava o que era seu!
Vendo
o caso mal seguro,
Eu
logo ali lhe jurei
Restituir
e até com juro
A
fruta que lhe tirei.
E,
caso não discordasse,
Não
me parecia mal
Que
a ele os juros pagasse
E
à senhora... o capital.
Esta
sensata proposta
Em
fúrias o arrebatou,
E,
por única resposta,
A
lutar se preparou!
Ouço
ainda gabar os beijos,
Dizer
deles muito bem:
Mas
findaram-me os desejos,
Já
sei o sabor que têm.
Uma estrepitosa algazarra rompeu do
grupo, quando o acadêmico terminou a sua cantiga.
— Visto isso, — disse um dos
cavaleiros — puseste-te em dieta dessa ruta? Tenho piedade da tua higiene
meticulosa! Possuís um estômago demasiado suscetível. Eu por mim, meus
senhores, confesso-lhes que, verde ou madura, não sei de outra fruta que me
agrade tanto.
— Alto lá! — respondeu o que cantara.
— Nada de responsabilidades absurdas. Eu não subscrevo todas as legítimas
consequências da canção. E se julgam necessário neutralizar-se o efeito, eu
estou pronto a cantar-lhes uma outra. Possuo-as para todos os gostos.
— Por esta vez dispensamos-te da
retratação. Acreditamos-te. Nada de lógica em assuntos destes. Que os céticos
cantem de crentes e os crentes encham as estrofes de ceticismo. Ninguém lhes
deve pedir contas. Outro cantor!
— Eu por mim, estou pronto a cantar, —
disse um alferes de Caçadores, — mas não a mulher nem o amor; inspira-me mais
um charuto, um cachimbo e até um cigarro, sendo o tabaco forte e mortalha boa.
— Pois canta o cigarro. Admite-se o
culto. Vai entoando a antífona, enquanto nós acendemos os fachos do rito
sagrado — respondeu Filipe, distribuindo cigarros por todos os da cavalgada.
E dentro em pouco o bardo novamente
indigitado, começava cantando:
No
centro de círculos
E
nuvens de fumo,
Um
deus me presumo,
Um
deus sobre o altar!
Nem
doutros turíbulos
Me
apraz tanto o incenso,
Como
o deste imenso
Cachimbo
exemplar!
Em
divãs magníficos
De
seda e veludo
Repousa
sisudo
O
ardente Sultão.
Fumando,
inebria-se
E
esquece odaliscas.
E
os beijos, faíscas
De
amor, e o Alcorão.
Longe,
oh! longe o ópio,
Que
os sonhos deleita
Da
mísera seita
Dos
Teriaquis,
Horror
ao narcótico,
Que
vem das papoulas
E
ao que arde em caçoulas
No
harém dos Alis!
Que
a África tórrida
De
areias candentes
Consuma
as sementes
Do
arábio café.
Bebido
nas chávenas
De
Índia e porcelana
A
negra tisana
Veneno
me é.
E
a folha asiática,
Delícias
da China,
Por
nossa má sina
Trazida
para cá?
Sorvida
em família,
Em
momo hidro-infuso!
Anátema
ao uso
Das
folhas de chá!
Nem
tu, ó alcoólico
Licor
dos lagares,
Terás
meus cantares,
Meus
hinos terás.
Embora
das ânforas
Vazado
nas taças,
Aos
outros tu faças
A
boca loquaz.
Meu
canto é da América,
Pais
do tabaco,
Melhor
do que Baco,
Que
o ópio melhor.
Que
a Europa, Ásia e África
E
a terra hoje toda
Já
fuma por moda
O
heroico vapor.
Até
na Lacônia,
Da
gente pequena,
Se
fuma, e no Sena,
No
Tibre e no Pó,
No
Volga e Danúbio,
No
Tejo e no Douro...
Que
grande tesouro
Se
deve a Nicot!
Nem
venha da cânfora
Contar
maravilhas
O
das cigarrilhas
Famoso
inventor.
Raspail
é cismático,
E
eu sou ortodoxo;
O
seu paradoxo
Não
me há de ele impor.
E
os áridos lábios
Mais
fumo ainda aspirem.
Que
os néscios suspirem
Por
beijos febris.
Não
quero outros ósculos,
Não
quero outra amante,
Qual
mais doudejante
Que
os fumo sutis?
Tomadas
Vesúvios,
As
bocas fumegam,
De
nuvens que cegam,
Vomitam
legiões.
Fumar!
Oh, delícias!
Prazer
de Nababo!
E
leve o diabo
Do
mundo as paixões!
É indescritível o entusiasmo que se
manifestou em seguida às últimas palavras da canção ou hino do tabaco. Foi tal
a gritaria que os ecos das montanhas vizinhas despertaram estremunhados, e,
como dizia Fernão Mendes Pinto, as carnes tremiam de medo.
Todas as bocas pediram bis, e de novo
se guardou um silêncio solene para escutar as estâncias de tão popular
produção, algumas das quais muitos já repetiam em coro.
— E tu, Filipe? — disse o cantor
favorecido da aura de popularidade — não cantas também?
— Depois do teu triunfo, julgo
prudente prescindir dos meus direitos. Desisto da palavra.
— Não admito. Não é facultativo, é
obrigatório o cantar.
— Isso é crueldade. Queres imolar-me
nas aras da tua musa rodeadas de fumo de tabaco?
— Isso é modéstia mal cabida. Ou temes
ferir a delicadeza da tua musa sentimental com as baforadas do meu cachimbo?
— Apelo para a decisão do conclave —
disse o estudante que cantara primeiro.
— A votos! A votos! — bradaram algumas
vozes.
No momento em que isto se passava
havia a cavalgada chegado a um ponto da estrada erma de habitações e perfeitamente
deserta de viajantes. Era um extenso lanço que seguia em linha reta por meio de
lezírias sem cultura, e tapadas de tojo e pinheirais ainda novos. A vista
alcançava de extremo a extremo deste lanço tanto mais facilmente, porque a
atmosfera densa de vapores apresentava, sob uma ótica favorável, os planos mais
distantes.
Isto permitiu que os cavaleiros
avistassem ao longe sentada, a fiar, sobre as pedras de um dos muros que
flanqueavam a estrada, uma mulher, que na aparência mostrava já ser de avançada
idade, a qual, ao ver aproximarem-se os viajantes, se levantou açodada e
colocou-se no meio da estrada como se lhes desejara falar.
— Aí tens quem te vai inspirar,
Filipe. Uma princesa desconhecida que desce a escutar as namoradas endechas do
trovador — exclamou um dos que primeiro a avistara.
— Vem à fala. Respeito, senhores; quem
sabe se estaremos na presença da rainha das fadas? Esta nossa peregrinação,
digna de um segundo Ariosto para a cantar, precisava de uns jardins de Armida,
eis aqui quem no-los vai abrir...
— Restos do terremoto, eu vos saúdo —
disse um outro, tirando o chapéu e vergando a cabeça.
— Coitada! Alguma pobre mendiga —
disse Filipe, procurando já nas algibeiras com que satisfizesse a que ele
julgava indigente pela atitude que a vira tomar aguardando-os...
— Em todo o caso, vejamos o que ela
nos quer. Portemo-nos sérios para lhe inspirarmos confiança. Está-me a parecer
que se pode tirar partido disto.
E, seguindo este parecer, todos
guardaram silêncio e marcharam na maior compostura.
Estavam finalmente na presença da
velha. Era de fato de aspeto centenar; engelhada, curvada e trêmula, mas ainda
assim com certo ar de resolução.
Logo que os viu chegar, dirigiu-lhes a
palavra:
— Ora, Nosso Senhor venha na sua
companhia!
— Amém! santinha, e que também esteja
consigo.
— Ele está em toda a parte onde o
procurem. Boa é a sua assistência, e a da Virgem Nossa Senhora, e a do
milagroso Padre Santo Antônio, que nos livre dos perigos e de trabalhos, de
testemunhos falsos e de ferros de el-rei e de maus vizinhos de ao pé da porta.
Ora para bem os fade a sua sorte. Amém.
— Então veio fiar para o descampado? É
melhor, são os ares mais livres — disse Filipe, para desviar a atenção da velha
do riso mal disfarçado dos seus companheiros.
— Nada, não senhor, eu digo-lhe. O
menino...
Desta vez os risos rebentaram.
— Olhem! Estão-se a rir por eu lhe
chamar menino. E eles que são todos para mim, que para um cento só me faltam
quatro anos! Vejam os grandes homens.
— Não faça caso, não faça caso.
Deixe-os lá. Diga o que ia a dizer.
— Ah! perguntava eu se os... vá lá,
senhores, se os senhores eram... criados da sua majestade? Sim, porque ser
criados dos reis não é baixeza nenhuma. Um morgado da minha terra, fidalgo dos
quatro costados e homem de teres e haveres, pois senhores, deu um bom par de
centos de mil réis para ser jovem do paço, e pelos modos suas obrigações são as
da mesma gente, mas aquele ainda assim quer que lhe paguem para as fazer, por
isso é que eu pergunto.
— Não se enganou, minha tia, — disse
Rialva, fazendo um sinal aos companheiros — eu sou estribeiro-mor da casa real,
aquele monteiro-mor, este copeiro-mor, camareiro-mor o outro, esmoler-mor...
— Vejam que graça! Pelo que estou
ouvindo todos os empregos mores são para os fidalgos, menos o de tambor-mor,
que nesse tenho eu um neto, que é um rapagão como uma casa.
De novo a seriedade dos ouvintes
esteve para os abandonar.
— Visto que são o que eu suspeitava,
sabem dizer-me se a rainha se demorará ainda muito?
— Então queria vê-la?
— Vê-la? Não era só vê-la, é que lhe
queria também falar.
— Falar-lhe?! Aqui?
— Aqui mesmo, sim senhor, e por que
não?
— Então tem a pedir-lhe alguma coisa?
— E verdade que tenho. Tenho a
pedir-lhe justiça.
— Justiça! — disseram admiradas algumas
vozes do grupo. — E contra quem?
— Isso basta que ela o saiba.
— Mas na estrada, boa mulher, a falar
verdade, não é das melhores ocasiões, — disse o major Samora, que tendo-se
agora reunido ao rancho, de que se separara, acabava de ouvir as últimas
palavras do diálogo.
A velha voltou-lhe uns olhos
desconfiados, e respondeu com certa aspereza:
— Para fazer justiça é sempre ocasião.
— Bravo! — disse o estudante da
canção.
A velha, estimulada pelo sinal de
aprovação, prosseguiu:
— Não é ocasião! tem graça. Nem que a
gente não tenha mais que fazer do que largar barcos e redes para ir ao palácio
procurar sua majestade. E então para quê? Para vir o senhor porteiro-mor, o
senhor escudeiro-mor, o senhor lacaio-mor, e nos mandar pôr fora sem que a
rainha o saiba. Temos outro com as justiças dos tribunais. Andar uma criatura
num a barafunda de escrivães e procuradores e letrados e testemunhas e jurados,
e a gastar dinheiro, e tanto mais ganha quem mais gasta, e tanto mais gasta
quem mais tem. Nada, não serve para mim. Aqui, no meio da estrada. Se me não deixarem
chegar à carruagem, ponho-me a gritar: Aqui-del-rei! aqui-del-rei e veremos
então o que vai. Forte coisa! Olha agora a grande dúvida!
— E assim, é assim, minha tia — diziam
do lado alguns oficiais.
— Vamos cá a saber, tardará muito a
rainha?
— Rialva, trocando um olhar com os
circunstantes, apressou-se a responder, fazendo por dissimular um certo ar de
malícia, que olhos mais exercitados que os da velha, poderiam reconhecer:
— Duas horas o mais tardar. Conhece-a?
— Nunca a vi, mas isso logo se tira,
pouco mais ou menos. Sempre há de vir vestida de modo que...
— Não, não — disse Rialva. — A rainha
traja como qualquer outra senhora; para além do mais como vem incógnita, nem
acompanhamento traz. Não vê que nos mandou adiante?
— Sim, sim. Mas então como há de ser?
— Olhe, daqui por duas ou três horas
pouco mais ou menos, vendo chegar duas carruagens com criados de casaco azul,
botões de prata e colete vermelho, e dentro da primeira uma senhora de meia
idade vestida de verde com xale e um chapéu branco...
— E ela?
— É ela. Acompanham-na talvez algumas
mais novas, são damas do Paço. Na segunda carruagem vêm os criados.
— E o rei e os príncipes?
— Esses vêm mais tarde, a cavalo, e
com os generais. Não lhe disse já que a sua majestade quis vir incógnita?
— Bem, bem.
— E olhe lá. É provável que por isso mesmo ela
se ponha a rir se vossemecê lhe chamar rainha e o negue; mas teime e diga-lhe
que vai pedir justiça, que ela há de escutá-la.
— Isso fica ao meu cuidado. Então diz
que daqui por duas horas?
— Duas ou três.
— Isto vai nas nove, — disse a velha,
falando consigo e fitando as nuvens — com mais três, nove, dez, onze, doze.
Meio-dia. Chega não chega, uma hora; janta não janta são duas, às seis é noite.
Não tem dúvida; uma vez não são vezes. E isto como assim há de fazer-se. Ora
então, muito obrigada, vão com a nossa Senhora.
— Adeus, minha tia — disseram todos
com a possível gravidade. — Deus permita que se saia bem da empresa.
— Amém! amém!
E o alegre bando, despedindo-se da
velha, que voltou a tomar a sua primeira posição, partiu a galope em direção a
Braga.
Quando a considerável distância do
sítio, onde esta cena se passara, afrouxaram o passo às carruagens para pedirem
a Filipe explicações sobre o que ultimamente dissera à velha.
— Pois não compreenderam? É uma
surpresa que preparei a minha mãe. A minha mãe devia partir de Barcelos duas ou
três horas depois de mim com as meninas do Coural, minhas primas não sei em que
grau, em casa de quem tenciona ficar esta noite para depois de amanhã assistir
em Braga à entrada da rainha. Portanto, dentro de duas horas estará ela ouvindo
uma reclamação em forma dirigida por esta pobre velha, o que não pouco a há de
divertir e às priminhas.
— Mas que necessidade tinha você de
enganar esta mulher? — disse o major com um certo ar de amigável censura.
— Deixe lá, major, — disse um dos
oficiais — o episódio deve ser interessante, e aquelas senhoras devem
agradecer-no-lo.
— Quem sabe o que esta pobre criatura
teria a pedir à rainha?
— Se for esmola, não ficará sem ela,
pedindo-a a minha mãe.
— Sim; mas se for justiça?
— E julga que irá mal encaminhada, se
a minha mãe a guiar para obtê-la?
— Assim a julgue merecedora dela.
— Pois então, deixe correr, major.
Pena tenho de não poder presenciar a cena.
CAPÍTULO 5: A HEROÍNA DESTE ROMANCE NA CASA DE CAMPO DE JOSÉ URBANO
A meia légua de Braga, Filipe de
Rialva, o major Samora e os seus jovens companheiros tiveram a surpresa de um
feliz encontro.
Ao dobrarem um ângulo de estrada, que
nuns sítios aqui e ali era povoada de pequenas casas e vendas, como denunciando
a vizinhança de uma grande povoação, acharam-se frente a frente com uma
personagem muito nossa conhecida, José Urbano.
À ruidosa exclamação com que José
Urbano saudou a cavalgada, rompeu desta um coro unânime de brados, que nuns
desafiava o conhecimento que tinham do jovial negociante, e em outros o
estranho costume de jornada de que ele vinha revestido.
José Urbano montava uma égua
corpulenta, mas não de raça apurada. Um chapéu de palha de amplíssimas abas,
preso por uma fita por baixo da barba, um barrete preto subjacente que lhe
defendia as orelhas de um leste em perspectiva, que a sua ciência meteorológica
prognosticava iminente; óculos verdes, baluarte contra a invasão da poeira;
guarda-sol minhoto, com honras de barraca, mas o único que tem razão de ser; um
capote de camelão, verdadeiro epigrama ao sol da Primavera; galochas capazes de
arrostar com o dilúvio ao lado da arca; alforjes repletos, uma cabaça ao
tiracolo, diante de si uma trouxa e na garupa uma pequena mala; tal o conjunto
de acessórios que concorriam para o efeito prodigiosamente cômico do
recém-chegado.
— Aleluia! — exclamou José Urbano,
elevando para a testa os enormes óculos verdes, que o incomodavam quase tanto
como a poeira. — Aleluia! Encontro enfim Aníbal. Juraria que me andavam a
fugir, meus companheiros de Vila Nova. Receiam-se da desforra que me devem ao
voltarete. Inútil trabalho. Ela é inevitável como os fados. Persegui-los-ei até
os confins do mundo. Mas de fato! Apresso os meus negócios em Barcelos para os encontrar
em Braga. Chego. Qual! Tinham-se evaporado. Acordaram uma manhã com a febre de
passear, e partiram para Barcelos! que eu acabava de deixar justamente em
companhia do correio que trouxe a Braga a notícia da terminação do incêndio.
Com os diabos! disse eu comigo. Os meus amigos teriam praça assente nalguma
companhia de bombeiros? Voltam agora a Braga, quando eu estava em caminho da
minha casa de campo.
— Eu iria jurar, meu caro José Urbano,
— disse o major Samora — que partia para a Sibéria. — O aspeto respeitável do
seu equipamento...
— Permita-me que lhe diga, major, que
essa observação desacredita um pouco a reputação de homem experiente e
cauteloso que merecia. Fie-se em calores de Maio! Bom, bom. Olhe-me para
aqueles riscos brancos do céu, aquilo é leste, o impertinente, o endemoninhado
leste. Eu nunca ouvi o sibilar dos pelouros, meu caro Cipião, mas afianço-lhe
que me não pode ser mais desagradável que o do vento leste. Não o há assim.
— Nem o dos mosquitos? — perguntou um
estudante.
— Nem esse. Os mosquitos matam-se, o
leste... mata-nos. Bem vejo que o capote lhes está causando sensação. O capote,
meus amigos, é o mais útil artigo de vestuário que desde a folha de figueira
tem inventado o engenho do homem. Conserva-me o calor no Inverno e a frescura
no Verão. Os óculos livram-me os olhos da poeira e conservam-me a vista. O
guarda-sol, que os espanta pela enormidade, abriga a minha pessoa e a bagagem
dos ardores do sol e das torrentes da chuva. A cabaça, meus amigos, contém o
líquido que me sacia a sede, ou me dá o calor para arrostar com o frio...
— Basta, basta, amigo José Urbano —
interrompeu Samora. — Vejo agora que sou imprevidente. Desse modo, tanto pode
viajar pela Cítia fria como pela Líbia ardente.
Esta observação do major foi festejada
com uma estrondosa gargalhada, na qual tomou parte José Urbano.
— Seja, — disse este, quando serenou a
hilaridade — mas o fato é que os meus amigos vão para Braga e eu para a minha
casa de campo. Não importa. Amanhã cedo cá estou de volta, e fiquem certos que
me não tornam a fugir. Cobardes! São militares, e fogem de um paisano
desarmado!
E José Urbano, despedindo-se de Rialva
e Samora, saudou a cavalgada, que lhe correspondeu com estrepitosos hurras.
Daí a pouco entrava a cavalgada em
Braga, e aquele grupo alegre e ruidoso dispersava-se, levando todos gratas
recordações da viagem de Barcelos à capital do Minho.
Na manhã seguinte, véspera da entrada
da rainha em Braga, passeava o major Samora com alguns oficiais militares no
campo de Santana, quando um indivíduo bem-trajado, de idade avançada, mas de
aspeto vigoroso, lhe foi ao encontro com os braços estendidos, dizendo-lhe com
o sorriso nos lábios:
— O Sr. major Samora já tão cedo por
aqui?!
— Tão cedo? — disse Samora — pois o
amigo José Urbano não sabe que os militares se levantam ao toque de alvorada?
— E verdade, é verdade; mas quando se
não está em serviço ativo... Naturalmente não quis que o inimigo o
surpreendesse na cama! Muito bem; como o prometido é devido, aqui estou em
cumprimento da minha palavra. Mas diga-me, major, onde está hospedado?
— No quartel.
— Tem necessidade de estar hoje em
Braga?
— Nenhuma. Os meus deveres estão
cumpridos e só amanhã...
— Nesse caso quer-me fazer um
obséquio?
— Quantos quiser, meu caro senhor.
— Há de vir jantar comigo.
— O pior é que o meu antigo camarada,
o capitão Melo, já me havia obrigado a prometer-lhe jantar com ele.
— O capitão pode esperar, não é verdade?
— disse José Urbano, voltando-se para o capitão, entre quem e ele existia a
maior familiaridade. — Pode até vir conosco também.
— Isso é que não, — disse o capitão
interpelado — mas não quero também privar o Samora do agradável passeio que lhe
proporcionará o amigo Urbano. Aconselho-te que vás, e amanhã será o meu dia.
— E não levas a mal?
— Essa é boa!
— As suas ordens, Sr. José Urbano. É
longe?
— Um quarto de légua afastado de
Braga. É um caminho excelente.
— Conta meia légua, Samora; o nosso
amigo tomou os costumes da aldeia; para ele não há longes.
— Isso também é com o meu cavalo.
— Então vamos! — continuou José Urbano
— mas, major, não julgue que pretendo com isto pagar-lhe os obséquios que me
fez em Famalicão. Não, senhor.
— Basta de agradecimentos por tão
pouco; não falemos mais nisso.
E os dois dirigiram-se para o quartel,
onde o major Samora residia; este montou a cavalo; José Urbano tomou na
alquilaria próxima uma possante égua que ali dera a guardar, e partiram em
direção à morada do negociante bracarense, vivenda retirada da cidade na
proximidade da estrada do Porto, mas afastada dela mais de um quarto de légua.
— Então reside na quinta
permanentemente?
— Não, senhor. Eu vivo em Braga,
porque a isso me obriga o meu negócio. Mas tenho há tempos a minha família fora
da cidade, longe da qual, por gosto, eu viveria também.
— É numerosa a sua família?
— Uma sobrinha apenas. Pobre rapariga.
Eu sei que não é esta a vida a que naquela idade se dirigem seus suspiros...
E os dois prosseguiram no seu caminho
conversando acerca da agricultura, do comércio, da indústria, de política, até
avistarem a casa onde José Urbano vinha descansar a miúdo das suas lidas
comerciais.
Era uma agradável vivenda, circundada
por um viçoso quintal todo orlado de limoeiros, e onde florejavam as mais
formosas japoneiras e magnólias de algumas léguas em redor. Penduravam-se pelos
muros festões virentes de jasmins e balsâminas, em volta dos quais zumbia
incessante um buliçoso enxame de abelhas, atraídas pelos aromas suaves que se
exalavam em torno. Na extensão destes muros abriam-se sobre o caminho duas
janelas de grades, através das quais se descobria a abundante verdura daquele
perfumado recinto, e de fora se escutava já o murmúrio contínuo e monótono de
uma cascata, que derramava a frescura e a vida por toda aquela vegetação
interior. Respirava-se ali uma tranquilidade que deliciava o coração. O
horizonte, que rodeava esta pitoresca residência, era extremamente aprazível.
Para qualquer lado que as vistas se dirigissem repousavam sempre agradavelmente
sobre um ameno fundo de folhagem e verdores, onde se demoravam
irresistivelmente, seduzidas pela alegria e festa que se refletia por toda a
parte. No meio do repouso e silêncio que reinava em torno dessa habitação campestre,
como que se adivinhava a vida latente da natureza que desperta no raiar da
Primavera, e o azulado e tenuíssimo véu de nuvens da manhã, que o sol não
dissipara ainda de todo, era como a garça transparente que longe de disfarçar,
realça a formosura de certos rostos e o fulgor de certos olhos. Através daquele
cendal vaporoso pressentia-se sorrir a natureza, mais fascinadora ainda nos
seus trajos simples da manhã, que nas ostentosas galas do meio-dia. As ervas
dos silvados, ainda úmidas do orvalho, dispersavam em cambiante íris os raios
de luz, fulgindo como brilhantes nas suas mudanças contínuas, ou imitando o fulgor
do rubi, a amenidade da safira, e limpidez da esmeralda e do topázio; só a
Primavera tem destes encantos.
Digam o que quiserem das outras
estações, nenhuma é tão agradável como esta. A natureza é sempre admirável, é
sempre artística, é sempre poética, mas o caráter da sua poesia é variado. No
Inverno é sublime e lúgubre como o Manfredo, o Corsário, o Giaour e muitos
outros poemas: Byron admira-se, surpreende-nos, aterra-nos, faz-nos estremecer
e mistura certo terror secreto ao seu entusiasmo: é entre o ritmo das rajadas,
as estrofes do mar agitado o que caracteriza os seus hinos. No Estio é
imaginosa, apaixonada, esplêndida, lasciva, como um frêmito de Musset, como uma
oriental, como um episódio de D. João. No Outono transparece nos seus cânticos
o que quer que seja de utilitário, são os frutos sazonados pendentes das
árvores, e das searas maduras, que chamam o pensamento para os sérios problemas
da vida, como este gênero de poesia filosófica que entre as galas do estilo
desenvolve um pensamento moral e humanitário. Mas na Primavera a poesia da
natureza é destas composições fugitivas, em que tudo é harmonia e lirismo;
abundam as flores, multiplicam-se as imagens, nos lagos e ribeiros onde se
reflete o céu, nos ares onde os vapores se condensam fantasmagoricamente em
pequenas nuvens de formas tão variadas como as concessões de fantasia de poeta,
combinam-se surpreendentemente a luz e o orvalho como as lágrimas e os sorrisos
num a balada germânica.
O concerto das selvas compõe-se de
gemidos e cantos, harmonizados em misteriosa consonância. A natureza é então
como a donzela que só cura de atavios e enfeites, e se entrega descuidada à
alegria do viver; refletem-se-lhe desanuviados os sorrisos nos lábios
inquietos, exalam-se-lhe do seio irreprimíveis os suspiros de envolta com os
cânticos, pulsa-lhe o coração ansioso como se fosse excesso de vida. Mais tarde
a maternidade tem também sua beleza, mas há alguma coisa de melancólico nas
alegrias de então; o futuro, que à donzela fulgurava de esperanças, à mãe
anuvia-se-lhe de preocupações; o coração sobressalta-se-lhe de contínuo
repartido por tantos afetos. A natureza do Outono tem também o caráter grave da
maternidade, mas na Primavera só há a despreocupação da virgem.
Não sei se estes mesmos, se análogos
pensamentos, suscitava ao major Samora o belo espetáculo campestre que se
gozava dali; é certo que parecia não se saciar de correr com os olhos por aquele
horizonte vasto e pitoresco, e não participar da impaciência que manifestava
José Urbano pela demora que havia em lhe abrirem o podão, ao qual estava
batendo havia cinco minutos.
Respondiam-lhe do interior os latidos
formidáveis de dois cães, mas não se observava o menor vestígio de uma
existência.
— Onde estará metida esta gente? —
exclamou José Urbano com azedume notável.
O major nem deu fé da demora que assim
exasperava o seu anfitrião.
Finalmente ouviu-se o estalar da areia
do jardim: o ruído de uns passos ligeiros e uma voz feminina, cujo timbre
agradável e sonoro veio despertar o major da sua contemplação extática, fez-se
ouvir de uma das janelas do muro.
— Ah! é o padrinho! estava bem longe
de o esperar aqui a esta hora — disse aquela voz ao reconhecer José Urbano; e o
major elevando a cabeça na direção donde lhe tinham vindo aquelas palavras,
pôde perceber, ainda que de passagem, a forma elegante de uma rapariga que se
retirava com agilidade.
— Abre, Micas, abre — disse José
Urbano, cujo mau humor se desvaneceu ao ouvir aquela voz. — Ainda não sei o que
fez a Roberta a esta ente toda! — E voltando-se para o major, acrescentou: — e
a minha sobrinha. Uma boa rapariguinha; coitada. — E suspirou.
Ouviu-se o correr de um ferrolho no
portão do quintal, que girou sobre os gonzos e se abriu aos recém-chegados, que
se apearam rapidamente, e recolheram os cavalos.
O major, com a amabilidade de um
militar sensível aos encantos da beleza, cumprimentou a gentil porteira, que
meio enleada pelo inesperado da visita, se ia sorrindo ao corresponder ao
cumprimento.
— O meu padrinho é só o responsável da
má recessão que o senhor tem. Se me tivesse prevenido quando partiu de
madrugada...
— Minha senhora — disse o major em tom
jovial. — vossa excelência há de permitir que, fazendo eu próprio a minha
apresentação, lhe diga que tem na sua presença um velho soldado, que dormiu
muita vez no terreno e no agradável leito das tarimbas, comeu o caldo pouco
apetitoso do rancho, e saciou muita vez a sede na água dos rios. Quando bato a
uma porta a demandar quartel, só peço o pão, sal e água, de que costumam rezar
os boletos.
— Nesse caso ganho ânimo, porque
espero satisfarei a tão pouco exigente peregrino; mas está-me parecendo que o
padrinho não se satisfaz com tão pouco.
— Não, Micas, pelo menos não te perdoo
aquele pudim de batatas que sabes cozinhar tão bem; o mais fica por conta de
Roberta.
— De Roberta, sim! Quando a teremos
nós cá!
— Como?
— Disse-me, depois do padrinho ter
partido, que tinha que fazer na cidade. Uma compra de linho ou estopa, ao que
julgo. Ou é natural que aproveite a ocasião para ver a rainha...
— A rainha? hoje!
— Pois não entra hoje em Braga?
— Amanhã.
— Disse-nos aqui a leiteira que entrou
já ontem, e à Roberta afirmaram-lhe que era hoje de tarde...
— Deixa afirmar. Mas então quem ficou
em casa?
— Eu. Os criados foram para a lavoura.
— Só! — exclamou José Urbano com certo
ar de censura e desagrado.
— Com estes — respondeu, voltando-se
para ele sorrindo, a gentil rapariga, ao passo que afagava a cabeça de dois
enormes cães acorrentados que, como se desejassem justificar a confiança que
depositava neles, a afagavam com humildade.
O major não disse palavra. Não se
cansava de admirar a singeleza e graça da interlocutora.
Para justificar esta contemplação
admirativa do major, precisamos nós também de esboçarmos aqui o perfil desta
nova personagem da nossa história, minudência cuja falta nenhuma leitora me
perdoaria por certo.
E contudo a tarefa é de desanimar.
A HEROÍNA DO ROMANCE — A AÇORDA DO MAJOR
Não sei de maior dificuldade que a de
descrever a heroína de um romance. Tão pouca coisa basta para a
desconceituarmos aos olhos da leitora!... Eu, porém, sacrificarei à verdade
algumas simpatias que poderia angariar a maior, se a menosprezasse. Descrevo-a
tal qual ela era. Em primeiro lugar começarei por dizer que o modo porque ela
trajava, realçava-lhe tudo que eram dotes naturais.
Maria Clementina, sobrinha de José
Urbano, era de uma configuração elegante, na qual se observavam as regulares
proporções que a arte não teria decerto a corrigir. De um porte desafetadamente
majestoso, inexplicavelmente combinado a uma expressão de bondade insinuante e
atrativa, havia no andar, nas feições, na maneira de olhar, um ar de dignidade
e de nobreza, que intimidava os mais ousados. Um singelo vestido de riscado
escocês adornado apenas por um colarinho liso, e por uns punhos apertados por
duas coralinas, deixava-lhe sobressair todo o correto contorno daquelas gentis
formas femininas, de uma flexibilidade admirável. No rosto não havia aquela combinação
de rosas e neve, que para muita gente constitui o supremo grau de beleza, e
contudo não era trigueira, nem de uma alvura desmaiada dos tipos alemães que
tão frequentemente se combinam com cabelos ruivos, antipática combinação; mas
para lhes dar uma ideia daquele colorido encontro-me gravemente embaraçado; a
natureza concedeu àquelas tintas uma singular influência sobre a fantasia do
coração, empregou-as apenas em alguns rostos de mulher, que exercem então um
poder verdadeiramente magnetizador. Um romancista português, e outros
franceses, comparou uma dessas cores à da pérola; e tem um pouco disto
efetivamente, mas excede-a em beleza. Quanto a mim considero-as as mais
perigosas. Imaginem um rosto assim, animado pelo cintilar de uns olhos negros,
orlado por uma moldura de cabelos também pretos, cujas ondulações naturais
semelhavam elegantes ornatos; concebam a mais bem modelada boca, cujos lábios,
convenientemente grossos, agitava incessante um mal perceptível tremor, sinal
evidente de uma exaltada sensibilidade; suponham agora toda esta simpática
cabeça, graciosamente coberta por um largo chapéu de palha, que a assombrava de
uma penumbra de feitos óticos e fascinadores, e terão explicada a razão pela
qual o major não se fartava de fixar esta rapariga com os mais inequívocos
sinais de uma sincera admiração e decidida simpatia.
Caminharam todos os três por entre
ruas orladas de arbustos que se entrelaçavam, formando um toldo de folhagem, e
cobertas de areia que fazia sobressair a verdura matizada dos tabuleiros em que
estava repartido o jardim.
José Urbano fazia notar ao major o
desenvolvimento de algumas árvores fruteiras, à afilhada a raridade de certas
flores. E assim chegaram à entrada de casa, que não desdizia do aspeto festival
de toda a vivenda. José Urbano subiu mais apressado os quatro degraus de pedra
que davam entrada por a porta envidraçada, e abrindo-a de par em par, disse,
voltando-se para o major:
— Tenho a honra de o receber na minha
casa, senhor major.
— E agora hão de me dar licença, o
senhor major e o padrinho — disse a elegante sobrinha do proprietário — que me
retire para tratar do seu jantar.
— A falar verdade, minha senhora, eu
preferia o pão do boleto, a privar-me do prazer da sua companhia.
— Mas o padrinho é mais exigente. Não
tem esses hábitos militares.
— Mas se nós esperássemos por a
Roberta?...
— Não pode ser.
— Porém, Micas, a falar verdade tu só...
— Meu caro Sr. José Urbano, — disse o
major em tom meio jovial — estou tentado a fazer-lhe uma proposta...
— Qual é major?
— Receio que não ma admitam; mas desde
já lhes declaro que mau é que a chegue a formular, porque sou teimoso.
— Vamos, major, diga. A Micas já está
cheia de curiosidade. Repare...
— A falar verdade... Ainda quando não
seja senão para ver como o Sr. major é teimoso — observou esta sorrindo.
— Proponho que nós todos colaboremos
no jantar.
— Essa agora! — disse José Urbano
admirado.
— Pois o Sr. major também cozinha?
— Oh! minha senhora. Um militar precisa
de saber de tudo um bocado; pois deve afazer-se a contar consigo apenas. Tenho
tido ocasião de cozinhar para mim mesmo, de compor a minha própria roupa, e até
de me medicamentar.
— Confesso-lhe, Sr. major, que estava
com a minha vontade de experimentar o seu talento culinário.
— Pois com permissão aqui do seu
padrinho, minha senhora, parece-me que chegou a ocasião.
— Não, senhor, a minha permissão não
pode...
— Meu caro José Urbano, você, que
viajou também, deve saber alguma coisa de cozinha. Eu pela minha parte prometo
uma saborosa açorda, na confecção da qual granjeei certa fama entre os meus
antigos camaradas, que também me diziam inimitável em manejar o espeto; e, se
houver ocasião, folgarei de lhes demonstrar que não sou indigno de crédito. E
você que sabe fazer, ó José Urbano? diga lá, ande, e vamos a isto.
— Confesso que nunca tive disposição
para a cozinha.
— Nem se atreverá a fritar uns ovos
com umas rodelas de salpicão? pois eu creio que o fumeiro deve estar bem
provido, hem?
— Não é por falta de materiais...
— E verdade que isto de fritar uns
ovos ainda requer seu engenho e tato culinário; no grau devido, é um prato
delicioso, um pouco acima é detestável. Mas eu vigiarei, vamos.
— Ora, o Sr. major está a gracejar.
— Basta-me saber — disse a sobrinha de
José Urbano — que posso contar com o seu auxílio em caso de maior urgência.
— Minha senhora, eu não lhe disse que
era teimoso? É fama que tenho no exército, e já agora não a hei de desmentir.
— Mas...
— Para outra vez...
— Não recuo, faço disto questão
ministerial... O meu amor-próprio exige que eu lhes faça apreciar as qualidades
da minha açorda.
E o major, gracejando e rindo, de tal
maneira insistiu, que os três acabaram por passar todos para a cozinha às
risadas e já sem o menor constrangimento.
O major era destas pessoas, cujo bom
humor se comunica, e que põe à vontade e nas mais joviais disposições as
pessoas com quem se acha. Logo às primeiras palavras que se tivesse com ele
cessava todo o constrangimento, e estabelecia-se uma familiaridade e
sem-cerimônia, como um amigo de longos anos.
O próprio José Urbano participava
daquela alegria e arregaçava as mangas do casaco, preparando-se para a tarefa
culinária às ordens do seu comensal.
Maria Clementina assistia rindo com
vontade a toda aquela azáfama dos dois.
O major era admirável de atividade.
Tomara posse do terreno e não se mostrava constrangido.
— Minha senhora — dizia ele,
voltando-se para a afilhada de José Urbano — porá vossa excelência à minha
disposição um fornecimento de água, pão, sal, azeite, vinagre, pimenta, alho,
cravo, cebola, salsa, salpicão e toucinho.
— Misericórdia, major... Tenha
misericórdia dos nossos estômagos... Os desgraçados não resistem a essa
metralha.
— José Urbano, você não sabe o que
diz. Não há tônico mais eficaz do que a açorda preparada assim! Verá, verá.
— Pode satisfazer a minha requisição,
minha senhora?
— Prontamente.
— Bem; agora, José Urbano, vai você
empunhando essa sertã para logo, e partindo os ovos já...
— Confesso-lhe que é uma tarefa
melindrosa. Partir ovos!
— Que pusilânime! Homem, é assim! — E
com a maior presteza, o major prelecionava praticamente o seu hospedeiro, que
ria a bandeiras despregadas.
— A vossa excelência declaro-a
emancipada da minha tutela e livre em todos os seus movimentos.
— Ainda bem — disse José Urbano —
quando não, recearia pelo destino do nosso jantar.
— Homem, não faça injustiça à
experiência da vida de campanha. Prometo-lhe que se há de lembrar com saudade
da minha açorda.
Na cozinha ia uma desusada animação.
Parecia que se preparava um banquete, esplêndido. O major, de per si só, fazia
mais ruído que meia dúzia de cozinheiros. E com uma gravidade, que Maria
Clementina não podia ver sem se perder de riso, mexia e remexia a açorda, que
exalava um cheiro apetitoso, e de vez em quando ia vigiar o trabalho de José
Urbano, que ele empregara a bater uns ovos, aos quais associara uma quantidade
de ingredientes. José Urbano executava fielmente as ordens do major, e havia um
quarto de hora que estava batendo os ovos com um escrúpulo e regularidade
admiráveis.
Ao meio-dia, graças aos esforços
combinados dos três, o jantar foi declarado completo, e José Urbano, que
observava os costumes patriarcais folgou ao antever que não seria alterada a
sua hora do costume.
Enquanto o major dava a última demão à
sua decantada açorda, Maria Clementina pôs a mesa, à qual deu um ar festivo,
graças às flores com que a adornou: e José Urbano, descendo à garrafeira, foi
procurar o mais precioso vinho de que ela constava. No entretanto o major
apareceu na sala de jantar, junto de Maria Clementina.
— Pois já está posta a mesa! —
exclamou ele ao entrar na sala.
— E eu que vinha para a ajudar!
— Mil vezes agradecida; mas o coronel...
— Assim me despacha já, se os
ministros lhe quiserem honrar a palavra.
— O Sr. major, queria dizer, foi
apenas justo para o serviço da cozinha.
— Há de fazer-me a honra de provar a
minha açorda, não é verdade?
— Decerto. E parece-me poder já
assegurar que há de estar deliciosa.
— Não me queira mal pela minha
impertinência; mas é gênio meu...
— Querer-lhe mal! Se eu lhe assegurar
que há tempo que não rio como hoje... O Sr. major conseguiu fazer-me esquecer
por algumas horas as mortificações da minha vida.
— Pois também tem mortificações? —
perguntou-lhe o major com um carinho que a maior parte das pessoas que o
conhecessem lhe estranhariam, ouvindo-o.
— E pergunta-mo?
— E duvido-o. Chama mortificações a
quê? Desgostos por o padrinho não viver aqui, saudades de alguma amiga mais
íntima, zangas pela rabugice da sua criada, a doença de algumas das suas pombas
mais bonitas... pretextos para mostrar mais uma maneira de serem belos esses
bonitos olhos que tem.
Maria Clementina sorriu a este
galanteio do velho militar; mas através deste sorriso descobriam-se uns longes
de tristeza.
— Se o major soubesse o motivo porque
eu vivo triste, talvez, longe de me estranhar a tristeza, se admiraria ainda de
me ver sorrir... as vezes.
— Ora adeus. Não é difícil penetrar no
seu segredo. Perdoe dizer-lho. Afinal é o segredo dos... vinte anos... não é
essa a sua idade?
— E — disse Maria Clementina, corando
e desviando os olhos do major. — Mas ainda não adivinhou tudo.
Nisto ouviram-se passos no corredor, e
a conversa, com aprazimento de Maria Clementina, foi interrompida por José
Urbano, que voltava da sua excursão à garrafeira, exclamando ao entrar na sala:
— Major! Eu cá sou nacional. Porto e
Madeira.
— Apoiado, Sr. Urbano. Eu secundo o
seu patriotismo.
E sentaram-se todos os três à mesa.
José Urbano, contente e jovial; o major fazendo as despesas da conversa com
anedotas que faziam rir até às lágrimas o negociante, e assomar um sorriso aos
lábios de Maria Clementina, que, da curta conversa que tivera com o major,
conservava uns vislumbres de melancolia.
A açorda preparada pelo major teve um
efeito monumental. José Urbano declarou-a a mais deliciosa comida que na sua
vida tinha provado. E não obstante ao princípio não poder eximir-se em fazer
uma careta, abrindo a boca para minorar o excesso dos condimentos, depois de
costumar o paladar, reclamava repetições com uma insistência, que lisonjeava um
pouco o orgulho do major.
— Bravo, major! Já vejo que o cheiro
da pólvora apura e aperfeiçoa o paladar. É deliciosa!
— Mais outra vez, Sr. José Urbano.
— Vá mais outra.
— Tenha cautela, meu padrinho, que lhe
não vá fazer mal. E tão forte!
— Deixe, minha senhora, isto dá tom ao
estômago. E com um cálice de Madeira por cima... Vossa excelência é que não lhe
é afeiçoada.
— Estava excelente, Sr. major. Bem viu
que comi.
Aqui para nós, a sensação que a açorda
deixara em Maria Clementina não era das mais favoráveis ao talento culinário do
major.
Reinou em todo o resto do jantar a
mesma jovial animação com que começara a manhã. O major fez um brinde a Maria
Clementina, José Urbano outro ao major; este outro a José Urbano, ambos um a
sua majestade; o comerciante ao exército, o militar outro ao comércio; e
estavam no seu undécimo brinde, quando se ouviu bater à portaria duas grandes
argoladas.
CAPÍTULO 6: A VISITA INESPERADA
O som estridente das argoladas no
portão da casa determinou, por alguns momentos, completo silêncio na sala, e os
três convivas, olhando-se interrogativamente, como que se perguntavam — quem
será?
— Já sei. É a Roberta — disse Maria
Clementina, respondendo à interrogação tácita dos dois. — Ninguém senão ela
podia entrar no quintal.
E levantando-se chegou à janela, cuja
vidraça correu para ver quem batia.
— É você, Roberta?
— Sou eu, menina, sou eu — respondeu
uma voz de mulher, na qual se notava um evidente cansaço. — Ai que venho mais
morta que viva! Depressa, faz favor de atirar cá abaixo a chave da portaria, e
abrir a sala das visitas...
Pois quem vem lá?
— Uma senhora de carroça, para visitar
a menina.
José Urbano levantou-se sobressaltado.
— Uma senhora!
— Mas quem é? — perguntou Maria
Clementina, igualmente admirada.
— Depressa, menina, depressa, que está à
espera.
— Mas que senhora é? — insistiu
Clementina.
— Eu não conheço — respondeu Roberta,
já impaciente — mas ande depressa, pelo amor de Deus.
Clementina voltou para dentro a
procurar a chave da portaria.
— Diz que é uma senhora que me
procura.
— Mas quem pode ser? — perguntou José
Urbano, admirado.
— Ignoro-o.
E deitando a correr com uma graciosa
agilidade, foi buscar a chave que Roberta lhe pedia.
José Urbano chegou à janela, e
dirigindo-se a Roberta:
— Ó Roberta, quem é que vem lá?
A criada ouvindo a voz do seu amo,
estremeceu e mostrou-se profundamente embaraçada.
— Pois o Sr. José Urbano... Boa te
vai! Então o senhor... olhem os meus pecados!... Pois na verdade... Em nome do
Padre... Então que quer isto dizer!... Temo-la travada!
E continuava resmungando como se a
presença do amo a contrariasse.
— Responde: quem é que vem lá?
— Aí tem a chave — disse Maria
Clementina, atirando-lha pela janela e voltando para ordenar a sala das
visitas.
A velha não esperava por mais nada;
sem atender ao seu amo, fugiu com uma ligeireza de que ninguém julgaria capazes
as suas pernas estropiadas.
— Roberta, ó Roberta! demônio de
mulher.
O major, que nesse tempo se aproximara
da janela, fez um movimento de surpresa ao observar a mulher que corria em
direção ao portão.
— Ah! é aquela a sua criada?
— E, uma velha já meio tonta e
teimosa, mas, coitada, conheceu-me pequeno. Veja, major, a idade que ela terá.
O major calou-se. O motivo da sua
surpresa fora o ter reconhecido na criada de José Urbano a velha que ele e o
seu jovem companheiro Rialva tinham encontrado no dia antecedente na estrada, e
que lhes perguntou pela chegada da rainha.
— Mas quem poderá ser? — perguntou a
si próprio José Urbano. — Uma senhora que procura a minha sobrinha!
Durante este tempo passeava Maria
Clementina na sala de receção, igualmente preocupada em saber quem seria a
pessoa que a procurava.
Desde que Maria Clementina vivia no
campo, raras tinham sido as visitas que recebera; por isso a surpreenderam as
palavras de Roberta, e mais ainda a expressão da sua fisionomia, na qual se lia
um certo espanto inexplicável. Absorvida por estes pensamentos, a sobrinha de José
Urbano desceu ao jardim a receber a sua desconhecida visita.
Não esperou muito tempo. Roberta
assomou pouco depois à entrada de uma das ruas que conduziam ali, e após ela
uma senhora de meia-idade magnificamente vestida e com certo ar de nobreza e
dignidade, que revelavam distinção.
Maria Clementina foi ao seu encontro.
Roberta, colocando-se por detrás da
recém-chegada, a quem tributava extremas atenções, fazia sinais telegráficos a
Maria Clementina, que esta não podia entender, o que cada vez mais a
embaraçava, pois nada lhe recordava as feições da senhora que pretendia
visitá-la.
— Não sei a quem nem ao que devo a
honra desta inesperada visita, mas em todo o caso é-me sumamente agradável
receber uma tão lisonjeira distinção — disse Clementina, aproximando-se da
senhora, cuja fisionomia denotava um ar de bondade simpática e atraente, que
dispôs o ânimo de Maria Clementina no seu favor.
— Minha senhora — disse a
recém-chegada, fixando em Maria Clementina um olhar penetrante — ainda que lhe
pareça estranha a minha visita, peço-lhe que me dispense de a explicar enquanto
não estivermos mais à vontade.
— Essa é boa — disse Clementina,
sorrindo. — Se vossa excelência até não quiser dar-me explicações algumas, não
serei eu por certo que me atreva a pedir-lhas. Quer ter a bondade de entrar?
— Se o ordena? Mas para falar verdade,
se lhe não fosse incômodo, aquela rua de romãzeiras tem uma sombra convidativa...
— Como vossa excelência quiser.
E as duas desviaram-se na direção da
rua de romãzeiras.
Maria Clementina, cada vez mais
admirada da estranheza da visita; a senhora idosa envolvendo-a nos seus olhares
vivos e penetrantes.
Roberta, ao afastar-se delas, pôde
obter oportunidade de dizer a sua ama em tom enigmático:
— Cautela! trate-a com muito respeito!
Eu depois lhe direi...
Maria Clementina estava vendida, como
vulgarmente se diz. Estranhava os modos da criada pelo menos tanto quanto o
inesperado da visita.
— Quer dar-me o seu braço? — disse a
Clementina à senhora, cuja visita tanto a preocupava.
— Com todo o gosto.
E as duas mulheres penetraram, assim
juntas e silenciosas, durante algum tempo, pela copada rua do jardim. Chegaram
à extremidade oposta à rua, onde, junto de uma pequena fonte, havia um
convidativo banco de cortiça assombrado por um toldo de trepadeiras.
— Quer-me fazer o favor de se sentar
aqui comigo?
— Com muito prazer.
A desconhecida, tomando então as mãos
de Maria Clementina, disse-lhe com um tom meigo e afetuoso:
— Sabe que me está inspirando muita
simpatia?
— Oh! minha senhora...
— Quero enfim dizer-lhe o que me
trouxe aqui. Eu sou de Lisboa.
— Ah! de tão longe!? — exclamou Maria
Clementina, para dizer alguma coisa.
— E verdade. E havia muito que
desejava conhecê-la.
— A mim!? em Lisboa...
— Admira-se?
— Não sei como vossa excelência me
pudesse conhecer num a terra, onde ninguém me conhece.
— Ninguém?
— Decerto. A minha única família
resume-se no meu tio, que vive comigo.
— Mas algumas amigas...
— Amigas! Engana-se vossa excelência;
eu não tenho amigas.
— Diz-me isso com um ar de descrença,
que é de estranhar num a menina tão nova.
— Há pessoas para quem a experiência é
prematura.
— Santo Deus! que desconsoladora
dúvida! Ora vamos, quer-me parecer que é menos justa nesse seu ceticismo.
— Não chame a isto ceticismo, minha
senhora; graças a Deus, eu tenho a amizade do padrinho.
— Só?!
— Tem razão; era injusta. E a da minha
criada Roberta.
— E a de mais ninguém? Parece-me que
ainda mais uma vez terá de reconhecer a sua injustiça. Em Lisboa alguém existe
que a estima.
— A mim? — perguntou Maria Clementina,
corando enleada sob os olhares da sua interlocutora.
— E é dessa pessoa que eu lhe queria
falar.
— Vossa excelência?
— Eu, sim. Quer ser franca comigo?
— Eu? Mas...
— Ouça-me. Uma das minhas amigas tem
um filho oficial no exército.
Maria Clementina sobressaltou-se a
estas palavras.
— No ano passado — continuou a senhora
— este rapaz, que é meu afilhado, e por quem eu me interesso muito, passou
algum tempo em Braga em serviço. Quando voltou a Lisboa, por diligências da
mãe, ia preocupado e triste. Estranhavam-no todos que o tinham conhecido o mais
alegre, e direi mesmo, estouvado rapaz da capital. A mãe dele, sobressaltada no
seu coração materno, escreveu para alguém do seu conhecimento, residente aqui
próximo, e a carta que obteve... Quer-me fazer o favor de a ler? — continuou a
senhora idosa, oferecendo uma carta a Maria Clementina. — E neste ponto...
— Mas para que hei de eu... — dizia
Clementina, tremendo e estendendo quase involuntariamente as mãos para aquela
carta: apesar da sua turbação lançou-lhe os olhos, e pôde ler as seguintes
linhas:
“Quanto ao que me perguntas a respeito
do teu filho, colocas-me em sérios embaraços; pois não sei se o mau pensamento
lisonjeará demasiado a tua vaidade maternal. Em todo o caso, eu com a franqueza
que sempre me conheceste, dir-te-ei que, a meu ver, o teu filho Filipe é digno
de censura...”
As mãos de Maria Clementina tremiam
cada vez mais ao ler estas palavras; vencendo a sua comoção prosseguiu:
“Há tempos que a sua assiduidade junto
de uma menina destes lugares havia sido notada; no dia da sua partida uma
imprudência dele sacrificou a reputação daquela que inocentemente confiara nele
e...”
Maria Clementina devolveu a carta que
estava lendo.
— Entendo, minha senhora — exclamou
ela com a voz alterada e com as faces tingidas de um vivo rubor. — vossa
excelência sabe que eu sou a pessoa assim caluniada, não é verdade?
— Sei.
— E então com que fim me procurou? —
prosseguiu Maria Clementina com certo tom de amargura.
— Para lhe assegurar que a mãe de
Filipe de Rialva, ao receber esta carta, comoveu-se, e que, por secreto
pressentimento, acreditou na pureza da mulher que uma imprudência do seu filho
assim sacrificara; que ela me pediu que se pudesse encontrá-la, lhe assegurasse
isto mesmo, e que lhe transmitisse um beijo, que eu espero me não recusará.
— Oh! minha senhora! — exclamou
Clementina, verdadeiramente comovida.
E as duas mulheres por muito tempo
confundiram seus beijos e as suas lágrimas.
— Ora agora — continuou afinal a
senhora de Lisboa — faça-se justiça a todos. Filipe ainda não é tão culpado,
como nesta carta se diz. Ele, quer-me parecer, ainda se não esqueceu da menina.
Maria Clementina abanou a cabeça em ar
de dúvida.
— Oh! não faça esse movimento que se
não quadra com esses olhares tão cheios de confiança, com uma expressão de
lábios, que, mesmo contra sua vontade, se conformam num sorriso. Não seja
desconfiada. Sobretudo não me fique odiando Filipe... não?
Desta vez o sorriso de Maria
Clementina tinha outra significação.
— Odiá-lo! — dizia-lhe, baixinho, o
coração. — E julgam necessário recomendar-me que o não odeie!
Ora, apesar do coração falar tão
baixo, não sei que admirável acústica era a senhora lisbonense que o percebeu,
e aproximando-se de Maria Clementina disse-lhe com voz afetuosa:
— Ainda o ama, não é verdade? Diga-me
que sim.
Maria Clementina corou e calou-se.
— Bem, bem, este rubor é também uma
resposta. Adeus. Permite-me que volte a visitá-la?...
— Quando vossa excelência quiser.
— Agora retiro-me.
— E nem ao menos há de descansar na
nossa casa?
— Se me dispensa...
— O meu padrinho há de sentir.
— Quê! pois não está só? Tinham-me
dito...
— O meu padrinho chegou, sem ser
esperado, com um amigo que jantou conosco. Eles lá vêm ao nosso encontro.
A senhora de Lisboa seguiu com os
olhos a direção em que apontou Maria Clementina, e não pôde disfarçar um
movimento de espanto ao reconhecer o major.
— O Sr. Clemente Samora aqui?
O major pela sua parte parecia tê-la
também reconhecido, e não mostrava menor estupefação.
— Longe estava eu de esperar encontrar
vossa excelência neste lugar, Sra. D. Joana.
— Não menos alheia estava eu ao prazer
do seu encontro, major.
José Urbano, depois de cumprimentar,
segundo a etiqueta, a dama desconhecida, voltou para sua afilhada e para o
major olhares interrogadores.
— Para evitar-lhes o incômodo de uma
apresentação, eu própria me apresento — disse ela, olhando para o major de uma
maneira particular, como se lhe quisesse recomendar o silêncio.
— Vossa senhoria é, segundo julgo, o
tio desta menina, não é verdade? — disse D. Joana, sorrindo-se amavelmente para
José Urbano.
— As ordens de vossa excelência aqui e
em toda a parte. José Urbano, negociante em Braga.
— Muito bem, Sr. José Urbano. Pois eu
sou de Lisboa, e aproveitei a vinda da rainha para visitar o Minho, que há
muito tinha desejos de ver. Ao despedir-me de algumas minhas amigas em Lisboa
recebi de uma a incumbência agradável de procurar esta menina para lhe
assegurar da parte dela que, apesar da ausência, sempre a teve presente no
coração. O acaso fez com que eu na estrada encontrasse a sua criada, de cuja
conversa vim a saber ser aqui a morada de quem eu procurava, e resolvi por isso
cumprir imediatamente a minha comissão. Agora retiro-me, mas já autorizada para
voltar a visitá-la pela minha própria conta, se o Sr. José Urbano se não opõe...
— Oh! minha senhora! vossa excelência honra-nos
muito com a sua visita.
— O major fica?
— Vinha também despedir-me desta
menina, e se vossa excelência quiser aceitar a minha companhia...
— Porém, o major vai para Braga, e eu
fico em casa do Visconde de P...
— Pessoa de bem — disse José Urbano ao
ouvir este nome. — Mas o major pode acompanhar vossa excelência até perto da
quinta do visconde, sem torcer muito caminho.
E José Urbano, profundamente
conhecedor da topografia do lugar, indicou ao major Samora o itinerário que
devia seguir.
— Então até breve... É verdade;
quer-me fazer o obséquio de aceitar um lugar na minha carruagem para vermos
amanhã a entrada da rainha? — perguntou D. Joana, voltando-se para Maria
Clementina.
— Peço a vossa excelência que me
dispense de aceitar tão lisonjeiro favor; mas não me agrada o tumulto.
— Basta; eu também prefiro falar-lhe
mais com sossego. Adeus.
E aproximando-se de Maria Clementina
beijou-a afetuosamente, dizendo-lhe ao mesmo tempo:
— É verdade, peço-lhe que não dissuada
a sua criada das ideias que formar ao meu respeito.
O major Samora, ao ajudar D. Joana a
subir para a carruagem, estava pensativo, e olhava para Maria Clementina de um
modo particular.
— Entre, major. O André que lhe
conduza o cavalo até ao sítio onde teremos de nos separar.
E depois de fazer um último sinal de
afetuosa despedida a Maria Clementina, cortejar José Urbano, e ter enviado a
Roberta, que se desfazia em mesuras, um gesto particular, deu ordem de partir,
e em pouco tempo a carruagem se afastava do lugar.
— Parece uma excelente senhora — disse
José Urbano, fechando a porta. — Mas de quem te trouxe ela visitas, Micas?
— Ah!... — respondeu Maria Clementina,
turbada — da filha do juiz de Direito, que se retirou o ano passado.
Em todo o resto da tarde Maria
Clementina mostrou-se preocupada.
José Urbano passeava no quintal,
examinando minuciosamente o estado dos enxertos, o adiantamento dos renovos, e
limpando os alegretes com a solicitude de um horticultor de vocação.
Maria Clementina permaneceu imóvel,
encostada à varanda, seguindo com os olhos o volutear das andorinhas no espaço,
nessa posição cheia de languidez e poesia de mulher de vinte anos que sonha. O
sonhar nesta idade é uma das variadas manifestações do amor e a mais ideal, a
mais pura, e mais sublime. Pensa-se antes que o coração tenha decifrado o
enigma proposto, antes que o amor tenha recebido uma solução real. E o
estremecimento da alma, precursor de uma vida nova. Após uma longa viagem, e
depois de flutuar suspenso entre o céu e o abismo no mar, o nauta, encostado um
dia à amurada do navio, estendendo os olhos pela amplidão das águas, sublimes
demais para lhe bastarem por muito tempo ao coração, e procurando ao menos nas
nuvens um simulacro de montanhas, lagos fantásticos, campinas e florestas,
sente que o vento, que lhe agita os cabelos e que sibila pelas enxárcias, o
perfuma de fragrâncias suaves; que lhe recorda a terra porque suspira, e que
lhe anuncia prazeres que ainda não vê. Então aspira com sofreguidão estas
brisas, que roubaram às flores os seus perfumes, e deixa-se cair num a
contemplação extática, imaginando os bosques e os vergéis da terra de que se sente
próximo.
Na vida há uma situação idêntica, em
que também a atmosfera nos vem perfumar de misteriosa fragrância, e em que ao
aspirá-la sonhamos venturas e esquecemos os dissabores de viagens empreendidas.
É a aurora do amor; quadra de devaneios e fantasias, em que a vida do coração
começa e exerce sobre nós o seu mágico influxo.
Maria Clementina estava naquele
momento num a dessas situações. O que lhe estaria a fantasiar a imaginação?
Imaginem as leitoras.
E tão absorvida estava naquele seu
íntimo cismar, que nem dava pela presença da sua criada Roberta, cujo entrar e
sair, e ruído que de propósito fazia, tinha o que quer que fosse de suspeito, e
noutra ocasião teria já evidentemente sido notado por ela.
Roberta acabou de se convencer que não
conseguira tomar-se notada; por isso, aproximando-se de Maria Clementina,
dirigiu-lhe a palavra.
— Então diga-me cá, menina, que lhe
pareceu a visita daquela senhora?
Maria Clementina olhou para a criada
com certo sobressalto, como se aquelas palavras a desviassem, mau grado seu, de
um agradável meditar.
— Que me havia de parecer, Roberta?
Uma delicadeza daquela senhora, que assim quis ter um incômodo pela minha
causa.
— Sabe quem ela é? — perguntou Roberta
com certo ar de mistério.
— Uma senhora de Lisboa.
— Mas que senhora?
— Que senhora?! Não entendo a
pergunta.
— Sim; pergunto eu se sabe quem é
aquela senhora?
— Eu, não.
Roberta tomou-se cada vez mais
misteriosa; foi à porta observar se alguém a escutava; depois aproximou-se de
Maria Clementina, e disse-lhe em voz baixa:
— Quer que lhe diga quem ela é?
— Diga lá.
— E promete segredo?
— Prometo — respondeu Maria
Clementina, sorrindo ao lembrar-se da recomendação de D. Joana.
— Pois olhe; mas não se assuste, nem
diga nada ao padrinho.
— Mas então quem é?
— É a rainha!
— A rainha? Ah! ah! ah! — disse Maria
Clementina, não podendo reter uma gargalhada.
— Olhem! E a menina ri-se! É o que eu
lhe digo.
— Então era a rainha?
— Era, sim, senhora, era. E sabe quem
a trouxe aqui?
— Eu não.
— Fui eu.
— Ah! Então você tem esse poder sobre
a rainha?
— Ora escute.
E Roberta, com toda a familiaridade,
puxou uma cadeira para junto de Maria Clementina e prosseguiu:
— Aquela história do alferes...
— Roberta! já lhe disse que não queria
que me falasse mais nisto.
— E não tenho falado. Agora, o que eu
não podia era deixar de pensar também. Que quer a menina? Eu vi-a nascer, assim
como vi nascer a mãezinha, e já que não pude dar àquela as venturas que lhe
desejei sempre, disse cá de mim para mim: Esta não há de ter uma sorte infeliz,
ao poder que eu possa.
— Mas a que vem isso agora, Roberta?
— A que vem? Ora escute. Aquela doida
da leiteira veio-nos aqui dizer que a rainha chegava ontem. Quando ela me disse
aquilo, eu pus-me cá a malucar.
A rainha é rainha. Ela é quem manda e
governa, os outros têm de lhe obedecer. Se eu lhe contasse tudo...
— Se lhe contasse o quê, Roberta? —
exclamou Maria Clementina com certa inquietação.
— Tudo. A história do tal alferes.
— Roberta!
— Ora valha-me Deus, menina. Com esses
escrúpulos não se faz nada de jeito. Se eu tivesse estado com a menina em
Braga, eu me acautelaria; assim ao menos vamos a remediar o mal. A rainha dizem
que é boa senhora. Se eu lhe fizer constar que, por causa de um alferes, as
más-línguas se atreveram a murmurar da mais virtuosa menina que eu tenho
conhecido, ela há de tomar as suas medidas e remediar tudo.
— Você tem coisas, Roberta!
— Diga-lhe que sim. Eu o que não tenho
são papas na língua. Sabe a menina que para dizer a verdade, tanto a digo
diante dos reis como dos da minha igualha. Já uma vez fui jurar como testemunha
de dizer o que sabia, e até o juiz disse que eu era uma mulher desenganada. Eu
cá sou assim. Pedi-lhe ontem licença e fui-me pôr na estrada à espera da
rainha. Bem podia esperar até pela manhã. Passou este senhor general, que cá
jantou hoje; quando me lembro como a menina cá se arranjou sem mim, ainda me
benzo; o que valeu é que ele é um homem como se quer, e o padrinho estava hoje
de boa maré. Ainda assim! Mas não tem dúvida, ainda que tivesse de cair a sé,
por bem empregado dava eu o meu tempo... Mas como ia dizendo, passou este
senhor e um rapazote novo, e foram eles que me disseram que a rainha só
chegaria daí a duas ou três horas, e até me deram os sinais certos para eu a conhecer.
Esperei, esperei e por fim sempre apareceu: conheci-a logo.
— Ah! então conheceu-a?
— Conheci logo. Vi a carruagem e disse
com os meus botões: E aquela. Vinham dois criados a cavalo atrás e outra
carruagem com senhoras também. Não trazia estadão, porque, como me disse o tal
rapaz, ela viaja... viaja... ora como disse ele?... Era assim uma coisa como em
cólicas, mas que vinha a dizer que viajava sem estrondo. Cheguei-me à
carruagem, apesar do sinal do boleeiro, e ela ao ver-me fez logo sinal para
parar. Atenciosa é ela com os pobres, Deus Nosso Senhor lho pague.
Maria Clementina ouvia com curiosidade
a narração desta aventura da criada.
— Qual de vossa excelência é a rainha?
— disse eu para as três senhoras que iam dentro, apesar de logo ver que havia de
ser a mais idosa. As mais novas desataram a rir... como a menina ri também...
não sei porquê. Lembrou-me que seria por eu não dar o tratamento que devia e
emendei a tempo: Qual das vossas majestades é a rainha? As outras riam ainda...
Eram uns galos dourados, coitadinhas, nem por estarem diante de quem estavam!...
Raparigas. Mas a senhora então, tocando-lhes com o cotovelo, disse muito séria,
voltando-se para mim:
— Sou eu; por quê?
— Ah! eu logo vi, ora primeiro que
tudo seja vossa majestade muito bem-vinda a esta sua terra, onde tem muitos
amigos. O meu amo fala muito no paizinho da vossa majestade. Ora muito bem.
Vossa majestade há de ter pressa; mas é que eu sempre lhe queria pedir...
A rainha julgou que era esmola, pois
já ia a meter a mão ao bolso...
— Em cortesia — disse eu, que a
percebi — não é isso que eu peço, é justiça.
— Justiça! — disse a rainha,
tomando-se logo séria. — Fale, fale... quem lhe fez mal?
— Eu lhe conto, não foi a mim
verdadeiramente, mas... e o mesmo que se fosse, se fui eu que a trouxe ao colo...
— A quem? — perguntou a rainha.
— À minha menina!
— Roberta — disse Maria Clementina,
interrompendo-a — você não tem juízo! Ir assim, diante dessa gente toda, falar
em coisas das quais eu já lhe tinha proibido de dizer uma palavra mais!
— Ora venha cá ensinar-me como as
coisas se fazem! Cuida que me pus mesmo agora a tagarelar para quem me quisesse
ouvir. Era o que faltava. Eu disse à... à rainha: se a vossa majestade quiser
ter o incômodo de se chegar aqui, eu conto-lhe tudo. Ela chegou à porta da
carruagem, e eu disse-lhe tudo ao ouvido.
— Tudo o quê?
— Contei-lhe que, estando eu na quinta
e o padrinho no Porto, a menina fora para o convento. Que foi por ocasião do
Saldanha andar por cá e que deixara ficar em Braga um tal alferes, que
inquietou a menina; porquanto enfim, como eu disse à rainha, quando a gente é
nova o coração é o coração, o sangue ferve...
— Jesus, meu Deus! que mulher esta! —
exclamou Maria Clementina, corando.
Roberta não atendeu à interrupção, e
continuou:
— Que depois a viu em casa do Sr.
Domingos Pedral, e que na noite em que o tal alferes tinha de partir para
Lisboa, foi falar com a menina ao jardim do Sr. Pedral, onde a menina estava.
Asneira, como eu disse à rainha, em que se eu lá estivesse, a não deixaria
cair. E logo então com tanta infelicidade, que ao saltar o muro foi visto por
um grupo de estudantes que dobrava uma esquina, e o mesmo foi verem-no eles que
vê-lo toda a cidade, a qual já falava nestes amores há muito. No dia seguinte,
a reputação da menina andava já por essas bocas do mundo; as delambidas das
freiras puseram-se a fazer biquinhos à volta da menina para o convento. E eu e
a quem contaram isto fomos buscar a menina para a quinta, porque, graças a
Deus, a sobrinha do Sr. José Urbano não precisa dos favores de ninguém.
Disse-lhe que o Sr. José Urbano chegara aqui a Braga espavorido, mas que depois
de falar com a menina ficara manso como um cordeiro, e nunca falara mais nisto.
— Sabe, Roberta, que se o meu padrinho
soubesse o que você fez havia de ficar muito satisfeito! Não viu como ele lhe
ordenou que nunca mais falasse em tal?
— Pois sim; com esses escrúpulos
ficávamos sempre nesta vida. A menina sem voltar à cidade, sem visitar ninguém,
aqui metida.
— Bem me importa a cidade. Que
canseira lhe dá isso a você? Eu já lhe disse que não me distraio aqui?
— Ora deixemo-nos disso. Os
passarinhos cantam muito bem, as flores são muito bonitas; mas, vindo o
Inverno, nem passarinhos nem flores. Depois sempre quero ver como a menina se
diverte. E como o ano passado. Chorava, chorava...
— O ano passado estava doida. Já sabe
que me curei daquela loucura.
— Diga-o a quem quiser, menos a mim.
Olhem para onde ela vem com os seus esquecimentos!
— Mas que lucrou você em contar a essa
senhora a minha história?
— À rainha...
— A rainha, seja lá rainha. Para quê?
— Pois quem lhe pode dar remédio,
senão ela? Eu lá lhe disse:
Agora veja vossa majestade se isto
deve ficar assim. Se os militares que a vossa majestade para cá nos manda vêm
para manter a paz, ou para meter a desordem nas famílias e fazer a infelicidade
de meninas bem-educadas...
Como se chamava esse oficial? —
perguntou a rainha, e eu bem vi que ela já estava interessada por a história.
— Olhe, eu só sei que ele era Filipe.
— E disse-lho! valha-me Deus!
— Disse, disse... Era o que faltava se
eu me punha com biocos.
— Filipe de Rialva?! — perguntou a
rainha assim com mostras de o conhecer...
— Tanto não posso dizer a vossa
majestade; eu só sei que ele é Filipe.
A rainha não perguntou mais nada dele.
— Mora daqui longe essa menina?
— É ali logo.
— Pode lá ir uma carruagem?
— Indo pela banda de cima, estou que
pode.
— Ela estará amanhã só?
— De todo só. Porque não esperava que
o padrinho viesse de Braga.
— Vou ficar hoje em casa do visconde
de P., sabe onde é?
— Perfeitamente, majestade, é logo ali
— e apontei para o sítio.
— Amanhã, a esta mesma hora, esteja lá
para me guiar no caminho. Vá com Deus.
Eu desviei-me da carruagem, que
desapareceu num abrir e fechar de olhos.
Quando cheguei a casa e vi o Sr. José
Urbano, fiquei atarantada de todo, porque me lembrei que já não podia ir buscar
a rainha. Passei a noite muito triste, e nem dormi, mas rezei muito a Nossa
Senhora.
Hoje de madrugada, vendo partir o
padrinho para a cidade, fiquei tão contente, que por pouco não me deu o sono.
Boa te vai. Olha agora se eu adormecia nesta ocasião, estava bem servida! E
levantei-me logo, e quando foram horas pedi à menina que me deixasse ir a Braga
comprar linho, mas fui ter com a rainha, que já estava à minha espera. Pelos
modos parece que também madruga, porque ainda não era meio-dia! Depois ela... a
rainha... fez-me entrar na carruagem. Oh! Eu bem não queria, mas não houve de
quê. Hem? Que lhe parece? desta poucas se gabarão! Não é assim? Ora aqui tem como
a rainha aqui veio ter.
Mas julgue como eu ficaria quando vi o
Sr. José Urbano à janela. Credo! Fiquei sem pinga de sangue, e por pouco não
caí redondamente no chão. Decerto me valeu o meu padre Santo Antônio. Também
olhe que uma aquela assim como esta poucas vezes acontece à gente. O que me
admirou foi o padrinho não a conhecer. Agora, quando a vir em Braga, é que há
de ser bonito. O major, esse logo vi que a conheceu; porém ela fez-lhe sinal,
que eu bem reparei. Mas como veio o major cá ter?... E como se arranjaram com o
jantar? É verdade, ó menina, quem fez aquela sopa, que... santo nome de Deus!
por pouco me não punha a boca em carne viva! Onde aprendeu a menina a cozinhar
aquilo?
Maria Clementina sorriu-se a esta
referência à açorda do major. Mas naquele momento achava-se possuída de
veemente desejo de estar só, e por isso, voltando-se para Roberta, disse-lhe:
— É necessário ir tratar do chá do
padrinho, que ele não tarda por aí. Vá; depois conversaremos.
Roberta retirou-se murmurando:
— A rainha nesta casa e eu na
carruagem da rainha! Quando me lembro!
Maria Clementina ficou outra vez só.
Outra vez se deixou arrebatar pelos devaneios da sua fantasia. Ficar só é a
suprema felicidade em situações como a sua. Escuta-se melhor o que murmura o
coração agitado, percebem-se todas as íntimas vibrações dos misteriosos
sentidos donde procedem os afetos. Nas trevas, em que a imaginação de Maria
Clementina se confundia, via raiar enfim um raio de luz. Não era pois ainda
desesperada a sua situação. Seria possível desanuviar-se-lhe ainda o céu, para
o qual já não olhava com esperança? Não seria ainda a resignação a única arma
que lhe podia dar a paz do coração que perdera?
Tudo isto lhe propunha o pensamento, e
entre estas questões vacilava aquele pobre coração, que julgava ter abafado
todas as esperanças, e agora as via surgir de súbito umas após outras, a
povoarem-lhe de novo a fantasia, mais inquieta que nunca, e a seduzirem-na com
o esplendor do seu brilho, com o vivo das suas cores.
Como é ilusória a placidez dos vinte
anos! O fogo latente alimenta uma iminente erupção. Ó transparente máscara de
sisudez posta nestes lindos rostos de mulher, como ocultas mal os risos
inquietos que se agitam por debaixo! pensai, pensai, sonhai, imaginações juvenis;
pulsai, amai, corações virginais; a vida na vossa quadra é isto. Não há gelo
que apague o fogo que vos escalda; e, se o sufocais com gelo, funde-se em
lágrimas e a paixão rebenta mais forte.
Deixemos Maria Clementina entregue aos
seus pensamentos de amor, acompanhem-na as imaginações dos leitores, mais
capazes de as seguirem aí, e vamos nós a outro ponto, onde o desfiamento desta
narração nos chama.
CAPÍTULO 7: O ENCONTRO INESPERADO
Ao separar-se do major, perto da
quinta onde devia pernoitar a senhora de Lisboa, a que este chamara D. Joana,
disse-lhe ela, estendendo-lhe a mão:
— Então ficamos nisto, major?
— Pela minha parte prometo cumprir
quanto vossa excelência me ordene.
— Não diga ordene, por quem é. Eu peço
só...
— Não é o mesmo que ordenar?
— Bem, major, não insistamos em
galanteios. Combinamos então o major em colher informações de família. Eu em
sondar o coração de Filipe.
— Eu posso dar a vossa excelência informação
nesse ponto.
— Como?!
— Filipe falou-me nesta inclinação, e
confessou conservar da pequena uma ideia muito superior à de todos quantos
amores tem experimentado. Mas vossa excelência está resolvida...
— A evitar que Filipe cometa uma
deslealdade. Que quer, major? meteu-se-me na cabeça fazer do meu filho um
perfeito cavalheiro...
— E não lhe será muito difícil o
empenho na execução, minha senhora. Mas adiante. Vossa excelência e Maria
Clementina serão tudo, menos o fruto de alguma antiga árvore genealógica.
— Olhe, major, eu não tenho o defeito
de me esquecer que o meu pai era um negociante da capital; e se o pai de Filipe
não julgou desonrar-se aliando-se com a minha família, eu renegaria a minha
procedência, se adotasse esses preconceitos. Ora agora, para o mundo, que para
desculpar uma ação boa precisa de a explicar por uma ideia interesseira,
ficarei absolvida dizendo-se que os capitais de José Urbano sossegaram os
escrúpulos aristocráticos, que, como sabe, eu nunca tive.
— Bem, minha senhora. Agora, que
recebi as suas instruções, retiro-me e até à vista.
— Conto com a sua aliança?
— De vida e de morte.
E o major despediu-se de D. Joana
Rialva com a galanteria de um perfeito militar; e montando a cavalo partiu em
direção a Braga.
Momentos depois estava D. Joana no
salão do visconde de P... onde a aventura da estrada ainda era comentada com
alegria. D. Joana contou ao seu modo o que lhe sucedera na visita que acabava
de fazer, inventando uma história de uma família desgraçada, que a exoneração
de um emprego público reduziu à miséria, e agradeceu a Filipe o haver-lhe
fornecido a ocasião de reparar um mal.
— E vossa excelência visitou essa
família? — perguntou Filipe — se é que a mãe não exige que a trate por
majestade também.
Nova hilaridade das senhoras do salão.
— Visitei, e voltarei ainda a vê-la.
Assim lho prometi. Já agora quero tomar a sério o papel de rainha. Imaginei que
devia levar a felicidade àquela família que assim recorreu a mim. Parece que
andou aqui a mão da Providência. E tu, Filipe, terás também o teu papel em tudo
isto. Preciso da tua coadjuvação para secundar os meus projetos.
— De todo o coração, minha mãe, lha
prometo.
— Reclamo já a tua companhia para a
visita que tenciono fazer-lhe.
— Da melhor vontade... prometo.
— E nós todas vamos também —
exclamaram algumas senhoras.
— Não vai nenhuma. Eu quero continuar
a ser suposta rainha, e 2 o riso das meninas não mo permitiria.
— Prometemos estar serias.
— Não creio na promessa. Desta vez
irei eu só com Filipe...
E, combinando nisto, passou-se a
conversar noutros assuntos, a discutir toilettes,
a planear projetos de passeios, voltando-se de vez em quando ao objeto que
evidentemente mais preocupava D. Joana.
O dia seguinte foi de grande alvoroço
para Braga. Todos os nossos conhecidos, à exceção de Maria Clementina e de
Roberta, andavam envolvidos naquele mare
magnum de povo, e tomando parte no tumulto e agitação, em que a chegada da
sua majestade lançou a população de Braga.
Deixemos porém passar este dia, pois
que não nos compete tomar parte naqueles regozijos, e juntemo-nos às personagens
desta história no dia seguinte a esse para seguirmos a série de acontecimentos
que formam o entrecho desta narração.
O carro, que já uma vez havia
conduzido D. Joana à quinta de José Urbano, corria agora com ela e Filipe de
Rialva pela estrada de Braga na mesma direção. O major encarregou-se de
conservar na cidade o proprietário da quinta, porque a visita evidentemente não
se destinava a este.
Rialva fazia notar a sua mãe as
belezas do caminho, e exaltava os encantos da província do Minho com entusiasmo
de artista.
— Deve vossa excelência concordar que
é uma aprazível província esta. Os campos são jardins, os montes são cômoros de
verdura, parece que se sente tudo cantar e sorrir.
— E efetivamente esta gente do campo é
essencialmente amante da música. Ainda não cessamos de ouvir cantar.
Naquele mesmo momento uma fresca e
suave voz aldeã cantava num campo:
Aquele
que tanto amei
Esqueceu
o meu pensamento,
Como
o rio esquece as rosas
Que
retratou um momento.
— É uma acusação de infidelidade —
disse D. Joana, fitando no seu filho um olhar alicioso, que este não percebeu.
— Mas que bonita voz a da cantora!
Parece-me que ainda em São Carlos não se ouviu tão sonoro timbre.
Mais adiante uma lavadeira cantava num
ribeiro, vizinho à estrada:
O
amor que me juraste
Bem
cedo o vi acabar,
Foi
fumo de lavareda
Que
já se desfez no ar.
— Outro queixume. Parece-me que a cada
passo se ergue uma voz a acusar a inconstância do coração.
— É porque só os corações infelizes é
que cantam; a alegria e a felicidade são mudas.
Ao voltar um ângulo do caminho era
outra rapariga que fiava à porta, cantando:
O
teu amor era falso,
Teve
pouca duração,
Mas
deixou mágoas eternas
No
meu pobre coração.
— É singular! — disse D. Joana com certa
intenção. — Parece de propósito; sempre a mesma poesia. Nem que nos perseguisse
uma voz como a da consciência a acusar-nos de alguma culpa de inconstância. Ora
dos dois, quem com mais alguma probabilidade poderá ser acusado disso, não
serei eu decerto. Se fosses tu, Filipe?...
— Quem sabe, minha mãe? — respondeu
Filipe com uma seriedade que não estava em harmonia com o tom jovial em que D.
Joana lhe fizera a observação.
— Ah! quem sabe? Ninguém senão tu e a
Providência, que talvez esteja falando pela boca desta pobre gente. Só me
admira que fale no Minho para emendar o mal feito em Lisboa.
— E se fosse o mal feito no Minho?
— No Minho? mas... ah? sim, tu
estiveste alguns meses aqui. Então, Filipe, por acaso inspirar-te-iam estas
belas paisagens alguns capítulos do romance? por que mo não contaste? Sabes que
tudo quanto escreves e contas me excita sempre interesse; pois nem te lembras
que até os teus trabalhos acadêmicos eu gostava de ler? Nem aos de matemática
perdoava: não os decifrava, mas entendia-os. Não sei se me admites este paradoxo.
— Eu sei, minha mãe, avaliar o seu
muito afeto, mas que quer? O conceito elevado que vossa excelência na sua
indulgência materna faz de mim, lisonjeia-me tanto, causa-me tal orgulho, que
recuo perante a ideia das confissões que lhe podem lançar a mais leve sombra na
imagem que a sua muita bondade formou de mim.
— Deve ser bem grave a culpa cometida,
que assim te está causando remorsos.
— Ainda não pude avaliar toda a
extensão e gravidade dela.
— Por quê?
— Porque não pude saber ainda as
consequências que resultaram.
— E se eu exigir que ma confies?
— Basta que lhe diga, que essas
cantigas populares que nos têm acompanhado, podem considerar-se, como vossa
excelência disse há pouco, a voz da minha consciência ou dos meus remorsos.
— Remorsos! Repara que são a
consequência de um crime. Por acaso...
— Pelas convenções sociais não me pode
ninguém chamar criminoso; mas por um outro código, pelo código da consciência,
eu sou acusado.
— De que crime?
— De ter feito nascer uma paixão,
prevendo quase que ela teria de morrer sufocada, prognosticando-lhe o seu
nenhum futuro.
— E que motivos tens para julgar nela
mais sincera essa paixão do que o era em ti? Vaidoso! Imaginas que ninguém te
poderia aceitar a corte sem morrer de amores por ti?
— Por um lado tem razão no que diz;
mas um pressentimento...
— Bem. A coisa não passa de um
pressentimento? Pois nesse caso oponho-lhe um outro pressentimento meu. Já nem
sequer pensa em ti essa em quem pensas ainda tanto. E o mais natural.
Tranquiliza os teus escrúpulos; mas parece-me que não te seria demasiado
lisonjeiro o convencimento desta verdade. Ora diz-me: tu ainda a amarás?
— Julgo que não, minha mãe. Eu
sinto-me tão volúvel!
— Mas como tu dizes isso! que ar de
remorso! Nunca te acusaste com tanta contrição do teu rompimento com a Alberta
dos Prazeres, com quem estiveste quase esposado. Ó Filipe, dar-se-á que o teu
coração entre deveras nisso?
— Quero acreditar que não, minha mãe.
Seria uma calamidade.
— Porquê?
— vossa excelência permite-me que fale
francamente?
— Ordeno-te.
— Pois bem. É porque se eu me sentisse
deveras apaixonado, podia estabelecer-se entre mim e vossa excelência um
conflito, do qual, fosse o resultado qual fosse, eu sairia sempre com feridas
que não sarariam nunca, ou acabaria por lhe não obedecer; e se o amor fosse
verdadeiro, sofrendo por ele, eu venceria a paixão, e nunca me perdoaria a
desobediência.
— E qual a razão por que julgavas
inevitável um conflito? Essa mulher era indigna de ti?
— A sociedade em que vossa excelência vive
é de umas exigências ridículas, mas a que se costumam a obedecer os que a
frequentam. Conveniências sociais. A mulher a quem me refiro era filha de um
negociante de Braga.
— Não te sabia desses preconceitos
heráldicos tão arreigados!
— Em mim? Engana-se, minha mãe, se eu
fosse só... Mas sabe que lhe não quero dar desgosto...
— Se me não engano, achamo-nos em
frente da casa da família que vamos socorrer.
Efetivamente a carruagem parou diante
do portão da quinta de José Urbano, e o boleeiro, apeando-se, puxou o cordão da
sineta, cujo ruído se fez ouvir ao longe, despertando os latidos dos cães,
fiéis guardadores daqueles jardins.
Passados tempos o portão abriu-se, e
Roberta apareceu, depois de perguntar de dentro quem era, com voz um pouco
resolvida; ao dar com os olhos na carruagem, deu um salto, como se a picasse
uma víbora.
— Vossa... — ia exclamar a pobre velha
atônita.
— Psiu! — disse D. Joana, pondo o dedo
na boca e com um sorriso benevolente.
Roberta calou-se, mas, ao ver saltar
Rialva do carro, fez um novo movimento de surpresa.
— Agora é o outro. Pelo que vejo eram
grandes fidalgos ambos. Rialva, que conheceu logo em Roberta a velha da
estrada, procurou tomar-se ouvido dela, dizendo à mãe, ao ajudá-la a descer:
— Se vossa majestade se quiser utilizar
do meu braço...
D. Joana sorriu, e, saltando junto de
Roberta, perguntou-lhe em voz baixa:
— Onde está a menina?
— Deve andar pela quinta. Eu vou
chamá-la.
— De modo nenhum. Iremos ter com ela.
— Como vossa majestade quiser; nesse
caso eu vou adiante.
— Também não. Se me quiser antes fazer
o favor de me preparar um copo de água chalada...
— Com todo o gosto. Mas se a vossa
majestade se engana no caminho?...
— Melhor, mais tempo gozaremos da
quinta.
E tomando o braço de Filipe, D. Joana
desceu as escadas que conduziam à quinta.
— Sabe, minha mãe, que para um
empregado demitido é esta uma magnífica vivenda? disse Rialva, admirando o bom
aspeto de quanto o rodeava.
— Restos de um bem-estar passado — respondeu
D. Joana, entranhando-se num a rua orlada de roseiras todas enfloradas.
— Que deliciosa habitação! — exclamava
Rialva a cada passo.
— Sigamos na direção donde nos chega o
sussurro do cair da água.
Rialva atrasara-se de D. Joana alguns
passos de distância, tendo-se demorado a colher um botão de rosa que se
pendurava num a das ruas...
Preparava-se a apressar o passo para
alcançar a sua mãe, quando viu esta levantar pé ante pé, e com a mão nos lábios
como a recomendar-lhe silêncio.
Filipe parou.
D. Joana chegou-se a ele e disse-lhe
baixinho:
— Devagar, muito devagar. Dorme alguém
ali adiante. Quero preparar-te um belo espetáculo. Devagar!
E os dois caminharam tão de manso, que
mal se escutava o estalar da areia da rua e de uma só folha seca que o vento
destacava das árvores.
— É agora — disse D. Joana,
desviando-se para deixar patente ao seu filho a vista do largo junto a uma
pequena cascata, no qual penetraram.
Rialva olhou e estremeceu de surpresa.
Reconhecera Maria Clementina
adormecida.
A mãe e o filho permaneceram
silenciosos perante aquele espetáculo.
Quem o poderia conceber tão belo!
Languidamente recostada no banco
rústico que existia ao lado da cascata, conservara Maria Clementina uma posição
naturalmente artística, na qual lhe sobressaíam todas as formas elegantes e
corretas daquele corpo flexível e delicado.
O braço direito, dobrado sob a cabeça
e um pouco descoberto, exagerava pela flexão as curvas graciosas e suaves do
seu regular contorno; o esquerdo, pendente ao longo do corpo, permitia observar
uma mão encantadora. Não era destas pequeninas mãos, galantes como as de uma
criança, e que se abrangem num a só das nossas; reconhecendo a graça desses
modelos, confesso que me produzem mais sensação as mãos como as de Maria
Clementina. Algum tanto compridas e estreitas, cobertas por uma pele alvíssima
e transparente, sob a qual se desenhava uma complicada rede de veias azuladas,
tinham estas mãos assim o que quer que seja de distinção e encanto, que atrai
as vistas, que as fixa, que as fascina.
Eu, a respeito de belezas femininas,
não sou partidário ardente do galante, do mignon,
como os franceses dizem; prefiro-lhe o ar de dignidade e grandeza que se lê em
certos tipos, temperado pelo que possui de brandura todo o rosto de mulher
verdadeiramente bela. A cabeça de Maria Clementina, um pouco inclinada para
trás, descobria, em toda a sua vantajosa forma, o colo, cuja transição para a
face e para os seios se fazia por curvas tão disfarçadas e brandas, que a vista
insensivelmente deslizava por elas e perdia-se a divagar naqueles lábios, que a
respiração entreabria, pousava amorosamente nas suas graciosas comissuras, que
se elevavam num quase imperceptível sorriso, nas pálpebras, que pareciam
denunciar o fulgor dos olhos que mal encobriam; ou baixava ardente como
insinuando-se por entre o corpilho do vestido, que subia até o pescoço, avaro
das belezas que ocultava, e como fascinada por aquele movimento cadenciado e um
respirar tranquilo.
— É ela — disse afinal Filipe, olhando
para a sua mãe e ainda comovido por sentimentos encontrados que o dominavam.
— Eu sei! — respondeu D. Joana,
continuando a sorrir.
— Sabe?!
— Bem vês que te trouxe aqui.
— Mas... como foi isto?
— Pediam justiça, enviaste a queixosa
para mim. Eu prometi fazê-la. A isso venho.
— A fazer justiça?
— Sim.
— E o ofendido é...
— E ela e o culpado és tu. Não to
diziam há pouco os teus remorsos, Filipe? Ao partires para Lisboa deixaste
comprometida a reputação desta menina.
— Pois acaso...
— Viram-te descer o muro do jardim...
— Oh! meu Deus...
— Desde então a sociedade escrupulosa
obrigou-a a procurar esta solidão. Deves supor se lhe terão sorrido os dias
passados aqui. E no entretanto tu esquecia-la na capital...
— Oh! minha mãe... juro-lhe...
— Não jures, Filipe; ora que vais tu
jurar? Confessa, é melhor; e arrepende-te, que é mais nobre.
— Eu sou um miserável, minha mãe.
— Que nome tão feio! Agora cais-me num
outro extremo. E preciso emendar o mal feito.
— E como?
— De uma maneira possível.
— Pois quer...
— Então que é? Hesitas em fazer
justiça, quando não hesitaste em cometer a culpa...
— E consente...
— Ordeno, se ainda podem ter para ti
valor as minhas ordens.
— Mas essas são para mim uma bênção do
Céu, creia-me! — exclamou Filipe, apoderando-se da mão da sua mãe e
beijando-lha com efusão.
Um movimento de Maria Clementina deu a
conhecer que ela despertava, enfim, do seu sono tranquilo ao rumor do diálogo,
que se travara entre D. Joana e o seu filho. Esta correu ao encontro de Maria
Clementina, ocultando por este movimento a presença de Filipe.
— Vossa excelência aqui! — disse Maria
Clementina sobressaltada ao abraçar D. Joana.
— Estava a gostar de a ver dormir...
E depois de a beijar afetuosamente, D.
Joana afastou-se, descobrindo assim a figura de Filipe, que se conservara
imóvel a distância.
Maria Clementina, dando com os olhos
nele, estremeceu, exclamando:
— Oh! meu Deus.
— E meu filho — disse D. Joana,
beijando-a na cara com uma carinhosa solicitude.
Maria Clementina vacilou, deixou-se
cair no banco em que estivera sentada, e pelas faces, que passavam de uma
súbita palidez a um intenso rubor, deslizaram as lágrimas que lhe inundavam os
olhos...
Nisto assomava na extremidade de uma
das ruas a velha Roberta com o copo de água e chá, que D. Joana lhe pediu.
Esta correu a encontrá-la para lhe
encobrir a turbação dos dois.
— Agradecida pelo incômodo que teve.
Agora faz-me um favor? Ajuda-me a cortar um ramo de japoneiras? — E
aproximando-se de Roberta, acrescentou a meia voz:
— Deixemos sós os dois; este é o tal
alferes...
— E este! — disse Roberta, olhando
para Filipe com os olhos espantados e com certa indignação. — E logo foi a ele
que eu...
— Está bom, deixemo-los, que tudo se
há de arranjar.
— Deveras?
— Comprometo a minha palavra.
— É a palavra real... — disse Roberta.
— Tem razão... não volta atrás —
terminou, sorrindo, D. Joana de Rialva.
E D. Joana, conduzida pela velha, foi
efetivamente cortar um ramo de camélias, com grande orgulho de Roberta, que
toda se desvanecia em estar colhendo flores para sua majestade.
Filipe e Maria Clementina ficaram.
Esta, vendo afastar-se D. Joana, levantou-se para segui-la; mas viu diante de
si Filipe ainda imóvel e atencioso, e as forças faltaram-lhe, deixando-se cair
de novo.
— Ainda poderei esperar de si a minha
absolvição, Maria? — disse Filipe aproximando-se da donzela.
— Pois eu já o acusei? — respondeu
timidamente Maria Clementina.
— Acusa-me a consciência.
— De que o acusa então? De me ter
mentido?...
— Não, que lhe não mentia quando lhe
disse que a amava...
— Então? De me ter esquecido?
— Também não. Podia eu esquecê-la?
— Não sei. Mas de que o acusa a
consciência? Diga.
— De não ter sido eu próprio que há
mais tempo tivesse vindo oferecer-lhe a reparação do mal que lhe fiz.
— Do mal? Pois sabe se me fez mal?
— Sei. Soube-o agora... da minha mãe.
— Entendo. E vem oferecer-me uma
reparação?
— Era o meu dever, mesmo quando...
— É uma generosidade. Mas ouça-me —
disse Maria Clementina, levantando-se e caminhando para Filipe, com uma
resolução que contrastava com a sua timidez de há pouco. — Eu não posso aceitar
um sacrifício.
— Um sacrifício...
— Olhe, Filipe, um ano de solidão
faz-nos pensar com madureza. Há um ano receberia com alvoroços de alegria as
palavras que me disse. Hoje não. Sou culpada para com o mundo. Que me importa!
Sou inocente para com a minha consciência. Mas quando mesmo esta me acusasse,
acredite que não me moveria a aceitar de si isso que chama o cumprimento de um
dever. Deveres! Quem lhos impôs? A sociedade? Eu não lhe pedi que advogasse a minha
causa. Eu? Bem vê que não. Tranquilize os escrúpulos da sua consciência; se é
ela que o impele a esse passo, desista de obedecer-lhe; eu absolvo-o de toda a
responsabilidade. Obrigada, Filipe, mas bem vê que não devo aceitar.
— E se a voz da consciência se harmonizar
neste caso com a do coração?
— E quem mo há de assegurar? — disse
Maria Clementina, voltando à sua anterior confusão.
— Incrédula? Exigir provas é renegar a
persuasão do amor. Sabe por que há um ano me acreditava e hoje duvida?
— Porque se passou um ano! E que ano,
Filipe! que experiência colhida nestes doze meses passados a sós com o meu
pensamento e com o desprezo dos outros...
— Do desprezo, pois acaso...
— Oh! Não julgue que lhe falei nisto
como uma arguição. Não era o que mais me fazia sofrer esse desprezo;
esquecia-me dele. Outra causa movia as minhas lágrimas.
— E era?
Maria Clementina calou-se embaraçada.
Filipe aproximou-se dela, e
tomando-lhe a mão insistiu:
— O que a fazia chorar então, Maria?
Maria Clementina levantou os olhos úmidos
de lágrimas e com um sorriso angélico respondeu suspirando:
— E pergunta-mo? Chorava, chorava de
saudade.
— Pois lembrava-se de mim?...
— Duvida, e quer que acredite no seu
amor!
— Se eu era indigno de tanto! E agora...
— Agora?
— Por que mudou de pensar?
— Por que mudei? Eu mudei! E julga que
posso deixar de acreditar; julga que me restam forças para resistir a uma
tentação! Devia pedir-lhe misericórdia, mas... Nem sei... Olhe, que exige de
mim? que diga que o amo?... Pois sim, amo-o, amo-o. Que mais quer? É a minha
perdição talvez.
— E a sua salvação, minha filha —
disse D. Joana, que se aproximou de Maria Clementina e a apertou nos braços.
Nisto ouviu-se tocar a sineta do
portão.
CAPÍTULO 8: EXPLICAÇÕES — NÃO HÁ JUSTIÇA COMO A JUSTIÇA DE SUA MAJESTADE
Os sons vibrantes da sineta
interromperam de chofre as carinhosas efusões de D. Joana e Maria Clementina,
que se olharam como se perguntassem uma à outra — quem será?
Em seguida novos e mais rápidos sons
se fizeram ouvir, ecoando pelo jardim, indicando que quem tangia a sineta
queria ser ouvido e tinha pressa de transpor o portão.
— Quem será — disse Maria Clementina —
que tão apressado se mostra?
— Deve ser — respondeu D. Joana — seu
padrinho e o major, que ficou de estar aqui com ele por estas horas. Filipe
conservar-se-á por enquanto aqui fora; a menina quer-me acompanhar ao encontro
dos recém-chegados?
Maria Clementina cedeu o braço a D.
Joana, que, apoiando-se nele, caminhou na direção do portão.
— Vamos trabalhar no seu futuro; quero
dispor tudo antes de partir.
— Pois quando parte?
— Depois de amanhã.
— Já? Tão cedo.
— Assim me é indispensável. Mas em
breve a tomarei a ver em Lisboa. Não é verdade?
— Em Lisboa?... — disse Maria
Clementina, corando.
— Sim, e bem junto de nós. Sempre
desejei ter uma filha. Dou graças por me deparar uma tão boa.
— Oh! minha senhora — exclamou Maria
Clementina, não podendo conter o seu reconhecimento e apoderando-se-lhe da mão,
que beijou comovida.
— Vejo que me aceita por mãe...
Obrigada.
— E é a senhora que me diz obrigada? A
mim, que pela primeira vez conheço a ventura que há em ser filha!
— Pobre menina. Mas vamos, não nos
sensibilizemos, que estamos próximos ao último ataque decisivo.
Esta observação foi sugerida a D.
Joana pela vinda de José Urbano, que na companhia do major se aproximava delas.
— Que agradável surpresa! vossa
excelência aqui?
— E verdade, Sr. José Urbano. Espero
que me perdoará esta invasão da sua propriedade.
— Oxalá que ela se reproduzisse.
— Mas veja que não me retiro sem paga!
— acrescentou, mostrando-lhe o ramo de camélias que colheu.
— E na verdade só agora que começo a
conhecer o preço dessas flores...
— A benevolência do proprietário
anima-me a confessar-lhe que as minhas intenções vão mais longe. Premedito um
roubo de mais valor.
— Vossa excelência?
— É verdade, e receio não lhe
encontrar tão boas disposições de mo perdoar como agora.
— Deveras! — respondeu José Urbano,
sorrindo.
— Vou fazer-lhe a confissão dele, se
me quiser ouvir.
— Com a melhor vontade. Quer vossa
excelência entrar?
— Aceito. Venha, major.
— Pois também entro na confidência?
— Não o dispenso.
Maria Clementina deixou-se ficar um
pouco atrás, enleada e confusa, porque previa do que se ia tratar.
D. Joana aproximou-se dela e disse-lhe
a meia voz:
— Poupo-lhe o dissabor de assistir ao
processo; dentro em pouco lhe comunicarei a sentença.
Maria Clementina retirou-se.
José Urbano, D. Joana e o major
entraram no salão.
José Urbano tinha um ar prazenteiro, o
major puxava o bigode com certo embaraço, D. Joana meditava um plano de
campanha.
Sentaram-se todos.
— Sr. José Urbano, eu não sou
partidária dos rodeios. Costumo ir direita ao fim. O roubo que eu lhe premedito
fazer é nada menos que o da sua sobrinha.
— De minha sobrinha! — repetiu José
Urbano, entre sério e risonho, como se esperasse a explicação destas palavras.
— E verdade. Queria pedir-lha para
filha.
— Como?!...
— Imagine, Sr. José Urbano, que eu
tenho um filho por quem sou doida, perdidamente doida, e que concebi que era
Maria Clementina a mulher que lhe podia dar a felicidade que eu ambiciono para
ele.
José Urbano olhava estupefato para D.
Joana, como se não tivesse compreendido.
— Então diz vossa excelência que...
— Que lhe peço a mão da sua afilhada
para...
— Mas um projeto tão pouco meditado...
— Talvez menos do que julga.
— Menos do que julgo... — disse José
Urbano com manifesta intenção. Seja assim; mas o que vossa excelência me pede
não pode realizar-se.
— Que diz, Sr. José Urbano?! Não posso
acreditar que me negue a satisfação de obter o que lhe peço, porque já
considero sua sobrinha como minha filha muito amada.
— Não duvido; mas Maria Clementina,
que é um anjo, não pode casar com o filho de vossa excelência, porque se opõem
a isso... circunstâncias e melindres que é necessário respeitar.
E José Urbano carregou de tal maneira
o rosto, que parecia indicar à sua interlocutora que não continuasse a
falar-lhe naquele assunto.
D. Joana, porém, pareceu não atentar
nisso, e, mostrando-se risonha, continuou, dizendo:
— Parece-me compreender, Sr. José
Urbano, que tem receio do meu filho não ser digno da sua sobrinha, nem capaz de
a fazer feliz.
— Não é isso, minha senhora —
interrompeu José Urbano, com vivacidade. — São motivos particulares, que dizem
respeito a uma pessoa da minha família, que já não vive e a quem muito amei.
— Mas — disse D. Joana — se não há
desonra para sua sobrinha no enlace dela com o meu filho, por que me recusa a
sua mão? Dar-se-á que a destine para outro mais digno que o meu filho?
— Não destino, não. Enfim — disse José
Urbano, um pouco enfadado — acabemos com isto. Para vossa excelência conhecer a
razão da minha negativa, era necessário contar-lhe a minha e a história da
minha irmã, que não vive há muito e a quem amei extremosamente. Essa história
cansará a paciência de vossa excelência e do Sr. major, que desejo poupar...
— Conte, conte — disse D. Joana — que
nos dará com isso muito prazer. Não é assim, major?
— Decerto — respondeu este — porque
estou ansioso de a ouvir.
O rosto de José Urbano empalideceu e
mostrou-se anuviado de tanta tristeza que causou profunda impressão em D. Joana
e no major.
— Seja como querem — disse por fim
José Urbano, depois de ter estado algum tempo silencioso, e como que invocando
as recordações do passado. — E doloroso avivar feridas que desejo cicatrizadas,
mas não tenho outro meio de acabar com isto. Ouçam:
Quando a minha mãe morreu, tinha eu
vinte anos. Foi em 1818. Até aí, vivera eu como rapaz.
De pequeno senhor da minha vontade, eu
não sabia o que eram sujeições e constrangimentos. A minha mãe era uma santa
mulher, que vivia absorvida entre as suas devoções e as suas economias. Os
pequenos haveres em bens rurais, que o meu pai deixara ao morrer, eram por ela
tão bem administrados, que nunca a menor sombra de privações nos veio amargurar
a vida.
Quando morreu, achei-me eu à testa da
família. A minha mãe tinha-me dito pouco antes: “Tenho-te deixado gozar a tua
vida de rapaz, porque bem sabia que dentro em pouco terias de renunciar a ela.
Vê se compreendes o teu dever. Deixo-te uma irmã de oito anos.”
Aterrou-me ao princípio esta
responsabilidade, e o novo encargo fez-me pensar seriamente. Obedeci a minha
mãe; desde o dia da sua morte, abandonei a companhia dos meus companheiros de
prazer e votei-me de coração ao trabalho. Sentia-me recompensado com a alegria
que experimentava quando podia dar um vestido novo a minha irmãzita.
Cedo as minhas ambições começaram a
crescer. E sempre a mesma história. Já me não contentava com os modestos, mas
continuados, proventos que tirava do meu negócio de cereais. Queria lucros mais
visíveis.
O Brasil começou-me então a sorrir com
as suas promessas de riquezas, com que a tantos atrai. Não descansei mais
enquanto não realizei o meu intento.
Regulei com um negociante meu amigo
uma mesada a minha irmã, e deixei-a em companhia da Roberta, que foi ama de nós
ambos, e parti.
Seria curiosa e rica de experiência a
história da minha vida no Rio de Janeiro, se o contá-la me não afastasse do fim
que tenho em vista. Basta que diga que trabalhei! Trabalhei deveras. Não me
fazia hesitar qualquer trabalho, por penoso que fosse. Recusava apenas as
empresas menos honestas.
Tive que sofrer e muito. Estive no
Brasil por ocasião da guerra da independência. Basta que diga isto. Mas a minha
perseverança valeu-me e não me deixou soçobrar. No fim de seis anos, aumentava
consideravelmente a mesada a minha irmã. No fim de oito, podia-me dizer rico.
Mais um ano no Brasil, e voltarei para Portugal, disse eu comigo.
Não havia dia em que não pensasse
nisto com entusiasmo.
Por meados de 1833, andava eu tratando
da liquidação, quando, ainda me lembro bem, recebi de Portugal uma carta
tarjada de preto. Abri-a a tremer. Era do negociante meu amigo, participando-me
que a minha irmã, que havia tempos se achava incomodada, morrera no dia 23 de
Julho de 1833, apesar de todos os socorros da medicina.
Não posso dizer como fiquei quando li
esta carta. Caí em tal abatimento, que os médicos agouraram mal da minha vida.
Aconselharam-me ares pátrios. Mas eu já não tinha coração para voltar aqui; ao
mesmo tempo, a minha vida no Rio de Janeiro era-me insuportável. Terminei a
liquidação do meu negócio, e fui viajar.
Percorri a Europa; durante quatro
anos, vivi vida errante e aventureira. No fim deste tempo, conheci que estava
cicatrizada a chaga do meu coração, começaram a crescer em mim uns veementes
desejos de voltar à minha terra. A mesma saudade me chamava. Não pude
resistir-lhe. Entrei em Portugal em 1837. Quando avistei a casa onde eu nascera
e onde vivi com a minha irmã, senti uma profunda comoção interior. Vir
encontrá-la vazia, sem aquela linda menina, que eu deixara de dez anos a
brincar, que viera à janela ver-me dobrar a esquina quando eu parti, para a não
tomar a ver! E, pensando isto, eu parei em frente da casa a olhá-la e sem
forças que me levassem mais adiante. Quando de repente — que ilusão aquela, meu
Deus! — a mesma janela se abriu, e ela... a minha irmã, tão pequena como eu a
deixara, se encostou ao peitoril, olhando-me exatamente como me olhava dantes.
Eu não pensei no impossível da visão.
Acreditei nela. Corri, corri como um louco, e bati à porta, gritando:
— Abre, Roberta, abre... A minha irmã
ainda está viva!... Eu logo vi que não podia ser.
Roberta veio-me abrir a porta a
tremer. Não sei como ela me reconheceu nem o que me disse. Eu estava alucinado.
— Deixa-ma ver, deixa-ma ver! Para que
me tinham dito que ela morrera?
Não posso dizer como corri e o que se
passou; lembra-me que dentro em pouco tempo eu abraçava e beijava uma bonita criança
de dez anos, julgando beijar minha irmã. E ela também me abraçava, sorrindo e a
chorar... a pobre pequena. Porém, a ilusão passou; a razão voltou-me, reconheci
que havia nisto tudo um engano. Mas a semelhança era tanta! Um ar de tristeza
se apoderou de mim; e voltando-me para Roberta, que chorava a um canto,
perguntei-lhe:
— Quem é esta menina, Roberta?
— E sua sobrinha, filha da sua irmã.
Dei um salto, como se aquelas palavras
me atravessassem o coração. Um relâmpago terrível me iluminou o espírito; ia a
passar das carícias talvez a alguma crueldade, quando aquele anjo, ouvindo as
palavras de Roberta, exclamou:
— Ai, pois, é este o meu tio! e
saltou-me ao pescoço, beijando-me com meiguice. Desarmou-me; desatei a chorar,
e não pude deixar de a apertar ao coração.
Passados poucos instantes, Maria
retirou-se para ir buscar flores, disse ela, e eu fiquei só com Roberta.
Voltou-me o ar sinistro que aquela criança me havia conjurado, e disse a
Roberta que me contasse a história da minha irmã. A história era curta.
— A infeliz foi enganada por um
infame, que, abusando da sua inocência, fora a causa do seu infortúnio e da sua
morte.
— E era assim que vigiavas pela irmã
que eu te confiei, Roberta?
A pobre mulher respondia-me chorando.
Mas a voz da minha consciência
acusava-me mais do que a ela. Eu é que não devia ter abandonado a irmã, para
satisfazer ambições desmedidas. Agora, cumpre-me chorá-la e proteger-lhe a
filha melhor do que a protegera a ela. Pobre criança! Quem podia deixar de
querer-lhe? Ela reproduziu-me as venturas que eu julgava perdidas para sempre.
Nela cri renascer minha irmã. E por isso a amei. Amei-a logo e cada vez mais! E
veja como parece a sorte perseguir-me; durante meses que tive de passar no
Porto, por pouco a não ia sacrificando, e lhe causei, sem querer, um mal
irremediável! Está terminada a história de Maria Clementina.
A sorte infeliz da minha irmã era
muito notória, para que eu pudesse viver feliz na minha terra. Vim por isso
para Braga, deixando Barcelos, onde nascera, com vivas saudades.
— Barcelos! — exclamou o major, que
havia momentos não podia dissimular a sua agitação.
— Sim — respondeu José Urbano —
julgava ter já dito que tinha sido em Barcelos que eu nasci. Agora, já vê vossa
excelência a razão porque eu há pouco lhe dizia que a proposta que se dignou
fazer era impossível. Maria Clementina é filha ilegítima e eu não conheço o
pai.
— Não conhece? — perguntou D. Joana
com interesse.
— Nunca me puderam dar sinais dele. Em
Roberta encontrei sempre uma reserva, nesse ponto, que me fez julgar ser
recomendação da minha irmã. Sei apenas que era um militar, um dos muitos que
por aqueles tempos (foi em 1832) cobriam o reino. Era vida de guerra a de então...
algum aventureiro, que nunca mais se lembrou da vileza que cometera, nem talvez
mesmo ao cair no campo atravessado por uma bala inimiga.
— Sua irmã chamava-se?... — perguntou
o major com voz alterada.
— Maria Luísa — respondeu José Urbano.
O major não se pôde vencer. Olhando
para Maria Clementina, que passeava então no terraço adjacente, exclamou,
juntando as mãos:
— Justo Deus! pois eu tinha uma filha?
Esta exclamação do major fez
estremecer José Urbano, que empalideceu. D. Joana ergueu-se também
sobressaltada.
— Sr. José Urbano — disse o major,
comovido — o militar, o aventureiro, o miserável que acusou, sou eu; não ficou
atravessado por uma bala no campo de batalha, mas por muito tempo o conservou
num leito de doença, e quando se ergueu foi seu primeiro pensamento a mulher
que verdadeiramente amara; disseram-lhe que tinha morrido, mas nunca ele soube
que lhe ficara uma filha. Ai, se o soubesse! Eu, que tantas vezes me
atormentava na minha solidão vazia de afetos... Se eu suspeitasse que existia
na terra aquele anjo! — E o major juntava as mãos, olhando para Clementina.
José Urbano conservava-se mudo e
taciturno.
— Quando mesmo Maria Clementina não
tivesse achado um pai — disse D. Joana — não julgue que eu desistiria do meu
pedido, Sr. José Urbano. Mas agora parece-me que cessam da sua parte todos os
escrúpulos.
José Urbano ergueu a cabeça e, fitando
o major, disse:
— Ainda bem, major Samora, que só nos
reconhecemos na idade em que se apagaram os fogos da juventude; ainda bem.
— Então, é a ambos que peço a mão de
Maria Clementina para o meu filho... — disse D. Joana; seja esta união a que
faça desvanecer a nuvem que parece meter-se entre os senhores. Deem as mãos
como amigos. Vamos.
O major ficou quieto, e José Urbano
caminhou para ele com as mãos estendidas.
— Acredito, major, que foi leviano,
mas não foi vil. A minha irmã mandar-me-ia perdoar.
Os dois apertaram as mãos.
Dentro em pouco tempo, eram tudo
abraços na sala de José Urbano.
A um sinal de Joana, Maria Clementina
entrara em casa, com o coração alvoroçado e as faces tingidas de rubor.
Filipe, que entendeu também o sinal da
sua mãe, seguia a pequena distância. Quando Maria Clementina entrou, D. Joana
foi-lhe ao encontro, e tomando-a pela mão levou-a junto do major.
— É de justiça que seja para o major o
primeiro abraço — disse D. Joana.
O major tremia ao abrir os braços a
Maria Clementina, e a custo exclamou:
— Minha filha!
Maria Clementina olhava com
estranheza.
José Urbano disse-lhe, comovido,
apontando para o major:
— Podes abraçá-lo, Micas, é teu pai...
Filipe entrou neste momento.
Maria Clementina achava-se nos braços
do major, desfeita em lágrimas, mal compreendendo ainda o que se passava.
Samora, que não se fartava de a
abraçar, disse, meio a rir meio a chorar, para Filipe, que o olhava estupefato:
— E o complemento daquela minha história;
eu tinha uma filha... Era esta... este anjo.
E desprendendo-a dos braços,
acrescentou:
— Como vamos ser felizes todos!
José Urbano aproximou-se de Filipe, e
disse-lhe:
— E tem fé que a tomará feliz?
— Quanto a puder fazer um amor
verdadeiro.
— Ora não desanimem então.
Imaginem as efusões mútuas que se
seguiram.
Ao entrar Roberta na sala, o major
foi-lhe ao encontro, exclamando:
— Roberta! Lembra-se ainda do alferes
Clemente Samora?
— Santo nome de Deus! Que nome foi
dizer! — exclamou a velha, olhando para seu amo com ar de mistério e susto.
— Saiba que ele vive ainda, e que
encontrou sua filha, a que abraço agora...
— Quê?... pois então... E verdade que
tem avultações. Mas... santo nome!... Santo... então?
— Então, este dia é um dia de ventura.
Achei minha filha, e exatamente na ocasião de encontrar também um filho no
melhor rapaz do exército.
— Oh! major!
Os dois militares apertaram as mãos
afetuosamente.
— Ah! pois já está tudo arranjado? —
exclamou Roberta, exultando de contente.
— Tudo, graças ao seu expediente,
Roberta. Pode ufanar-se de ter feito a felicidade dos seus amos.
— Como? — perguntou José Urbano.
— Ora como? — disse Roberta — indo a
fonte limpa. Quem pode...
— Psiu!... — disse D. Joana, olhando-a
com mistério.
— Ah! pois ele não sabe ainda? —
murmurou Roberta, olhando para seu amo com ar de mistério. — Não importa; eu
não posso deixar de bradar: Viva a sua majestade a rainha!
A saudação foi jovialmente acolhida.
Do mais que se seguiu, deixo-o à
imaginação do leitor concebê-lo.
D. Joana partiu no dia seguinte para
Lisboa.
O major Samora, Filipe, José Urbano e
Maria Clementina seguiram-na passados oito dias.
O casamento fez-se na capital, onde os
noivos ficaram residindo na companhia do major, que remoçava com o inesperado
sucesso, e recebendo visitas amiudadas de José Urbano, que reside ainda em
Braga. Roberta vive na firme persuasão que foi a rainha D. Maria II quem
interveio no casamento dessa menina, e toda ufana repete muitas vezes, com
grande prazer de José Urbano.
— Aqui está quem deslindou este
negócio todo. Não fora eu, que ainda hoje estaríamos como dantes: eu nem sei o
que seria. Não há justiça como a justiça da sua majestade.
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Pesquisa e atualização
ortográfica: Iba Mendes (2019)
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